H₂O e as águas do esquecimento, de Ivan Illich (Nota da edição e Prefácio)

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A parceria entre a Editora N-1 e o selo editorial mom, da Editora da Escola de Arquitetura da ufmg, reúne abordagens críticas e perspectivas de transformação sócio-espacial, mobilizando os campos da arquitetura, do urbanismo, das artes e das ciências humanas e sociais. Esperamos que os livros produzidos nessa parceria ofereçam materiais a estudos, práticas, imaginações e experimentos de sociedades e espaços para além da catástrofe atual. Temos mantido a grafia sócio-espacial, com hífen, sempre que se trata de dar relevo à dialética de espaço e sociedade. Em todos os demais casos, ajustamos (citações de) textos em português anteriores ao novo Acordo Ortográfico ou divergentes da grafia brasileira, preservando apenas os títulos com a grafia original. Para referir citações, as notas informam autores, títulos e datas. Isso evita aquelas pedras no caminho da leitura que o sistema autor-data impõe, e facilita a identificação de obras citadas, sem sobrecarregar os rodapés. Referências completas estão reunidas na seção de bibliografia.

Nas citações de obras publicadas originalmente em outros idiomas, recorremos a edições em português sempre que possível. Eventuais alterações no texto de uma tradução publicada são assinaladas por asterisco após a referência na nota, então complementada pela referência da respectiva edição no idioma original. Traduções de trechos de obras não disponíveis em português são de autoria de quem os cita, exceto quando indicado de outra maneira. No corpo do texto, reservamos as aspas duplas às citações e usamos aspas simples quando se trata de relativizar termos ou expressões.

H2O e as águas do esquecimento
reflexões sobre a historicidade da matéria

Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1985, pelo Dallas Institute of Humanities and Culture, com o título h2o and the waters of forgetfulness: reflections on the historicity of “stuff”

H2O e as águas do esquecimento

reflexões sobre a historicidade da matéria

Ivan Illich

Prefácio por Robert Kugelmann

Tradução e edição por Silke Kapp

Curadoria de imagens por Junia Mortimer, José Camilo e Junia Penido

Posfácio por Neto Leão e Silke Kapp

Nota de tradução e edição

Prefácio, Robert Kugelmann

Agradecimentos

Lago urbano de Dallas

A nua na banheira

A historicidade da matéria Água como matéria

Espaço de moradia:

nem ninho, nem garagem

A criação ritual do espaço

O espaço maternal de Platão

O espaço tratorado

O espaço in-discreto e o pesadelo

Espaço interior e o ‘além’ Águas elusivas

A divisão das águas

A natureza dual da água:

pureza e limpeza

A lavagem nas águas do Lete

A bacia da reflexão de Mnemosine

O aqueduto e o alfabeto secam

Mnemosine

As in-discretas obras hidráulicas de Roma

Harvey inventa a circulação

A sujeira das cidades

A aura das cidades

O cheiro dos mortos

A utopia de uma cidade inodora

Miasma como vazamento de gás

Defecação e privacidade

Osmólogos descobrem o odor de raça e classe

O nariz educado: pudor e constrangimento

Perfume e a domesticação da aura

A água é adotada para o toalete

O fértil solo noturno de Paris

Os esgotos poluentes de Londres

Sistemas hidráulicos inundam os lares estadunidenses

O wc integra a cultura dos eua

Recuperação da matéria

Bibliografia

Aguadoisó, Neto Leão e Silke Kapp

Sobre as imagens..., Junia Mortimer

Colaboradores

Nota de tradução e edição

Há quase dez anos, fiz a primeira versão em português de H2O and the waters of forgetfulness: reflections on the history of ‘stuff’. Era um documento interno, para leitura e discussão pelos participantes do projeto de extensão Águas na Cidade, na Escola de Arquitetura da ufmg. Entramos em contato com Valentina Borremans, propondo a publicação, mas o plano ficou adormecido por algum tempo. A situação política não estava favorável a empreendimentos dessa natureza. Ainda assim, Valentina fez a gentileza de me pôr em contato com Neto Leão, um dos principais estudiosos de Illich e tradutor de No espelho do passado (N-1, 2024). Disso derivou não só uma estimulante interlocução, como também a parceria do selo editorial mom com a N-1

Edições, que, somada ao apoio de uma emenda parlamentar do Deputado Patrus Ananias para o projeto Águas na Cidade, possibilitou a produção deste livro.

Cabe comentar algumas decisões de tradução e edição tomadas ao longo desse nosso percurso coletivo.

A primeira diz respeito ao termo stuff, que aparece entre aspas no subtítulo original e designa um conceito central do texto. Stuff pode ser traduzido por matéria, material, substrato, estofo ou, coloquialmente, ‘coisas’. Optei por matéria porque uma das principais

inspirações de Illich foi a obra de Gaston Bachelard,

A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria ([1942] 1989). Além disso, o poliglota Illich tinha em mente o alemão Stoff, às vezes vertido para o inglês e o português, respectivamente, por stuff e matéria (nas traduções dos textos de Husserl, por exemplo). Mas não há aí plena equivalência. Em alemão, o substantivo Stoff e o adjetivo stofflich tendem a ser usados em contraposição à noção de forma, enquanto os termos de raiz latina Materie e materiell são antes contrapostos à noção de ideia. Talvez por isso, a versão castelhana do presente livro se intitule H2O y las aguas del olvido: reflexiones sobre la historicidad de la ‘materia’, aquello de lo que las cosas están hechas

A matéria em questão é “aquilo de que as coisas são feitas”.

Outra decisão concerne à tradução de obras citadas por Illich, sobretudo aquelas cujo idioma original não é o inglês. Illich ora recorre a edições anglófonas, ora faz traduções próprias, ora cita em francês, alemão e latim.

Para tornar a leitura mais acessível, verti tudo para o português, usando as edições lusófonas disponíveis e traduções próprias a partir dos textos originais, cotejados com as traduções de Illich.

Quanto à estrutura do livro, vale mencionar que o original estadunidense de 1985 cria um texto corrido, apenas interceptado por discretos títulos de seções e

acompanhado de extensas notas de rodapé. Aqui, tais seções estão organizadas como minicapítulos com as notas ao final de cada um deles. O que motivou essa alteração foi o entendimento de que as notas de Illich têm quase sempre o caráter de “glosas, tangentes e marginálias” (p. 33). Mais do que ‘comprovações’ acadêmicas, são apontamentos para investigações futuras. O corpo do texto não depende delas, mas elas merecem a mesma atenção dispensada a esse corpo — coisa que a compressão em rodapés certamente não favorece. Ainda para tornar mais fluida a leitura das notas, as referências bibliográficas foram ali abreviadas a nomes, títulos e datas, enquanto os dados completos estão na bibliografia final. Adicionei algumas notas de tradução e explicativas, que acabamos tratando da mesma maneira, em numeração contínua, apenas precedidas pela indicação ‘[ nt]’. De resto, inserções pontuais minhas no texto de Illich estão sempre entre colchetes, ao passo que pequenos equívocos na grafia de nomes próprios e em dados bibliográficos foram corrigidos silenciosamente.

As diferenças em relação ao livro original de 1985 abrangem ainda o prefácio de Robert Kugelmann, escrito especialmente para esta edição, e as imagens, inseridas com a generosa curadoria de Junia Mortimer, e José Camilo e a não menos generosa colaboração de Junia Penido, que é também autora da pintura da

capa. A seção “Sobre as imagens” esclarece origens e nexos desse material, mas antecipo que o intuito não foi o de ‘ilustrar’ o texto de Illich, e sim criar uma narrativa complementar que inspirasse a extensão de suas reflexões à história e à atualidade dos contextos urbanos brasileiros. Neto Leão e eu escrevemos o posfácio intitulado “Aguadoisó” com intuito semelhante: aproximar o pensamento de Ivan Illich e o imaginário das águas que seu texto revela ao (nosso) aqui e agora, e às pessoas dispostas a transformá-lo.

Meu muito obrigada a todas e todos que contribuíram nesse percurso: os já mencionados Valentina Borremans, Neto Leão, Robert Kugelmann, Junia Mortimer e Junia Penido; os membros da equipe da N-1, Peter Pál Pelbart, Ricardo Muniz Fernandes e Gabriel de Godoy; assim como Alexandre Bomfim, exímio revisor, José Camilo, autor do projeto gráfico e Roberto E. dos Santos, coordenador do projeto Águas na Cidade.

Belo Horizonte, maio de 2025

Prefácio

Robert Kugelmann

Este pequeno livro é como um pivô no pensamento de Ivan Illich. Foi motivado por um convite do Dallas Institute of Humanities and Culture. À época, havia o plano de criar um ‘lago urbano’, e o Instituto contribuía nesse projeto imaginando A água e os sonhos, que também é o título de um livro de Gaston Bachelard cuja tradução para o inglês o Instituto acabara de lançar. Illich ponderou que Dallas estaria chamando de ‘água’ o h2o, uma sopa química que guarda apenas remota semelhança com o que, no passado, foi ‘água’. Seu livro explora a historicidade da água como um exemplo da historicidade da matéria. Ele argumenta por uma ruptura radical entre ‘água’ e a ‘descarga sanitária reciclada’ que é o h2o. Essas reflexões históricas levam a outros temas, como privacidade, perfume, sujeira, vergonha, a invenção da circulação, memória e a aura ou o odor de nós mesmos e das nossas cidades. Quando bebemos h2o da torneira, vivemos o esquecimento do que nossos predecessores conheciam como água. Na conclusão, Illich escreve que “a água perdeu o poder de comunicar sua profunda pureza pelo contato, assim como perdeu o poder místico de lavar máculas espirituais” (p. 241).

O livro delineia como ocorreu essa perda e permite descobrir uma questão subjacente, não explicitada: a

água tornada h2o ainda serve ao batismo? Illich põe sua tese em termos diferentes, mas próximos: “dado que as águas arquetípicas são tão antagônicas a essa nova ‘matéria’ quanto são ao óleo, temo que o contato com tal monumentalidade líquida possa tornar as almas das crianças de Dallas impermeáveis à água dos sonhos” (p. 50). De fato, ele diz que “a criança da cidade não tem oportunidades de contato com a água viva” (p. 241). Considere-se, além disso, que “água viva” também é uma pessoa. Com que água podemos sonhar?

Com a água que nos chega ao morarmos num lugar — eis a resposta. O morar se dá quando uma comunidade conforma seu “espaço próprio” (p. 52). Morar é uma “atividade vernacular”, nunca concluída e que deixa rastros de sua história. Pessoas modernas não moram realmente nesse sentido; são estacionadas ao lado de seus automóveis, vivendo em mercadorias, modestas ou suntuosas. Quando pessoas moram, vivem na visão ou no sonho de um fundador, e a configuração do espaço de moradia espelha o macrocosmos. Illich menciona as favelas do Rio de Janeiro para argumentar que, “quando chegam os tratores escoltados pela polícia, são duas entidades díspares que se encontram: barracos surgidos a partir do espaço de moradia versus agressores de um mundo construído na prancheta” (p. 77).

Espaço tratorado é espaço geométrico, espaço cartesiano. Esse tipo de espaço é o que está do lado h2o da clivagem histórica. As águas que Illich procura elucidar criavam espaços de moradia ao serem divididas, como no Genesis e no Êxodo. Com essas águas, culturas imaginam sua forma e sua matéria. Sobretudo, a história das águas revela a importância de pureza e limpeza, que concernem a atos distintos. Pureza se refere ao renascimento pela água, e limpeza lava um povo como um solvente. No mito grego, os mortos cruzam o Rio Léthê depurados de suas memórias e seus crimes, e Pégaso abre a fonte das artes [Hipocrene] num movimento purificador.

Uma novidade para o mundo moderno é a noção de que a água — e talvez a maioria das coisas — circula, retornando à origem. Harvey, por exemplo, descreveu a circulação do sangue. Aplicada ao planejamento urbano, a circulação inspirou “a utopia da cidade inodora” (pp. 157, 167, 225). Depois de muitas reviravoltas nessa história, acabamos hoje com o h2o não como água, e sim como um fluido de limpeza, rico em químicos — isso se tivermos a sorte de viver numa sociedade tratorada que possa se dar ao luxo de descontaminar da sujeira circulante o líquido agora tido por água.

Dallas, outubro de 2024

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