Leonardo Avritzer
O GOLPE BATEU NA TRAVE
Democracia, ordem e desordem no Brasil
Leonardo Avritzer
O GOLPE BATEU NA TRAVE
Democracia, ordem e desordem no Brasil
Copyright © 2025 Leonardo Avritzer
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editoras responsáveis
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Cecília Martins
revisão
Lívia Martins
capa
Diogo Droschi
diagramação
Guilherme Fagundes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Avritzer, Leonardo
O golpe bateu na trave : democracia, ordem e desordem no Brasil / Leonardo Avritzer. -- 1 ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.
ISBN 978-65-5928-643-0
1. Autoritarismo - Brasil 2. Bolsonaro, Jair Messias, 1955- 3. Ciências políticas 4. Democracia - Brasil 5. Estados Unidos - Aspectos políticos 6. Golpes de Estado I. Título.
25-306216.0
Índices para catálogo sistemático:
1. Autoritarismo político : Ciência política 320
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
CDD-320
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11 capítulo 1 – Democracia e autoritarismo no Brasil: entre a ordem e a desordem
39 capítulo 2 – Jair Bolsonaro e o Brasil
59 capítulo 3 – Por que a democracia brasileira sobreviveu
93 capítulo 4 – Da desordem nacional à nova desordem internacional
105 Conclusão – O julgamento e o futuro da democracia
119 Referências
INTRODUÇÃO
O Brasil possui um complexo processo histórico de formação nacional que não foi capaz de gerar uma construção democrática estável e duradoura. Nos últimos cem anos, realizamos diversas tentativas de edificação da democracia com resultados contraditórios: entre 1930 e 1935, tivemos um breve suspiro democrático, seguido de uma ruptura que contou com forte apoio de parte significativa da intelectualidade daquele período.1 Após oito anos de Estado Novo e impulsionada pelos ventos democráticos do pós-guerra, a democratização de 1945 despertou forte otimismo, mas não demorou muito para que o país voltasse a enfrentar soluços antidemocráticos. Por fim, tivemos a experiência autoritária inaugurada com o golpe de 1964, que, mais uma vez, contou com apoios importantes nos campos cultural e intelectual. Foi apenas na segunda metade dos anos 1970 que o espírito democrático voltou a tomar conta dos intelectuais, da sociedade civil e do país como um todo.
1 Alguns intelectuais bastante influentes naquele período, como Azevedo Amaral e Oliveira Vianna, apoiaram Getúlio Vargas, e outros, como Sérgio Buarque de Holanda, tiveram dúvidas em relação à vocação democrática do país e expressaram essas dúvidas em escritos importantes, como na primeira edição de Raízes do Brasil (Feldman, 2015).
Tudo parecia indicar que o otimismo em relação à democracia restaurada entre 1985 e 1988 teria um fôlego muito mais profundo do que aquele vivenciado em 1945. E, nos primeiros 25 anos dessa nova vida democrática, tivemos fortes razões que ancoravam essa sensação. Mas a década passada, a segunda do novo século, deu-nos motivos para questionar se o país pode experimentar, como muitas outras nações do mundo, uma construção democrática sólida e constante. Os eventos que se seguiram a junho de 2013 ou às eleições de 2014 apontam para uma estrutura democrática pouco sólida, com diversos atores com arroubos autoritários ocupando lugares de destaque na cena política.
Jair Bolsonaro e o bolsonarismo, que não são a mesma coisa, foram capazes de mudar a trajetória de uma construção democrática exitosa, a mais bem-sucedida nesses quase cem anos que nos separam de 1930, quando os primeiros impulsos democráticos se expressaram na nossa esfera público-política. É verdade que o bolsonarismo não surgiu do nada, mas foi expressão dos insatisfeitos com a democracia, com a mobilidade social e com um projeto amplo de inclusão social. É inegável, porém, que o bolsonarismo seja a radicalização antidemocrática desse projeto, como foi possível perceber a partir de 2019. Os anos que se seguiram à eleição de Bolsonaro agravaram esse cenário até chegarmos a uma tentativa explícita de golpe. Uma minuciosa investigação da PF (Polícia Federal) e do MPF (Ministério Público Federal) desvelaria a tentativa de golpe ocorrida em 2022 protagonizada pelo próprio presidente da República, sem que, surpreendentemente, houvesse mudanças significativas no apoio a ele. Pesquisa Datafolha de dezembro de 2023, feita um ano após a derrota de Bolsonaro nas urnas, mostrou que os eleitores não haviam mudado de posição em relação ao voto destinado a ele nem em relação ao voto no presidente Lula (Nove em cada dez brasileiros..., 2023).
Complementando o quadro, pesquisa do Instituto da Democracia2 mostrou em 2024 um aumento do número de brasileiros que apoiavam um golpe militar em determinadas situações. Assim, podemos afirmar com base nesses dados que a construção democrática no Brasil é contenciosa e que a democracia é um valor em disputa. Este livro procura oferecer uma resposta teórica a essa questão e apresentar uma visão conceitual e sintética sobre os dilemas da democracia no país. É dividido em quatro capítulos: no primeiro, busco enfrentar a questão sobre por que a construção democrática no Brasil tem sido tão problemática ou contenciosa. Voltarei a momentos-chave do último século para responder a essa pergunta. No segundo capítulo, realizo uma análise midiática e linguística de Bolsonaro e do bolsonarismo, entre a reconstrução biográfica e a análise linguística midiática, para mostrar por que essa linguagem se tornou tão popular no país. No terceiro, explico o que é um golpe e por que Bolsonaro quase conseguiu impor mais um ao país. Por fim, o quarto capítulo aponta para uma questão que esteve presente nas discussões dos anos 1930 e que volta com força agora: os elementos internacionais que reforçam os setores antidemocráticos do país.
2 Instituto da Democracia é um consórcio de pesquisadores do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), da Universidade de Minas Gerais, da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual de Campinas com o objetivo de pesquisar os hábitos democráticos da população brasileira.
CAPÍTULO 1
Democracia e autoritarismo
no Brasil: entre a ordem e a desordem
A identidade nacional brasileira foi construída por meio de um processo complexo e multifacetado que não foi capaz de conciliar coesão social com institucionalidade democrática. No último século, realizamos diversas tentativas de construção democrática com resultados contraditórios: entre 1930 e 1935, entre 1945 e 1964, e de 1985 até hoje. Não há nenhuma dúvida de que esta tem sido não apenas a mais longeva experiência democrática como também a de melhor qualidade. Ainda assim, vivemos desde 2013 ou 2014 um período de instabilidade democrática com profundos ataques à democracia, que encontram apoio nas elites e na opinião pública. A reverberação de um discurso antidemocrático na opinião pública constitui motivo de preocupação e indignação para todos os democratas e demanda investigação política e sociológica sobre os motivos que fizeram e fazem a construção democrática brasileira ser tão instável. Neste capítulo, volto à indagação histórica sobre a relação entre os brasileiros e a democracia, que constitui parte da discussão dos principais intelectuais brasileiros desde os anos 1930. Lanço mão da noção de Sérgio Buarque de Holanda da construção da ordem a partir da desordem para tentar localizar esta discussão. Mostro que a articulação entre democracia, ordem e desordem
está em disputa no Brasil desde o início do pós-guerra e que o bolsonarismo mudou alguns dos termos com os quais esse debate foi tratado entre 1930 e 2014.
A democracia e o pensamento
brasileiro entre 1930 e 1980
No período que vai da Independência ao final do século 19, o Brasil não foi um país democrático nem tentou sê-lo. Aqueles anos foram marcados pela continuidade de uma série de elementos da sociedade colonial, entre os quais a escravidão e a presença da dinastia portuguesa, que passou a governar o país durante o Império (Costa, 1997). Foi nesse momento que o Brasil consolidou suas fronteiras e se afirmou como o maior país da América do Sul. O período também é marcado pela forte influência do iberismo e das formas de sociabilidade decorrentes da colonização portuguesa, que formou alguns elementos fundamentais da identidade e da coesão nacionais, como a ideia de um país miscigenado – embora essa miscigenação fosse vista ainda de maneira negativa, algo que exploro mais adiante neste capítulo – e de um povo que carrega certa leveza ou alegria em sua maneira de ser, ainda que essas características venham a ser intensamente questionadas no futuro, especialmente na polarização verificada no pós-2013.
É no período que se inicia com a Semana de Arte Moderna de 1922 e vai até o fim do regime militar, em 1985, que a vontade democratizante se manifesta na procura por valores e instituições que expressassem uma sociabilidade horizontal e viabilizassem a soberania popular. Em 1922, o Brasil já havia completado cem anos de independência, e algumas de suas características, como a dimensão territorial e a diversidade da população, já estavam consolidadas. No entanto, o aspecto fundamental da Semana de Arte Moderna é a reinterpretação
da identidade brasileira, que passa a ser vista como menos vinculada à herança portuguesa ou ibérica. A partir desse evento, busca-se estabelecer um novo conjunto de referências que, embora internas, dialogam com uma gama muito mais ampla de países, ultrapassando os limites ibéricos.
A Semana de Arte Moderna não pode ser vista apenas como um evento literário ou poético, mas compreendida como um marco que transformou profundamente a interpretação do Brasil a partir dos anos 1930, quando varguismo e modernismo se associam (Candido, 2023). Nesse contexto, a primeira grande modificação trazida por esse movimento é a mudança de perspectiva: em vez de enxergar como deficiências um conjunto de especificidades do país – como a diversidade racial –, começa-se a reconhecê-las como possibilidades ou, até mesmo, como elemento de superioridade ou fonte de uma coesão social particular.
Essa superioridade será compreendida não no âmbito da cultura das elites, mas no da cultura popular. Como demonstrou muito bem Antonio Candido em sua análise de Macunaíma, livro de Mário de Andrade. Essa obra, fundamental para a compreensão do período, representou uma maneira de “compilar alegremente lendas populares, obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular e atitudes em relação ao europeu. O livro revela que, para cada valor aceito pela tradição acadêmica oficial, existia um valor recalcado na tradição popular que precisava ser resgatado e reconhecido” (Candido, 2023, p. 145). Foi nesse contexto que uma nova concepção de coesão social emergiu e que o mulato e o negro foram definitivamente incorporados à tradição brasileira. O mais importante em relação a todos esses elementos da cultura é que eles deixam de ser tratados apenas do ponto de vista cultural e passam a ser abordados de forma mais ampla, especialmente sob uma perspectiva sociológica. Vale destacar obras como Casa-grande
& senzala e Raízes do Brasil, entre outras da tradição sociológica e política, que marcaram a interpretação do Brasil ao longo de todo o século 20. No entanto, essa mudança fundamental não foi capaz de se associar nem a uma institucionalidade democrática nem a um processo de inclusão social mais forte da população negra até a nossa democratização.
A concepção novecentista de Brasil começa a ser substituída, no início do século 20, por uma visão bastante crítica da formação brasileira do século 19, marcada pela continuidade do colonialismo e da relação com Portugal. Ninguém sintetizou esses elementos tão bem como Sérgio Buarque de Holanda no primeiro parágrafo da primeira edição de Raízes do Brasil, uma passagem que se inicia com as nossas características naturais e termina com a necessidade de construir um país de características diferentes nos trópicos. Para o autor:
Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e subtropical... Trazendo de países distantes as nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo, e timbrando em manter tudo isso em um ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em nossa terra. (Holanda, 2015, p. 35)
O autor nos ajuda a entender a transição para uma concepção de povo brasileiro mais sofisticada que surge a partir de 1922. Algumas características são clássicas daquilo que podemos caracterizar como povo brasileiro, tal como entendido desde o começo do século 20, envolvendo termos como acomodado, alegre, criativo e otimista. Em relação à alegria, ela aparece em Macunaíma, fortemente associada à miscigenação, ao sincretismo e a uma forma de reação à dominação.
O próprio Mario de Andrade realizou uma análise sobre a relação do herói com as características que apareceram nessa fase de formação da identidade nacional. “Macunaíma não tem costumes indígenas, mas costumes inventados por mim e outros que pertencem a várias classes de brasileiros”, disse, em carta à Rosário Fusco, em 1928 (Olivieri-Godet, 2022). Assim, surge uma ideia de sincretismo e de alegria que vai marcar um período da formação da identidade brasileira, pensada a partir da chave resistência/alegria. Nas palavras de Santiago Ribeiro:
A consciência popular brasileira se faz inviolável, insubordinável, não se deixando invadir e dominar, é graças a este escudo brincalhão do riso e da malícia. [...] Esta alegria imotivada é a vingança do povo, sua revanche, contra a envolvente trama intelectual que se lança sobre suas cabeças, atribuindo a ele a culpa de nossos crônicos males. [...] Confesso que, para mim, a qualidade maior de “Macunaíma” é dar expressão à alegria brasileira. (Ribeiro, 1974)
Sobressaem aqui algumas das dimensões fundamentais ressaltadas por Mário de Andrade e seus intérpretes, que apontam para o fato de a alegria do brasileiro ser também uma forma de resistência de uma população que, no processo de formação social do país, foi oprimida, mas não se deixou dominar completamente.
Uma questão adicional aparece principalmente no que Sérgio Buarque de Holanda definiu como uma discussão protodemocrática, ligada ao que o autor denominou da “produção da ordem a partir da desordem”. Para Buarque de Holanda, a herança portuguesa envolvia elementos de desleixo ou de aversão a uma ordenação impessoal a partir de normas. Para ele, os elementos atrativos da sociabilidade brasileira, como a
cordialidade, não eram suficientes para a produção da ordem política. O autor apostava, já em 1926, que cordialidade e civilidade eram insuficientes para superar a desordem. “Em ‘Raízes do Brasil’, Buarque de Holanda supõe que ‘nossa desordem’, seria capaz de levar a um ‘tipo próprio de cultura’ e de renovar os destinos nacionais. Seria preciso organizá-la sem destruí-la: ‘ensaiar a organização de nossa desordem’” (Feldman, 2015, p. 1134).
Cabe destacar que esse momento de criação de uma identidade nacional passa por um diálogo com a análise de Brasilio Sallum Jr., que demonstrou convincentemente que a democracia nesse período constituiu, simultaneamente, uma aspiração social e uma realidade em gestação.
É como realidade em gestação que Buarque de Holanda afirma que “não é justo afiançar-se [...] nossa incompatibilidade absoluta com os ideais democráticos. Não seria mesmo difícil acentuarem-se zonas de confluência e de simpatia entre esses ideais e certos fenômenos decorrentes das condições de nossa formação nacional” (Holanda, 2015, p. 219). Essa sentença modificada junto de outras passagens para a edição de 1948 foi parte da onda otimista que varreu o país naquele momento. É possível afirmar que a posição de Buarque de Holanda foi entendida de forma mais otimista do que o seu conteúdo sugere. Afinal, o autor realizou apenas duas constatações na passagem acima: de que não existe uma incompatibilidade absoluta entre a formação brasileira e a democracia, um argumento que segue sua visão sobre a tensão entre iberismo e liberalismo, e de que há algumas compatibilidades, sendo a mais importante delas a aproximação entre a doutrina liberal e a presença do homem cordial na nossa formação.
A tese do autor de que existem poucos elementos liberais na formação brasileira é correta e merece elaboração, porque os elementos não liberais ou de um liberalismo extremamente
parcial se manifestam, recorrentemente, nos nossos conflitos políticos. Essa tese pode ser decomposta em elementos valorativos e institucionais. Buarque de Holanda se preocupou mais fortemente com os elementos valorativos, em uma perspectiva que podemos chamar de weberiana. Ou seja, a questão que se coloca aqui é se quando os indivíduos reagem a uma situação de conflito, eles o fazem com valores que são democráticos.
O autor nos dá duas dicas em relação a essa questão que nos ajudam a pensar a trajetória brasileira dos últimos cem anos.
A primeira delas, que está também em Mário de Andrade e em Antonio Candido, é que, em um processo de colonização hierárquico fundado em uma “instituição total” chamada escravidão, houve o desenvolvimento de uma cultura da resistência que se incorpora na sociabilidade como um valor positivo, capaz de ancorar comportamentos horizontais, aquilo que se denomina de “homem cordial”. Evidentemente, e Buarque de Holanda sabia disso, o homem cordial enquanto forma da sociabilidade não é capaz de ancorar o conjunto dos fundamentos que uma ordem democrática requer. Ele apenas estabelece um ponto de contato.
A segunda questão, então, é qual a relação entre valores e instituições. Se podemos pensar a política como uma forma de dominação ordenada em um território, a questão da política democrática se coloca quando existem divergências e surgem formas não democráticas ou não pluralistas de tratar essas divergências. Foi exatamente isto o que ocorreu do ponto de vista institucional no período entre 1946 e 1964. Foram diversas as tentativas de golpe, a maior parte delas vindas de um campo udenista que se entendia como liberal, mas que não pensava o liberalismo como um campo de direitos ou de pluralismo valorativo, isto é, como a existência desejável de pluralismo religioso e de uma tradição plural de formas de vida (Dulci, 1986).
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