
12 minute read
Rede de Comércio Justo e Solidário: entrelaçando comunidades
from Economia solidária, Diaconia e Desenvolvimento Transformador
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
38
Marlui Tellier1 Angelique J. W. M. van Zeeland2
A Rede de Comércio Justo e Solidário é uma iniciati va da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) de fomento à economia solidária. Seu objeti vo é aproximar grupos/empreendimentos econômicos solidários e comunidades e insti tuições diaconais da Igreja Evangélica de Confi ssão Luterana no Brasil (IECLB), com vistas à construção de relações comerciais socialmente solidárias, economicamente justas, duradouras e transparentes, promovendo a geração de trabalho e renda e a educação para o consumo.
O comércio justo, em inglês chamado Fair Trade, tem uma história de aproximadamente 60 anos: começou na década de 1950, em diversos países de Europa, principalmente Inglaterra e Holanda, e nos EUA. O comércio justo surge como uma resposta ao fracasso do comércio convencional, onde a pobreza e a privação limitam as opções das pessoas. De acordo com a carta de princípios da Organização Mundial do Comércio Justo:
1 Assistente de Projetos da FLD. Acadêmica do curso de Serviço Social na PUC/RS. 2 Assessora de Projetos da FLD. Doutoranda em Economia em Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
“El movimiento de Comercio Justo comparte una visión del mundo donde la justi cia y el desarrollo sostenible se encuentran en el corazón de las estructuras y prácti cas de comercio, para que todo el mundo, con su trabajo, pueda tener un salario decente y digno y desarrollar su potencial humano en su totalidad.” (WFTO e FLO, 2009, 5).
A primeira organização de comércio justo, Fair Trade Organisati e, foi criada na Holanda na década de 1960, assim como a primeira loja de comércio justo. Em 1988 foi criada a primeira certi fi cação do comércio justo, “Max Havelaar”. O nome é oriundo do tí tulo e principal personagem do livro “Max Havelaar”, de 1860, escrito por Eduard Douwes Dekker, sob o pseudônimo Multatuli. Dekker trabalhou como ofi cial do governo holandês na Indonésia, colônia holandesa na época. No livro, ele denuncia as violações de direitos e as condições deploráveis das trabalhadoras e dos trabalhadores nas plantações de café e do povo de Indonésia. O fi nal do livro é direcionado ao Governo e, especifi camente ao rei da Holanda, com a pergunta se ele pode aceitar: “que lá seus mais de 30 milhões de cidadãos são maltratados e explorados em seu nome?”4 (MULTATULI, 1992, 248.).
O café foi um dos primeiros produtos certi fi cados. Nas décadas de 1980 e 1990 surgem diversas outras organizações certi fi cadoras de comércio justo. Nestes anos também surgem insti tuições que unem as diversas organizações de comércio justo, como a Internati onal Fair Trade Associati on (IFAT), Network of European Network of European WorldShops (NEWS) e a Fairtrade Labelling Organizati ons Internati onal (FLO). A parti r dos anos 2000 surgem os sistemas nacionais de comércio justo nos países do Sul.
O surgimento do comércio justo e solidário nos países do Sul e especifi camente na América Lati na é baseado nos princípios da economia solidária, que propõe outra forma de produzir, comercializar e consumir, de forma democráti ca e parti cipati va, onde a ati vidade econômica deve estar dirigida à sati sfação das necessidades sociais e ao desenvolvimento sustentável e territorial. Nesta perspecti va são abordadas as novas dinâmicas e estratégias desenvolvidas pelas organizações de produtores e rede de atores dos países do sul. De acordo com Arturo Palma Torres e Rosemary Gomes (2008), isto resulta em “la necessidade de redefi nir las relaciones entre las organizaciones del Comercio Justo del Norte y del Sur”.
O Comércio Justo e Solidário no Brasil é baseado nos seguintes princípios: fortalecimento da democracia, autogestão, respeito à liberdade de opinião, de organização e de identi dade cultural; garanti a de condições justas de produção e de trabalho; apoio ao desenvolvimento local sustentável, promovendo a inclusão social através de ações geradoras de trabalho e renda; respeito ao meio ambiente; respeito aos direitos das mulheres, crianças, grupos étnicos e trabalhadores, garanti ndo a equidade
4 Tradução pelas autoras, no original consta: “En dat daarginds Uw meer dan derti g miljoen onderdanen worden mishandeld em uitgezogen in Uw naam?”. 39
40
e a não discriminação entre todos; garantia de informação ao consumidor, primando pela transparência e pela educação para o consumo responsável; Estímulo à integração de todos os elos da cadeia produtiva. (FACES DO BRASIL, 2009).
Em novembro de 2010 foi assinado o Decreto 7.358, que institui o Sistema Nacional do Comércio Justo e Solidário (SCJS). O SCJS tem como finalidade fortalecer e promover o comércio justo e solidário no Brasil. De acordo com o decreto, comércio justo e solidário é: “a prática comercial diferenciada pautada nos valores de justiça social e solidariedade realizada pelos empreendimentos econômicos solidários”.
Rede de Comércio Justo e Solidário
A Rede de Comércio Justo e Solidário é uma iniciativa de dar forma concreta ao desenvolvimento transformador baseado na promoção dos direitos. O desafio da busca por uma justiça econômica significa também a luta pela transformação de valores e do atual padrão de consumo, que resulta na exploração das trabalhadoras e dos trabalhadores e a exploração dos recursos naturais. Significa o apoio para formas de comercialização solidária e uma cultura de consumo que respeita o meio ambiente, as condições de trabalho e a defesa dos direitos. Os grupos de economia solidária e os movimentos sociais estão começando a trabalhar com a percepção de mercado como uma realidade econômica e social e, ao mesmo tempo, como um espaço de resistência contra a exclusão e de organização social de produção para poder alcançar emancipação, cidadania e transformação da sociedade.
Durante o acompanhamento aos grupos ligados à Economia Solidária – os empreendimentos econômicos solidários –, a FLD identificou iniciativas promissoras, mas com dificuldades na comercialização de produtos, gerando, consequentemente, dificuldades para a manutenção dos grupos.
A partir deste contexto, nasceu a Rede de Comércio Justo e Solidário, como um instrumento de aproximação e articulação entre produtoras/es e consumidoras/es: de um lado, empreendimentos da Economia Solidária, parceiros da FLD que precisam ser fortalecidos e, de outro, comunidades e instituições luteranas da IECLB que demandam informações e possibilidades para a mudança de hábitos e de consumo. A ideia é que através da aquisição de um produto feito a partir de uma forma alternativa ao da economia que conhecemos, as compradoras e os compradores tenham a chance de fazer a escolha por um consumo mais consciente. O comércio justo permite às consumidoras e aos consumidores conhecer quem produz, o que irão levar para suas casas, saber como foi feito o que estarão oferecendo para suas crianças, constituindo assim, relações duradouras, solidárias, contribuindo para desenvolvimento local, para o cuidado com o meio ambiente, gerando outra relação no momento da compra. É preciso haver transparência na composição dos preços praticados e na elaboração dos produtos,
garantindo acesso à informação acerca dos produtos, processos e organizações.
A Rede de Comércio Justo e Solidário conta com um total 33 empreendimentos: 11 trabalham com artesanato; quatro, com matéria prima reutilizada; sete, com confecção; um, com produtos de higiene; e 10, com alimentação. Ainda, há o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA), que reúne cinco núcleos em diferentes cidades da região sul do Brasil e trabalha com a alimentação agroecológica, o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), que reúne um número significativo de grupos que trabalham com artesanato, e o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis/RS, trabalha com prestação de serviços na área da coleta seletiva. Destes empreendimentos, 70% são formados por mulheres, que buscam nesta atividade econômica uma forma de complementação da renda familiar ou até mesmo a renda de toda uma família. Alimentam seus filhos, educam e muitas vezes superam situações de violência e de discriminação, através do seu trabalho coletivo. A REDE conta com mais de 1000 pessoas diretamente beneficiadas.
A Cooperbom, uma cooperativa da área da alimentação, por exemplo, surgiu como forma de gerar renda para as famílias de um bairro do município de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre (RS). O período era de total crise econômica no Brasil, alto desemprego, e pais e mães das crianças atendidas em uma creche decidiram criar um empreendimento próprio.
A Cooperbom já completou 15 anos. Atua na área de prestação de serviços, mas seu principal trabalho é na área da alimentação. Atualmente, conta com um pequeno restaurante e confeitaria em sua sede, que garante a manutenção do dia a dia da cooperativa, porém a contratação de coffee breaks, coquetéis, almoços, jantares, eventos em geral, além do fornecimento de lanches, é o que realmente gera renda para as cooperadas e cooperados.
Atualmente conta com 56 pessoas, entre mulheres e homens, sendo que destes, 12 são jovens da comunidade em busca do seu primeiro emprego. Isabel Cristina de Souza Cunha, uma das lideranças, relata que seu principal público consumidor é composto de órgãos ligados ao poder público. Devido à burocracia, ficam semanas, às vezes meses, sem receber o pagamento. “Isso gera um enorme transtorno, pois não conseguimos ter um capital de giro para dar conta por tanto tempo no fornecimento de produtos e serviços”, diz. “Com a Rede de Comércio Justo, com o público diferenciado ao qual estamos tendo acesso, temos maior garantia de sobrevivência. O retorno financeiro vem na hora e a certeza da sustentabilidade é muito maior.”
Gestão compartilhada
Para o desenvolvimento da proposta, no início de sua execução a FLD propôs a constituição de um grupo gestor composto por dois representantes por segmento produtivo, além de um representante do grupo de jovens AGIR, da 41
42
Comunidade Evangélica de Porto Alegre (vinculada à IECLB), que se organizou para promover ações de comercialização de produtos da REDE após os cultos.
O grupo gestor se reúne mensalmente na sede da FLD e colabora no planejamento e na execução das atividades de comercialização e divulgação, assim como na elaboração dos documentos que norteiam as ações da REDE.
A constituição do grupo gestor foi de grande relevância para a proposta, pois a partir do seu envolvimento direto na gestão da REDE, solidificou-se a relação entre a FLD e os empreendimentos, promovendo o protagonismo das e dos participantes e o compartilhamento de responsabilidades.
A participação de um representante do grupo AGIR também foi muito relevante, por seu papel protagonista no desenvolvimento de novos jeitos de ser comunidade luterana, trouxe para a REDE as expectativas do público consumidor, suas dúvidas, as melhores formas de divulgar a proposta para um público que, em geral, desconhece esta outra forma de trabalho e renda. Além disso, esta participação direta colaborou para ampliação dos espaços de comercialização e divulgação dentro da comunidade luterana.
Para a divulgação da proposta foi desenvolvido um catálogo virtual, onde cada empreendimento divulga até cinco produtos, contatos, endereço, blogs e o que tiver de informações, facilitando o contato direto com o consumidor. Neste espaço, o consumidor pode navegar, conhecer o que está sendo produzido pelos empreendimentos que compõem a REDE e entrar em contato direto com quem faz, para saber de outros produtos, valores e formas de aquisição. O catálogo virtual da REDE colaborou para que os empreendimentos fossem mais conhecidos pelo público consumidor, ampliou as vendas e continua sendo o principal meio de divulgação dos produtos, juntamente com a página na rede social.
O apoio continuado do Sínodo Nordeste Gaúcho (um dos 18 sínodos que formam a IECLB) possibilitou que a REDE fosse mais conhecida por suas comunidades. Este sínodo tem priorizado a compra de produtos da REDE e tem apoiado o esforço da FLD na divulgação da proposta junto aos demais sínodos. Vale destacar a própria adesão da direção geral da IECLB, que tem feito compras diretas de alguns dos empreendimentos.
Como reflexo deste trabalho coletivo, no final do segundo semestre de 2013, a REDE ganhou reconhecimento nacional, tendo sido certificada como uma tecnologia social pela Fundação Banco do Brasil. A certificação atesta, em âmbito nacional, que a proposta é replicável, promove interação com a comunidade e traz efetivas soluções de transformação social.
Formação e aprendizagem coletiva
Para além da comercialização, a Rede de Comércio Justo e Solidário desenvolve atividades de fortalecimento dos empreendimentos através de oficinas, encontros
e formações. Também promove a sensibilização das comunidades e instituições luteranas através de rodas de conversa, palestras e oficinas. Em 2013, foram 25 eventos de comercialização, quatro atividades de capacitação para os empreendimentos e seis oficinas de sensibilização, envolvendo 5 mil pessoas, além de uma reunião com todas e todos envolvidas/os na proposta e um grande encontro com o tema Economia Solidária e Relações de Gênero, que teve 56 participantes.
Outro viés é a conscientização de crianças, adolescentes e jovens que existe uma opção de comércio solidário. Este trabalho de conscientização está vinculado à proposta da Rede de Comércio Justo e Solidário a partir de outra iniciativa da FLD, chamada Educação pela Solidariedade. Depois de uma atividade promovida pela FLD no Colégio Sinodal de Portão (RS), da Rede Sinodal de Educação, com crianças e adolescentes, a coordenadora pedagógica, Cynthia Cristina von Mühlen, afirmou:
“a escola é o lugar do conhecer, do aprender, do descobrir, do refletir e, por isso, deve proporcionar às alunas e alunos diversas e diferenciadas experiências. O que foi trabalhado aqui, tanto na palestra sobre Economia Solidária, como nas atividades de comercialização de produtos de grupos e do café da tarde servido pela Cooperbom, permitiu à comunidade escolar conhecer outras formas de organização e vivências de pessoas de outros lugares e realidades. Abriu a percepção de mundo e por isso foi muito proveitoso. As/os alunas/os receberam muito bem estas experiências, e certamente refletirão sobre elas. Sem dúvida, vale continuar este trabalho em outros momentos e situações”.
Neste contexto é que se dá a proposta da Rede de Comércio Justo e Solidário. Muitos resultados já foram alcançados, como a realização de inúmeras feiras, compras diretas via catálogo eletrônico, aproximação entre membros de comunidades/instituições e empreendimentos, atividades de formação, tomada coletiva de decisão, introdução do tema comércio justo junto a públicos diversos. Entretanto, o desafio da sensibilização e formação para a adoção de práticas de consumo justas e solidárias continua colocado. Substituir uma cultura consumista, imediatista e plastificada por uma cultura que valoriza as pessoas produtoras e não apenas os produtos, que exige uma participação mais ativa da pessoa consumidora, não é tarefa fácil ou capaz de ser desenvolvida a curto prazo.
Por esta razão, é fundamental acentuar, persistir nesta proposta, buscando superar os abismos culturais, sociais e étnicos e construir 43
uma sociedade com mais paz e justiça social, por meio da sensibilização para a realidade de outras pessoas em meio à fragmentação social, à cultura do individualismo e ao predomínio da indiferença. Na economia solidária, o ato de consumir é uma escolha para a valorização das trabalhadoras e dos trabalhadores e das produtoras e dos produtores de grupos comunitários, para a preservação do meio ambiente e o estímulo ao desenvolvimento local sustentável.
Referências
BRASIL. Decreto Nº 7.358, de 17 de Novembro de 2010. Brasília: Presidência da República, 2010. FACES DO BRASIL. O Comércio Justo e Solidário no Brasil. São Paulo: FACES, 2009. Disponível em: www.facesdobrasil.org.br/midiateca/doc_download/524-cartilha-do-sistema-nacional-de-comercio-justo-e-solidario.html Acesso em: 05/03/2014. MULTATULI. Max Havelaar. Amsterdam: Querido’s Uitgeverij B.V., 1992. TORRES, A. P.; GOMES, R. “Comercio Justo y Solidário en América Latina.”. Em: El Comercio
Justo em España 2008. Canales de importación y distribución. 2008. Disponível em: www. base.socioeco.org/docs/cjesp_3.1_cj_en_al-1_2_.pdf Acesso em 05/03/2014. WFTO – World Fair Trade Organization e FLO – Fairtrade Labelling Organizations International. Carta de los Princípios del Comercio Justo. WFTO, FLO, 2009. Disponível em: www. fairtrade-advocacy.org/images/FTAO¬¬-_charters_3rd_version_ES_v1.3.pdf Acesso em: 05/03/2014.
44