Dinâmicas do pensamento por imagens, de Eduardo Duarte (Apresentação)

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DINÂMICAS DO PENSAMENTO POR IMAGENS

Dinâmicas do pensamento por imagens

Eduardo Duarte

© n-1 edições, 2025 isbn 978-65-6119-065-7

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

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A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

1a edição | outubro de 2025 n-1edicoes.org | 3a margem edições

DINÂMICAS DO PENSAMENTO

POR IMAGENS

Eduardo Duarte

coleção pensar e agir com as imagens

O século XX rapidamente se caracterizou como o século da imagem. Esta, que saiu do papel de ilustradora da narrativa textual, assumiu total protagonismo narrativo, de apresentação e reflexão sobre o mundo, do final do século XIX aos nossos dias. Não se trata mais de um protagonismo apenas no território das artes, mas também nas ciências e para além de qualquer campo específico de produção de conhecimento. As imagens nos seus mais variados suportes técnicos – do negativo de vidro à imagem digital, das artes plásticas aos memes – assumiu gradativamente, na inscrição de cada tempo, a função de ser nossa mais expressiva forma de comunicação.

Ela é nossa interface cotidiana com o mundo e com nossos próprios pensamentos e fenômenos psíquicos.

Em um tempo em que a expressão visual se capilariza em todos os setores da vida e assume a hegemonia de produção de conhecimento da sociedade contemporânea, nos lançamos à busca de conhecer o pensamento que move o agir com as imagens nas artes, na política, bem como entender o pensar a partir de imagens nas ciências e nas filosofias. Ou seja, a imagem como forma de pensamento e a imagem como ação. A coleção Pensar e agir com as imagens pretende, por intermédio de suas obras, investigar o que pode a imagem, esse poderoso operador cognitivo que se impõe de maneira definitiva como ação de nosso tempo.

Dedico esse livro a Pedro, meu eterno companheiro, e a Nise da Silveira.

Sumário

11 Apresentação

» O que entendo por imagens

» Dizer o indizível

27 O pensamento por imagens – a aurora das experiências estéticas do Homo sapiens

» Os primórdios da imaginação simbólica

45 A imaginação simbólica reificada

» Uma vertigem epistêmica

» A imaginação simbólica e seus personagens conceituais

67 Um estatuto científico para a experiência sensível

» A experiência na produção do pensamento contemporâneo

» Embates pragmatistas, subjetivistas e idealistas sobre o sentido de experiência

» Aproximações entre dois olhares

» Contribuições à diluição das fronteiras

103 A concepção complexa da natureza

» O desafio do saber além das fronteiras disciplinares

127 A gênese recíproca entre o sujeito e o mundo

» O trajeto antropológico e as dominantes reflexas

147 Por uma epistemologia estrutural imagética

» Epistemologia estrutural imagética

» Formas iconoclastas ocidentais

» As três formas pedagógicas da iconoclastia

» Elementos para formas metodológicas na dinâmica do pensamento por imagens

» A imagem como portal – além do significante e do significado

179 Gesto monumento

» Quatro condições para o gesto em Agamben

» A sobrevivência do gesto além de seu tempo

» O gesto político da imagem

209 Novas palavras para antigas ciências

» Sobre a geometria dos fractais

» Warburg e os pueblos

229 A relatividade da experiência do tempo na construção de realidades

» Momentos na história da prática coletiva do tempo

» O estrangulamento do futuro e antropológicas de sobrevivência

» O tempo do sagrado, o eterno retorno do pathos

255 Referências

» Filmes e seminários

» Referências – Textos em sites

Apresentação

A imagem mental é estrutura essencial da consciência, função psicológica. Não se pode dissociá-la da presença do mundo no homem e da presença do homem no mundo.

É porque sei que o que tenho a dizer é indizível que comecei a dizer mais uma vez e fiz isso mais de uma vez. O mais difícil é descobrir uma forma de dizer. Não há uma forma única. Então deixei que tivessem formas distintas de serem ditas nessa escrita. Este livro foi escrito em artigos, em folhas soltas, algumas ideias em capítulos de coletâneas, mas sobretudo a partir de aulas gravadas. Muitas falas espontâneas em aula fizeram emergir as imagens mentais necessárias ao início dessa investigação. Muito desse escrito nasceu também em orientações de dissertações e teses, muito foi gravado pelos orientandos que gentilmente me cederam trechos de ideias que aconteciam como espasmos poderosos de pensamentos. Assim, gradativamente algo possível de ser dito foi sendo construído de diversas formas.

No planejamento deste escrito fiz inúmeros rascunhos, criei vários planos de voo. Eu sempre tive planos de voo, mas a vida é mais que o plano, e a experiência do voo foi criando outras paisagens. Quando achei que poderia reunir todos os fragmentos e criar alguma ordem, planejei um curso que fiz de 2019 a 2023, e

que deu nome a este livro. A maior parte das intenções estava ali no início, mas a cada ano algo alimentava a proposta, mostrando tantos outros caminhos possíveis. O que se planejava dizer, o caminho percorrido e gravado nas aulas e a tentativa de sistematizar tudo em seguida geram vários livros possíveis. São muitos retalhos de acometimentos reunidos que vão sempre retornando em situações distintas, dizendo outra vez num outro lugar, tentando ampliar a sensibilidade do que se tenta dizer. De todo dito e não dito, este foi o livro que fui capaz de fazer.

Este texto é uma tentativa de sistematizar trinta anos de exercício de pensar as imagens. Nessa sistematização, ou seja, olhando para trás, consigo criar um caminho percorrido, mesmo que em momento algum eu tivesse consciência de que havia coerência nos desdobramentos teóricos e metodológicos desse caminho. Creio que eu tentava criar um lugar epistemológico que me fizesse ficar mais à vontade. Eu percebi que este texto elencava três décadas de trabalho quando me dei conta dos temas e conteúdos que me dispunha a atravessar no curso que deu origem ao livro. Eu percebi que muitas das ideias tratadas eram reencontros bem antigos. Autores, pensamentos com os quais me deparei há vinte e cinco, quinze, dez anos, e que ficaram retornando como pequenas obsessões ou impactos nunca superados.

Passaram a fazer parte do meu atlas mental, uma cartografia de pensamentos que me marcou primeiramente por serem imagens intelectuais afetivas, em seguida por serem operadores cognitivos que sempre estive usando numa situação ou noutra. Sistemas de ideias que se organizam em constelações, como as fórmulas de pathos, de Aby Warburg.1 Imagens que ficam obses-

1 Aby Warburg, A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu, trad. bras. de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

sivamente fazendo parte do universo de pensamento e que, vez por outra, esses livros, essas ideias, esses autores, retornavam e me acometiam mais uma vez.

Dito de outra maneira, creio que essas imagens são como plantinhas, flores e árvores de um imenso jardim. Plantei as mudas e as cultivei há bastante tempo. Vez por outra retornei àqueles recantos, pois de longe o cheiro das flores me atraía. Depois vim plantando outras mudas e assim venho fazendo nos últimos trinta anos. Algumas delas cultivei mas não cresceram, outras nem plantei, mas os pássaros e os saguis deixaram sementes em minha alma e lá brotaram maravilhosamente. Agora, depois de tanto tempo, faço um passeio em minha pequena floresta particular de ideias e me encanto com cada fragrância antiga. Percebo o seu papel naquilo que me formou, o quanto seriam impossíveis as revoluções que vivi se essas raízes não tivessem se fincado na terra fértil do pensamento e lá feito corpo em mim.

Sinto vindos do passado os aromas do Ciclo do Recife, meu objeto de pesquisa no mestrado.2 Naquele instante eu estudava a estética do cinema sem som no Recife dos anos 1920. Aquelas imagens, de que maneira elas eram capazes de fazer sentir num povo – recém-saído da condição de colônia da coroa portuguesa – os sinais dos tempos modernos? O cinema abriu seu portal interdimensional para fazer sonhar outras formas de vida, e vida social. Desde a saia acima do joelho, o corte curto de cabelo das mulheres, as chaminés das fábricas, os primeiros automóveis, um mundo imaginário que o público não conhecia, ou conhecia apenas por revistas e fotografias nos jornais.

A chegada do cinema nas capitais nordestinas no início do século xx produziu novas dinâmicas de imagens-sensação para

2 Eduardo Duarte, Sob a luz do projetor imaginário Recife: Editora UFPE, 2000.

a moça que trabalhava no armazém de tecidos, para o rapaz que trabalhava na sapataria, para o jornalista, como também para o atendente do restaurante. Imagens que seduziram indiscriminadamente por suas histórias românticas, de heroísmo e vilania, e que fizeram da ideia de sonhar acordado algo completamente diferente. Esses sinais do moderno não chegaram à maior parte da população pelos livros, mas por intermédio do ritual das imagens eloquentes, mesmo sem a voz ou os sons da cidade nos filmes. Esse foi o primeiro instante em que observei a imagem como um operador cognitivo, como lugar de uma dinâmica própria de efetivação da produção de conhecimento sem a necessidade do suporte da escrita ou dos diálogos falados.

Em seguida, veio o doutorado, com muitos outros aromas e cores no pensamento, que criaram mais jardins nas ideias. Naquele momento eu estava olhando para o futuro. Meu interesse era entender o que ainda se podia dizer do que nos faz humanos, quando o que compõe nossos corpos está gradativamente sendo substituído por próteses robóticas, inteligência artificial e próteses químicas que, uma vez no corpo, substituem hormônios e enzimas naturalmente produzidas pelo organismo. Esse problema de pesquisa foi refinado inúmeras vezes, até que eu entendesse que o humano e a técnica nunca existiram de forma separada. Os meus objetos percorriam as imagens da literatura e dos filmes de ficção futuristas. Eu procurava futuros possíveis a partir das imagens futuristas feitas no presente. Ou seja, eu tentava entender as projeções que fazemos hoje sobre como seremos amanhã. Não se tratava de futurologia, pois o amanhã não se estuda empiricamente, mas todas as especulações possíveis e as construções que hoje fazemos sobre o amanhã também cons -

troem futuro.3 O presente sempre redefine passado e futuro,4 o amanhã de alguma forma está presente no meu planejamento agora, como o ontem me é lembrado pelas motivações que a memória faz emergir nesse instante. Então, o que existe é aquilo que dura, aquilo que vibra num presente dilatado, em seguida a um instante chamado passado e antes de qualquer acontecimento futuro. Esse lugar de duração é um lugar povoado por todas as imagens com as quais compomos o que quer dizer realidade, pois é eco de ontem e projeção do amanhã.

Essas descobertas e temas não me ocorreram no instante em que escrevia os resultados das pesquisas. Essa compreensão foi me ocorrendo muito tempo depois, já com certa distância dos meu autores-aromas e mesmo do meu próprio texto. Percebi que sempre observei como as imagens são produtoras de conhecimento. Entretanto, essa forma de produção de conhecimento implica em tornar claro o que eu chamo de imagem. Creio que esse caminho epistemológico já se apresentava através dos autores que utilizei.

O que entendo por imagens

Não me interesso pela imagem como sendo algo que significa alguma coisa. Não se trata dessa construção direta de significados sobre significantes, mas a imagem como propulsora de sentidos abertos a contextualizações culturais. O processo de significação que estabelecemos com a imagem, ou melhor, o processo de sua logicização, naturalmente se organiza e a captura dentro de um contexto linguístico, semiótico ou psicanalítico de pensamento.

3 Eduardo Duarte, A fábula restante dos últimos homens. Recife: Editora UFPE, 2004.

4 Henri Bergson, Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, trad. bras. de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Trata-se de dinâmicas de análises de imagens. Mas não é sobre análise de imagens que estou falando. Acredito que as imagens pensam a si mesmas. Estou tentando falar aqui sobre uma característica de uma imagem mental que está na base dos processos de pensamento do Homo sapiens. Na constituição dos processos de organização de ideias que, por sua vez, como veremos, partem de quadros imagéticos pluridimensionais.

Não se preocupe se você não estiver entendendo o que estou falando neste momento. Não se preocupe. Vou falar de novo a mesma coisa em outro lugar, depois em outro e, assim, de alguma maneira, forma-se alguma ideia. Pretendo nesta apresentação definir o que penso por imagens e fazer um sobrevoo geral sobre minhas intenções.

Acredito que a constituição do pensamento por imagens é condição sine qua non para a existência e sobrevivência de nossa espécie. Este é o plano de consistência5 de todos os operadores cognitivos que criamos e utilizamos. Em seguida, desse plano de consistência emergem as ideias, as teorias científicas, o fundo intencional da argumentação de um discurso, todos constituídos de imagens mentais. É o que veremos neste livro.

Um pesquisador, no início da definição dos seus interesses para um projeto de pesquisa, parte de uma imagem mental afetiva, da qual nem sempre tem consciência, que o impulsiona. Às vezes a grande angústia é como tornar “dizível” essa imagem mental, como tornar possível a escrita. Como nos movemos do acometimento do insight de um fenômeno, da percepção fascinante de um aspecto da realidade, para alguma coisa que possa ser lida e compreendida por uma outra pessoa? É a partir daí

5 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.

que a imagem mental vai ganhar contornos e ordenamentos de apresentação que a fazem lógica. Tornar partilhável na ciência faz o insight entrar no mundo dos significados.

O que me interessa quando olho a dinâmica do pensamento por imagens é esse instante anterior a uma imagem se transformar em signo. Esse instante anterior não desaparece depois que a imagem mental pode ser codificada. Ele continua como operador cognitivo silencioso, um inominável, algo muitas vezes inconsciente, formas que direcionam o olhar sobre o objeto e até a escolha do objeto. Mesmo sem consciência disso, essas imagens mentais criam nossas disposições por teorias, por autores e conceitos. Todo pensamento tem esse fundo de imagem-sensação que não possui um conteúdo significante.

Um outro aspecto dessa imagem é que ela tem vida independente dos enquadramentos teóricos que nós possamos fazer sobre ela: independente do quadro de referências que me forma e que direciona o que penso que sei para ler e definir aquilo que vejo. A imagem tem sua vida própria e traz o eco do tempo e do espaço em que foi capturada, ela é, antes de qualquer decifração, um portal. As imagens já possuem vida antes de serem analisadas pelo especialista, é o que aponta a partir de seu estudo do arquivo de fotografias catalogadas por dr. Charcot, de mulheres diagnosticadas e internadas como histéricas, no final do século xix, no Hospital Salpêtrière, em Paris.6 O que Didi-Huberman tira como grande lição da observação desses retratos é que, no momento em que foram feitos, eles tinham o objetivo de cumprir com um diagnóstico, pois os médicos do século xix olhavam aquelas mulheres como um entomologista estuda borboletas.

6 Georges Didi-Huberman, A invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière, trad. bras. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

Do lado dos especialistas em artes visuais, a tentação epistemológica de imobilizar o ver e o objeto do ver não é menor – como o entomologista que mata sua borboleta preferida para prendê-la em uma placa de cortiça, onde, a partir de então, pode vê-la tranquilamente, detidamente, com um olhar tão morto quanto o próprio animal. Imobiliza-se o objeto do ver quando o consideramos antes de tudo como um texto a decifrar, um enigma a ser resolvido.7

Sobre uma dessas fotos comenta Didi-Huberman em outro momento:

Por exemplo, quando um pé estendido em direção à câmera mostrava que ele estava em movimento, porque ele aparecia fora de foco, ao contrário de outras partes do corpo. A zona da imagem fora de foco deu espessura ao tempo do disparo, uma vez que deu mobilidade à imagem parada. Além disso, ela exibia uma espécie de luta, uma luta contra o desejo do fotógrafo: uma contra-pose, em suma. O pé jogado para a frente era também um chute direcionado à própria câmera. Com este gesto de desafio ou com esta demonstração agressiva a paciente chorava e dizia: “Não!” – ao protocolo que fazia do seu sofrimento um conhecimento visual.8

Ou seja, uma imagem que nos permite muito mais do que qualquer diagnóstico psiquiátrico da condição dessa mulher. A imagem apresenta sua revolta e sua recusa em ser fotografada. Nos dias atuais podia também apresentar erro de conduta médica na exposição da paciente. Temos a possibilidade de ver uma

7 Id., Georges Didi-Huberman, “Olhos livres da história”, trad. bras. de Eduardo Duarte, Revista Ícone, v. 16, n. 2, 2018, p. 163.

8 Id., “L’observation de Célina (1876-1880): esthétique et expérimentation chez Charcot”, Revue internationale de Psychopathologie, n. 4, 1991, pp. 267-280.

infinidade de coisas nessa imagem para além do diagnóstico de esquizofrenia ou histeria.

Em outras palavras, no momento em que o estudioso olha uma imagem, por mais sistemas que o analista traga, a imagem resiste ao olhar. Ela propõe dinâmicas simbólicas próprias de acontecimento. Por mais interesse e dedicação que o pesquisador dedique, jamais se esgotam as leituras possíveis de suas fotos, filmes e gravuras. O pesquisador consegue sentir, consegue intuir lugares e contextos que possam acolher seus objetos, mas as imagens sempre atualizam possibilidades imaginárias do que podemos dizer sobre elas.

Dizer o indizível

Então aqui encontramos um limite para as imagens: nem todas elas podem comunicar objetivamente uma mensagem. Os limites da comunicação podem abrir espaço para outras formas de fazer sentido. O que traz à lembrança o trabalho de um grande pesquisador com quem tive a oportunidade de partilhar uma amizade. Ciro Marcondes Filho compreendia que o entendimento de qualquer coisa dita ou lida é naturalmente impreciso, como imprecisa é toda tentativa de exercício da comunicação.9 Para Ciro, a consciência sempre interpreta o que surge em seu universo de realidade, a partir de tudo o que a formou. Nesse sentido, o que uma mensagem comunica depende de como ela pode ser compreendida pela consciência. A consciência acolhe a ideia em uma dinâmica própria que a configura em suas possibilidades de sentidos. Retornarei a essa ideia mais adiante.

9 Marcondes Filho, O escavador de silêncios. São Paulo: Paulus, 2004.

Em outras palavras, não faço ideia do que o leitor forma como entendimento do que tento dizer até agora – de qual é a imagem mental que se forma ou não de tudo o que está sendo dito. Eu sei o que quero dizer, mas isso não garante a comunicação, nem por falha minha, nem sua. Conheço o sentimento e alguma coisa da imagem mental que mobiliza minhas ideias enquanto escrevo, mas, como performam na consciência do leitor as possibilidades de entendimento e compreensão, isso me foge ao controle. Se um dia nos encontrarmos e você me disser algo sobre o que entendeu do que leu deste livro, terei a chance de confirmar ou tentar explicar melhor algo que não ficou claro. Mas, ainda assim, isso não garante absolutamente que conseguirei dizer o que não ficou dito. No máximo podemos aproximar nossos repertórios simbólicos para que os sentidos ressoem de forma similar em nossas consciências. Esse exercício já é bastante difícil no processo de nos constituirmos a partir das impressões um do outro. Pois tudo aquilo que sou capaz de dizer performa sentidos, modela a constituição de um conhecimento ou de uma impressão em cada consciência que escuta ou que lê. A mensagem não conduz a uma informação pronta para ser decodificada. Não é necessariamente uma informação que fica, mas uma performance, um efeito estético, uma experiência estética da informação em nosso repertório imaginário. Aquilo que se conhece é antes de tudo proveniente de uma imagem mental que emerge como resultado da performance da informação em nossos afetos e vivências. Nesse sentido, veremos mais adiante que a maior parte das coisas que tentamos comunicar e dizer são performances afetivas que estamos fazendo como discurso. Porque o todo do que temos a dizer é indizível. Mas por que é indizível? Porque, junto com o que eu tento dizer, vai uma grande quantidade de

coisas que não vou conseguir dizer. Porque eu não sei como é que a imagem mental de fundo da ideia se constitui dentro de mim. Tentar dizer é sempre um drama que se estabelece na escolha da linguagem que se apresente compreensível ao outro. Gosto de usar como operador cognitivo desse instante a metáfora do iceberg. Uma parte do iceberg está exposta fora da água. Qualquer um que navegue nas imediações será capaz de vê-la por suas dimensões que se projetam no espaço e segue boiando. Entretanto, a maior parte do bloco de gelo permanece submersa. O iceberg é como o signo. Podemos imaginar que a construção do sentido de palavras e ideias para a consciência segue a imagem de um iceberg. Outro exemplo: uma pessoa A é acometida por uma sensação que não sabe definir bem, algo se mistura em sensações boas e ruins, mas ela não consegue expressar em uma palavra. A pessoa A encontra-se com a pessoa B e tenta descrever por palavras, imagens, gestos e toda sorte de artifícios o que é essa sensação. Após todo o esforço, a pessoa B reconhece algumas dessas expressões, não todas, como algo que já experimentou em determinados momentos e que nunca soube, também, definir numa palavra. Juntas, A e B relatam tudo isso para a pessoa C e, após a mesma maratona de gestos, descrições de sentimentos e imagens, a pessoa C identifica algumas expressões que remetem de certa forma a coisas que já sentiu. Ela percebe que nem tudo o que é dito pelas duas pessoas descreve o que sente, mas é possível identificar expressões comuns nas utilizadas por A e por B. Surge então um grupo de expressões comuns entre as três pessoas, uma zona de intercessão de sensações que conseguiram ser descritas e reconhecidas entre as pessoas.

Digamos que esse grupo de expressões reconhecidas a partir de sensações inomináveis é definido pelas três pessoas pela

palavra melancolia. Melancolia é então um signo, aquele possível de se fazer lógico para a compreensão e comunicação de todos. Melancolia é a parte visível do iceberg, a parte acordada e tornada lógica entre as pessoas para conseguir expressar uma ideia agora feita comum. A parte visível do iceberg, assim como a parte sensível da ideia-exemplo melancolia, é o que se coloca como algo comum e partilhável por todos. Algo que ressoa num corredor estreito de interpretações e remete ao reconhecimento imediato de uma qualificação. Significa de uma maneira similar para todas as pessoas que estão olhando para aquela ideia, mesmo que cada uma esteja olhando de um ponto diferente.

Entretanto, por baixo de sua dimensão visível e perceptível por todos, há uma grande quantidade de gelo, na verdade a maior parte do iceberg se esconde embaixo d’água. Logo, aquilo que pode ser dito, que pode se fazer entender, traz submerso os mesmos inomináveis que dão sustentação ao que pode ser nomeado. Ou seja, comunicar é sempre algo parcial. Há uma zona de intercessão possível em nossas experiências estéticas no mundo que podem ser partilhadas por todo o esforço da linguagem. Mas em cada grupo social, como em cada subjetividade, a ideia encontra sensações próprias à forma como a consciência constitui o sentido da experiência dessa ideia.

O que descrevemos num exemplo com três pessoas torna-se ainda mais complexo se substituíssemos essas pessoas por culturas em idiomas distintos. Como fazer alguém que não é conhecedor da língua portuguesa, nem conhece as origens culturais da Península Ibérica, entender o que diz na profundidade emotiva a palavra saudade? É uma palavra que encontra correspondências em outros idiomas, mas não encontra o mesmo bloco de sensação, porque isso diz respeito à forma como uma cultura performou

ao longo de sua história e através de seu idioma uma experiência sensível no mundo. A ideia a que se chega numa palavra é a parte que se faz visível de uma experiência sensível no mundo. Provavelmente por esse motivo penso ser tão difícil rir em piadas contadas noutro idioma, como as piadas dos apresentadores do Oscar, a premiação do cinema norte-americano. Eu sei o que eles estão dizendo em inglês, mas não sei por que aquilo faz rir. Há um público que ri. Mas a narrativa, o gestual, a entonação de voz e tudo o que vem junto quando se conta uma piada não me remete à experiência afetiva dentro da língua. Compreendo a piada racionalmente. Compreendo o que ela quer dizer, mas não o que ela faz sentir. Não compreendo qual a imagem afetiva que ela acessa. Acessar a experiência afetiva dentro da língua implica em viver emocionalmente a língua. Ela cria âncoras emotivas nas nossas experiências que acionam os blocos de sensações inomináveis junto com o significado partilhado. Ler um texto em outro idioma é um exercício não apenas de entender o que é dito, mas de compreender, para além do entendimento racional, o que o entendimento afetivo expõe de uma ideia.

Em resumo, comunicar, mesmo dentro de um idioma conhecido, é algo bastante insuficiente. A ideia, ou a pretensão, de que quando nós falamos conseguimos dizer tudo o que pretendemos no ato comunicativo é algo absolutamente impreciso, pois não se explicam, na totalidade, as motivações inomináveis que estão dando sustentação de sentido às ideias. Cada um reconstrói, dentro de seu repertório de experiências, um campo afetivo que integra esses mapas mentais que se compõem na base cognitiva de nossa espécie.

É por esse motivo que considero importante nesta introdução esclarecer de que lugar tratarei a imagem quando a aponto

como uma forma de pensamento em si. Falo da imagem como essa formação virtual, cognitiva, que se constitui a partir de nossa experiência sensível no mundo e que estabelece referências pluridimensionais de nossa compreensão da realidade. Não se trata de interpretar imagens visuais, mas de compreender como elaboramos o conhecimento que temos do mundo a partir das imagens pluridimensionais que possuem correspondências com várias formas perceptíveis de seu acontecimento. Ou seja, mesmo se fôssemos cegos, estaríamos operando por imagens, pois as imagens também são táteis, olfativas ou sonoras. Refiro-me à imagem como sendo um conjunto de estruturas emocionais que se formam e que possuem na sua dimensão perceptível construções visuais, sonoras, olfativas, táteis e gustativas possíveis. Este livro vem sendo pensado e construído também a partir das parcerias em orientação de mestrado e doutorado dos pesquisadores com quem tive o privilégio de trabalhar. Cada um desses pesquisadores me faz vivo, exigente, faz-me pensador, provoca-me o deleite da descoberta, impõe-me a angústia de um deserto, excita-me a voracidade de ler mais, emociona-me com as descobertas de mundos que só visitei e visitarei por meio deles. Em cada um vivo um pouco, desapareço bastante, duelo ideias, forço os limites, exerço conscientemente algo de crueldade, assim como exerço de amor e parceria. Agradeço imensamente por terem me aceito como parceiro nessas viagens que fizemos. Todos os casos analisados acabaram por compor meu repertório de percepção e crítica desse tema.

Agradeço imensamente a todos os meus alunos do curso Dinâmicas do Pensamento por Imagens. Vocês lapidaram os caminhos deste livro por anos. Agradeço em especial a Rafael Dantas pelo hercúleo trabalho de transcrição de tantas grava-

ções. Agradeço de maneira também especial a Gabriel Godoy, pela amizade e parceria que ultrapassam as infinitas cartas que ainda temos que escrever sobre ciência e arte. Agradeço imensamente a Adriana Santana pela leitura crítica e pelo eterno incentivo do seu amor.

Por último, agradeço também à fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelos suportes das bolsas de pesquisa de mestrado, doutorado e pós-doutorado, ao longo da minha vida acadêmica, que alicerçaram a compreensão das dinâmicas que iremos estudar.

Este livro contou com o apoio do programa de pós-graduação em Comunicação da ufpe, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001, bem como com o suporte do Edital de Apoio ao Pesquisador

Vinculado aos Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (ufpe), no segundo semestre de 2021.

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