A psicanálise lá onde o corpo é grito

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A PSICANÁLISE LÁ

ONDE O CORPO É GRITO

Zine Clínicas de Borda

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, 2025

Editora n-1, 2025

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

Editores Chefes

Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes

Coordenação editorial

Gabriel de Godoy

Projeto gráfico

Isabel Lee

Ilustração da capa

Renata Pereira

Organização da coleção

Andréa Guerra e Linnikar Lima

Coordenação da coleção

Andréa Guerra

Comissão editorial das Zines

Andréa Guerra

Linnikar Lima

Gustavo da Silva Machado

Jairo Carioca de Oliveira

Luis Henrique Mello

Luísa Ribeiro Lamardo

Marcela de Andrade Gomes

Maria Elisa da Silva Pimentel

Maria Izabel dos Santos Freitas

Miguel Pinheiro Gomes

Renata Santos Cravo

Vanessa Solis Pereira

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

1a edição | Outubro, 2025 n-1edicoes.org.

Zines Clínicas de Borda

Coleção:

1. Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (Santa Maria/RS)

2. Pontes da Psicanálise (Recife/PE)

3. Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo (Campo Grande/RJ)

4. QUIMERA: Circulando afetos (Niterói/RJ)

5. Psicanálise na Praça da Alfândega (Porto Alegre/RS)

6. Coletivo de Psicanálise Itinerâncias (Porto Alegre/RS)

7. Atêlie das Migrações (Florianópolis/SC)

8. Rede Divam (São Paulo/SP)

9. Coletivo psicanalítico Café Borromeano (São Paulo/SP)

10. Coletivo escuta do Monte Verde (Florianópolis, SC)

COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS

Freud modifica seu olhar sobre o inconsciente ao longo de sua obra: se, no início, o pensou como profundidade, ao fim nos indica que o inconsciente pulsa nas margens. É desse lugar que nasce a Coleção de Zines das Clínicas de Borda Brasileiras, aberta a novos fascículos, fruto da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadxs com as respostas de sua clínica e de sua formação diante da realidade nacional marcada pela brutalidade e pela violência estrutural. Reúne experiências múltiplas e plurais, sem reduzi-las a um “mínimo comum”; ao contrário, afirma o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, e nos próprios caminhos de formação.

Nasceram da resistência dos movimentos plurais e das vidas teimadas nas periferias, favelas, praças, margens, estações, ocupações e quilombos. Erguem-se como resposta aos genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, às violências do racismo e do desamparo, aos deslocamentos migratórios forçados. Seu fazer é da rua e com a rua: uma psicanálise que transgride as normas burguesas, sustenta o laço transferencial onde a vida pulsa e dá nome, com tempo e presença, a corpos apagados no cotidiano.

Reinstituem o necessário na teoria e na prática ao revisitar as clínicas públicas e populares desde os gestos inaugurais do campo freudiano, agora reviradas pela experiência da Améfrica Ladina. Em elipse, viram o espelho ao avesso, atravessam fronteiras disciplinares e urbanas, e marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos arranjos de partilha e presença. Saem do consultório individual burguês para ocupar praças, escolas, centros comunitários e plataformas digitais, recebendo analisantes online e em cadeiras ao sol, escutando o sofrimento onde ele se enuncia.

Colocam o pagamento em xeque e não mais no cheque. Trazem a marca do território, da língua, dos sotaques e das gírias que fazem o Brasil múltiplo, redistribuem-se em cada canto do país e tensionam a circulação do capital e as respostas do inconsciente diante das violações diárias. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica e a lógica excludente da formação do psicanalista, recolocando a psicanálise na polis: atravessada pelas margens, comprometida com o comum e responsável perante as vidas que insiste em escutar.

Elas não estão todas reunidas aqui; esta coleção permanece aberta, chamando novas presenças para seguir escrevendo esta história.

DISPOSITIVO DE ESCUTA PERIPHÉRICA XICA MANICONGO:

a psicanálise lá onde o corpo é grito

“O senhor sabe o que é silêncio é?

É a gente mesmo, demais.”

(Riobaldo em Grandes Sertão: Veredas)

Era corpo, sim. Corpo que nem outro, de carne e osso, mas desses de canto, de beirada, escanteado no mundo feito coisa esquecida. Corpo que se acostumou à indife rença, calado pelo costume que se espalhou por aí. Ali, sob a marquise, se juntava ao concreto da calçada, diante do consultório. A cidade toda passava, um tropel invisível. Mas o analista viu. Aquele corpo não se fez de nuvem pra ele não, não naquele dia. Cumpriu o ritual, deu o bom dia no modo do costumeiro, mas o que veio de volta foi que espantou. Um fio de voz, quase que por entre os ventos:

— O senhor é terapeuta? Ah, eu queria fazer análise um dia...

O analista, sem palavra pronta, só lançou de volta, como quem joga rede e espera o que o rio há de trazer:

— E por que não vem pra gente conversar aqui dentro?

Mas a resposta não foi de imediato. Foi o silêncio que veio primeiro. Pausa pesada, de quem mede palavra como quem pesa ouro na balança. E depois de longos minutos no ar parado, a fala apareceu, baixinha, rendida, suplicada:

— Como é que eu vou fazer análise, moço, se tô sempre drogado, fedendo e com a barriga no osso?

Nada mais disse. Virou-se. Juntou o papelão, ajeitou o carrinho, chamou o cachorro magrelo e se foi, levando com ele o tudo de sua vida num punhado de

1. O Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo é a Clínica do Coletivo de Pesquisa Ativista em Psicanálise, Educação e Cultura, espaço fundado e organizado pelos psicanalistas periphéricos Jairo Carioca de Oliveira, Ronald Lopes e Hudson A. R. Bonamo.

tralhas. Mas o que ele disse ficou. Ficou girando na cabeça do analista, como vento que roda sem parar, feito saci em redemoinho. Pela primeira vez, em mais de uma década naquele canto, ele sentiu o peso do chão que pisava. Ali não era só o consultório, não era só a Baixada Fluminense. Ali era avesso, era o lado outro, pro resto. Lá onde o corpo é grito.

E a psicanálise, naqueles lados, também precisava encostar o chão quente de asfalto rachado. Baixada Fluminense, território espremido e ao mesmo tempo vasto em precariedade, maior que as estatísticas sabem dizer, atravessado por corpos afro-brasileiros, corpos de favela, corpos marcados pela falta e pela violência cotidiana. Nesse meio, o fervor religioso se expande como fogueira em mato seco, se misturando ao conservadorismo endurecido da última década2 . A questão virou muro: não dava mais seguir assim. Tinha que mudar o jeito de olhar, de escutar. Abrir a porta do consultório era pouco. Tinha que entender que a psicanálise, nascida nos salões da Europa não fincava raiz ali, olhava pra esse lugar não como centro e sim como margem, olhar desconfiado. A teoria clássica, tão distante das dores dali, não servia mais. Precisava de outra escuta. Como lidar com a transferência, com o vínculo, se o sujeito nem reconhecia a enormidade da dor que trazia em seu corpo?

A escuta tinha que ser da quebrada, sim, tipo a voz do povo pedindo socorro no meio da seca, chão rachado, onde a falta de amor pesa que nem pedra no peito. O analista então foi atingido por uma treta interna, uma dor que bateu forte, como se a vida, no seu jeitão cruel, quisesse zoar com a cara dele. E o saber, aquele saber que todo mundo corre atrás, era barulho, tipo trovão lá longe, mexendo com a calma do deserto que é cada história. Cada vida aqui é tipo um sertão, um faroeste caboclo.

Um dia adentrou ao consultório uma mulher negra, trazida pelas agruras da vida, como quem carrega nos ombros o peso das lutas diárias e os ecos das dores que ecoam nas vielas da periferia. O espaço, ali dentro, era manso: livros velhos, guardiões de saberes, repousavam nas estantes, sussurrando histórias de superação e resistência; um divã macio, como um abraço de vó em meio às securas da existência; e a paz que brotava das paredes nuas, vibrando em cada canto, como uma canção de esperança que ressoava nas vielas. Sobre a

2. OLIVEIRA, Jairo Carioca de. Entre kits e mamadeiras: a escuta psicanalítica do conservadorismo brasileiro nas políticas de educação e sexualidade. Ouro Preto, MG: Caravana, 2024.

mesa de mogno, uma orquídea em flor descansava majestosa, reluzente, como se quisesse acalmar o silêncio que ali se instaurava, como se fora poesia de Drummond. E lá fora, no corredor antessala, duas poltronas simples acolhiam o calor morno do sol, filtrado pelas persianas, como se a luz desejasse adentrar também de teimosia insistente o lugar.

O analista, com a paciência de quem sabe que o tempo é aliado, aguardava, já sabendo que a escuta, ah, ela começa muito antes de qualquer palavra ser falada. Quando a figura dela se fez presente na porta, ele saudou com a doçura de quem reconhece o cansaço da jornada:

— Boa tarde, seja bem-vinda.

Mas a mulher, com o olhar vagando pelo espaço como pássaro sem ninho, hesitou. Estava ali, mas não estava, como se seu corpo fosse a ponte que levava à sala, enquanto sua alma, talvez, permanecesse à porta, distante, perdida entre as lembranças do que havia deixado para trás.

— Obrigada... Mas acho que este lugar não é pra mim quase se esvaindo nas sombras da insegurança de sentidor.

O analista, atento como quem lê os sinais do cotidiano, viu o que o silêncio gritava. Aquele espaço cuidadosamente montado, com sua calma pensada, não era o abrigo que ela buscava. No gesto dela, havia um desconforto palpável, uma sensação de que o ambiente, por mais acolhedor que fosse, não sabia como abraçar.

— Você se sente desconfortável de estar aqui dentro? perguntou, já pressentindo a resposta que dançava em seus olhos, como a brisa que anuncia a chuvarada.

Ela acenou de leve, os olhos parados nas poltronas lá fora, aquecidas pelo sol que parecia mais convidativo, como um lar antigo que a chamava.

— Acho que me sentiria melhor ali, se não for incômodo, queria ficar aqui fora...

Ele não precisou de mais nada. Levantou-se com a calma de quem sabe que a vida se desenrola a seu tempo, puxou uma cadeira para mais perto dela, no corredor. Sem pressa, sem forçar. Na sombra do que costumava ser o setting clínico, criou-se outro,

um espaço onde o vento e o sol também podiam escutar, como se a natureza quisesse se aliar à cura.

— Podemos fazer análise aqui, se você preferir. O que acha?

Ela suspirou quase aliviada, e um sorriso tímido começou a brotar no canto da boca, como flor que se abre à luz do dia para a visita matinal dos insetos:

— Sim, melhor. Obrigada.

E foi no corredor ensolarado, que o trabalho começou. Meses de escuta ao ar livre, como se as palavras fossem sementes que precisam do calor do sol para germinar. Meses em que ela foi abrindo a fala, devagar de cuidado, desenterrando as violências, as feridas do corpo e da alma. O corredor, então, transformou-se em abrigo, e neste lugar ela encontrou o espaço seguro para deixar as palavras fluírem, como o rio que se desata após a chuva, levando consigo o que há de mais pesado. O analista sabia que não se faz um setting com divãs e tapetes persas, mas com uma escuta acolhedora, onde o Real possa circular no encontro com o desejo, sustentado pelo sentente analítico.

Até que, um dia, sem aviso, pediu para deitar no divã. Disse que queria entrar. O lado de fora, que por tanto tempo fora seu abrigo, já não era mais o lugar de conforto. Cruzou a porta, e não foi gesto simples, não. Foi um mergulho profundo, de quem encontrou a coragem para estar dentro, um ato que só surge após uma longa travessia, como quem, depois de longos dias de luta nas vielas, vislumbra a luz que desponta no horizonte e renova a esperança nas favelas. A passagem foi como a travessia do rio, uma jornada que transforma e que traz à tona o que estava esquecido na ocultação, permitindo que cada cicatriz se torne história e cada dor, um testemunho de resiliência.

No abrigo, ela começou a se reescrever, a se encontrar em meio ao caos, fazendo do consultório um espaço de reexistência, onde cada palavra proferida era uma semente que germinava em solo fértil, desafiando as estatísticas que tentavam invisibilizá-la. A favela, sua casa, se tornava neste momento, também, seu lugar de transformação. Como descreveu que ao entrar, se sentiu como se estivesse na descoberta esquecida da pequena África.

Ah, era de se ver, de entender, sim senhor, que a palavra é fármaco. Dá um corre na ferida, no mesmo feitio. A escuta do periférico outro, quem se arrisca? Só quem pisa de mansinho, que entende que o sujeito ali, no seu falar,

não traz só dele mesmo, não. É mais, muito mais – carrega a dor e os gritos de muitos, de gerações e gerações. A voz vem amarrada nas histórias que o mundo não quis ouvir, nas cicatrizes que a cidade inteira finge não enxergar. E a análise, essa aí, vai para além do tirar o sofrimento, não é desse jeito. É de ajeitar o peso, de encontrar um jeito novo de carregar a dor, arrumar a cangalha na carcunda pra não ser dor tão desmedida no esmagamento de vez. Porque sofrer, sofrer não se some fácil, não. O negócio é fazer com que o sujeito viva de um modo mais inteiro, mais são.

E o racismo, ora, esse sim, é açoite que vai n’alma, não só na pele. Atravessa tudo, invade o que a gente é, mais ainda os que estão nas beiradas, nos barrancos da vida. E quem há de dizer que manter-se são, numa sociedade racista, não é privilégio? Porque o sofrimento negro não é só o do que se vê, é o do que se vive e se revê, em todo canto, em todo corpo da mesma cor. O sofrer é da coletividade, feito pedra no rio, que não cessa de bater3 .

Nessa ordem de matar num feitio que Mbembe bem diz, é um nó apertado que enfia na carne e gira. Feito vento ruim que só sopra pro lado de quem já é enfraquecido. Enquanto o povo branco se protege nas sombras dos seus muros, os corpos não brancos, os corpos marcados, dos colonizados, vão sendo lançados ao moinho de moer carne, de espremer vida até não sobrar nem gota. É a velha ordem: quem manda fica limpo, quem sofre não escapa do sujo, do sangue e da perda. E esse racismo é que sustenta a engrenagem toda. Alimenta, mantém a roda girando. Mas não pode ficar assim, não. Há de ter luta, há de se erguer, romper esse laço na carne, descolonizar o corpo e a mente, que a urgência não permite mais esperar4 .

O racismo institucional vai empurrando gente para as margens, jogando-as pro longe, fora do alcance dos direitos e dos recursos que o mundo oferece pra uns e nega pra outros. E a psicanálise? Por tempos, também foi parte desse afastamento. Mas a que pisa o chão da periferia tem que ser outra, tem que ser mais viva, mais sabida, tinhosa. Não pode ficar calada. Tem que reconhecer as forças grandes que atravessam o sujeito, como redemoinho que arrasta tudo, dos pés à cabeça. E escutar esses corpos que gritam, tão cortados por racismo e exclusão, é tarefa de olhos atentos. Não basta abrir a porta do consultório.

3. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016. 4. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 60. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

Há de se abrir os olhos pro tanto de vida que já foi esmagada pela necropolítica, essa política de matar não só o corpo, mas a alma também.

E foi desse grito que o Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo nasceu no Rio de Janeiro, assim, feito erva que cresce nas fendas do concreto, indignação. Um bando de psicanalistas lá da periferia que entenderam que o jeito tradicional não bastava mais. Rasgaram os manuais, correram o risco da heresia. O Dispositivo não é lugar de só falar, não. Ali, o cuidado é no corpo também, e na alma. Tem ação social, tem letramento racial, tem roda de estudo, tem formação cultural e parcerias com espaços de cuidado do corpo. A cura ali é desde o cheiro até o coração. Um espaço onde o sujeito, antes de ser só tratado, é acolhido, refeito de dentro e de fora. É recomeço sempre possível, antes que a vida seja cortada de vez, antes que o fim venha cedo demais, antes que se chegue naquela placa escrita pare que chega sem avisar.

Ali a clínica tinha que ser pensada na real, nascida no morro, nas favelas, no subúrbio. E que as falas dos irmãos e irmãs fossem ouvidas de verdade, respeitadas, e tivessem o valor que merecem. Não era lugar de fantasia, mas sim um olhar crítico pra dureza do viver negro, pros mundinhos que cada área tem e pras oportunidades que aparecem – quando aparecem, se é que aparecem. Ali a vida é o corre: tiroteio na porta, segurança pública falida, escola que fecha por causa da treta, helicóptero rasgando o céu de manhã, ruas com barricadas. Ali na Baixada Fluminense o bagulho é doido, e muitas vezes, o poder público tá virado de costas pra nóix.

Nas áreas onde os analistas da elite trampam, nas escolas clássicas de psicanálise, o rolê é outro. Lá tem praia, vista pro Cristo, privilégio de descansar, sonhar, viver de boa. Lá, os caras têm segurança. Eles não manjam o que a gente passa do outro lado. Os analistas de lá não precisam estar na pegada, correndo na atividade, pegando trem lotado e ônibus que quebra no caminho. Lá é outro lado, aqui nós não moramos na Disney.

“Posso falar de macumba aqui?” perguntou uma mulher trans na primeira sessão, e aquela pergunta bateu forte no Dispositivo. Não era só uma pergunta qualquer, era o sagrado gritando por espaço, pedindo pra ser ouvido. Porque, ali, diferente dos consultórios que se vestem de europeu e se fecham na rigidez, a macumba, o terreiro e os santos têm seu lugar, sim. A psicanálise no

Dispositivo não é aquela velha e engessada que se espelha em saberes que ignoram nossas raízes. Não! A psicanálise dali é feita do que o povo traz, é desejo que se levanta, não só necessidade. E onde tem desejo, tem vida pulsando, força resistindo. Na periferia, o desejo não se esconde na vergonha, não se cala. Ver esse desejo brotar no meio da pobreza, no que o capital chama de miséria, isso é subversão de verdade, é resistência do espírito, saca? Se a miséria tenta reduzir esses corpos a números, o Dispositivo se nega a aceitá-los, no resgate da humanidade que foi roubada, trazendo de volta o desejo que grita, que não quer se calar5 . A gente sabe que o inconsciente, essa força que gera significados, não só repete, mas cria e se reinventa. É isso que dá a essas experiências seu jeito complexo e rico em simbolismo. Ao não deixar o sagrado de lado, a psicanálise desse espaço se transforma em um lar, um espaço sagrado onde a vida e a fé dançam juntas, como folhas que se movem no vento forte da rua, sempre em busca de um novo amanhecer.

O Dispositivo se tornou um eco de resistência. Uma escuta política, sim senhor, que rompe com os espaços frios e tradicionais. Ali, a psicanálise é outra coisa. É feita para quem sofre à margem, para quem o racismo atravessa todo dia. No Dispositivo, a psicanálise não fica nos livros, não. Ela nasce do inconsciente político, que carrega o peso das marcas da branquitude, do poder, da opressão. Lacan disse bem, não foi? O inconsciente é o discurso do Outro. E esse Outro aí, nas margens, é marcado pelo peso da exclusão, do racismo, do colonialismo. Por isso, escutar esse inconsciente é abrir uma porta para a resistência. É subverter, sim. É abrir a escuta para o que nunca foi dito ou o que foi calado à força 6 , ainda que corramos o risco da heresia.

Ali, o desejo vira grito de vida que desafia a morte imposta pela necropolítica, dizendo: “Aqui não!” No Dispositivo, a psicanálise não se prende nas grades do consultório, não fica limitada às quatro paredes, ela se rebela, arrebenta as cercas e vai além, vai pras vielas da periferia, onde se pode pensar até que haja só ausências, mas tem potencialidades silenciadas. Lá, onde o vento sopra diferente, ela se mistura com a educação, com a cultura, se reinventa. O Dispositivo é isso: uma formação contínua em psicanálise, que brota

5. NÚÑEZ, Geni. Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar. 1. ed. São Paulo: Planeta de Livros, selo Paidós, 2023. 192 p.

6. LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

em seminários, nas reuniões do Coletivo de Pesquisa Ativista em Psicanálise, Educação e Cultura, com irmãs e irmãos semeando ideias, cultivando novas possibilidades. O Dispositivo não só desbrava os caminhos, faz o que ninguém acreditava possível, clínica onde havia gente usando crack, onde ninguém via futuro, ele mete o pé e constrói um novo corre, cria vida onde só tinha abandono, faz brotar lírio no osso da palavra.

Nessa caminhada, a psicanálise não é só sobre cura, mano, é sobre dignidade, sobre viver e desejar. É uma resistência, é um posicionamento que grita: “Estamos aqui e ninguém vai nos tirar!” E como disse Conceição Evaristo, ecoando nas nossas cabeças como se fosse grafite em muros: “Combinaram de nos matar, mas a gente combinou de não morrer”7. Essa é a energia da luta, de um saber que pertence ao povo, que resiste junto com ele, no chão de onde veio e de onde nunca vai sair. Aqui, psicanálise é resistência viva, é revolução diária, é sobre sobreviver com potência, lado a lado com quem sempre foi ignorado, mas que nunca deixou de existir.

Ah, então o que se vai vendo, nas veredas tortas da vida, é que a escuta tem que ser outra. Não pode ser só do que se acha simples, do que a gente já sabe. Como diz Lacan, tem que ser escuta política 8 . Porque o inconsciente, ah, esse aí, é político também, é mexido dentro da gente, com o que o Outro manda. E esse Outro? Esse carrega nas costas as marcas da branquitude, da burguesia, do mando patriarcal. E não é só isso. Vai também levando o colonialismo junto, como quem puxa um touro amarrado, cismando que a vida é sempre igual. Mas não é e nem consegue ser.

É que, se o inconsciente foi colonizado, então, uai, o jeito é ativar o desejo, esse que nasce de uma resistência, de uma força que quer viver diferente. É teimosia mesmo que agarra feita tatuagem em nossa pele de viver de nóix.

E isso que Freud já sabia. Esse homem, lá em 1910, já dizia que o saber da psicanálise, ora, não pode se prender num cercadinho. Igual ao agricultor que tem de aprender com

Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca

O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

a terra, de sentir o chão no pé, ele dizia que a técnica precisa se ajustar às gentes. De nada adianta querer plantar a mesma semente em todo solo. Oito anos depois, quando os ventos da guerra sopravam mais fortes, Freud reforçou, em Budapeste, que o psicanalista tem que saber das curvas do caminho, igual o homem que caminha pelo sertão e aprende a cada volta de vereda feito cria que conhece cada beco esquecido e vielas da favela 9 .

Agora, presta atenção: a psicanálise nunca andou sem sentir o peso do mundo nas costas, e isso é verdade que não se pode esquecer. Quando tentaram fazer o congresso lá em 1914, não rolou. A guerra chegou destruindo tudo, jogando pedra e escombro pra todo lado, e o congresso ficou perdido. Só quatro anos depois foram alembrar do evento e tentar fazer alguma coisa. Aí, já estavam tentando entender os traumas deixados pelos ventos fortes da guerra, os estragos que isso fazia no coração do povo, os fantasmas que bagunçavam a mente de geral10 . Hoje, o causo do Dispositivo que lhe contei precisa ser escutado e diz com força: sem democracia, não há como a psicanálise criar raiz em terra seca de autoritarismo. Não há.

Então, o que esse tal Dispositivo faz não é só abrir uma porta, nem só ser clínica social. É um bicho de fiar, feito raiz de gameleira velha que vai se enroscando por debaixo da terra, laço de mundo, tramando política sem pedir licença. Gente se ajunta, gente proseia, cada qual inventando moda de pensar, mas sempre de bando, que o coletivo é que dá sustança. E olhe: esse mercado liberal, que vivem querendo empurrar nos beiços da gente, não é lei de Deus não, é só vento rodado, coisa que passa e volta, mas que a gente não precisa engolir calado. Porque o sonhar nosso, quando vira fazer, é cabrunco que se ergue: não se limita a sarar dor, mas a ensinar o corpo a viver de outro feitio, a existir por inteiro e a se desgrudar dos aperreios que nos apertam.

E é verdade, nós, que fomos formados do mesmo jeito, temos de desviar das certezas que aprendemos, porque, nas periferias, o mundo é outro. Aquelas fórmulas velhas, ah, não servem aqui não. Aqui brotam novos problemas, que ainda não ganharam nome. São corpas travestis, corpos negros, corpas de profissionais do sexo, mães solos, humanos sabe-se lá de quê, mas ainda sim

9. FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico. In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 18. p. 15-84.

10. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

humanos! Sujeitos que o sistema já negou tantas vezes. Eles pedem, é, clamam por outra sensibilidade, outra forma de cuidar, porque a vida pulsa diferente.

A psicanálise tem de se enraizar na experiência humana, que é viva, que é cheia de cor, que transborda de vida.

Olha, não dá pra se esquecer do nosso compromisso com o inconsciente, que é o que nos move, mas também é um compromisso ético e político. Aqui, as gentes, os analisantes, se tornam coautor dessa psicanálise que acolhe e constrói um espaço político junto. Esse espaço, por transferência, a gente escolhe, porque sente no corpo, no dia a dia, que é ali que dá pra trabalhar nossas reclamação. Tamo cercado de discursos religiosos e lógicas de manicômio, porque as “Comunidades Terapêuticas” ainda pesam, prendem os corpos com suas palavras. Chamam a gente de “dependente químico”, rotulam com nomes que esquecem que, por trás disso tudo, tem um sujeito que tá sempre se transformando, que não cabe em uma única definição.

E esse lance das drogas, será que é um mal que atravessa o mundo todo? Cada um tem seu jeito de lidar com esse mal, assim como cada um deixa sua marca na areia. Não dá pra olhar só pra substância, pros efeitos. É preciso ver como o sujeito se relaciona com aquilo que consome, porque muitas vezes é uma forma de enfrentar um sofrimento maior, de encarar o mal-estar do dia a dia, a fome. A Organização Mundial de Saúde 11 diz que o uso compulsivo é doença. E aí, o que a gente vê? É que as Comunidades Terapêuticas são tipo semente que não brota, porque não remexem a terra seca. A taxa de quem volta pra internação é alta; as compulsões retornam porque o que se perdeu não é só o controle, mas também o prazer. O prazer de viver. O prazer que foi suprimido, escondido, soterrado. Tem muita coisa perdida aí que nem se sabe, mas tá lá no fundo.

E aí, o que a gente faz? Cumé que a gente fica? A gente busca escutá esse não-lugar de fala. Tem duas margens no rio? O poeta fala de uma terceira margem. Cada vida é um rio, com suas curvas, seus mistérios. A análise é um convite à descoberta, porque cada sujeito é um sertão imenso, cheio de veredas inesperadas. Tem segredo, tem descoberta. Tem é coisa aí.

11. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD) [Classificação Internacional de Doenças – CID-11]. Disponível em: https://www. who.int/classifications/icd/en/. Acesso em: 20 ago. 2025.

Vixe, me ponho a falar, me estico, mas cada dizê vai na sina do que é, como frecha que voa sem volta. Olha as ideia, ah, essas giram, giram feito redemoinho, fazendo curva pra drentro das veredas do que a gente pensá. Pois veja, quando se fala de impedir, essa palavra se afigura feito cobra, daquelas que vão se enroscando, retorcidas, até que onde passa deixa marca. A proibição?

Ah, essa vai e faz o que foi negado virar desejo, espinho que atrai. Igualzinho poeira que o vento carrega, arrastando gente pra um estado adoentado, uma compulsão que desamarra tudo. E nessa dança, o uso da droga, meu amigo, acorda bicho dormido, traz à tona fantasmas que o sujeito nem sabia que tinha. É como papel picado largado no vento. São violências adormecidas que, como tempestade bravia, se abatem sobre a alma, gerando problema, quebrando o espírito, trazendo mal pra tudo, crimes, violências que varrem a cidade e entram, sem cerimônia, nas casas, como a ventania que derruba telhado.

Identificações, palavreado de conversa molenga e difícil, mas que fincam espinho na carne, podem até ser quebradas, revertidas. Mas isso, oh, é tarefa de conjunto, equipe inteira, que vai lutando junto. Diz conjuro: e o analista, esse, tem de mais que só saber do sentir. Ele tem de pertencer ao chão que pisa, tem de ser da pólis, igual cidadão, parte viva da comunidade. O analista, feito gente no meio do povo, do sentente que vai laçando o simbólico na vida da cidade, ajeitando o que tá desatado. Tem um homem muito sabido, Éric Laurent, esse já tinha contado um causo, ó: “O sujeito ascético, que se afasta do mundo e se cala, é sombra que inquieta.” E o tal analista, ele não pode ser só sombra; ele tem de ser dobradiça, tem de girar, de passar da posição de saber para ser o analista cidadão. Saber, sim, que a democracia e as segregações guardam mistérios que só quem olha bem di pertim pode entender

Diacho, Laurent foi certeiro: “Delenda est! ser destruída.” A clínica, ela se impõe – não pode mais o analista se esconder atrás do sabê. Se acha que pode ficar lá, parado, na sua velha posição, seu tempo já passou, sua função morreu. E isso já se diz, não se trata só de clínica, não. Isso ecoa nas ruas, nas vielas. Não se deve capturar o sujeito na tarrafa da patologia; há que se estender de chumbo

12. LAURENT, Éric. A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p. 143.

o cuidado à responsabilidade, ao que se debate o que nos rodeia. O homi Laurent falou que, se a gente ficá dando uma olhadinha na análise só no tempo histórico, tem que si apercebê que essa forma de vê, se algum dia foi, hoje já não presta mais. Insistir nessa ideia é como ficar segurando fogo na mão – só pra dá de se queimar.

E a fala, na análise, oh, ela é matreira. Silêncio, esse não é vazio, não. É espaço fértil. O analista cala, mas cala pra que o outro fale. Não é mudez, é convite. O falante navega pelo silêncio, buscando, na ausência do dizer, encontrar seus próprios rumo, desenterrar o que tá enterrado. E nesse di calar, as palavras não são pra explicá nem pra enfeitá, mas pra abrir caminho, pra furar coisa pronta, as palavras são pra dizer as certezas da vida. Não se quer aqui defender identidade rígida, mas sim olhar de frente as segregações que nos cercam. A luta antimanicomial, essa é brava, é preciso ter olhos de falar. Ser psicótico é existir, e viver em meio à precariedade, mesmo frágil, tem um valor de vida que a gente precisa enxergá, a gente não veio ao mundo para o chão somente, é preciso voar.

Esse projeto matuto, ele é mais que saber, é feito de humanidade. Busca reintegrar os perdidos, que, tal como flores do campo, vão se abrindo de novo, buscando novo lugar no mundo. E a clínica? Ela vira uma casa de portas abertas, entreposto de gente, onde cada um recebe o que precisa. Além disso, se enlaça com a educação, com capacitação. Junto vai gente de todo canto de tipo: psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, músicos, contadores de histórias, gentes esfarrapadas – todos, como um coro, a tocar a melodia da vida, feito orquestra bem afinada.

Mas, ah, a tal cultura do consumo, ela se impõe, feito véu. E o uso das drogas vira um jeito de tecer a própria identidade. É manto que cobre o desamparo, as carências do afeto, a falta de referência que sustenta a vida, beijos de doce veneno. Cada um, feito rio, busca o leito que lhe caiba, procura seu lugar no tecido. Mas alguns leitos se secam no desesperançar da vida que embrulha tudo. Como a dona que descostura onde trata de esticá as custura, arranjas retalhos, fazer remendas a fim de encompridar não apenas o pano, mas também os suspiros no mundo. Traquinagem.

A única jogada que vejo pra enfrentar essa vulnerabilidade é a educação, irmão, é como um maluco que não tem medo de encarar a dura realidade.

A gente precisa fortalecer os laços, apertar esses nós, costurar os vínculos como se fosse um trampo coletivo, sem egoísmo, todo mundo junto. Olha, o olhar da sociedade pesa pra caramba, e quem tá no uso de droga vira marginal, excluído, um cramulhão, sete-peles, um intruso na quebrada, no meio da normalidade que nem sempre é tão normal assim. E o dispositivo, mano, é igual a um arado que corta a terra seca, abrindo caminhos, diminuindo as violências, tirando os espinhos que a vida joga na nossa jornada. A gente planta sem nem lembrar da vida que tá escondida lá embaixo, mas pode crer, um dia o chão arrebenta. Não é a nossa vontade que espalhou a semente; é a própria terra que se levanta e faz a vida brotar, mostrando que o que tá enterrado bem fundo pode renascer.

Tô sempre drogado, fedendo e com a barriga no osso. A palavra é direta, vai na veia, tipo uma tag na parede. E como disse o Betinho: “Quem tem fome tem pressa”13 . Nessa urgência, o Dispositivo tá na área, no meio da encruzilhada, onde a psicanálise se choca com a realidade crua da periferia. Aqui, a psicanálise não é só teoria; é a prática na vida real, é a troca de saberes que acontece na rua.

Ah, meu parceiro, aqui vai a fala, cheia de sentimento e vivência, tipo um verso que brota da alma, num papo reto. Escuta a voz de Paulo Freire, um mano que, nas ruas, abraçou a galera que tá na luta. Ele falava que, na busca pelo Cristo, encontrou também quem vive nas favelas, encarnando as mazelas da pobreza, da desigualdade e da injustiça social14 . Freire trazia a ideia de que o educador é verbo-carne. Ele deixou a real: “ninguém ensina nada a ninguém; a gente deixa um pouco de nós nas pessoas que cruzam nosso caminho”, e “a essência do ato pedagógico são as relações que a gente estabelece”. A voz dele ecoa, firme. É a Palavração, mostrando que não dá pra separar o que a gente diz do que a gente faz15 . Firmeza.

E aqui estamos, nesse espaço de resistência, onde educação não é só discurso, mas um grito que ecoa na periferia. É no corre da vida que a gente

SOUZA, Herbert de. A história de Betinho: vida e obra. Rio de Janeiro: Garamond, 1997.

14. GUARESCHI, Pedrinho A. Paulo Freire e o direito à educação: um estudo da pedagogia libertadora. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

15. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

se conecta, onde cada conversa, cada olhar, cada ensinamento é uma ideia jogada na parede, uma mensagem que se espalha. Porque, mano, nesse jogo, quem se liga, colhe, e as ideia que surge alimenta a esperança. A luta é coletiva, não tem espaço pra egoísmo, porque cada um de nóix traz um pedaço dessa história que se entrelaça na busca por dignidade. Quando a dor chega, quando a realidade pesa, é o saber que faz a diferença, uai, aí a palavra se transforma em resistência, vira poesia nas ruas, e é nessa batida que encontramos força pra seguir. A poesia diz aquilo que não é dizente e o inconsciente se lê e se escreve feito poesia. Na vibe das relações, é preciso manter o afeto, construir conexões entre os saberes e as vivências, fazendo da educação um ato de revolução, um empoderamento que muda vidas.

Na fogueira dessa reflexão, a pedagogia freiriana se apresenta como uma presença que anuncia e denuncia, como um grito de liberdade que ecoa nas serranias da vida. O educador, assim como o psicanalista, não é isento de ato, pois a psicanálise, espiada de seu lugar tradicional, exige uma escuta renovada, uma prática que se desdobra em ação. O desejo, nesse rincão, não é mero motor do sujeito, é também um ato de resistência16 . Nos sabidos de Lacan, o desejo é sujeito17, mas, sob a bruma da exclusão, ele deve ser reafirmado, resistindo às forças que tentam reduzi-lo a mera necessidade. E nas beiradas da cidade, o desejo jeitim pulítico, virando de cabeça pra baixo essa lógica que quer tratar as pessoa como só mais usuários de programas sociais, escondendo a força que eles têm pra sonhá. Reconhecer esse desejo nesses lugares é um ato radical de descolonização18 . O inconsciente, ah, esse é político, e isso significa que o desejo e suas coisas de fazê é sempre mediada por poder.

Nesse trem todo embolado, o desejo na periferia ganha uma cara de brigá, desafiando as regras que

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra, 1996.

LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

vêm da colonialidade, do racismo e do capitalismo. “Tô sempre drogado, fedendo e com a barriga no osso”, “Posso falar de macumba?” Essas histórias fazem ver como muitos desejos e sentimentos são sempre jogados pras minhoca nos lugares de atendimento. Desconjuro, negar a esses seres o direito de manifestar sua indignação é perpetuar uma exclusão simbólica, um silêncio que se impõe sobre vozes que reclamam por reconhecimento.

A democracia, parceiro, deveria ser um muro aberto, onde cada um pode deixar sua marca, sua voz, sua vez. Não é coiso de luxo não. Mas, como já falou Jacques Rancière, esse lugar vira um labirinto de exclusões, onde a hegemonia se camufla na fantasia dos direitos humanos19 . Em várias periferias, a ideia de democracia se perde na lógica do poder, privilegiando uma galera enquanto a outra fica na sombra, jogada como tinta escorrendo na parede, esquecida. É como se a gente fosse invisível, sempre à margem, enquanto os verdadeiros donos do pedaço se divertem. É nessa quebrada que a luta continua, e a voz do povo precisa gritar mais alto pra que a verdadeira democracia seja possível!

Esse jogo de jogá na real quando a gente dá uma olhada nas instituições repressivas do Estado, que surgem como sentinelas, armadas até os dentes e dá um migué prontas para barrar os movimentos20 . No Brasil, o conservadorismo político-religioso tá grudado no encolhimento da esfera pública, isso faz mó reprê que se liga a uma subjetividade militante. Essa militância é muro forte, sustentando os interesses dos grupos que tão sempre no topo. E, assim como baratas que aparecem no pior momento, esses caras vão se espalhando, tomando conta do Legislativo a cada eleição, deixando a gente com aquele medo apertado sem motivo de ser. Então, chega a orelha perto, porque esse causo que eu trago é verídico.

“Uma mãe desolada, foi buscar ajuda pra filha. Ela contou que já tinha levado a menina pra um monte de grupo de oração da igreja, tentando curar a dor dela de tudo quanto é jeito e reza, mas nada adiantou. A jovem, na maior bad, se cortava e já tinha tentado se matar antes, chegava no consultório com uma raiva igual fogo, tá ligado?

19. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

20. MELOSSI, Dario. El Estado del Control Social: un estudio sociológico de los conceptos de Estado y control social en la conformación de la democracia. Tradução de Martín Mur Ubasart. México: Siglo XXI, 1992.

“Você é um desses psicólogos que vai me dizer para perdoar meu agressor?” – foi o primeiro soco e tinha mais vindo por aí. Ela permanecia de pé, com marcas visíveis nos braços, mas as feridas emocionais corriam na surdina. O terapeuta, mó tranquilão igual pombo na praça, se apresentou como psicanalista. Enquanto ela se machucava com as unhas, como se quisesse arrancar a dor de dentro, ele pediu que se sentasse e ofereceu um copo d’água.

Ele escutou na maior responsa, como quem ouve uma letra de rap que fala da vida nas periferias. Falou que ela tava certa de tá putaça! Naquela hora, ele não era só um terapeuta; era um mano que sacou que a cura não começa no perdão, mas sim no reconhecimento da dor que não dá pra esquecer. Uma parada de organizar o ódio, saca?

Pô! Mas foi nessa hora que a garota falô que tinha sido vítima de abuso sexual. Era a primeira vez que contava sua história, deixando a raiva vir feito enchente da baixada em dias de chuva violenta. A garota se cortava mano. Pô é muita sacanagem irmão! Essa parada é um grito de dor emocional. O psicanalista, ao final da sua história, explicou que o perdão nem sempre é caminho para a cura emocional. O perdão fica acendendo trauma de novo e aumenta o peso da culpa. Só que o ódio, no meio da dor, é uma proteção. Tá ligado? Se a gente direcionar do jeito maneiro, a raiva podia virar uma força transformadora, e tinha que ser acolhida e trabalhada no ambiente terapêutico.

O analista fez uma cara de paisagem sobre o perdão! Ele disse à paciente que o perdão era uma escolha pessoal. Afinal, muitas pessoas, por razões que só elas conhecem, nunca perdoam, e isso é aceitável. Só que a galera costuma misturar essas paradas de perdão com coisa boa, como se um fosse sinônimo do outro, pô, mas não está nem aí para os sentimentos da vítima. Ainda mais quando o desgraçado do agressor nem pede desculpa, e nunca pedem perdão. E, essa confusão se torna ainda mais dolorosa.

“Perdoar não é uma obrigação, é um ato que vem de dentro, e cada um tem seu tempo”, ele afirmou, sem pressa, como quem ensina um passo de dança. “Não precisa sentir culpa por não querer perdoar. Essa é sua verdade, e ela merece ser respeitada”. Ele olhou nos olhos dela, buscando quebrar as barreiras que a dor havia construído. “Na sua história, o que importa é reconhecer a dor e não deixar que ela defina quem você é. O que você sente é legítimo, e a liberdade de sentir é sua”.

Com o tempo, a miúda lá da quebrada, nesse caminho que cada terapia bota na estrada, foi achando suas próprias respostas pro trauma. Deixou de se amarrar só pela dor que carregava, começou a se encontrar de novo, a sonhá como antes, largando de lado aquela culpa que apertava o peito, tipo mão pesada que sufoca o querer de viver. As periferia, mano, tão no meio de ausências, até dentro dessas paradas da clínica psicanalítica. É uma visão afiada que bate de frente com o papo central, gritando a urgência de escutar o que foi silenciado, de enxergar o que fica escondido nas esquinas da vida, mas tá sempre vivo, até nas brumas mais densas.

Aqui, cumpadi, a indignação não pode ficar só no berro não, tem que se organizar, virar cabeça, transformar essa raiva num trem de ação política. Porque o ódio, se a gente olhar bem, não é só força pra destruir, não. É resistência braba, mano, uma força ética, de luta, que segura as pontas21 . O que nóis tá querendo é esse troço de botar os sentimentos no lugar, sacou? Organizar o desejo, a raiva e até o ódio, pra fazer deles armas de batalha, de mudança. As psicanálise nas quebradas, nas veredas, não pode ser só aquele que escuta de braços cruzados, tem que se jogar na luta, responder às urgências que a vida joga no colo.

Ó, organizar o ódio 22 , meu irmão, é um trampo ético, essencial nesses tempos de dureza e opressão. Se o inconsciente é político, então o desejo é ativista, pô! E tem que ser o motor que gira esse mundão. Não dá pra ficar só sonhando, tem que fazer barulho, tem que ser pra valer. E a psicanálise tem que tá colada, junto com a rapaziada, nessa pegada, reforçando a transformação pela força da vontade, da raiva, do grito que sai lá de dentro e explode na resistência!

Isso aqui é briga de rua, mano, briga de beira de estrada, de beco sem saída, de esquina da favela. A mudança vem do povo, do gueto, da floresta, das veredas e das águas. Quem é da quebrada sabe que a força vem é do chão, do suor, do grito que nunca foi calado!

21. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se inter-relacionam. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

22. OLIVEIRA, Jairo Carioca de. O eu rasurado: um manifesto afro-pindorâmico pela insurreição do pensável. Nova Iguaçu, RJ, 2025. [livro eletrônico]

Esse Dispositivo, que nasce das dificuldades e esperanças, traz a promessa de um olhar atento, um tratamento que não se limita só ao que a vulnerabilidade social mostra, mas olha pro sujeito em toda sua complexidade. É um chamado pra ressignificar, desenvolver as identidades que brotam nas mãos calejadas de quem se envolve com a instituição, um trampo em parceria, entre o sujeito e a sociedade, buscando um lugar onde se possa estar inteiro, onde o sentido da vida circule pelas veias.

Mas não dá pra ignorar a presença da colonialidade, que, na sua crueza, se infiltra nas palavras e nas ações. A gramática do opressor, como uma sombra que nos segue, define e classifica a gente. O que fala o opressor e o que ele omite cria uma teia de normas que aprisiona, refletindo os princípios da branquitude 23 . E nessa dança cruel, os oprimidos sentem um desejo insaciável, como um pássaro que busca liberdade, onde a chance de acessar o mundo dos brancos se torna uma ilusão de salvação. Essa dinâmica arranca do sujeito a autonomia que ele precisa pra forjar sua própria imagem, perpetuando o discurso racista que exalta o europeu como o único racional, como se o resto fosse só eco de um desejo esquecido.

A branquitude, muitas vezes cega à sua história, não percebe que a galera da periferia carrega saberes que vêm da vivência, da troca com a vida. E nessa bifurcação, a periferia, entre o amor e a dúvida, começa a desconfiar de si mesma, num processo que Paulo Freire chamou de desumanização. Ele falava que, embora a humanização sempre tenha sido o dilema central da humanidade, agora se torna uma preocupação inevitável. A busca pela humanização leva ao reconhecimento da desumanização, não só como conceito, mas como uma história que se vive.

Esse Dispositivo é tipo faísca que acende a chama sobre nós termos o direito à saúde pra não ficar louco, que corre feito diabo da cruz contra essa ideia tosca de remédio pra todos os problemas, ignorando que há coisa em nós que só nós temos. É um grito pra alumiar os caminhos do saber, como quem busca abrigo. Aqui, a ideia é juntar forças, levantar as vozes e exigir, com a garra de quem não se cala, os serviços que dão direito, formando um cadarço de cumplicidade e resistência, mesmo sendo deixados de lado nesse lugar onde os direitos parecem só sonho.

23. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.

Na escuta atenta, no ouvir vozes que vêm da periferia, o projeto se revela nos afetos, nas entrelinhas do encontro com o Outro. É escutá até o silêncio do que não se diz, a essência das palavras que o medo e o silenciamento aprisionam. Cumé que cada palavra carrega um sonho, e cada história é sementin que vai ser lançada nos trem da luta, cultivando um espaço onde a dor vira força.

Então, o Dispositivo não é só um projeto; é um movimento que transforma o silêncio em grito e a dor em resistência, como aquele mano que, mesmo com o peso da vida nas costas, não para de andar. É um lugar sagrado, onde cada voz pode falá igual trovão, onde a história de cada um se imbrenha na construção de um futuro que se quer mais justo, mais humano. É a força da coletividade, o poder do saber, brotando como um rio que, apesar das pedras, não para de corrê.

Na senda da educação, Freire nos ensinou que é preciso investigar a maneira como o povo fala, registrar como a quebrada fala e dá significado às coisas. Ele sacou que, às vezes, a linguagem da rua se distancia da escrita das escolas, refletindo vivências que ressoam como ecos na memória. A linguagem da periferia é rica em metáforas, criando suas próprias representações da realidade, sempre em embate com a cultura dominante, um grito de resistência contra o saber imposto. Freire contou da vez em que um aluno analfabeto, diante das tentativas tradicionais de ensino, soltou: “Eu tenho a escola do mundo”24 .

E é na Baixada Fluminense que a lição de Freire ganha corpo. Cada viela, cada quintal, cada barraco vira aprendizagem sem muro, onde a vida ensina na dureza e na alegria. O Dispositivo não chega como dono do saber, chega ajoelhado junto ao chão, escutando o que os corpos têm a dizer, percebendo o grito da resistência e transformando sofrimento em aprendizado de bando. Aqui, aprender não é repetir livro, é sentir, é perceber que o direito à saúde, à

24. FREIRE, Paulo. A escola do mundo: Paulo Freire. Organização de Moacir Gadotti. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se inter-relacionam. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

escola, à vida digna não é favor de ninguém, é conquista que se faz todo dia, com suor e cumplicidade do coletivo.

Os moradores da Baixada carregam histórias que não cabem na escuta tradicional, e o Dispositivo vira ponte, traduz a fala em potência de vida. É aprender com quem sabe o que é sobreviver entre enchentes, ônibus lotado, filas que não têm fim, olhares que julgam sem conhecer. Cada encontro é fio que tece resistência, cadarço que une corpo e saber, mostrando que aprendizado de verdade nasce do chão quente, da experiência compartilhada, do passo de quem insiste em existir.

Assim, pela Pedagogia do Oprimido, Freire revolucionou a educação, rompendo as amarras das véias ideia sobre alfabetização e desenvolvimento, trazendo à tona um coiso mais profundo. Ele enxergou na educação a chance de alimentar uma consciência crítica, permitindo que os oprimidos reivindicassem suas vozes e se tornassem protagonistas de suas histórias. Essa abordagem, como um vento forte que desafia o arbusto, mudou as estruturas de poder, capacitando os oprimidos a escreverem suas próprias narrativas.

Do mesmo jeito, as psicanálise tem que abrir espaço pra voz da favela, na sua “linguagem materna”, tá ligado? Não dá pra só ficar aceitando o saber de forma passiva, como se fosse receita de bolo da minha vó já pronta. Tem que acolher de verdade as experiência que vêm dessas vivências das periferias. É uns corre que envolve atravessar as barreiras, derrubá os muros e reconhecer as histórias que foram caladas, especialmente as dos corpos brasileiros que sempre foram empurrados pra debaixo do tapete, subalternizados.

Quando Lacan cruzou Freud e Hegel, ele foi longe na exploração da subjetividade humana, é verdade. Mas, na real, muitas vezes ele ficou preso no mundinho do sujeito europeu, esqueceu de abrir espaço pras vozes que não se encaixam nessa moldura estreita25 . As quebradas, as periferias, os corpos que fogem desse padrão, ficaram de fora do discurso dominante. E é aí que a psicanálise precisa dar uma guinada, se abrir pra essas outras histórias, pra esse outro jeito de

O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

viver e de falar, que tem muito a dizer e precisa ser ouvido do jeito que é, sem filtro. É psicanalista tendo que aprender com o Saci. Foi Paulo Freire, com sua sensibilidade, quem escutou a linguagem da periferia, abrindo uma porta para a emancipação dos corpos subalternizados, que se tornaram os mestres de suas próprias realidades, alterando suas posições subjetivas.

Por fim, o Dispositivo se amarra na ideia de uma virada que abraça toda a quebrada, sem deixar ninguém de lado. A missão é fortalecer o corre pra ter acesso ao troço público, dar atenção pras quebrada de saúde, acolher a galera com respeito e mostrar os caminhu pra cuidar da mente e evitar o abuso das paradas. Mas nem de longe a gente se acha salvador desse rolê; pelo contrário, a caminhada é de mão dada, sabendo que o conhecimento real nasce no coletivo e cresce na força dos afetos.

Pois então, Nêgo Bispo ergueu a voz no meio da poeira, nesse rincão de terra batida e miséria, onde o poder tenta pintar de fraqueza o que é força. Ele desafiou o pensá comum, aquele que vê as gentes das beiradas como almas pedintes, à míngua, precisadas de esmola. Não. Ele falou alto e claro, que a tal da psicanálise, surgida lá no ventre da modernidade, não vem sozinha. Carregá consigo o peso, a sombra, dos tempos de colonização. Porque essa ciência, parida na Europa, tem seus passos atados na mesma estrada de opressão que marcaram a história do mundo. Essa lógica que vai de mãos dadas com a salvação, com o progresso e o tal desenvolvimento. De tanto quererem salvar, modernizá, impuseram destino a essas terras daqui e d’além-mar, querendo civilizar o que já tinha seu modo de ser26 .

E assim, vez por outra, o psicanalista que se enfia pelos becos e favelas acaba por repetir esse destino colonial, sem ver que a psicanálise é também uma filha desgarrada da crise colonial. Se é filha disso, como há de ter uma ideia universal do sujeito? Não tem, não pode ter. E Bion, chapa firme nessas fita da alma, já deu o papo das três responsa braba pra quem se arrisca nesse rolê. Primeira é o mergulho: tem que meter o louco e se jogar sem caô no abismo das relações, naquele papo reto entre o que cola, o que fica na miúda e o que a mente trampa entre o analista e o parceiro de sessão. Tem que

26. MIGNOLO, W. D. Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledges, and border thinking. New Jersey, NJ: Princeton University Press, 2000.

sacar essa dança invisível no grau 27. Segunda é a firmeza: não pode ratear no encontro, tem que tá ligeiro, mente afiada e curiosidade na ponta, porque é daí que sai uma prática de responsa, sem migué. E por último, visão dobrada: colar na técnica, mas sem deixar engessar o bagulho, moldando tudo no calor do que vem das quebrada, onde o corre é raiz e ninguém dorme no ponto.

A psicanálise, então, tem que se embrenhar nesse corre que vai além de livro e divã, colando na clínica do chão, das viela, do dia a dia vivido na pele. Bion já dava o papo sobre o perigo de virar peça de museu, travado em teoria que só enxerga um tipo de mente e larga de lado aquilo que não se explica fácil, que não cabe em moldura. O psicanalista tem que escancarar as porta de si mesmo, sempre na disposição de botar tudo em que se foda, quebrar as ideia que acha que já manja, independente de quem chegue na responsa procurando ajuda.

Esse psicanalista que pisa na quebrada, o que ele encontra? Presta atenção: ele não tá aqui pra entender a dor de ninguém, porque dor não é compreensão, é vivência pura. Não adianta só respeitá, não, porque o sujeito não tá atrás de respeito na clínica, ele quer mesmo é existir de verdade. Não é sobre empatia, isso é papo de psicologia que se vende na vibe do bem-estar; a psicanálise lida com o mal-estar, a dor crua. Então, esquece isso. Conforto, empatia e respeito, o sujeito acha na religião, mas aqui, na clínica periférica, o analisante tá em outra sintonia: inquietude, pensamento bagunçado, desejo em desordem, ideia que não para, desconforto. É disso que ele deve tirar a força, porque esse desconforto é um espinho que cutuca, um convite pra não se encostar nas teorias ultrapassadas sem dar um olhar fresco.

O maior inimigo da psicanálise é o próprio analista, que se amarra na moral e nas tradição, feito quem aperta faca cega, sem se abrir pro espanto com o Outro, que tá lá, no escuro, pedindo pra ser ouvido. No meio dos favelados, o papo é ligeiro, sem enrolação, porque o povo já tá de saco cheio de tanto sofrer, e aí, tu vai fazer o quê? Vai arrancar o sujeito de lá? Onde o couro come e o silêncio fala mais alto que a matraca de feira? Que nada! A missão é escutá as dor calada, dar colo pro que a sociedade tenta varrer pro canto. No fim das contas, é nessa escuta que a gente encontra força pra virar o rumo da prosa –tanto a dos outros quanto a nossa.

27. BION, Wilfred R. Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

E é aí que a fita fecha: a psicanálise, quando cola na quebrada, não vem com manual nem bula importada, vem com o ouvido afiado pra pegar o não-dito que pulsa no corpo coletivo. Porque na beira do abismo da dor não cabe moral de gabinete, nem discurso polido – o que se pede é presença que sustente o trampo bruto da vida. O analista que se prende à tradição vira estátua, perde o compasso; o que se arrisca no corre da periferia aprende que cada silêncio tem barulho de multidão. Conclusão? A clínica que interessa não é a que promete cura limpa e sem arranhão, mas a que se deixa atravessar pela sujeira do real, pela dor que não se cala e pelo desejo que insiste. Nesse chão duro, escutar já é revolução.

Fim? Não. Travessia.

Renata Pereira, preta, Artista plástica, eterna estudante de artes. Dias felizes em papel Hahnemühle, A3 em Giz pastel Oleoso

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A psicanálise lá onde o corpo é grito by n-1 edições - Issuu