LavíniaRocha da SecretaSala O mistério


ilustrações:
Rubem Filho
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ilustrações:
Rubem Filho
ilustrações: Rubem Filho
Copyright © 2021 Lavínia Rocha
Todos os direitos reservados pela Editora Contemporânea. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
Edição geral
Sonia Junqueira
Revisão
Samira Vilela
Projeto gráfico
Diogo Droschi
Diagramação
Diogo Droschi
Larissa Carvalho Mazzoni
Informações paratextuais
Júlia Melo Azevedo Cruz
Dafne Barbosa Cortez
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rocha, Lavínia
O mistério da sala secreta / Lavínia Rocha ; ilustrações Rubem Filho. -- 2. ed. -- Belo Horizonte, MG : Contemporânea, 2022.
ISBN 978-65-89703-24-2
1. Ficção - Literatura infantojuvenil I. Rubem Filho. II. Título. 22-120859
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura infantil 028.5
CDD-028.5
2. Ficção : Literatura infantojuvenil 028.5
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Anel Rodoviário Celso Mello de Azevedo
25.764 . galpão C . sala 1.
Jardim Vitória . 31970-130
Belo Horizonte . MG
Para todos os que, como diria bell hooks, ensinam a transgredir e lutam por uma educação como prática de liberdade. E para todos os que ousam apontar falhas nas memórias: o mundo também é nosso!
ESTARIA MENTINDO se dissesse que sempre adorei minha escola. Pelo contrário. Várias vezes desejei uma queda de energia ou qualquer outro problema técnico que fizesse com que o diretor suspendesse as aulas... Não me leve a mal, sou uma aluna esforçada e tiro boas notas, mas minha cama sempre pareceu bem mais confortável do que as cadeiras duras da escola, e meus sonhos, bem mais divertidos do que as aulas. Por isso, perdi a conta de quantas vezes bufei de preguiça ao ver a placa enorme com os dizeres “Bem-vindos à Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus”.
Bem-vindos? Não era assim que eu me sentia ao ver a cara rabugenta do diretor Humberto logo na entrada. Uma vez, ele me perguntou se não tinha pente na minha casa, acredita? Que ridículo! Quis responder que meus cabelos crespos eram livres e que ele passasse um pente no próprio cabelo, se fazia assim tanta questão. Mas a verdade é que não tive coragem, e depois disso comecei a evitar qualquer contato visual com o diretor.
Minha rotina era sempre a mesma: ultrapassava as barreiras do portão azul, dava uma olhadinha na placa e apertava o passo para a sala antes que Humberto pudesse fazer qualquer comentário.
Nas últimas semanas, porém, o clima estava diferente. Havíamos recebido a notícia de que a escola seria fechada. Sim! Fechada! No ano que vem não teria mais portão azul, nem placa de boas-vindas, nem campeonato de futebol no recreio, nem clube de leitura terça-feira depois da aula. Seria o fim da escola Maria Quitéria!
– Dá pra acreditar que o motivo que eles deram pra fechar foi “falta de alunos”? – perguntei ao Gabriel, meu melhor amigo, enquanto olhava aquela multidão de alunos na quadra de esportes organizando a feira de História.
– Isso é um absurdo! – Ele levou uma mão ao cabelo black power e ergueu as sobrancelhas. – Não faz o menor sentido, Júli.
Gabriel tinha quase a minha altura; sua pele era negra, um pouquinho mais escura do que a minha, e era um dos garotos mais legais que eu conhecia. Éramos amigos há muitos anos. Ele era viciado em poesia, e eu achava muito culto um menino do 7º ano ler tantos poemas. Gabriel também era engraçado, mas só com quem tinha intimidade, porque para o resto do mundo ele era bem tímido. Por causa dele, ganhei o apelido menos econômico de “Júlia” que já tinha visto, mas que eu achava bem legal, embora tivesse apenas uma letra a menos que meu nome completo.
– Vocês trouxeram os cartazes? – Adriana, a professora de História, se aproximou ofegante.
– Aqui! – Mostrei o meu a ela, e Gabriel fez o mesmo. – Ótimo! Então já podem ir em direção à tenda da turma de vocês, ok? Não é pra visitar as outras tendas de uma vez só, vão se revezando em grupos. Por favor, avisem isso a todos! E não se esqueçam de falar alto e devagar! –Adriana soltava as palavras com tanta pressa que acabou me deixando atordoada também.
A feira de História acontecia todo ano, mas aquela seria diferente: o tema era a própria escola. Tinha uma turma responsável por pesquisar casos engraçados, outra que organizou uma exposição de fotos desde a inauguração, uma terceira que buscou curiosidades... A minha turma ficou responsável por pesquisar a vida de Maria Quitéria de Jesus, a mulher que dava nome à escola.
Essas feiras sempre foram especiais para mim, mas eu estava tão chateada com a notícia do fechamento que, sendo bem sincera, não me esforcei dessa vez. Tudo o que sabia era que Maria Quitéria tinha nascido no fim do século XVIII e era baiana. Fiz um desenho que incluía o mapa da Bahia e esperava, do fundo do coração, que bastasse para compor a tenda da minha turma.
FIM. Uma palavra de três letras que resumia bem o sentimento de todos naquele evento. Os alunos iam de um lado a outro, tentando deixar a feira de História a mais bonita possível. Corria um boato de que se a feira fosse brilhante, a prefeitura desistiria de fechar a escola. Se era real, não sei, mas o esforço de todo mundo era visível.
Na verdade, nem de todo mundo... Júli, por exemplo, estava cabisbaixa, sem dar muito papo para ninguém, o que era definitivamente estranho. Até seu cabelo estava mais baixinho, sem muito volume e com anéis crespos menos marcantes, como se acompanhasse o humor da dona.
Decidi propor a ela uma volta pela feira, afinal, a professora disse que poderíamos nos revezar de seis em seis.
– Preguiça... – disse ela, e suspirou, fechando os olhos.
– Se bem que talvez seja menos chato do que ficar aqui fingindo que pesquisei a vida da mulher da escola. Topo.
Ela se levantou de repente e foi avisar a Ana, nossa colega e representante de turma, que íamos sair.
– Aonde vamos primeiro? – Olhei para todas as tendas espalhadas pelo pátio, sem saber por onde começar.
– Parece que a 803 trouxe umas fotos de décadas atrás, porque os pais da Fernanda Lopes estudaram aqui. Legal,
né? Eles se conheceram na escola e se casaram depois. – Ela sorriu, apontando para uma tenda.
– Sério? Quero ver!
– Também ouvi falar que tem uma foto da dona Vicentina com vinte e poucos anos, quando ela começou a trabalhar aqui.
– Ah, para! – Bati a mão na perna, surpreso. – Não consigo imaginar a dona Vicentina nova...
– Então vamos lá ver! – Ela começou a andar, mas parou de repente quando viu um cartaz da turma 701. – Eles estão dando balas!
Júli apontou para a tenda, e eu li no cartaz que a turma tinha trazido curiosidades sobre a escola. Algumas eram falsas, e outras, verdadeiras. Quem acertasse ganharia um saquinho cheio de balas! Nada mal já ganhar doce assim, logo no primeiro horário.
Seguimos na direção da 701, mas, quando passamos pela 901, foi impossível não parar.
– Nós vamos contar a maior lenda da Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus! – um dos alunos gritou enquanto outro distribuía panfletos.
– Lenda? – Minha amiga se aproximou, pegando o papel.
Aproveitei para ler por cima do ombro dela: “Você conhece a Sala Secreta? Não? Então, prepare-se!”.
– Sala Secreta? Aqui? Ah, tá bom... – bufei, erguendo os ombros.
– Agora eu quero saber – disse Júli, mordendo os lábios.
– Ah, Júlia, não é possível... Esses meninos mais velhos estão tentando zoar a gente!
– Você tá com medo? – Ela colocou a mão na cintura e estreitou os olhos.

– Claro que não!
– Então vamos ouvir.
Suspirei, pensando nas balas e no quanto seria mais legal ver a foto da dona Vicentina, mas acabei concordando.
– Tudo bem, mas assim que terminar aqui nós vamos ver as fotos!
Júli me deu uma piscadinha como quem sela um acordo e depois se aproximou dos alunos da turma para ouvir a lenda. Seus olhos brilhavam, e o sorrisinho de lado denunciava suas expectativas. Júli era curiosa e gostava de uma boa história.
– Alguém já entrou na porta vermelha depois do corredor da biblioteca? – uma aluna gritou de repente, quando uma música tenebrosa começou a tocar. Ela usava uma roupa preta de TNT que combinava com a decoração da tenda. Tudo ali parecia uma tentativa de imitar o clima do Dia das Bruxas. Até teia de aranha tinham dado um jeito de pendurar!
– Eles realmente se empenharam – comentei baixinho, mas só consegui um sonoro “shhh” em resposta.
– Alguém pelo menos já viu aquela porta aberta? – outro aluno perguntou, a música de fundo se tornando mais urgente, aumentando o suspense.
Júli tombou um pouco a cabeça e pareceu refletir sobre as dúvidas que a 901 jogava para nós. Será que ela estava mesmo levando a sério aquela brincadeira? Era óbvio que eles tinham inventado tudo para fazer um trabalho legal. Provavelmente a porta vermelha só estava emperrada, ou era uma espécie de arquivo morto. Afinal, toda escola precisa de um espaço para guardar documentos antigos, não é mesmo?
– Pois saibam que é a porta vermelha que dá acesso à Sala Secreta da escola!
– E o que tem lá? – um garoto perguntou.
– Ninguém sabe! – Outro estrondo da música ressoou, e eu dei um passo para trás, de susto. – Reza a lenda... –A garota com roupa de TNT deixou as reticências no ar enquanto encarava cada um dos alunos que a ouviam. Sua sobrancelha direita estava erguida, e os lábios, bem cerrados.
– Caramba, eles devem fazer teatro – cochichei de novo para Júli, que se aproximou mais do pessoal sem nem se dar ao trabalho de me responder. Ela estava mesmo interessada.
– ...que só conseguem sair da Sala Secreta aqueles que são verdadeiramente corajosos e merecedores, como Maria Quitéria. O resto? Fica preso eternamente!
Júli virou o rosto para mim: o queixo caído e as sobrancelhas levantadas dispensavam explicações. Era provavelmente a mesma expressão que eu fazia ao encontrar a rima perfeita para um poema. No caso dela, era quando encontrava a encrenca perfeita para se meter.
FAZIA ALGUNS ANOS que eu não acreditava em Papai Noel ou Coelhinho da Páscoa. Já estava no 7º ano, não era mais uma criança, então também não acreditava em toda aquela encenação da 901.
Sala Secreta só para os corajosos? Me poupe.
No entanto, o que eles haviam dito sobre a porta vermelha era real. Quem já tinha entrado lá? Ou conhecido alguém que tivesse? Por que a porta vermelha estava sempre trancada? Eu precisava descobrir! No piloto automático, segui Gabriel até a próxima tenda. Meu corpo até podia estar na feira de História, mas minha cabeça só conseguia pensar na porta vermelha.
– Olha, Júli!
Ele apontou para uma foto, e finalmente consegui desviar minha atenção. Era dona Vicentina muito, muito jovem.
– Chocada! – falei, observando seus cabelos lisos, em coque, como sempre, e sua pele clara, sem as marcas da velhice que eu já estava tão acostumada a ver. – O chaveiro continua o mesmo.
Dona Vicentina cuidava das chaves da escola e, por isso, tinha uma argola em torno do punho com todas
elas. Sempre que precisavam usar o auditório ou a sala de vídeo, os professores soltavam a clássica “Chama a dona Vicentina!”.
Abaixo da foto, uma homenagem com os dizeres: “Há mais de 40 anos abrindo as portas do conhecimento”.
– Que lindo – comentei com Gabriel. – Ela também deve estar bastante chateada com o fechamento da escola.
– Sem dúvida... Imagina quanta coisa ela não viveu dentro desses portões azuis.
– Acho que, tirando o chato do diretor Humberto, tá todo mundo mal com isso.
– Pois é! Até o pessoal do 9º ano, que já ia sair do Maria Quitéria no ano que vem! – Ele apontou para as tendas dos alunos mais velhos. – Só mesmo o Humberto que não tá ligando... Cara frio.
Concordei com a cabeça enquanto olhava mais fotos antigas. A turma tinha conseguido bastante coisa, e algumas eram tão velhas que eu custava a reconhecer qual era a parte da escola retratada.
Uma imagem, porém, saltava aos olhos. Nela, um grupo fazia poses engraçadas encostado a uma parede e, no fundo, havia uma porta, tão fechada quanto sempre esteve. Não demorei para reconhecer o local, apesar de a tinta ter uma aparência de bem mais nova. Era a porta vermelha.
– Gabriel. – Puxei meu amigo. – Nós precisamos descobrir o que tem lá dentro.
– Ah, meu Deus. – Ele passou a mão pelo cabelo black power e suspirou. – Não é possível que você acredite mesmo na lenda que a 901 inventou.
– Eu sei que eles se empolgaram com todo aquele cenário e aquela música, mas uma coisa é verdade: ninguém sabe o que tem lá dentro! Sim, pode ser só um depósito de
material de construção ou de produtos de limpeza... mas preciso tirar essa pulga de trás da orelha!
– Você tem cada uma... – Ele balançou a cabeça, mas eu sabia que iria entrar nessa comigo. – Mas que tal tentarmos conseguir aquele pacote de balas agora?
Meu amigo esfregou as mãos, animado, e eu não pude dizer não.
Havia sido bom olhar as fotos antigas e descobrir algumas curiosidades, como há quanto tempo dona Vicentina trabalhava no Maria Quitéria, mas ainda não foi o suficiente para ganharmos.
– Ah, foi quase... – Gabriel ergueu os ombros enquanto abria a balinha de maçã verde que ganhamos como prêmio de consolação.
– Como eu ia saber que a escola não tinha biblioteca nos primeiros dez anos? – Cruzei os braços, revoltada com a resposta da pergunta que erramos. – Não consigo nem imaginar isso: sem clube de leitura na terça-feira, sem pufe pra deitar enquanto lemos uma revistinha, sem lugar pra ficar quando chegamos mais cedo ou precisamos nos reunir com um grupo de trabalho...
– Eu não sei o que seria de mim sem os livros de poesia que a Terezinha sempre me recomenda.
– Finalmente vocês voltaram! – exclamou Ana, a representante de turma. – Precisamos nos revezar, ou não vai dar pra todos verem a feira!
Ela gesticulava de um lado para o outro enquanto tentava consertar os cartazes já perfeitamente alinhados.
– Tá tudo bem, Ana. – Coloquei a mão em seu ombro, tentando transmitir tranquilidade. – Nossa tenda tá linda!
– É verdade. – Ela soltou o ar e relaxou. – Vocês podem ficar responsáveis por contar a história de Maria Quitéria
aos visitantes, agora? O Bruno vai fazer as perguntas ao final, e quem tiver prestado atenção e responder tudo certo ganha um chocolate.
Ops. Como é que eu ia contar uma história sobre a qual não sabia nada?
– Claro! – respondi por impulso, para não deixar a Ana ainda mais preocupada. – Mas primeiro me mostra como vocês estão contando as histórias, por onde começam, essas coisas. Pra gente fazer igual.
Apontei para mim e para o Gabriel, que, ao contrário do que a Ana esperava, também não era nenhum expert na vida de Maria Quitéria.
– Boa ideia – disse ela, arranhando a garganta como se estivesse se preparando para um discurso. – Pessoal, vamos repassar a apresentação com a Júlia e o Gabriel antes de revezarmos as visitas.
Mais dois colegas se juntaram a nós.
– Maria Quitéria de Jesus nasceu na Bahia, no final do século XVIII. – Ana fez uma cara séria, como se fosse a âncora de um jornal, então voltou ao normal e me olhou. – Aqui você pode mostrar seu cartaz com o mapa, que ficou ótimo, por sinal!
– Obrigada! – Sorri ao ver que eu tinha feito algo de útil pela turma; não estava orgulhosa do meu desleixo com a feira de História.
– Nasceu em uma época em que os preconceitos eram ainda mais fortes do que hoje, e às mulheres cabia cuidar das tarefas domésticas e obedecer ao pai ou ao marido.
– NO ENTANTO – João gritou de repente, e eu me assustei. – Desculpa, gente, mas tem que quebrar as expectativas do público – ele explicou, e os três riram. – A Ana começa séria, como se fosse apresentar um trabalho
chato e monótono, e depois eu entro com uma entonação mais misteriosa.
– Anotado!
Sorri ao entender a proposta, que me lembrou a da tenda da 901: eu mal conseguia desviar os olhos enquanto eles contavam, por causa do cenário legal, do efeito sonoro, da interpretação dos alunos e, é claro, da história, que aguçou bastante a minha curiosidade.
– Voltando ao roteiro... – ele retomou. – NO ENTANTO, no dia 7 de setembro de 1822, Dom Pedro I proclamou a Independência do Brasil.
– INDEPENDÊNCIA OU MORTE! – Ana gritou bem alto, e alguns alunos que passavam em frente à nossa tenda decidiram entrar para ver o que estava acontecendo. Pelo visto, a estratégia deles era boa.
– Mas vocês acham que Portugal aceitaria perder sua colônia assim tão fácil? – Letícia, a terceira colega da apresentação, lançou a pergunta. – Na-na-ni-na-não! – Ela balançava o dedo indicador enquanto andava de um lado para o outro. – Então, mensageiros foram enviados pra tentar conseguir dinheiro ou homens dispostos a lutar contra as tropas portuguesas.
– E eis que os mensageiros chegam à fazenda onde mora Maria Quitéria! – João gritou de novo, mas dessa vez eu já estava preparada.
Ele colocou um bigode falso e semicerrou os olhos.
– Papai, por favor, eu gostaria de servir à Pátria e lutar na guerra! – Ana disse a João, movendo as mãos como se segurasse as barras de um vestido.
– De jeito nenhum, Maria Quitéria! – ele engrossou a voz enquanto alisava o bigode falso. Todos riram da encenação, e foi aí que percebi como a tenda tinha enchido
ainda mais. – Lugar de mulher não é na guerra, e sim em casa, cuidando da família e do lar!
– Mesmo sem concordar com as palavras do pai, Maria Quitéria decide não questioná-lo. – Letícia se colocou na frente dos outros personagens, que haviam congelado seus movimentos, como na cena final de um capítulo de novela. – Então, guiada pelo sentimento patriótico, ela pede ajuda à irmã, Teresa, que lhe empresta as roupas do marido.
– Mas não apenas as roupas! – Ana saiu da personagem e voltou a narrar a história, tomando o cuidado de olhar para todos da plateia e gesticular bastante. – Nossa heroína também utiliza o sobrenome do cunhado para se alistar no Batalhão. E assim, com o cabelo cortado e roupas consideradas masculinas, passa a ser conhecida como soldado Medeiros.
– Uma decisão ousada em um período ainda mais complicado para as mulheres – Letícia lembrou.
Uau! Como eu nunca soube daquilo?
Nossa professora de História sempre dizia que era importante tentar não julgar o passado segundo nossa forma de ver o mundo. Por isso, tentei imaginar o que significava uma mulher nascida no final do século XVIII fugir de casa, se passar por homem e lutar nas guerras de independência... Um feito e tanto.
– Mas como nem tudo sai como a gente quer, Maria Quitéria foi descoberta pelo pai! – João falou sério, e Letícia e Ana colocaram a mão na boca, assustadas, o que fez a plateia reagir da mesma forma. – Ele exigiu a retirada da filha!
João colocou o bigode de novo e começou a puxar a Ana, que resistia.
– Maria Quitéria, então, insistiu com os superiores
para que interferissem a seu favor e a deixassem ficar. Será que ela conseguiu? – Letícia lançou a pergunta à plateia. Houve um burburinho, mas o público não chegou a um consenso.
– Não só conseguiu como ganhou respeito e honra por sua bravura nos campos de batalha. Sem precisar mais usar as fardas masculinas, adotou o saiote verde que se tornou sua marca registrada – João completou.
– Mas se engana quem pensa que Maria Quitéria ficava sempre atrás nas batalhas, ou que cuidava apenas das tarefas mais leves. Ela atuava na linha de frente e era muito boa no que fazia! – Letícia bateu palmas, e o público, que se abarrotava na tenda para ouvir o trio, a acompanhou. Por um instante, pensei que a história tinha acabado, mas João surgiu de novo com suas frases de efeito.
– DEPOIS DE GRANDE DESTAQUE... – ele gritou, erguendo o braço com o dedo indicador em riste. Percebi que Letícia, mais ao fundo, amarrava o cabelo e colocava um bigode, o que me deixou animada para a próxima cena. – Maria Quitéria segue para a capital da época, o Rio de Janeiro, para conhecer...?
João fez mistério e olhou para os alunos, aguardando uma resposta.
– Dom Pedro II – um menino mais novo gritou.
– Não. – Ele balançou a cabeça. – Dom Pedro II ainda não tinha nascido. Era o pai dele, Dom Pedro I. E ela recebe, do próprio Imperador, uma medalha de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, que só era entregue a grandes personalidades ou heróis.
– Muito obrigado por seus serviços militares prestados à Pátria! – Letícia forçou uma voz grossa para interpretar Dom Pedro I, e todo mundo adorou.
– Obrigada, Sua Majestade – disse Ana com uma reverência. – Posso lhe fazer um pedido?
– É claro!
– Peço que escreva ao meu pai pedindo que me perdoe pela desobediência. – Ana tinha as duas mãos unidas, como quem implora, e Letícia fingiu pegar um papel e redigir a carta.
– Enquanto isso, a imprensa do Rio de Janeiro cobria a visita da primeira mulher brasileira a integrar uma unidade militar no país, e muitos foram às ruas para conhecer nossa heroína – João continuou, e Ana começou a desfilar e a dar tchauzinhos para a plateia. – Vocês são os cariocas!
João apontou para o público e ergueu uma placa com os dizeres: “Cariocas gritam: Maria Quitéria, Maria Quitéria!”.
Ninguém pensou duas vezes antes de seguir a placa, e, quando olhei para trás, tinha gente até do lado de fora da tenda tentando ver a apresentação.
– NO ENTANTO... – João gritou de novo, dessa vez não para assustar as pessoas, mas para conseguir a atenção de volta. – Embora tenha conquistado honras e reconhecimento, não demorou muito até Maria Quitéria cair no esquecimento entre os brasileiros.
– Casou-se com o amor da sua juventude, com quem teve uma filha, e seguiu uma vida comum de civil. Anos depois, acabou sendo prejudicada no testamento de seu pai, além de ter enfrentado problemas de saúde que a deixaram cega.
O público, que momentos antes vibrava pelas conquistas da mulher, sofreu um golpe com o rumo que a história tinha tomado.
– Morreu na Bahia, pobre de recursos, viúva e quase esquecida.
Encarei a plateia, que, assim como eu, estava de queixo
caído. Esperávamos um final cheio de glórias, até porque, como o trio havia dito, ela era boa no que fazia e ganhou até uma medalha do próprio Dom Pedro!
– Somente décadas depois, começaram a questionar a falta de reconhecimento da nossa heroína na História. Teve início, então, um processo para lhe fazer justiça: seu retrato foi colocado em locais de relevância, ela ganhou uma estátua, virou nome de avenida e até de escola, como a nossa!
– Mas ainda se fala pouco de Maria Quitéria, e muitos nunca ouviram seu nome...
– O objetivo desse trabalho é manter viva a memória de Maria Quitéria de Jesus, uma grande heroína brasileira! – Ana encerrou, e os três se curvaram em agradecimento.
Todos aplaudiram a apresentação, e eu fiquei tentando absorver o que tinha ouvido. Poxa, uma mulher lutando na guerra no século XIX! Uma verdadeira heroína sobre a qual não ouvíamos falar nas aulas!
O pior era perceber que o fechamento da Escola
Municipal Maria Quitéria de Jesus tinha acabado de ganhar um peso ainda maior. A escola era uma homenagem a uma mulher incrível, que custou a receber algum reconhecimento, e acabaria assim?
Decidi que precisava fazer algo. Nossa escola não podia ser fechada!
O FECHAMENTO DA ESCOLA parecia uma decisão sem retorno, e vó Lúcia estava preocupada com o meu futuro. Maria Quitéria era a única escola boa da região, e ela tinha demorado muito para conseguir minha vaga.
– Andei perguntando ao pessoal, e me disseram que tem duas escolas boas no centro. Fui nas duas ontem, as moças da secretaria prometeram que vão tentar a vaga. Vovó passou a mão pelos cabelos crespos e brancos enquanto eu tomava café da manhã.
Encarei as marcas de expressão em sua pele negra e suspirei. Não queria ser mais um peso em sua vida, mas não havia nada que eu pudesse fazer para tranquilizá-la. Quando o assunto era a minha educação, vovó se mostrava a pessoa mais rigorosa que já conheci. Ela queria a melhor escola para mim, e exigia excelentes notas também.
Já ouvi muito que menino criado por vó fica mimado, mas acho que quem falou isso não conhecia vó Lúcia. Talvez minha mãe tivesse me dado mais colher de chá, ou até meu pai – e olha que eu nem sei quem ele é –, mas certamente ninguém vence vó Lúcia numa competição de rigor. Ela não faz jus, de modo nenhum, a essa teoria da criação pela avó.
Tenho certeza de que o dia em que eu entrar numa faculdade só não vai ser o dia mais feliz de sua vida porque ela vai guardar esse posto para quando eu mostrar o diploma.
– São muito longe daqui? – perguntei, sem conseguir esconder a tristeza que aquele assunto me trazia.
– Ah, meu filho, são um pouco, sim. Pra qualquer uma você vai precisar de um metrô e um ônibus. Mas vai valer a pena, você não acha?
– Claro... – Não era como se eu tivesse outra escolha.
Podia imaginar vó Lúcia indo atrás das escolas e insistindo muito para conseguir uma vaga para mim. – Preciso ir agora, vó.
Peguei mais um pão de queijo e dei um beijo em sua bochecha.
– Estude muito, hein! Quero levar um boletim exemplar pra escola nova. Sei que eles não vão negar uma vaga pra um aluno como você, Gabel. – Ela sorriu e eu concordei.
“Gabel” era o apelido que vó Lúcia tinha me dado, e minha teoria era que, de tanto falar rápido meu nome, decidiu cortar umas letras e simplificar. Eu gostava, tinha som de vó.
ADurante toda a manhã, fiquei refletindo sobre como a conversa com minha avó tornava tudo real demais. Ela já estava me encaminhando para uma nova escola. Não havia saída.
E eu não era o único a sentir essa angústia. O cenário do Maria Quitéria estava se tornando cada dia mais parecido com o das poesias melancólicas que a professora nos fazia estudar em sala. Tudo parecia conspirar para esse sentimento: as chuvas de novembro, os cartazes que pregamos
na porta da escola (que foram levados pela água) e até o abaixo-assinado que a Júli organizou (que foi completamente ignorado por Humberto).
Sinto que não estamos fazendo nada para impedir que as coisas aconteçam! – Júli andava de um lado a outro na hora do recreio, na frente da cantina. – Maria Quitéria passou por cima das tradições de seu tempo, das ordens de seu pai, lutou na guerra... e nós vamos permitir que a escola que carrega seu nome seja fechada assim?
Ela se virou para me encarar. Eu admirava muito esse seu senso de justiça: Júli não aceitava as situações sem antes fazer tudo o que estivesse ao seu alcance.
– Outro dia, escutei a Sara falando pro João que já sabe pra qual escola vai. Isso é um absurdo! As pessoas estão entregando os pontos, Gabriel. Não é hora de procurar uma nova escola, é hora de lutar pro Maria Quitéria não fechar! – Júli movia os braços de maneira afetada, subindo o tom de voz a cada frase.
Engoli seco, pensando na conversa que havia tido com vó Lúcia mais cedo. Eu também estava encaminhado para uma escola nova, e, considerando a braveza de Júli, isso era algo que não poderia lhe contar.
– As pessoas só estão preocupadas, Júli. É muita gente que vai ficar sem escola de uma hora pra outra.
– Olha aí! Você já tá falando como um derrotado! –ela apontou. – Nós precisamos de estratégias novas, não de aceitar que acabou e pronto.
Eu vivia um sentimento duplo. Por um lado, entendia perfeitamente a insegurança de vó Lúcia e os esforços que estava fazendo para conseguir a vaga em uma escola concorrida. Por outro, Júli estava com sangue nos olhos para impedir que a melhor escola da região se acabasse.
Odiava me sentir inútil, queria muito ter uma ideia genial que pudesse nos tirar daquela situação. Era estranho pensar que algumas semanas atrás nem fazíamos ideia da tempestade que cairia sobre nossas cabeças. Em agosto, reclamamos até não poder mais de ter que voltar às aulas, mas agora não haveria mais retorno de férias: no ano seguinte, ninguém seria mais aluno da Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus.
Júli seguiu com seu discurso de luta, mas, de repente, algo atraiu sua atenção, e tentei localizar o que era. Tudo o que vi foram os alunos da 901 que haviam contado aquela história da Sala Secreta na feira. O trio nos encarava de uma forma diferente, mas quando se deram conta de que eu tinha percebido, tentaram disfarçar.
– Sabe o que eu estava pensando, Gabriel? – Ela deu um sorrisinho malicioso, e fiquei curioso para saber que ideia tinha sido responsável por mudar seu humor tão rápido. Sua cabeça começou a se mover até que seus olhos encontraram os meus, mas Júli não continuou a falar, então a incentivei com as mãos. – A gente devia... descobrir o que tem na Sala Secreta.
– Ai, não! – Coloquei a mão na testa quando as palavras fizeram sentido. – Não é possível que ainda não tenha esquecido isso.
– Não, é sério! – Ela puxou meu braço e me obrigou a encará-la. – Lembra quando éramos mais novos e ficávamos brincando de espiões?
Ela cutucou minha barriga, e eu me encolhi com a cosquinha.
– Juliel – falamos juntos, caindo na risada. No 2º ano, decidimos que éramos a dupla imbatível do Maria Quitéria. Inventávamos missões especiais e
salvávamos o dia derrotando vilões. O nome “Juliel” vinha da junção de Júlia e Gabriel.
– Lembra como nossos uniformes ficavam sujos de tanto rolar nesse pátio? – apontei para o chão cheio de folhas que caíam das árvores logo acima das nossas cabeças.
– A gente achava que pra ser espião tinha que andar quase rastejando. – Ela colocou a mão na boca enquanto ria.
– Bons tempos...
– Que estão prestes a voltar! – Júli se levantou rápido, ficou de frente para mim, dobrou um pouco os joelhos e abriu os braços, como se fosse uma apresentadora de circo.
– Chegou a hora de mais uma aventura Juliel!
– Não temos mais 7 anos, Júlia.
– Por isso mesmo essa aventura vai ser um pouco mais complicada... – ela ergueu as sobrancelhas algumas vezes, tentando me incentivar. – Vamos, Gabriel! É coisa simples, coisa rápida. Damos um jeito de entrar na sala, vemos o que tem lá e pronto!
– E qual jeito seria esse?
Júlia olhou para o lado enquanto refletia.
– Vamos investigar.
Ela gesticulou para que eu a seguisse e foi em direção à sala depois do corredor da biblioteca sem nem olhar para trás. Júli sabia que eu acabaria indo atrás dela, e só fui porque precisava tirar aquela ideia extravagante de sua cabeça. Ao contrário da minha amiga, eu não era uma pessoa muito inclinada a encrencas.
Peguei meu prato de macarronada, a merenda do dia, e fui comendo enquanto a seguia. Não pude deixar de observar que o trio da 901 voltara novamente sua atenção para nós, mas resolvi deixar aquilo de lado.
– Espera! – pedi.
Tentei fazer o possível para alargar meus passos, embora não desse para ser muito eficiente segurando um prato de comida. Atravessei o pátio, mas quando passei pela porta da biblioteca, Terezinha me chamou.
– Você vai adorar as novidades! – ela disse, animada.
Permaneci do lado de fora, já que não podia levar comida para dentro da biblioteca.
Olhando para o lado, percebi que Júli já atravessava o corredor em direção à sala. Eu não podia segui-la e deixar Terezinha falando sozinha.
– É mesmo? – perguntei, tentando chamar a atenção da minha amiga, que seguia seu caminho, obstinada.
Balancei a cabeça, desistindo, e me voltei para a bibliotecária.
– Chegaram livros de poesia da Conceição Evaristo e da Elisa Lucinda!
Terezinha conseguiu minha atenção total; livros novos de poesia me faziam vibrar! Dei um passo rápido para entrar na biblioteca, mas parei quando olhei de novo para o prato. Que saco!
– Primeiro come, depois entra aqui! – ela ralhou. –Pode vir no horário da saída que eu vou reservar os dois pra você.
– Obrigada, Tê! – Soprei um beijo para ela, que riu enquanto balançava a cabeça.
Me despedi de Terezinha e corri para encontrar Júli. Quando me deparei com a famigerada porta vermelha, vi minha amiga com as mãos na cintura e os olhos semicerrados, estudando cada centímetro da porta. A única informação perceptível era o número 7 em uma placa. Júli grudou a orelha na porta, depois tentou girar a maçaneta e empurrar, sem sucesso.
– Será que tem outro jeito de entrar? – Ela andou mais um pouco ao redor da porta, até que vimos uma janela antiga ao lado, no corredor.
Júli tentou fazê-la ceder, mas, apesar do barulho, não funcionou.
Chequei se havia alguém por perto. Imagina se o diretor Humberto nos visse tentando entrar na sala! O que iríamos dizer? Que estávamos ali por causa de uma lenda contada na feira de História? Ele não só riria da nossa cara como daria um belo de um sermão.
– Se eu pelo menos conseguisse ver alguma coisa... –Júli lamentou. – Ia matar minha curiosidade.
Espiei a janela também, na esperança de encontrar qualquer buraquinho pelo qual Júli pudesse enxergar o interior da sala. A ideia de resolver aquilo sem nos meter em problemas era tentadora.

– Olha... – falei ao passar a mão por uma parte da janela, tirando a
sujeira do vidro. Parecia que do outro lado havia um armário ou alguma coisa grande que tampava a visão, mas tinha um pedacinho que permitia ver uma pequena parte da sala. – São... livros?
Júli veio ávida para tentar identificar os objetos, mas o campo de visão que aquele espacinho oferecia não era lá grande coisa.
– Hmmm... parecem mesmo livros. – Ela fechou o olho direito, observou, depois tampou o esquerdo, semicerrou os dois, olhou mais de longe, voltou a se aproximar. – Não dá pra ter certeza, mas... imagina se é um acervo enorme de livros! Um acervo secreto com edições antigas e livros autografados por autores famosos!
A imaginação e a criatividade da Júli eram surpreendentes, mas ter consciência disso não me impediu de entrar na onda dela. Tudo bem que poderia ser só um acervo de livros usados, rasgados, às vezes até mesmo os didáticos dos anos anteriores, mas... e se...
E se a tal da “Sala Secreta” fosse mesmo um “Acervo Secreto”? Quantos poemas não estariam ali apenas aguardando meus olhos para serem apreciados?
– Talvez a gente possa dar uma entradinha e descobrir... – falei por impulso.
– Ah, agora o senhor ficou animadinho? – Júli sorria, enrolando um de seus cachos crespos no dedo.
No alto de sua cabeça, havia uma flor amarela de tecido que eu tinha dado de presente em seu último aniversário. Um dia, vimos uma foto de vários modelos negros usando adereços e roupas amarelas e percebemos o quanto aquela cor valorizava, também, a cor da nossa pele. Daí em diante, sempre nos presenteávamos com algo amarelo. No ano
Júlia e Gabriel
estão no 7º ano e são amigos desde muito pequenos, quando formaram a dupla de espiões Juliel.
Agora, a dupla tem que voltar à ativa para encontrar um jeito de desvendar um grande mistério, antes que a prefeitura feche a Escola Municipal Maria Quitéria de Jesus, onde estudam.
Em meio a planos e feiras de História, Júlia e Gabriel descobrem a lenda da Sala Secreta, e que ela pode não ser pura invenção dos alunos. Quem já viu o que há por trás da porta vermelha? E mais: o que Maria Quitéria, a heroína da Independência, tem a ver com a lenda?


