Coletivo Santa Maria - Zine Clínicas de Borda

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Zine Clínicas de Borda

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, 2025

Editora n-1, 2025

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

Editores Chefes

Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes

Coordenação editorial

Gabriel de Godoy

Projeto gráfico

Isabel Lee

Organização da coleção

Andréa Guerra e Linnikar Lima

Coordenação da coleção

Andréa Guerra

Comissão editorial das Zines

Andréa Guerra

Linnikar Lima

Gustavo da Silva Machado

Jairo Carioca de Oliveira

Luis Henrique Mello

Luísa Ribeiro Lamardo

Marcela de Andrade Gomes

Maria Elisa da Silva Pimentel

Maria Izabel dos Santos Freitas

Miguel Pinheiro Gomes

Renata Santos Cravo

Vanessa Solis Pereira

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

1ª edição | Outubro, 2025 n-1edicoes.org.

Zines Clínicas de Borda

Coleção:

1. Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (Santa Maria/ RS)

2. Pontes da Psicanálise (Recife/PE)

3. Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo (Campo Grande/RJ)

4. QUIMERA: Circulando afetos (Niterói/RJ)

5. Psicanálise na Praça da Alfândega (Porto Alegre/RS)

6. Coletivo de Psicanálise Itinerâncias (Porto Alegre/ RS)

7. Atêlie das Migrações (Florianópolis/SC)

8. Rede Divam (São Paulo/SP)

9. Coletivo psicanalítico Café Borromeano (São Paulo/SP)

10. Coletivo escuta do Monte Verde (Florianópolis, SC)

COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS

Freud modifica seu olhar sobre o inconsciente ao longo de sua obra: se, no início, o pensou como profundidade, ao fim nos indica que o inconsciente pulsa nas margens. É desse lugar que nasce a Coleção de Zines das Clínicas de Borda Brasileiras, aberta a novos fascículos, fruto da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadxs com as respostas de sua clínica e de sua formação diante da realidade nacional marcada pela brutalidade e pela violência estrutural. Reúne experiências múltiplas e plurais, sem reduzi-las a um “mínimo comum”; ao contrário, afirma o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, e nos próprios caminhos de formação.

Nasceram da resistência dos movimentos plurais e das vidas teimadas nas periferias, favelas, praças, margens, estações, ocupações e quilombos. Erguem-se como resposta aos genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, às violências do racismo e do desamparo, aos deslocamentos migratórios forçados. Seu fazer é da rua e com a rua: uma psicanálise que transgride as normas burguesas, sustenta o laço transferencial onde a vida pulsa e dá nome, com tempo e presença, a corpos apagados no cotidiano.

Reinstituem o necessário na teoria e na prática ao revisitar as clínicas públicas e populares desde os gestos inaugurais do campo freudiano, agora reviradas pela experiência da Améfrica Ladina. Em elipse, viram o espelho ao avesso, atravessam fronteiras disciplinares e urbanas, e marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos arranjos de partilha e presença. Saem do consultório individual burguês para ocupar praças, escolas, centros comunitários e plataformas digitais, recebendo analisantes online e em cadeiras ao sol, escutando o sofrimento onde ele se enuncia.

Colocam o pagamento em xeque e não mais no cheque. Trazem a marca do território, da língua, dos sotaques e das gírias que fazem o Brasil múltiplo, redistribuem-se em cada canto do país e tensionam a circulação do capital e as respostas do inconsciente diante das violações diárias. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica e a lógica excludente da formação do psicanalista, recolocando a psicanálise na polis: atravessada pelas margens, comprometida com o comum e responsável perante as vidas que insiste em escutar.

Elas não estão todas reunidas aqui; esta coleção permanece aberta, chamando novas presenças para seguir escrevendo esta história.

Fonte: Arquivo CLTVPSM.

COLETIVO DE PSICANÁLISE DE SANTA MARIA1

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro” (Mia Couto)

“Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar…” (Antonio Machado)

Como contar um coletivo? Pelos rastros daqueles que o constituem e que fazem o caminho desse coletivo ao andar, como diz o poeta. Contar um coletivo pelos caminhos de seus caminhantes2 . Palavra lida como a composição de caminhar com analisantes. Caminhar, verbo que constrói ação, movimentos, ritmos, temporalidades. Verbo que aciona outros: olhar, escutar, falar, intervir,

1. Instagram: @cltvpsm. Identidade visual: psicóloga e colagista, Luiza Roos (@atofalh0)

2. Inspirada na palavra “pesquisante”, proposta pelo psicanalista Luciano Elia (2016) e referenciada pelo integrante do Coletivo Guilherme Selvero Lacerda em sua dissertação de mestrado (Programa de Pós-graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS). Segundo Elia (2016), “pesquisante” é a condensação das palavras pesquisador com analisante. Lembra também que a posição de analisante é favorável ao exercício da pesquisa psicanalítica. Tal posição adverte que a pesquisa está atravessada pelo inconsciente, podendo o analisante em sua própria análise investigar a pesquisa em outra via.

cuidar. Verbos apontam para a fluidez e para a instabilidade da linguagem, que está sempre em processo de construção e reconstrução, assim como os caminhos. Caminhar como um modo de pesquisar a cidade e as pessoas que nela vivem. Os caminhantes desse coletivo caminham, resistem na urgência das desimportâncias, escrevem nas entrelinhas da rapidez os encontros de diferenças em um caminho comum. Analisantes, posição que aproxima de um caminhar implicado com o inconsciente e com a ética da psicanálise. Freud, em correspondência com Fliess, lembra através do princípio de Itzig, ao viajante de domingo, que os lugares e movimentos não seguem os ditames da consciência: “Itzig, aonde você vai? E eu sei? Pergunte ao cavalo” (Freud, 1898, p. 320). O viajante não sabe, ainda assim aceita a viagem.

O Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (CLTVPSM) nasce em 2021, em meio a pandemia, com o intuito de construir um lugar comum de trabalho com a psicanálise, partindo de um compromisso com a pólis e acolhendo todos aqueles que desejassem, independentemente do seu tempo e percurso de formação, implicar-se no estudo, na transmissão e no fazer analítico. Um ponto de encontro que se propõe múltiplo, acolhendo as diferenças, desejando e buscando promover espaços de interlocuções e de relações orientadas pela transversalidade. Trata-se de um trabalho que se propõe a ler, escutar e a intervir na cidade, procurando não esquecer que historicamente os agentes da psicanálise produziram e ainda produzem espaços de mestria, espaços de achatamento da crítica e espaços de exclusão. Esses espaços são produtores de enrijecimento teóricos e práticos, afastando analistas da tarefa de escutar o seu tempo.

A obra O Leitor da artista visual santamariense Valquíria Navarro3 elucida a proposição do trabalho do CLTVPSM. A escultura, que transitou por diferentes espaços públicos da cidade, atualmente está localizada em frente ao Museu de Arte de Santa Maria (MASM). Desde então, moradores da cidade parecem interessar-se pelas leituras, pois as tomam “emprestadas”, em um gesto de compartilhamento. Encostado em um placa que sinaliza a presença de internet, o leitor resiste. Ora lê, ora olha para a cidade. Os caminhantes, assim como o leitor, olham, leem e apostam

3. Instagram: @navarrovalquiria

no gesto de compartilhamento das leituras feitas. A experiência psicanalítica confere valor de escrita ao que é falado, escutado e intervém na cidade a partir dessas.

Na perspectiva do leitor que caminha e lê, o CLTVPSM passou a trabalhar na mobiliza ção de discursos que interpelam a cidade, produzindo intervenções no seu corpo, acre ditando nos efeitos de escutar e relançar na comunidade olhares e palavras que não eram contemplados. Há uma cidade a ser lida.

Trata-se de uma proposição de um descen tramento do saber e de uma resistência à lógica da informação que rege a nossa cultura, como tão bem denuncia O Leitor de Valquíria. Um desejo de rompimento com uma herança universitária que nos biparte em duas posições: a de “mestre” e a de “discípulo”.

Como construir um lugar comum?

Trazemos o trabalho da artista brasileira Laura Freitas4 para nos acompanhar nesta trajetória, com a exposição “Quando recolhi os cacos espalha dos pelo chão” no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, em 2018. Laura recolhe cacos e os costura constituindo uma espécie de tessitura. Os cacos são incorporados um a um e dispostos lado a lado sem sobreposição e urgência por um fio bordado à mão de maneira que podemos ver a imagem que forma e o fio que a sustenta. A

4. https://laurafreitas.art/

Fonte: https://laurafreitas.art/quando-recolhi-os-cacos-espalhados-pelo-chao

largura da tessitura é semelhante ao corpo da artista, o que lhe permite suportar a estrutura e olhar os caminhos na incorporação de cada caco à tessitura no urdir dos fios. Os distintos tamanhos e formatos de cada caco fazem com que a tecelã atente às singularidades e decida por onde vão passar as costuras que sustentam essa estrutura. Apesar e com as diferenças dos cacos, a estrutura por um fio vai cons tituindo suas bordas e sua imagem pode ser associada a uma folha em branco. Com este sensível e deli cado trabalho, Laura nos auxilia a pensar sobre o referido desejo de rompimento com a herança universitária em Santa Maria em nossa formação –sem negar a trajetória e reconhecendo sua importância –, e nos ajuda a lançar luz sobre outras posições possíveis na troca com os pares. Ela nos apresenta uma disposição horizontal que em seu processo artesanal, feito com tempo e cuidado, portam os gestos de olhar e confiar. Com-fiar ou fiar-com, tecer um fio com outros, buscar caminhos para se estar acompanhado, na medida em que companhias implicam encontros onde possam existir cortes, emendas, rompimentos, retomadas…

formativos, com posturas, leituras, percepções e pesquisas diversas. Encontros de diferentes gerações de psicólogos e psicanalistas se conhecendo, conversando, debatendo textos, intervindo na cidade e, sobretudo, apostando no desafio de construir um espaço em que as diferenças não se sobreponham ao que nos é comum: uma sustentação do campo psicanalítico. Nas Assembleias, Eixos de trabalhos, Comissões e Grupos de Trabalho do Coletivo acontecem aproximações e afinidades conforme as temáticas que convocam e animam a cada um. Esses desafios nos indagam: como nos mantermos presente somando “um+um+um+...”, recordando Eliane Brum (2019), em uma disposição coletiva por um fio comum?

Um fio pelo qual possamos construir uma, mais uma, mais uma e mais ficções ao sermos testemunhas das trajetórias uns dos outros e de um espaço coletivo que possa enriquecer a transmissão das teorias e práticas psicanalíticas. Quem sabe assim possamos caminhar verdadeiramente mais lado a lado, caco a caco.

Ou seja, não se trata mais de falar sobre, mas falar com. Uma aposta nos laços transferenciais e na formação pela via do testemunho. Uma formação pela via do testemunho nos coloca em uma

posição ético-política: a de afetar e sermos, ao mesmo tempo, afetados por uma experiência singular. Neste instante, o que era próprio da esfera individual se dobra em uma dimensão coletiva. E é justamente aí, onde a implicação se inaugura e começa a operar que o trabalho se efetiva.

O CLTVPSM não é, ele é efeito de discurso como nos lembra Lacan. Recuperamos operadores fundamentais acerca do trabalho na pólis: a transferência de trabalho, o laço social e a escuta-significante.

Estar em coletivo implica o tensionamento de todas as temporalidades, seja no corpo do coletivo, como também, de suas transferências com o político. Portanto, propomos e incentivamos a formação de diferentes Eixos e seus respectivos Grupos de Trabalho (GT). Essas formações possuem autonomia em suas formas, operações e produções. O investimento na diferença e na multiplicidade é uma ferramenta necessária contra formações grupais, essas que, por muitas vezes, produzem modos de subjetivação que tendem a excluir a diferença.

Atualmente o CLTVPSM conta com os seguintes trabalhos com periodicidades mensais, quinzenais ou semanais: reuniões gerais mensais; Eixo Kiss e o GT Testemunho, Memória e Trauma; Eixo Estudos Freudianos; Eixo Estudos Lacanianos; Eixo Infância, Adolescência e Psicanálise; Eixo Literatura e Psicanálise; Eixo Raça, Cultura e Psicanálise e o GT Leituras e Críticas da Colonialidade.

Os eixos de trabalho são instâncias de ação do coletivo onde a teoria e prática andam e escutam juntas a nossa cidade e seus movimentos.

Eixo Estudos Freudianos

O Eixo de Estudos Freudianos surgiu a partir de um singelo convite para compartilharmos a leitura de um escrito freudiano, o suficiente para que algumas pessoas se reunissem a fim de revisitar textos fundadores e conversar sobre eles.

Nesse movimento, buscamos sustentar uma leitura coletiva e crítica, reconhecendo as potências e os limites do que foi proposto por Freud.

Os encontros são abertos, contando com a participação de estudantes e praticantes da psicanálise nos mais diversos tempos de formação.

Essa diversidade de percursos favoreceu os efeitos da leitura em ato, proporcionando travessias e novas perspectivas sobre o texto freudiano.

Eixo Estudos Lacanianos

O Eixo de Estudos Lacanianos foi criado em agosto de 2023, nascido do encontro de intenções de leitura e discussão das obras de Jacques Lacan. Como ponto de partida, decidimos atravessar a temática da relação de objeto, que intitula O Seminário, livro 4. A escolha da leitura se dá por diferentes vias, incluindo o acompanhamento do percurso teórico feito por Lacan ao longo da sua obra. No entanto, foram as concepções e implicações ao conceito de “objeto” que tiveram caráter decisivo na determinação da obra a ser trabalhada.

Assim, os encontros do grupo se mantiveram durante 2023 e 2024, encerrando as atividades em 2025 em sintonia com encerramento da leitura do seminário em questão. Ao longo do tempo de trabalho, os encontros quinzenais deram lugar a diversas construções internas e externas às páginas de leitura. Seguindo o livre fluxo da alternância entre a leitura textual conjunta e as construções suscitadas a cada um frente a determinados escritos, o trabalho de estudos entrecruzou impressões, perspectivas e desentendimentos em uma malha de singularidades que acolheu o desejo de nos aprofundarmos em tais referências na pluralidade do encontro com colegas.

Eixo Literatura e Psicanálise

O Eixo Literatura e Psicanálise busca propor a discussão dos enlaces entre as obras literárias, suas singulares leituras e bases conceituais da teoria psicanalítica, transitando pelos clássicos e pelos contemporâneos.

O grupo é aberto, quem quiser participar será bem-vindo(a)!

Eixo Raça, Cultura e Psicanálise

O Eixo Raça, Cultura e Psicanálise exerce suas atividades por meio do GT Leituras e Crítica da Colonialidade, que se dá pela discussão de escritos como os de Frantz Fanon e Neusa Santos Souza, a partir de encontros de leitura conjunta com o objetivo de discutir criticamente sobre modos de subjetivação e decolonização da prática da psicanálise.

Eixo Infância, Adolescência e Psicanálise

O Eixo Infância, Adolescência e Psicanálise constitui-se em agosto de 2023 como um espaço de estudo, reflexão e interlocução entre psicanalistas, estudantes e profissionais interessados na temática da infância e da adolescência. Seu propósito é aprofundar o estudo teórico-clínico da psicanálise, privilegiando as questões relativas ao sujeito em constituição, seus impasses, sofrimentos e modos de expressão. O grupo busca promover o diálogo, reconhecendo a complexidade das infâncias e adolescências na contemporaneidade em suas articulações com a família, a escola, a cultura e o laço social, além de criar um espaço de troca e pesquisa coletiva, no qual a experiência clínica se articule à teoria psicanalítica, preservando a singularidade de cada caso. Ao mesmo tempo, interroga os desafios atuais que se colocam para a escuta e para a clínica diante das novas formas de subjetivação e dos discursos sociais que incidem sobre crianças e adolescentes, fortalecendo a transmissão da psicanálise.

Atualmente são encontros mensais e virtuais, sempre em uma segunda-feira, às 19h. No segundo semestre de 2025, o grupo iniciou a leitura do livro

A criança em análise e as intervenções do analista (2021), de Alba Flesler. Anteriormente, havia se dedicado ao estudo de outra obra da mesma autora: A psicanálise de crianças e o lugar dos pais (2012). Outras referências trabalhadas no Eixo:

- Parentalidade (2020), de Daniela Teperman, Thais Garrafa e Vera Iaconelli (capítulo “Parentalidade para todos, não sem a família de cada um”, de Daniela Teperman).

- Perversões: o desejo do analista em questão, de Norton Cesar Dal Follo da Rosa Jr. (capítulo 4.2 “O desafio perverso requer desestabilizar o lugar do analista: novas considerações sobre a transferência”).

Eixo Kiss e GT Testemunho, Memória e Trauma

O Eixo Kiss atua sob os efeitos simbólicos e concretos do incêndio na Boate Kiss ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, no qual 242 jovens perderam a vida, e que deixou cicatrizes com as quais 683 sobreviventes ainda precisam lidar. A proposta é fazer furos no silenciamento e trabalhar pelo registro e construção de uma memória na cidade.

O trabalho do Eixo Kiss tem sido construído com propostas de escutas interventivas na e para a cidade da Kiss. Intervenções em espaços públicos (fachada/muro da Boate Kiss, praças da cidade, universidades, ruas etc.), aproximação com outros movimentos de luto e luta, sensibilização da população para o trauma coletivo através de intervenções que envolvam diferentes artes (música, fotografia, literatura etc.), articulação com instituições público-privadas que auxiliem na divulgação das atividades e participação em eventos com a comunidade que ampliem a transmissão dos trabalhos construídos têm sido estratégias tomadas para criar condições de elaboração do traumático no campo simbólico. E é no encontro com cada uma dessas estratégias de intervenção que se abrem possibilidades para que cada um possa enlaçar seu processo singular de elaboração e a ressignificar o seu lugar no âmbito coletivo do trauma.

A primeira intervenção do Eixo Kiss ocorreu no dia 27 de outubro de 2022 e tem como objetivo

convidar as pessoas a se reposicionarem frente à tragédia, partindo da pergunta: “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”. Essa questão permite que o lugar singular seja ressignificado no âmbito coletivo, ou seja, promove uma passagem/ travessia de um trauma individual para um trauma coletivo – o que nos toca como cidade, reconhecendo um lugar traumático comum, mesmo com todas as diferenças e intensidades de experiências frente a um mesmo acontecimento.

Nela foi realizada a colagem na fachada da boate Kiss da pergunta e do QRcode que dá acesso ao formulário que permite a participação de toda e qualquer pessoa afetada por essa tragédia evitável. Uma aposta nas palavras e nas perguntas que abrem espaço para a construção de testemunhos e a elaboração de lutos.

Foram também coladas fotografias que compõem o acervo do Projeto Fotografar para Lembrar5, de autoria de Ricardo Ravanello, professor do curso de Desenho Industrial da Universidade Federal de Santa Maria. São fotografados pelo projeto sobreviventes,

5. Instagram: @ricardo_ravanello

Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo (27 out. 2022).

familiares de vítimas e profissionais que se envolveram nos serviços de urgência e emergência ou que se engajaram na luta em prol da memória das vítimas. A técnica utilizada foi a do colódio úmido, criada em 1850 e muito rara no Brasil. O resultado é impressionante, pois houve um trabalho artesanal que produziu efeitos de apagamento do retrato. Para muitos lembrou uma fuligem. O intuito era atentar para o risco de um apagamento social de uma memória difícil. As fotos foram dispostas na altura do observador, convocando propositalmente a sensação de olho no olho, de olhar e ser olhado por elas.

As colagens foram realizadas ao som de “Não tenho medo da morte”, potente letra de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Com instrumentos musicais que forjam batidas de um coração, a música imprimiu na intervenção um ritmo singular.

As colagens foram feitas com calma, delicadeza, cuidado e afeto expressos nos gestos com as mãos que tocam as fotografias e na solidária companhia. As artes e os artistas, através da música e da fotografia, cumpriram sua função corajosa de “ajudar a olhar” (Galeano, 2019, p. 15) para o muro, para o real da morte, para a impunidade.

A pergunta “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”, em 27 de novembro de 2022, ganhou a companhia de palavras que foram dispostas em um varal com prendedores no muro da Kiss,

compondo uma espécie de linha de um texto que ainda precisamos escrever comunitariamente. A partir da pergunta “Você compartilha sua palavra?”6 foram chegando palavras “pequenas [...] querendo se esconder no silêncio, querendo se fazer de oração”, como diz na música “Palavra”, de Fernando Anitelli, que tocou durante a intervenção. Cabe lembrar que a intervenção parte da premissa de que o sofrimento somente se humaniza quando é expresso em palavras com um outro significado que escuta e acolhe no laço social (Dolto, 2008).

“Você com-part(ilha) sua palavra?” nos leva a pensar sobre as palavras que nos sustentam a vida. E por que uma palavra? Porque uma palavra basta para começar a fazer furo no indizível de uma experiência traumática. Uma palavra pode fazer furo no muro escuro do apagamento. Pode fazer ruído na insistência do silenciamento. Assista aos registros da intervenção pelo link: https://youtu.be/19ErjhbSeW8.

6. Pergunta inspirada no trabalho “Você me dá a sua palavra?”, da artista visual Elida Tessler. Obra iniciada em novembro de 2004 que compõe o seu projeto Falas Inacabadas. Disponível em: w .elidatessler.site.

Em dezembro de 2022 foram coladas no muro 242 estrelas representando o número de histórias interrompidas por essa tragédia evitável. Uma home nagem às vítimas e também uma implicação com a importância da transmissão transgeracional do trauma. A intervenção resgatou a história contada às pequenas crianças de que quando alguém morre vira uma estrela, pois, nos meses anteriores, o CLTVPSM contou com a participação de crianças nas intervenções. Elas perguntaram: O que aconteceu aqui? Quem são essas pessoas?

A história das estrelas carrega algo muito simples na sua essência: de que a morte é a presença da ausência, ou seja, podemos ver a estrela no céu, mas não escutaremos sua voz, nem poderemos mais tocá-la. O que podemos é preservar memórias, construindo manei ras de manter nossos entes queridos vivos em nós. As estrelas coladas no muro foram feitas pelos alunos da Escola de Ensino Fundamental Santos Reis, do município de Agudo (RS), teve quatro vítimas fatais no incêndio.

As crianças com suas cores e pala vras emocionaram os participantes da

27 de janeiro de 2013?” passou a contar com a presença de outros interrogantes que já circulavam nos diálogos da população sob a forma de frases hostis dirigidas às pessoas que integram movimentos de luta por justiça, principalmente à AVTSM8. Através da intervenção essas frases foram devolvidas à população em forma de perguntas, convocando, com arte e delicadeza, a reposicionar seu lugar no âmbito coletivo, uma tentativa de lançar questões que abram caminhos e que construam pontes, lembrando o que nos diz Bauman (2022, p. 22): “Nós não deverí amos construir muros, deveríamos construir pontes”.

A proposta foi a de trilharmos um caminho com as perguntas desde a Praça Saldanha Marinho, local em que todo dia 27 ocorre a Vigília, até a frente do local onde funcionava a boate Kiss, colando nas calçadas fotografias e frases compondo coletivamente, passo a passo, um memorial pelas ruas da cidade.

8. Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (Instagram: @avtsm27).

Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo e Arquivo CLTVPSM (24 jan. 23).

Foram coladas fotografias de mãos dadas e abraços que fazem parte do acervo do fotógrafo amador Dartanhan Baldez Figueiredo, registradas em ações promovidas pela AVTSM. Ele resgata com suas lentes a fundamental presença dos gestos de solidariedade diante da dor e ao sofrimento que o incêndio na Kiss ainda causa.

Assista ao vídeo desta intervenção, produzido pela TV OVO/Santa Maria pelo link: https://youtu.be/SV1XQGGK8Ow.

Em abril de 2023, o Eixo Kiss, juntamente com o Eixo de Literatura e Psicanálise, promoveu uma intervenção na Feira do Livro de Santa Maria. Alguns dos testemunhos enviados para o formulário disponível nas redes sociais, que respondiam à provocação de onde cada um se situa diante da tragédia, foram colados em páginas amareladas de livros antigos e pendurados pelos estandes da feira, formando um potente varal9 de compartilhamento de lugares, afetos, histórias e testemunhos.

Durante a programação da Feira foram transmitidos via rádio esses mesmos testemunhos, lidos pelas

9. Inspirado na intervenção do Coletivo Testemunhos da Pandemia, em que um varal itinerante é composto por testemunhos.

pessoas que emprestaram sua voz aos relatos10. Escute os testemunhos: https://on.soundcloud. com/257gd.

Com esta intervenção o Eixo Kiss compartilha e retorna para a cidade o acervo que já conta com 140 testemunhos. O formulário continua recebendo respostas através do QR code.

Ao longo dos anos, o Eixo Kiss esteve presente também em textos de jornais e redes sociais, escrita do Correio em parce ria com Appoa, eventos e aulas abertas em universidades da cidade, rodas de conversa, curadoria de exposições das fotografias de Dartanhan Baldez Figueiredo, vigílias organizadas pelos familiares da AVTSM e ação conjunta com o Coletivo Kiss: que não se repita

10. Ação inspirada no projeto Você Empresta sua voz?, realizado pelo Museu das Memórias (In)Possíveis na Coleção Inventário dos Sonhos.

Seguimos pensando intervenções, testemunhando os testemunhos, lutando por justiça, fazendo memória. Mantemos nosso compromisso clínico-político para com a cidade de Santa Maria e para com a psicanálise, e convidamos a estarem conosco todos os que se sentirem tocados.

Outras atividades pontuais foram promovidas pelo coletivo. Rodas de Conversas com convidados, tais como: o professor do Departamento de Psicanálise e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS, José Damico, que trouxe para o debate questões sobre racismo e decolonialidade; o psicólogo Gabriel Rovadoschi Barros, sobrevivente da tragédia da Boate Kiss e, na época, presidente da AVTSM; a psicanalista Samanta Basso, doutoranda em Psicologia em regime de cotutela pela Universidade Federal do Ceará e pela Université Côte d’Azur (França), com o tema “A fome como um tema para a psicanálise”; o professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Diorge Konrad, trazendo a história da ditadura empresarial-civil-militar na cidade de Santa Maria; a ex-presa política argentina Graciela

Nosotras en libertad, que reúne testemunhos de mais de 200 presas políticas na Argentina na década de 1970. O Eixo de Literatura e

Psicanálise promoveu o lançamento do livro

Magnólias 57, do psicanalista Norton Dal Follo da Rosa Jr., santamariense, membro da Appoa (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Junho de 2024.

Fonte: @alicefotografafilmmaker

Veja as fotos em: https://w .instagram.com/p/ C82GSH5MR95/?igsh=OGQ5Mm1qdDQ1aDY= e assista aos vídeos de Nicholas da Motta acessando os QR codes abaixo:

O Eixo de Literatura e Psicanálise participou com o tema “Tramas Transitórias” do Circuito Elétrico, programação que compôs a Feira do Livro de Santa Maria. Agosto de 2024.

Fonte: Paulo Barauna

Santa Maria: Cidade Universitária, Cidade Cultura, Cidade da Kiss, da Boca do Monte, dos trilhos do trem e da Viação Férrea. A quantas estações ainda podemos chegar ao escutar aqueles que habitam a geografia dos teus morros? Quantas Santas Marias existem dentro dela mesma?

Caminhar ressignificando, desordenando, refazendo rotas, trocando os papéis convencionais de lugar, construindo, dando as mãos a outros coletivos, outras psicanálises, desimaginando os caminhos dados. Saberemos os pontos de chegada a cada passo, caminhantes, ao caminhar.

Vídeo Caminhantes

Referências

BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. São Paulo: Zahar, 2022.

BRUM, E. Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago, 2019.

COUTO, M. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

ELIA, L. A lógica da diferença irredutível: a formação do psicanalista não é tarefa da universidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 2016, v.16, n.4, p.1138-1152.

FREUD, S. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887/1904). Rio de Janeiro: Imago, 1986.

GALEANO, E. O Livro dos Abraços. Porto Alegre: LP&M, 2019.

MACHADO, A. Proverbios y cantares. Poesías completas. Madri: Espasa-Calpe, 1983.

Autoras do zine Ariádini de Andrade Vanessa Solis Pereira

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