H2O e as águas do esquecimento
reflexões sobre a historicidade da matéria
Ivan Illich
Prefácio por Robert Kugelmann
Tradução e edição por Silke Kapp
Curadoria de imagens por Junia Mortimer, José Camilo e Junia Penido
Posfácio por Neto Leão e Silke Kapp
Nota de tradução e edição
Prefácio, Robert Kugelmann
Agradecimentos
Lago urbano de Dallas
A nua na banheira
A historicidade da matéria Água como matéria
Espaço de moradia:
nem ninho, nem garagem
A criação ritual do espaço
O espaço maternal de Platão
O espaço tratorado
O espaço in-discreto e o pesadelo
Espaço interior e o ‘além’ Águas elusivas
A divisão das águas
A natureza dual da água:
pureza e limpeza
A lavagem nas águas do Lete
A bacia da reflexão de Mnemosine
O aqueduto e o alfabeto secam
Mnemosine
As in-discretas obras hidráulicas de Roma
Harvey inventa a circulação
A sujeira das cidades
A aura das cidades
O cheiro dos mortos
A utopia de uma cidade inodora
Miasma como vazamento de gás
Defecação e privacidade
Osmólogos descobrem o odor de raça e classe
O nariz educado: pudor e constrangimento
Perfume e a domesticação da aura
A água é adotada para o toalete
O fértil solo noturno de Paris
Os esgotos poluentes de Londres
Sistemas hidráulicos inundam os lares estadunidenses
O wc integra a cultura dos eua
Recuperação da matéria
Bibliografia
Aguadoisó, Neto Leão e Silke Kapp
Sobre as imagens..., Junia Mortimer
Colaboradores
Nota de tradução e edição
Silke Kapp
Há quase dez anos, fiz a primeira versão em português de H2O and the waters of forgetfulness: reflections on the history of ‘stuff’. Era um documento interno, para leitura e discussão pelos participantes do projeto de extensão Águas na Cidade, na Escola de Arquitetura da ufmg. Entramos em contato com Valentina Borremans, propondo a publicação, mas o plano ficou adormecido por algum tempo. A situação política não estava favorável a empreendimentos dessa natureza. Ainda assim, Valentina fez a gentileza de me pôr em contato com Neto Leão, um dos principais estudiosos de Illich e tradutor de No espelho do passado (N-1, 2024). Disso derivou não só uma estimulante interlocução, como também a parceria do selo editorial mom com a N-1
Edições, que, somada ao apoio de uma emenda parlamentar do Deputado Patrus Ananias para o projeto Águas na Cidade, possibilitou a produção deste livro.
Cabe comentar algumas decisões de tradução e edição tomadas ao longo desse nosso percurso coletivo.
A primeira diz respeito ao termo stuff, que aparece entre aspas no subtítulo original e designa um conceito central do texto. Stuff pode ser traduzido por matéria, material, substrato, estofo ou, coloquialmente, ‘coisas’. Optei por matéria porque uma das principais
inspirações de Illich foi a obra de Gaston Bachelard,
A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria ([1942] 1989). Além disso, o poliglota Illich tinha em mente o alemão Stoff, às vezes vertido para o inglês e o português, respectivamente, por stuff e matéria (nas traduções dos textos de Husserl, por exemplo). Mas não há aí plena equivalência. Em alemão, o substantivo Stoff e o adjetivo stofflich tendem a ser usados em contraposição à noção de forma, enquanto os termos de raiz latina Materie e materiell são antes contrapostos à noção de ideia. Talvez por isso, a versão castelhana do presente livro se intitule H2O y las aguas del olvido: reflexiones sobre la historicidad de la ‘materia’, aquello de lo que las cosas están hechas
A matéria em questão é “aquilo de que as coisas são feitas”.
Outra decisão concerne à tradução de obras citadas por Illich, sobretudo aquelas cujo idioma original não é o inglês. Illich ora recorre a edições anglófonas, ora faz traduções próprias, ora cita em francês, alemão e latim.
Para tornar a leitura mais acessível, verti tudo para o português, usando as edições lusófonas disponíveis e traduções próprias a partir dos textos originais, cotejados com as traduções de Illich.
Quanto à estrutura do livro, vale mencionar que o original estadunidense de 1985 cria um texto corrido, apenas interceptado por discretos títulos de seções e
acompanhado de extensas notas de rodapé. Aqui, tais seções estão organizadas como minicapítulos com as notas ao final de cada um deles. O que motivou essa alteração foi o entendimento de que as notas de Illich têm quase sempre o caráter de “glosas, tangentes e marginálias” (p. 33). Mais do que ‘comprovações’ acadêmicas, são apontamentos para investigações futuras. O corpo do texto não depende delas, mas elas merecem a mesma atenção dispensada a esse corpo — coisa que a compressão em rodapés certamente não favorece. Ainda para tornar mais fluida a leitura das notas, as referências bibliográficas foram ali abreviadas a nomes, títulos e datas, enquanto os dados completos estão na bibliografia final. Adicionei algumas notas de tradução e explicativas, que acabamos tratando da mesma maneira, em numeração contínua, apenas precedidas pela indicação ‘[ nt]’. De resto, inserções pontuais minhas no texto de Illich estão sempre entre colchetes, ao passo que pequenos equívocos na grafia de nomes próprios e em dados bibliográficos foram corrigidos silenciosamente.
As diferenças em relação ao livro original de 1985 abrangem ainda o prefácio de Robert Kugelmann, escrito especialmente para esta edição, e as imagens, inseridas com a generosa curadoria de Junia Mortimer, e José Camilo e a não menos generosa colaboração de Junia Penido, que é também autora da pintura da
capa. A seção “Sobre as imagens” esclarece origens e nexos desse material, mas antecipo que o intuito não foi o de ‘ilustrar’ o texto de Illich, e sim criar uma narrativa complementar que inspirasse a extensão de suas reflexões à história e à atualidade dos contextos urbanos brasileiros. Neto Leão e eu escrevemos o posfácio intitulado “Aguadoisó” com intuito semelhante: aproximar o pensamento de Ivan Illich e o imaginário das águas que seu texto revela ao (nosso) aqui e agora, e às pessoas dispostas a transformá-lo.
Meu muito obrigada a todas e todos que contribuíram nesse percurso: os já mencionados Valentina Borremans, Neto Leão, Robert Kugelmann, Junia Mortimer e Junia Penido; os membros da equipe da N-1, Peter Pál Pelbart, Ricardo Muniz Fernandes e Gabriel de Godoy; assim como Alexandre Bomfim, exímio revisor, José Camilo, autor do projeto gráfico e Roberto E. dos Santos, coordenador do projeto Águas na Cidade.
Belo Horizonte, maio de 2025
Prefácio
Robert Kugelmann
Este pequeno livro é como um pivô no pensamento de Ivan Illich. Foi motivado por um convite do Dallas Institute of Humanities and Culture. À época, havia o plano de criar um ‘lago urbano’, e o Instituto contribuía nesse projeto imaginando A água e os sonhos, que também é o título de um livro de Gaston Bachelard cuja tradução para o inglês o Instituto acabara de lançar. Illich ponderou que Dallas estaria chamando de ‘água’ o h2o, uma sopa química que guarda apenas remota semelhança com o que, no passado, foi ‘água’. Seu livro explora a historicidade da água como um exemplo da historicidade da matéria. Ele argumenta por uma ruptura radical entre ‘água’ e a ‘descarga sanitária reciclada’ que é o h2o. Essas reflexões históricas levam a outros temas, como privacidade, perfume, sujeira, vergonha, a invenção da circulação, memória e a aura ou o odor de nós mesmos e das nossas cidades. Quando bebemos h2o da torneira, vivemos o esquecimento do que nossos predecessores conheciam como água. Na conclusão, Illich escreve que “a água perdeu o poder de comunicar sua profunda pureza pelo contato, assim como perdeu o poder místico de lavar máculas espirituais” (p. 241).
O livro delineia como ocorreu essa perda e permite descobrir uma questão subjacente, não explicitada: a
água tornada h2o ainda serve ao batismo? Illich põe sua tese em termos diferentes, mas próximos: “dado que as águas arquetípicas são tão antagônicas a essa nova ‘matéria’ quanto são ao óleo, temo que o contato com tal monumentalidade líquida possa tornar as almas das crianças de Dallas impermeáveis à água dos sonhos” (p. 50). De fato, ele diz que “a criança da cidade não tem oportunidades de contato com a água viva” (p. 241). Considere-se, além disso, que “água viva” também é uma pessoa. Com que água podemos sonhar?
Com a água que nos chega ao morarmos num lugar — eis a resposta. O morar se dá quando uma comunidade conforma seu “espaço próprio” (p. 52). Morar é uma “atividade vernacular”, nunca concluída e que deixa rastros de sua história. Pessoas modernas não moram realmente nesse sentido; são estacionadas ao lado de seus automóveis, vivendo em mercadorias, modestas ou suntuosas. Quando pessoas moram, vivem na visão ou no sonho de um fundador, e a configuração do espaço de moradia espelha o macrocosmos. Illich menciona as favelas do Rio de Janeiro para argumentar que, “quando chegam os tratores escoltados pela polícia, são duas entidades díspares que se encontram: barracos surgidos a partir do espaço de moradia versus agressores de um mundo construído na prancheta” (p. 77).
Espaço tratorado é espaço geométrico, espaço cartesiano. Esse tipo de espaço é o que está do lado h2o da clivagem histórica. As águas que Illich procura elucidar criavam espaços de moradia ao serem divididas, como no Genesis e no Êxodo. Com essas águas, culturas imaginam sua forma e sua matéria. Sobretudo, a história das águas revela a importância de pureza e limpeza, que concernem a atos distintos. Pureza se refere ao renascimento pela água, e limpeza lava um povo como um solvente. No mito grego, os mortos cruzam o Rio Léthê depurados de suas memórias e seus crimes, e Pégaso abre a fonte das artes [Hipocrene] num movimento purificador.
Uma novidade para o mundo moderno é a noção de que a água — e talvez a maioria das coisas — circula, retornando à origem. Harvey, por exemplo, descreveu a circulação do sangue. Aplicada ao planejamento urbano, a circulação inspirou “a utopia da cidade inodora” (pp. 157, 167, 225). Depois de muitas reviravoltas nessa história, acabamos hoje com o h2o não como água, e sim como um fluido de limpeza, rico em químicos — isso se tivermos a sorte de viver numa sociedade tratorada que possa se dar ao luxo de descontaminar da sujeira circulante o líquido agora tido por água.
Dallas, outubro de 2024