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Comercialização coletiva: a experiência do Espaço Contraponto
from Economia solidária, Diaconia e Desenvolvimento Transformador
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
“Pensando um projeto surge um processo.”
Júlia Coelho de Souza1
Através de pesquisas realizadas pelos núcleos de Economia Alternati va (NEA) e de Desenvolvimento Rural Sustentável e Mata Atlânti ca (DESMA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas principalmente por meio do acompanhamento da evolução da Economia Solidária enquanto movimento popular, organização social e políti cas públicas, constatou-se que uma das principais difi culdades dos empreendimentos de economia solidária (EES) é a comercialização. Para a criação de alternati vas e soluções, o grupo do NEA decidiu realizar um projeto dentro da universidade, que dialogasse com setores da sociedade civil, apoiando fundamentalmente EES e movimentos sociais.
Assim, o NEA, junto com a Incubadora Tecnológica de Cooperati vas Populares (ITCP), elaborou o projeto denominado “Contraponto: Entreposto de Cultura, Saúde e Saber”. A ideia propôs a concreti zação de um espaço no campus central da universidade para a refl exão críti ca a respeito dos padrões de produção, comercialização e consumo através de uma experiência práti ca, viva, de organização coleti va, tendo como protagonistas grupos comunitários atuantes no coti diano. Tal proposta implica em consciência políti ca e social: tudo ali deveria ser produzido e comercializado em uma relação social associati va e sustentável, pautada pela igualdade – e não em uma relação pautada pela exploração. Por isso, o nome Contraponto.
Com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), do Ministério da 31
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Ciência e da Tecnologia, o primeiro passo foi pensar a construção da loja de forma coerente, desde a concepção do projeto arquitetônico, que considerou o uso de materiais e tecnologias sustentáveis. Para o planejamento do espaço, um grupo de arquitetos ligados ao DESMA utilizou uma série de conceitos da bioarquitetura e da arquitetura efêmera, cujas características, materiais e procedimentos dialogam com a proposta de desenvolvimento baseado em valores sociais e ambientais.
De acordo com os arquitetos Cristian Illanes e Gustavo Jaquet (2007), “como a bioarquitetura está intimamente ligada aos conceitos da economia alternativa, sua utilização foi um processo natural. Trabalhou-se com a escolha de materiais de baixo impacto ambiental, com um sistema de tratamento de águas cinzas (água da pia, por exemplo) e com cobertura verde, gerando um ambiente confortável e com baixo impacto para o entorno. Além disso, buscou-se trabalhar com madeira de reflorestamento, madeira de demolição e chapas compensadas, uma vez que a madeira é um recurso natural renovável. A madeira também apresenta um índice baixíssimo de consumo energético no seu processo produtivo para a construção civil.”
Com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), em 2009, algumas questões da proposta foram finalizadas e o espaço pode ser aberto. Nesse meio tempo, a Cooperativa Central de Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs) foi escolhida como entidade gerenciadora do Contraponto. A cooperativa tem um papel central neste projeto. É através dela que o dia a dia do entreposto é ‘tocado’. A parceria estabeleceu-se por diversas razões, a começar pela afinidade com os projetos políticos que a Coceargs representa: reforma agrária, soberania alimentar e educação popular, entre outros. A trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é estruturante para se pensar as pautas políticas debatidas e defendidas pelo NEA. E, para além das afinidades, a experiência da Coceargs na organização da produção para a comercialização em espaços externos aos assentamentos e em espaços próprios foi um fator decisivo para a sua escolha.
Atualmente, 11 empreendimentos de Economia Solidária (EES) compõem o Contraponto. São coletivos, associações e cooperativas que trabalham nos segmentos da alimentação, artesanato e principalmente confecção.
O Beijo Frio é uma organização de mulheres que produz sorvetes, tortas e pizzas. O grupo Mãos Amigas trabalha com confecção e alimentação. A Cooperbom é uma cooperativa que trabalha com artesanato e alimentação e fornece quitutes para eventos. A Bem-me-quer reúne mulheres que trabalham juntas há cerca de 10 anos, produzindo peças artesanais em tricô e ponto cruz. O grupo Natureza Pura trabalha com alimentação, promove feiras ecológicas e mantém uma exposição de arte permanente na sua sede, que também funciona como restaurante. A Cooperativa Vida Saudável trabalha com alimentos. O Círculo de Cultura Tambores de Angola é um grupo que produz confecções, artesanato e realiza produções musicais com referência da cultura afrobrasileira. A Contrusol é um grupo com base familiar que tem uma confecção, produzindo principalmente
bolsas e camisetas. Da mesma forma, o grupo Victor’yes oferece confecções e artesanato feitos a partir de materiais reciclados, como o alumínio. A Univens é uma cooperativa fortemente constituída e que integra a Justa Trama – cadeia nacional de produção e processamento do algodão ecológico. O grupo GerAção Poa, formado por usuário dos serviços de saúde mental e de saúde do trabalho, oferece oficinas de saúde do trabalho, produz artesanato, reciclagem de papel, serigrafia e promove atividades culturais. A COOPEUFRGS não comercializa produtos: é uma cooperativa de estudantes que seguem as ideias da economia solidária e buscam a geração de renda através da cooperação e da autogestão.
Segmentos e áreas de trabalho existentes no Contraponto
Vemos que os segmentos presentes em maior número são alimentação, confecção, artesanato. A reciclagem e a produção cultural também estão representados.
Apesar de representar menor percentual em relação à confecção, o principal volume de vendas é do segmento da alimentação. Isso se deve à atuação dos grupos de alimentação junto à gestão do espaço e também à participação da Coceargs, que contribui com o Contraponto tanto no gerenciamento cotidiano quanto com produtos oriundos dos grupos e cooperativas relacionados ao MST: confecção, cosméticos, plantas e processados medicinais e, em volume maior, alimentação. Somados aos produtos dos EES, os coletivos relacionados à Coceargs compõem o “mix de produtos” oferecido e representam proporcionalmente o maior volume de vendas.
A inserção dos grupos na loja Contraponto tem relação direta com os empreendimentos parceiros e incubados pela ITCP. Ou seja, a loja não é um espaço aberto permanentemente à inserção de grupos, mesmo que estes tenham afinidade com a proposta, com o projeto ou mesmo com os grupos participantes. A inclusão no espaço se dá, primeiramente, pela relação inicial do empreendimento com a ITCP. Ou seja, há uma série de grupos que estão envolvidos com a 33
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incubadora, através de projetos ou acordos de cooperação, com os quais o NEA busca estabelecer um trabalho sistemático de apoio à gestão.
Além do acompanhamento, são trabalhadas com o apoio do NEA questões como a viabilidade econômica a legalização ou mesmo o design dos produtos, abrindo-se um espaço de experimentação em gestão compartilhada, de comercialização e de amplo aspecto de trocas simbólicas e intercâmbios. Além dos grupos vinculados à ITCP, cooperativas e coletivos relacionados à Coceargs colaboram com o abastecimento da loja Contraponto com produtos diversos, normalmente aqueles relacionados à alimentação.
Economia Solidária: um contraponto
Segundo Cattani (2003, p.11), ações em Economia Solidária “são fenômenos que correspondem, por um lado, a algo concreto (instituições formais, práticas sociais), por outro, a dimensões abstratas, como projetos, valores e percepções, que não correspondem à economia e às práticas convencionais”. Essa compreensão da economia solidária traz consigo ideias de colaboração, solidariedade, equidade, empoderamento, democracia e autonomia. São diversas as formas de se relacionar solidariamente, inclusive nas relações econômicas. Entendemos a Economia Solidária realizada na prática como o fomento e o favorecimento de atividades que tenham valores sociais, e não necessariamente valores de mercado dados. Como afirma Luiz Coraggio (2007, p.1) o principal problema de nossas sociedades é a exclusão e as desigualdades sócio-econômicas que marginalizam e colocam em risco parcelas cada vez maiores da população mundial (através da vulnerabilidade social, insegurança alimentar, qualidade de vida). Karl Polany (1980) dedicou seu trabalho a mostrar que a sociedade não está naturalmente a serviço da economia, mas exatamente o contrário: a economia sempre esteve a serviço da sociedade até a invenção humana da economia baseada no mercado. Ele esclarece que o mercado tal qual o conhecemos é uma invenção recente, ou seja, não é natural à vida em sociedade.
O contraponto que trabalhamos é a idéia de uma economia solidária, que articula a economia principalmente a fatores sociais, culturais e ambientais (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004). Os fatores de mercado são considerados, mas não como principais. Estamos submersos neste sistema, mas não por uma naturalidade desta regra, senão por uma construção social recente (SINGER, 2002). Justamente, à Economia Solidária é atribuída uma finalidade multidimensional, isto é, envolve dimensões sociais, econômicas, políticas, ecológicas e culturais do fazer economia ou relacionar-se economicamente.
Albuquerque (2003) sugere a autogestão como elemento fundamental da vida associada e do fazer cotidiano. A autogestão se configura a partir de uma forte crítica ao sistema de mercado e ao padrão desenvolvimentista de produção,
onde são resgatados princípios cooperativistas e associativistas, e também criadas alternativas de produção, comercialização e consumo que possibilitem aos diversos grupos sociais a garantia de sua cidadania.
Assim, convidamos a todos e todas a experimentar uma mudança de ponto de vista, de perspectiva: ao invés de nos vermos mergulhados na escassez de recursos, entender que vivemos em um mundo com abundância de possibilidades, onde muitos mundos são possíveis quando se busca abundância na ecologia, na diversidade social e ambiental, nas relações respeitosas e justas em todos os níveis.
Gestão e organização: buscando participação e horizontalidade
No processo longo e frutífero que resultou na criação do Contraponto, foram desenhadas diversas formas ideais e possíveis de gestão coletiva do espaço. Todo o trabalho teve – e tem – como base os preceitos da Economia Solidária e da Autogestão, que é efetivamente o fio condutor pelo qual as decisões e formas de organização se guiam.
A gestão do espaço é feita por um conselho formado por três partes, três representações: um(a) representante do NEA/ITCP, um(a) representante da Coceargs e um(a) representante dos empreendimentos econômicos solidários envolvidos. Este “modelo” está em construção, assim como todo o processo coletivo que tem seu tempo para amadurecer e funcionar. O lugar de encontro dos representantes é o Conselho de Gestão, que se reúne periodicamente e cujo tema central de discussão é o andamento diário e o planejamento estratégico da loja Contraponto. Os intervalos das reuniões são decididos pelo próprio conselho: as reuniões já foram semanais, mensais, quinzenais. Também já se criou grupos de trabalho especiais para temáticas específicas, como reuniões por segmento de atuação), grupos de trabalho para cuidar pontualmente da organização do espaço e da programação cultural.
Pelo que se constata, é preciso caminhar para um modelo de representação tripartite, onde tem um representante de cada parte, NEA, Coceargs e os empreendimentos. O que vem efetivamente acontecendo desde o início dos trabalhos são reuniões de conselho com a participação de representantes de cada um dos projetos. É perfeitamente compreensível que exista uma dificuldade de escolher um(a) único(a) representante de todos os EES, uma vez que são grupos de produção distintos, algumas vezes de cidades diferentes, sem uma organização central entre eles – de forma que uma única pessoa esteja apropriada da realidade de cada um dos empreendimentos, de forma a poder representá-los nas reuniões do conselho. Desta forma, os encontros contam com cerca de 10 pessoas de empreendimentos, normalmente um representante pela Coceargs e três ou quatro pessoas pelo NEA. São reuniões bastante ricas, algumas mais objetivas, outras mais dispersas... assim 35
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como diversos grupos que apostam nos processos enquanto fonte de riqueza. E, felizmente, os resultados têm sido bastante ricos também.
Quanto à forma de representatividade, algumas considerações são importantes. Nem todos os grupos que participam do projeto Contraponto se agrupam nos Fóruns de Economia Solidária, seja no Metropolitano, seja nos Fóruns Regionais. Talvez se houvesse uma organicidade dos grupos entre si através dos fóruns, o tema da gestão coletiva e principalmente da representação poderia ser trabalhado de formas mais dinâmicas. Outra sugestão seria um representante para cada segmento de atuação ou agrupar segmentos afins, por exemplo, um representante da área de alimentação, um de confecção, um de artesanato e produção cultural e um da reciclagem, tendo em vista que cada área tem as suas especificidades, principalmente a área de alimentação, que traz questões específicas de higiene e conservação que não se aplicam para os demais segmentos.
A intenção de impulsionar uma forma de representação neste formato é de liberar os trabalhadores e evitar mantê-los em reuniões e em agendas que, durante um tempo maior que o necessário, os tire de seu ofício principal, a produção. Ao mesmo tempo, a riqueza do debate no encontro com outros grupos e instituições é imensa e faz parte fundamental no processo de construção cidadã e política, de protagonismo e empoderamento das pessoas e dos grupos de seu próprio processo – autônomo – de desenvolvimento.
Fica assim aberta a questão sobre as formas de representação e a construção da autonomia, tema amplo e rico, e um debate necessário para todos e todas que apostam nas formas de gestão coletivas (para produzir, para consumir, para comercializar, para trocar, para conviver) como emancipador e gerador de liberdade e bem-estar.
Considerações finais
Uma questão recorrente no trabalho em coletivos e com coletivos é que uma experiência coletiva não é solidária por si; não necessariamente um mercado coletivo será justo e equânime. A solidariedade nas experiências coletivas depende fundamentalmente da motivação dos grupos que a compõem, dos princípios que estão por trás da ação dos coletivos e pessoas. Existem experiências coletivas voltadas à lógica de mercado, mas muitas outras voltadas à coletividade e à construção de bem-estar comum.
Felizmente, parece que a experiência da loja Contraponto está caminhando efetivamente para a construção de uma coletividade solidária. O problema das críticas ao sistema de consumo crítico é que não raro se coloca a responsabilidade de mudança positiva da sociedade nas ações e escolhas dos consumidores. Certamente, boa parte da responsabilidade é do consumidor, mas não se deve esquecer que existem estruturas políticas mais amplas, que muitas vezes refletem e condicionam o consumo e a escolha dos cidadãos.
O que fica disso é que transformações devem ocorrer em todos os níveis, e o nível político ainda precisa de bastante força e engajamento para ser transformado. Tratar o cidadão como consumidor e este como único responsável pelos padrões de consumo significa reduzir as questões de regulação política da produção e do mercado, escondendo o papel fundamental das instituições (governos e suas políticas, acordos entre empresas, corporações, organismos internacionais) nos padrões de produção, comercialização e consumo de bens e serviços.
Outro tema interessante é a construção cada vez mais frequente de mercados alternativos, que se diferenciam dos mercados convencionais principalmente no que diz respeito às escalas e características de produção. Muitos dos espaços de comercialização coletiva são espaços de venda associados a motivações e atitudes dos consumidores e dos produtores. Os selos e certificações ganham importância, pois avalizam a origem e a qualidade do produto. A diversidade e os valores relacionados a aspectos específicos de uma região ou grupo de produtores, conformam e diferenciam a qualidade de produtos tradicionais.
Em uma dimensão local, a economia produzida nessas articulações alternativas, quando apoiada por políticas públicas, são potencialmente transformadoras de estruturas macropolíticas e do modelo de desenvolvimento. Assim, os espaços, de venda de produtos, mas também de formação política e de conscientização podem ser compreendidos como ferramentas utilizadas por produtores, mediadores e consumidores para a formação de sujeitos críticos e conformação de redes, e para a prática de cadeias curtas de produção e consumo e a aproximação entre produtores e consumidores finais.
Referências
ALBUQUERQUE, Paulo Peixoto; Autogestão. In CATTANI, Antônio David (org). A Outra Economia. Porto Alegre: Veraz Editores; 2003. p 20-26. CATTANI, Antônio David (org). A Outra Economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003. 306p. CORAGGIO, José Luis. Economía del Trabajo: una alternativa racional a la incertidumbre. Trabajo presentado en el panel Fronteras de la Teoría Urbana: CGE, Incertidumbre y Economia
Popular, Seminario Internacional sobre Economía y Espacio, organizado por el Centro de
Desarrollo y Planificación Regional (Cedeplar), 6-7 Diciembre 2001, en Belo Horizonte, Brasil.
Disponível em: www.coraggioeconomia.org/jlc/archivos/economiadeltrabajoBH3.doc.pdf. FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho e LAVILLE, Jean Louis. Economia Solidária – uma abordagem internacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 199 p. ILLANES, Cristian e JAQUET, Gustavo. Memorial descritivo do projeto arquitetônico. Documento interno de trabalho. Agosto de 2007. SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. POLANY, Karl. A Grande Transformação – as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Ed. Campus Ltda, 1980. 37