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Silvia La Regina
Christiane Costa ILUSTRAÇÕES:

Christiane Costa ILUSTRAÇÕES:


Copyright © 2022 Silvia La Regina (Texto)
Copyright © 2022 Christiane Costa (Ilustração)
Todos os direitos reservados pela Editora Yellowfante. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
edição geral
Sonia Junqueira
revisão
Marina Guedes
capa, projeto gráfico, e ilustrações
Christiane Costa
diagramação
Guilherme Fagundes
informações paratextuais
Ana Paula Cavalcanti
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Regina, Silvia La O canto das sereias : dois brasileiros na Grécia antiga / Silvia La Regina ; ilustrações Christiane Costa. -- 2. ed. -- Belo Horizonte, MG : Yellowfante, 2022.
ISBN 978-65-84689-32-9
1. Literatura infantojuvenil I. Costa, Christiane. II. Título.
22-118714
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
CDD-028.5
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Anel Rodoviário Celso Mello de Azevedo, 25.764, galpão C Jardim Vitória . 31975-275
Belo Horizonte . MG









uidado, Ana! O barco vai virar!

– Não consigo me segurar! O vento!
– Ana! Pegue minha mão! Não me deixe!

Não me deixe. Que besta que eu sou. Minha irmã caindo nas águas escuras do mar Mediterrâneo, e eu pedindo para ela não me deixar. Mas é assim mesmo: nessas horas, viramos meio crianças, né? Mesmo tendo 14 anos (e 7 meses). Experimente, porém, estar num barco pequeno, sacudido pela tempestade, na companhia de um bando de ilhéus machões e belicosos guiados por um doido varrido e destemido, e você vai entender melhor. Quem manda ir a lugares exóticos? Quero dizer, fomos a Roma, aconteceu um bocado de coisa maluca,1 teria sido melhor sossegar e deixar a velha Europa para lá. Mas não, eu tinha que inventar de ir à Grécia, porque gosto de coisas antigas. Tudo bem. Em casa, antes de ir para a Itália, eu já estava me organizando e até comecei a estudar grego antigo – enfim, nunca se sabe, a gente tem que estar preparado para tudo. Curiosamente, não me contaram que o grego antigo era tão diferente do moderno. E é uma maravilha! Pensando bem, é até melhor do que o

1 Aconteceu em Perdidos no tempo: Dois brasileiros na Roma Antiga, primeiro livro da coleção. (N. E.)

latim, que já falo muito bem. Olha só: a gente diz hídrico, né? Alguma coisa ligada à água. E como se diz água em grego? É ὕδωρ, algo tipo hidór. Tudo a ver, né? Aí, estudo e decoro e treino... e descubro que, hoje, os gregos chamam água de νερό, neró! Poxa, custava deixar como antes? Mas, enfim, comecei a estudar porque achava as letras gregas tão charmosas. Ana, claro, dizia que era bobagem: apesar de sermos gêmeos e muito parecidos fisicamente, desconfio que um de nós dois seja adotado. Sabe, de repente adotaram um (ela, de preferência) e fizeram uma plástica, para que ficássemos quase iguais – como naquele filme antigo com John Travolta – ou era Johnny Depp?
Estou desviando do assunto. Ana gosta de física e de engenhocas, e até de um pouco de química, é metida a gênio e sempre cria encrencas. Eu, Carlos, gosto de idiomas, do mundo antigo, de tocar guitarra e de animais. De certa forma, pensando bem, nós nos completamos, porque ela saca de ciência e eu saco de tudo o mais... Que ela não me ouça!
Enfim, ela achou bobo eu continuar a estudar grego antigo, principalmente quando soube que o moderno é diferente, porque – disse ela:
– Nós já sabemos bem o latim. Para que aprender outra língua morta? Trate de aprender algo útil!
– Você acha que o latim é inútil, é? Preciso te lembrar que...
– Não discuto... você ganhou! Mas agora não vamos precisar de nada disso! Tudo bem que queira ir ver um monte de pedra velha e...
– Ana, para começar, nós vamos é à Turquia, porque você conseguiu convencer nossos pais de que, antes de

voltarmos ao Brasil, tínhamos que ir a Esmirna para o congresso de dementes, quero dizer, de jovens cientistas, esqueceu? E aí, tenha paciência: eu vou conhecer Esmirna, onde se diz que talvez tenha nascido Homero, e, sim, vou ver as “pedras velhas” (grrrr), as ruínas de Troia e tudo o mais. E você vai ouvir as bobagens que os tais jovens cientistas têm a dizer, enquanto eu passeio, e depois vamos atravessar de barco para a Grécia! Atenas! O Parthenon! E... – Pois é! Mas então não era melhor aprender logo o turco?
– Mas é claro que eles vão entender o grego por lá! Fica perto de mim para você ver.
– Mas, Carlos, é grego antigo!
– Você vai ver! E você, que gosta de ciência, deveria se lembrar do Heureca! de Arquimedes.
– O que isso tem a ver?
– É grego, anta!
– Sim, e daí? É cada uma!...
Com ela, é sempre assim. Batemos boca o tempo inteiro. Mas gosto demais de Ana. Prefiro, porém, que ela não saiba. Ficaria muito metida, mais metida ainda, e aí tchau!, acabou-se a pouca paz que tenho.

Tudo aconteceu assim: Ana deu um chilique por causa do congresso, e meus pais, achando que ela ainda estava traumatizada por causa de toda aquela história em Roma (é uma história longa, outra hora eu conto), resolveram que, como ainda estávamos na Itália, podíamos aproveitar e dar uma chegada até a Turquia – e aí eu me impus: nesse caso,

teríamos que ir à Grécia também. Afinal, eu também tenho direitos e também podia (não estava, mas podia...) estar traumatizado pelo que aconteceu em Roma, é ou não é? Arranjamos um lugar onde deixar Júnior, nosso filhote de leão romano (realmente, fica complicado explicar agora...), o que criou alguns transtornos, mas minha mãe, advogada – um trator –, ligou para um juiz, que ligou para um ministro, que ligou para o embaixador, que ligou... Caso Júnior resolvido.
E lá fomos nós, quatro brasileiros com onze malas, minha guitarra e um sem-número de sacolas para passar dez dias na Turquia e na Grécia. Na minha mala (quer dizer, numa delas) não tinha quase nada: levei uns manuais de grego, guias, história da Grécia, a Ilíada e a Odisseia de Homero, o novo kindle que ganhei no aniversário (“Carlos, mas com ele você não precisa levar os livros!”, “Sim, mas... e se a bateria falhar?”) e mais umas coisinhas. Já
Ana levou seu tablet, muito turbinado (“Eu sou cientista! Preciso!”), uma série de trequinhos científicos, um manual de física em três volumões, um telescópio quase portátil, um microscópio, a filmadora e outras coisinhas. Claro que perdemos o avião, porque o trânsito de Roma é terrível! Precisamos de um táxi do tamanho de um caminhão, que, solicitado (com a promessa de uma megagorjeta extra) aos berros pela minha mãe, furou sinais, pegou avenidas na contramão, xingou horrivelmente motoristas, pedestres e guardas de trânsito (quase atropelou um, aliás), fez os pneus uivarem feito uma matilha de coiotes, voou pela autoestrada, chegou a arrancar uma placa que estava um pouco caída e finalmente nos deixou na porta do tal de Fiumicino, onde fica o aeroporto principal de

Roma (o nome é Leonardo da Vinci – adoro detalhes inúteis), com um atraso grande mas, ainda assim, antes da saída do avião. Foi inútil, porém: chegando suados e trêmulos ao balcão do check-in, meu pai escondido atrás de todo mundo, empurrando um carrinho lotado (minha mãe ia na frente, com um carrinho aceitável), Ana e eu atropelando turistas alemães e freiras tailandesas, uma sacola voando na cara de um chinês gordo que depois tentou correr atrás de mim, enfurecido (nem minha a sacola era!), digo, chegando ao balcão, uma moça pouco amigável disse que o embarque já estava fechado.
Pânico! O congresso ia começar na manhã seguinte (não que eu me importasse de verdade, mas vi a cara de desolação de Ana)! E agora?

om, Ana, sendo assim, vamos amanhã, para Istam, com calma, e ficamos lá uns dias; depois, Troia, que tal?
– Carlos, não! E o congresso?
Meu pai chegou empurrando o monstruoso carrinho, do qual caiu uma sacola pequena, porém pesada, bem no pé do mesmo chinês, que ainda estava me procurando. O homem deu um berro e saiu pulando e urrando de dor; meu pai nem se deu conta, tamanhos eram o barulho e a confusão, e só foi perceber que a sacola estava caída no chão porque uma senhora gentil falou com ele. Voltou rapidamente, pegou a sacola e empurrou, suando e dando

pequenos gemidos (homem paciente desse jeito eu nunca vi!), o carrinho até perto de nós.
Nisso o chinês – que devia pensar que estava no meio de um complô familiar, sendo perseguido por um bando de xenófobos seriais – se aproximou ameaçadoramente, a passos largos e lentos, e sussurrei:
– Pai, aquele chinês quer me bater porque dei uma sacolada nele, sem querer!
– Tranquilo, Carlos, vou falar com ele, vai ficar tudo resolvido... Vou levar o carrinho, para o pessoal do checkin não reparar nele.
E aí meu pai, homem de paz, foi se desculpar com o chinês na hora exata em que minha mãe o chamou: – Adriano, venha logo aqui ver a questão das passagens!
– Já vou, Cláudia... – Ele se virou e a sacola (a de número dezessete, talvez de Ana) que levava no ombro bateu na cara do chinês, que deu um berro. Meu pai pulou para trás e foi novamente para perto do chinês, pedindo desculpas em inglês. Nisso, chegou do nada um magrelo alto e gritou: – Você, seu racista, bateu no chinês por quê? –, e deu um soco certeiro na cara do meu pai, que despencou no chão, derrubando o carrinho cheio de sacolas, das quais a mais pesada foi parar novamente no pé, é claro, do chinês.
Aí chegou minha mãe, gritando; Ana foi encarar o chinês e eu, sentindo muita falta do apoio do Júnior, nosso leão, fui tomar satisfação com o magrelo. Tudo errado: o chinês ajudou a levantar meu pai e entregou a Ana um livro que tinha caído da minha sacola – ele correra atrás de nós para devolver o livro, e não para se vingar da sacolada. Depois, beijou a mão de minha mãe e disse em ótimo francês: –Madame, meus respeitos. Sou coreano e moro em Paris. –

E o magrelo? Ele é que era racista, porque se mandou correndo; logo adiante, foi dar soco em um turista africano e, finalmente, foi preso por alguns guardas que tiveram muito trabalho para segurá-lo.
Fui à lanchonete buscar gelo (tive que pagar!) para colocar no queixo do meu pai, e todos cercamos o balcão de embarque, onde a moça disse que havia um voo para Atenas com conexão para Esmirna no final do dia seguinte, e outro indo para Atenas com conexão para Istambul, e de lá, ufa!, para Esmirna, no mesmo dia.
– Ótimo, vamos hoje mesmo! – Minha mãe se alegrou.
– Senhora, hoje só tem dois lugares.
– Então... os meninos vão hoje e meu marido e eu seguimos amanhã. Perfeito!
– Seus filhos são menores?
– Sim, mas não tem problema: nós autorizamos a viagem. Eles sabem muito bem se virar em qualquer situação, presente, passada ou futura (minha mãe tinha ficado muito orgulhosa com nossas aventuras).
– Senhora, não pode.
– Minha amiga, veja, eles vão a um congresso importantíssimo. O menino é um grande artista, claro, mas a menina é um gênio da ciência, e ela vai apresentar um trabalho revolucionário. Passe a carta de aceite, Ana.
– Mãe, eu não vou...
– Cala a boca – minha mãe sussurrou de forma ameaçadora. – Está vendo? Você vai impedir que esta jovem participe do congresso, que ilumine com seu gênio...
– Mãe!
– Cala a boca! Ela é um gênio, mas é tímida. Que ilumine com seu gênio as trevas deste mundo contemporâneo

materialista e consumista, assolado pela repressão, pelo fundamentalismo, pelas guerras...
– Mãe, isso não tem nada a ver!
– É verdade, moça, desculpe, me deixei empolgar, sabe, sou advogada... Aliás, se a razão não for suficiente, talvez a lei possa convencê-la... Os tratados internacionais...
As Nações Unidas... A UNESCO...
Devo dizer que minha mãe muitas vezes me deixa sem graça. Nunca vi ninguém mentir de forma tão deslavada. Admito, porém, que na maioria dos casos dá certo, nem que seja por exaustão do interlocutor: de fato, naquela mesma tarde, Ana e eu embarcamos. Nossos pais nos encontrariam no dia seguinte.

O primeiro avião ia para Atenas, de onde faríamos conexão para Istambul.

urante o voo para Atenas, fiquei lembrando de uma conversa que tinha tido com meu pai em Roma. Ele escreve artigos de divulgação científica para periódicos internacionais e é muito bom no que faz. Sabe tudo de ciência... Perguntei se gostava de antiguidades, e ele respondeu:
– Claro, Carlos, gosto tanto que, quando adolescente, queria ser arqueólogo.
– Mas... achei que você gostasse de ciência... Você
parece tão conformado, hã, tão feliz com o que faz...

– Eu gosto muito de ciência, mas sonhava com a arqueologia. Descobrir monumentos, imagine! Cavar e desenterrar uma pirâmide, ou a própria Troia! Os maias, os incas, os povos pré-históricos... Desvendar mistérios antigos, encontrar tesouros perdidos; não pelo dinheiro, entende, mas pela maravilha, o segredo, a vida de milênios atrás chegando até nós! Falar com o passado... Você bem que entende isso, não é? Conhecer a Roma Antiga!
– E por que não estudou arqueologia?
– Estava difícil, não tinha na minha cidade, eu teria que estudar fora, e à época bolsa de estudo era uma coisa rara... Não quis ser um fardo para meus pais... Você sabe como eles são legais, fariam de tudo para me bancar, mas não achei justo. Eu era bom em ciência, então... Gosto do que faço. Acho a ciência uma coisa maravilhosa, tão maravilhosa quanto os mistérios do passado. Ainda assim... Às vezes, em sonhos, estou numa escavação, numa aventura tão fabulosa quanto as de Indiana Jones!
Fiquei pensando. Curioso, ele parecia satisfeito com seu trabalho, e na verdade eu o achava um homem não muito dado à imaginação – diferente de mim, que, como é sabido, vou ser escritor. Ou músico? Ou as duas coisas?
No mesmo dia, perguntei a minha mãe se ela gostava do trabalho dela. Comecei a falar já arrependido. Para quê? Nunca vi mulher mais satisfeita consigo mesma do que minha mãe. Adora seu trabalho, seus smartphones, seus processos e, devo dizer, o dinheiro que ganha. Não que ela não seja legal: gosta dos animais, por exemplo, e é bem-humorada, uma pessoa simpática. Sem pensar, rápida como sempre, ela respondeu:

– ADORO meu trabalho! É tudo o que eu sempre quis!
Até aí, tudo conforme eu esperava. Não esperava, porém, o que ela acrescentou em seguida:
– Ainda assim... Sabe, nunca contei para ninguém, até tinha esquecido, mas, quando adolescente, li um livro de mitologia grega e romana e, coisa boba!, quis ser arqueóloga. Imagine, eu! Nada a ver. Mas quis muito, cheguei a pegar informações sobre os cursos... Depois, felizmente, conversei muito com meu pai, com meus amigos e tirei aquilo da cabeça: fiz vestibular para direito, fui a primeira do meu curso e...
– Eu sei, mãe, já me contou, ganhou medalha e tudo.
– Sim, é isso, mas às vezes ainda sinto algo diferente quando vejo certos monumentos...
– Já falou sobre isso com meu pai?
Olhou para mim com certo espanto.
– Com seu pai? E pra quê? Seu pai é ótimo, mas só pensa em ciência, é quase pior do que sua irmã! Não tem um pingo de imaginação.
No avião, fiquei remoendo essas conversas. Tirei duas conclusões. Uma é que as pessoas muitas vezes não são o que aparentam, ou, pelo menos, não o tempo todo; não conhecemos plenamente ninguém, nem a nós mesmos (é um pouco assustador, mas acho que consigo lidar com isso). A segunda surgiu enquanto falava com Ana.
– Ana, você gosta de ciência? Gosta mesmo?
– Seu bobo! Claro que gosto! E sou boa nisso, eu sei! (Sempre modesta, a irmãzinha.) Já você...
– Não precisa ofender. Você sabe muito bem que não gosto dessas chatices, e nem sei se você é tão boa assim...
– Babaca!


– Agora, por favor, se você quer estudar ciência, estude mesmo! Não deixe que ninguém te diga “faça isso, faça aquilo!”. Seja você mesma!
Pelo menos uma vez, Ana ficou sem saber o que dizer. Encostei na poltrona, fechei os olhos, dormi satisfeito.

Acordei quando já estávamos descendo em Atenas. Nem deu para conhecer a cidade (Puxa! O Parthenon!), porque ficamos muito pouco tempo, menos de duas

horas, depois embarcamos para Istambul , de onde voltaríamos para Esmirna. Até que enfim! Só mais duas horas e pouco de voo, mais o tempo da conexão, e chegaríamos lá, com fuso horário de uma hora a mais em relação a Roma (como diz Ana, eu realmente gosto de detalhes inúteis).
Sim, estava tão agoniado, tão angustiado, queria chegar logo... Tentei ler, o tempo não passava. Fiquei ouvindo música, sempre a mesma coisa, tirei os fones e fiquei me mexendo na cadeira. A verdade é que... estava cansado! Desde cedo, as malas, aquela maluquice, o aeroporto... Aliás, eu estava entediado! O tempo andava a um segundo por hora! Muito pior do que nas piores aulas, aquelas que te dão vontade de largar a escola para sempre. E olhe que sou paciente e gosto de estudar, mas tudo tem um limite!
Queria chegar, largar Ana com os cientistas malucos dela e ir passear, ver as ruínas, pisar nos lugares por onde Aquiles caminhou! Ver as salas do rei Príamo! Fiquei mexendo na mochila. Nada. Tudo já lido, tudo já visto. Ana estava lendo algo chato de alguma ciência complicada. Tentei puxar assunto. Nada: – Ô Carlos, deixa eu ler! O negócio é incrível! Sabe, os antiprótons... – Hã. Incrível mesmo. Mas escuta... – Depois, depois, agora não posso. Ceeerto. Ela não me deixava falar, então eu estava autorizado: meti a mão na sua mochila para ver se encontrava alguma coisa. Algo para ler, para comer, o que fosse. Encontrei algo estranho. Puxei e, assustado, vi que estava segurando o agregador, um pequeno aparelho que

Ana tinha levado do laboratório subterrâneo do Gran Sasso2 e que de alguma forma, nem de longe entendo como, tinha sido responsável por nossa viagem ao passado – e também, felizmente, por nossa volta ao presente.
Sacudi o braço de Ana, que olhou para mim com raiva (e cara de maluca).
– O que foi agora?
– Poxa, Ana! O que é isso?
– Mas é óbvio, não está vendo? É o agregador.
Tudo simples, tudo lógico para ela.
– Mas... para quê?
Ana respondeu muito calmamente, devagar, como se eu fosse abestalhado:
– Ainda que nossa mãe ande espalhando mentiras, é claro que não vou falar no congresso. Ninguém me deixaria nem abrir a boca. Por enquanto, não tenho cacife... Mas pensei que posso procurar algum físico quântico, alguém que trabalhe com a teoria dos universos paralelos, cordas temporais, e contar o que houve, mostrando o agregador.
Fiquei nervoso e preocupado.
– Qualquer um te acharia maluca, te botaria à força num hospício turco e você ficaria tomando drogas para dormir até 2040. De quebra, eu ia preso também. E o sujeito ficaria com o agregador – que, claro, você deveria ter devolvido – e logo em seguida te passaria a perna e anunciaria a descoberta mais revolucionária do século XXI,

2 Perdidos no tempo: Dois brasileiros na Roma Antiga. (N. E.)

aliás, do milênio. Fique na sua, estude e depois você mesma apresenta o resultado!
– O laboratório explodiu, e o agregador, se eu não levasse, se desintegraria... Mas, sim, você talvez tenha razão... Pode ser. Até que você não é tão bobo assim...
Ficou matutando, enquanto eu, sem nem me dar conta, mexia no agregador. Era um trequinho estranho, cheio de pequenos botões, fios e desenhos que pareciam minúsculos.
– Carlos, não brinque com o aparelho!
– Calma, não sou criança! Só queria entender como funciona... Onde é que liga? Nossa, você é esperta mesmo, para saber mexer nessas coisas! (Nada como uma boa bajulada...)
– Sim, claro, é complicado... Se quiser, depois te explico um pouco do que ele faz. Veja, ele liga aí mesmo, mas não aperte!
– Agora entendi! Aqui, né?
Nesse momento, uma turbulência fortíssima e repentina sacudiu o avião. Sacudiu? Mais do que isso: pegou o avião pela cauda e o revirou de todo jeito, como se estivesse dentro de um liquidificador enlouquecido. A aeronave rodopiou e saltitou, num tsunami cósmico, e caiu num redemoinho.
Gritos, objetos caindo, pessoas arrastadas de seus assentos – antes, com o voo tranquilo, muitos estavam sem cinto ou andavam pelo corredor –, as máscaras de oxigênio pulando na cara dos passageiros, as mesinhas batendo, os ouvidos doendo, zumbidos, o caos. Tonto de medo, apertei com força a mão direita, que segurava o agregador. Com a mão livre, agarrei o braço de Ana e comecei a falar, aliás, gritar:
– Ana, acho que...

Então fui arrastado por um turbilhão muito pior, rodando como um pião atômico de cabeça para baixo, para os lados, para todo canto: um furacão de proporções inacreditáveis. Me senti puxado e esticado e encolhido, faixas de luz e cor correndo ao meu redor com um barulho insuportável, sem alto, sem baixo, sem lados. Barulho, cores, luzes.
Breu.

cordei com a cara enfiada na areia. Cuspi, virei para o lado, me belisquei... – parecia vivo. Um peso: era minha mochila, que, estranhamente, continuava presa no meu braço. Levantei a cabeça, que doía horrores, como todas as demais partes do corpo. Que trem teria passado por cima de mim? Com muito trabalho e alguns ais, consegui levantar. Aí vi que ainda estava segurando o agregador, que guardei na mochila. Lembrei. O avião. A queda. O agregador. Olhei ao redor, procurando Ana – onde eu estava? Onde estava ela? E o que tinha acontecido? Não podia ser que...
Finalmente, encontrei Ana, deitada debaixo de uma pequena moita. Corri na direção dela, que estava desmaiada, mas viva! Abracei minha irmã e consegui acordá-la.
– Ana, Ana! O que aconteceu? Você está bem?
– Não sei. Morri.
– Isso eu acho que não. Mas não sei onde estamos.
– Você acionou o agregador?

– Eh... não sei... talvez... Sabe, a turbulência...
– Idiota! Tomara que não tenhamos viajado no tempo!
– Não, claro que não!
Ela me olhou com raiva.
– E cadê o avião?
Sim, onde estava o avião? Não havia destroços ao redor.
– Mas, Ana, ainda que seja, e nem sei se aconteceu mesmo, acho que o avião ia cair... Antes vivos em algum tempo que mortos num desastre aéreo!
– Tá, tá, desculpe (milagre!), estou nervosa... Você tem ideia de onde, e quando, estamos? Também, pode ser que o agregador só tenha nos deslocado no espaço, e não no tempo! Cadê meu manual de física quântica?
– Ana, sinto muito... só temos o que está aqui conosco. Minha mochila, o que está nos meus bolsos e nos seus.
– Então vamos andar um pouco, ver se encontramos algum destroço, uma placa, alguma indicação.
– Sabe, de repente só nos deslocamos um dia ou dois, nada demais...
– Tomara... – disse ela, mas com cara de quem não acreditava muito.
O lugar era muito bonito: estávamos num pequeno promontório, de onde se via um mar maravilhoso, de um azul intenso. Tudo muito calmo, muito silencioso; soprava um vento leve que não parecia nada ameaçador. Haveria pessoas? Onde? Eu estava com fome, assustado, mas ao mesmo tempo curioso e animado.
– Carlos, estou com fome! Você tem alguma coisa para comer, ou só inutilidades?

– Não, na mochila só tenho... Nada de inútil, certo, a Ilíada, mas... Vamos ver se tem alguma árvore, algum fruto...
– Olhe ali, não é uma figueira?
Corremos para perto da árvore. Era uma figueira, sim! Subi rapidinho e peguei um bocado de figos, que passei para Ana, contando:
– Sabe, a Turquia produz uva e figos quase desde a préhistória, e...
– Que bom, significa que pelo menos não estamos na pré-história! Agora, pare de ser pedante, suba um pouco mais e veja se consegue avistar algo ao redor, pessoas, cidades!
Bem, ela podia ter razão. Subi por entre as folhas – era uma figueira muito alta, de quase dez metros – e, quando emergi da folhagem, lá no topo, quase caí. Não por ter perdido o equilíbrio, mas pelo susto: nada de aldeiazinha. Nada de cidade. Nada de pessoas indo tranquilamente à praia, com guarda-sóis coloridos, frescobol, crianças. Nada de singelos pescadores.
Não. Lá embaixo, na praia, numa parte do litoral que antes não dava para avistar, vi navios: não um ou dez, mas inúmeros, centenas, mais de mil! A praia toda estava tomada por navios pequenos – caberiam talvez cinquenta ou sessenta pessoas na maioria deles, mas havia alguns maiores –, equipados com velas e remos, que formavam como que a metade de um círculo enorme e abrigavam tendas, muitas, muitíssimas, para além de onde eu conseguia enxergar. Havia pessoas ao redor, lá longe, e... Lembrei de meu binóculo, mas, quando desci um pouco para pedir a Ana que o pegasse na mochila, apoiei o pé num galho quebrado e comecei a cair.

Felizmente, um galho maior me segurou: fiquei enganchado nele, de forma um pouco ridícula. Resolvi descer, com o coração retumbando – pela queda e, mais ainda, pelo que tinha visto.
– Eh, Ana...
– Carlos, você se machucou? Está todo arranhado!
– Caí, mas consegui me segurar num galho. Esqueça! É que...
– Toma um figo. Estão deliciosos!
– Sim, mas...
Peguei o figo. Estava mesmo com fome. Mas em pânico!
Engoli o figo. Bom mesmo. Senti certo bem-estar, uma sensação ao mesmo tempo de cansaço e paz.
– Passe outro!
Engoli o segundo e, enquanto pegava um terceiro, pensei: “Onde será que viemos parar?”.
Comecei a falar, ainda mastigando um daqueles figos maravilhosos – as boas maneiras não importavam muito naquela situação.
– Ana, sabe, vi uns navios...
– Ótimo! Vamos lá falar com eles. Devem entender um pouco de inglês! Ou seu famoso grego...
– Ana, são muitos.
– Quantos?
– Não sei, parecem... centenas, mais de mil, sei lá.
Arregalou os olhos.
– Mil? Mas... é um grande porto? É o quê?
– Parece algo um tanto... antiquado.
Ana ficou branca e não conseguiu falar nada. Isso só acontece quando ela fica seriamente perturbada. Era o caso.
Tomei fôlego e continuei:

– Não tenho certeza, sabe, mas parece... Digo, não parecem navios muito novos... Parece que têm remos –mas, de repente, aqui é um lugar um tanto atrasado! Ou está havendo uma competição, alguma coisa de esporte...
Ana engoliu em seco, e eu podia ouvir distintamente o barulhinho produzido pelo cérebro dela – fórmulas, cálculos, probabilidades...
– E qual competição de remo acontece com milhares de navios na Turquia? Que besteira, Carlos! Vou subir para olhar.
– Mas eu não disse que já vi?
– Quero ver também. Você não disse que ia trazer um binóculo?
Ajudei-a a subir, e, quando ela olhou pelo binóculo, deu um pequeno grito.
– Carlos, não sei o que é, mas os navios e as tendas parecem bem primitivos! E consigo enxergar alguns homens, soldados, com uma espécie de armaduras bem brilhantes, lustrosas, espadas e umas lanças compridas!
– Eh, Ana, de repente estão rodando um filme histórico, tipo O gladiador ou A Guerra de Troia! – sugeri, com súbito entusiasmo.
– Poderia até ser, mas não vejo nada de moderno, nem carros, nem pessoas com roupas normais, nem câmeras... Engoli em seco. De repente, um pensamento me atravessou a cabeça. Um filme sobre Troia, eu tinha dito. E, se não era um filme...
– Aaahhhh! – gritei.
– O que é?!
– São navios de guerra?
Eu não sabia como falar.


– E como é que vou saber? Mas, sim, já te disse, tem soldados.
– Eu... eu acho...
– Desembuche logo! O que é?
– Ana, acho que é ... a... a Guerra de Troia! Parei para respirar. “Sim, é a guerra mesmo!”, pensei. Isso. Não tinha jeito. Não, não... teria jeito, sim. Nós éramos bons! Outra hora eu conto, mas em Roma conseguimos nos safar do circo, dos leões, do imperador maluco, do vulcão... E éramos bons porque estávamos juntos. Ela, com a ciência; eu, com a história, os idiomas e, modéstia à parte, a inteligência. Sim.
Ana ainda estava sem fala. Aproveitei para continuar.
– E se for mesmo, Troia está a uns seis quilômetros do litoral, pelo que li... Aqueles ali seriam os navios dos gregos, que sitiam a cidade!
Ana conseguiu voltar a falar:
– De... de que época é mesmo a Guerra de Troia?

– Há opiniões divergentes, mas hoje em dia, segundo a maioria dos historiadores, devemos acreditar em muitos dos dados contados por Homero, e pensando em Schliemann, o arqueólogo que descobriu a cidade antiga em 1872... – CARLOS!
– Sim, desculpe, eu acabo me empolgando. Enfim, parece que a cidade foi destruída pelos gregos em 1184, ano mais, ano menos, enfim, 1200.
– Ué, mas então eram bem primitivos! Pensei que na Idade Média houvesse muito mais tecnologia!
– Ah... ééé... sabe, Ana, sua ignorância é... Eu quis dizer 1200 antes de Cristo!
Não sei bem o que aconteceu, mas ouvi um barulhão, vi folhas se mexendo, galhos se partindo e Ana voar para baixo, na minha direção. Abri os braços e segurei minha irmã. Claro, caímos ambos no chão, mas nenhum dos dois se machucou muito.
Ana se levantou, ainda trôpega, e pela primeira vez senti medo. Olhou para mim com uma raiva descomunal. Depois caiu ajoelhada na grama, começou a golpear o chão com os punhos e gritou:
– Não pode ser! Carlos, como foi acontecer isso? Estamos a mais de 3000 anos de casa!
Fui para perto dela.
– Ana, eu sei, é terrível, mas... 800 anos de casa, 3000, tanto faz... E vamos conseguir sair dessa! Ainda temos o agregador! Vamos tentar acioná-lo!
Peguei o agregador, segurei com a outra mão o pulso de Ana e apertei o botão. Nada. Tentei de novo. Nadica. Teria quebrado? Sacudi um pouquinho e fechei os olhos. Nadíssima.

Ana falou, com raiva:
– Não, besta, ele só funciona quando tem algum movimento extraordinário das moléculas, não sei por quê... Terremoto, vulcão, turbulência tipo tempestade... Temos que aguardar algo desse tipo... Se é que não acabou a carga, ou alguma coisa quebrou, sei lá... Nunca mais vamos sair daqui!
Tentei parecer positivo. Mas estava um tanto desanimado.
– Olha, vamos fazer assim: vamos descer, conversar com alguém, encontrar um lugar para dormir e depois pensaremos em alguma solução. Você não é um gênio?
Vai resolver tudo, mais uma vez!
– Obrigada, mas estou me sentindo uma perfeita idiota. E como vamos conversar com esse povo? São uns primitivos! Eles vão é nos cortar em pedacinhos logo que chegarmos!
Começamos a caminhar em direção à praia.
– Ana, veja, primeira coisa, ainda bem que você cortou de novo o cabelo... Você vai ser meu irmão, entendeu? Em algum momento, Aquiles e Agamemnon brigam feio por causa de uma escrava, e não quero que você vire escrava de nenhum reizinho grego!
Me empertiguei: – Vou te proteger, tá?
– Confesso que me sentiria mais segura com Júnior ao meu lado... mas obrigada. Precisamos de nomes. Como vamos nos chamar?
Me calei enquanto descíamos por uma ladeira um pouco íngreme – a visão do mar era maravilhosa, e impressionante a quantidade de navios na praia, enquanto o sol baixava aos poucos atrás de nós. Senti medo, desconforto
– e paz. Estaria ficando maluco?

– Você poderia se chamar Aníquetos, que significa “invencível”, gostou?, e eu, Cariton, que foi um romancista grego antigo. Que tal?
– Vamos viver tão pouco, que isso nem importa muito.
– Espera, espera, tive uma ideia! E se der certo...
– O quê?
– Você vai ver.
Nos aproximamos do campo dos gregos. Era mais do que uma cidade: enorme, com tendas de todos os tamanhos e cores, divididas por blocos que, imaginei, deviam ser os exércitos das várias cidades. Um soldado estava de guarda e falou algo que reconheci vagamente como “Alto lá!”, levantando ameaçadoramente a lança que segurava com a mão direita.

lá, meu bom homem, somos embaixadores de uma cidade muito distante e gostaríamos muito de falar com Agamemnon, seu chefe!
Rezei para ter aprendido bem o grego que estudei antes de viajar... Por que não tinha decorado aqueles outros verbos?
– Agamemnon? Dois meninos? O que querem com o grande rei dos aqueus? – (Aqueus eram os gregos, acho.)
– São espiões ou o quê?
– Não, corajoso soldado, não somos espiões. Somos, já disse, embaixadores vindo de muito longe, e o rei, nosso
COLEÇÃO
HISTÓRIAS
DENTRO DA

coleção Histórias dentro da História e seus protagonistas Carlos e Ana nasceram quase por acaso, fruto do amor da autora pela história e do fascínio que sempre sentiu pelas viagens no tempo – que para ela, cientificamente possíveis ou não, são sensacionais! Carlos e Ana se completam: um é tagarela e gosta de artes; a outra é metida a durona e gosta de ciências – mas, ao mesmo tempo, Carlos tem um lado prático, enquanto Ana tem uma relação privilegiada com os animais, com o irracional e, timidamente, se encanta com as pessoas. Juntos, eles simbolizam a necessidade que temos do outro, a honestidade e a ternura para com todos os seres, sem pieguice, além da vontade de conhecimento e da curiosidade em relação a diferentes tempos, culturas e povos. Por isso, os gêmeos, em suas aventuras, mergulham nas ondas do tempo e, juntos, conseguem enfrentar todo tipo de situação e perigo. Neste livro, os irmãos vão parar na Grécia – bem ali, onde os soldados de Odisseu, o rei de Ítaca, constroem um gigantesco cavalo de madeira para invadir Troia...