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João Henrique Moreira de Faria

O desafio de produzir um texto, que hoje é seu e, após publicado, passa a ser de outros, recai sobre o autor com uma forte carga de responsabilidade. Primeiramente, por levar a muitos o atestado de sua existência, como reforça Foucault ao afirmar, em sua Aula Inaugural no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970: “[...] seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que escreve e inventa” (2014, p. 27). Ainda na perspectiva de Foucault - que trouxe em parte de seu texto a desculpa de que este autor precisava para a forma como pretende expor o assunto e escrever este texto -, o indivíduo, aqui lançado ao lugar de autor, “aquilo que ele escreve e o que não escreve, aquilo que desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, e que o deixa, vai cair como conversas cotidianas” (2014, p. 27). Aqui, em mais uma permissividade de autor, haverá um cruzamento dos escritos de Michel Foucault e os de Roland Barthes, como já revela o título deste texto. Permissividade porque, na perspectiva de quem lê os escritos destes, há uma liberdade de interpretação, de cruzamento de ideias, cujos contextos de produção, à época, podem ser diferenciados, mas que trazem o sentido necessário a outras esferas que contemplam parte do tema: o discurso de poder. “[...] acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico”, sentencia Barthes em sua Aula Inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Collège de France, em 7 de janeiro de 1977, indicado que foi pelo amigo Foucault. E Barthes segue e chega ao ponto em que, de forma literal, o Brasil encontra-se, 45 anos depois. Ele questiona, em oposição à ideia de que o poder é uno: “E, no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios?” (BARTHES, 1980, p. 11) E o próprio Barthes responde:

Meu nome é Legião´, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes ´autorizadas´, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância. (BARTHES, 1980, p.11)

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Eterno insatisfeito, Barthes define: “Chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o

recebe” (1980, p. 11). Aqui, uma parte daquilo que este texto irá discutir. O poder dos comentários, tão bem analisados por Foucault (2014), enlaçado a esta “culpabilidade” deste que recebe a informação e a reverbera, de forma cega - não mais o poder como meramente político, mas como um objeto ideológico. Contribuirão, de forma decisiva, e trazendo para a contemporaneidade, os escritos de Giuliano Da Empoli (2019), que serão trazidos à medida da necessidade, mas de forma especial à parte final deste texto. Assim, como inicialmente visto, caberá aqui uma análise despretensiosa, quase informal, sobre a forma, o direcionamento e o objetivo dos discursos do personagem Jair Messias Bolsonaro, alçado em 2018, pelas urnas, à Presidência da República no Brasil, e empossado em janeiro de 2019, cuja forma de comunicação com seus públicos é efetivada por, de um lado, aquilo que a imprensa e o público em geral passaram a chamar de “cercadinho”, e de outro, pelas já famosas “lives das quintas”. O que se pretende não é uma análise fria, muito menos literal, dos discursos ali proferidos, nem mesmo sua repetição, mas, como já escrito acima, uma visão particular, de autor, com todos os riscos, da forma – estética e comportamental – com que esta comunicação é feita; do direcionamento – públicos a que se destina e sua replicação; e dos objetivos – variados, por certo, mas que carregam uma linha de intenções, por vezes visível, por vezes enviesada. Segundo Barthes,

(...) plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas. (BARTHES, 1980, p.11)

Retomando a discussão sobre discurso, que aqui será sempre trabalhado em suas relações com “os poderes”, mais uma pista deixada por Foucault:

Suponho que em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. (FOUCAULT, 2014, p. 8-9)

Imaginar que Bolsonaro usa dos espaços do “cercadinho” e das “lives das quintas” de forma aleatória; imaginar que, em passado recente, o então deputado federal lançava impropérios contra adversários, defendia torturadores, atacava mulheres, homossexuais, ofendia quilombolas, enfim, imaginar que todas estas “performances” eram aleatórias, apenas arroubos de um “louco”, algo que deve ser deixado de lado, por ser menor, por ser tão absurdo que não ganharia ouvidos, que não teria público, que não seria repercutido em forma de concordância, mesmo que em submundos, em grupos marginalizados de extrema direita, que não ganharia reflexos no público em geral, configurou, por parte da classe política, em um primeiro plano, e da sociedade brasileira que aposta na vida democrática, em um segundo, um grave erro. E este será nosso ponto de partida.

Discurso e poder

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. (FOUCAULT, 2014, p. 9)

Uma das discussões mais constantes nestes mais de três anos do governo de Jair Messias Bolsonaro remete à liturgia do cargo, ou seja, àqueles comportamentos esperados de um chefe de Estado, de alguém que ocupa o cargo de presidente da República e que deve levar em conta em sua conduta privada e em sua conduta pública. Aqui não cabe aprofundar, mas vale lembrar, que boa parte daquilo que hoje presenciamos como discurso, ações de poder e, consequentemente, ações de natureza ideológica, vindos do presidente, são uma mistura visceral de público e privado. De deputado federal pertencente ao chamado “baixo clero” a presidente da República, muitos fatos colaboraram para a ascensão de Bolsonaro. O personagem já estava montado e ganhava sustentação à medida em que a família expandia seus braços para diversas esferas políticas e em dois estados importantes: Rio de Janeiro e São Paulo. Os filhos elegeram-se para cargos de vereador, deputado estadual, deputado federal e senador, ampliando o leque de ação no espectro político, com uma clara cor ideológica. Diversos episódios marcaram a marcha de Bolsonaro ao poder político. Cada um deles, causando uma revolta medida. Mesmo quando mais

exacerbadas, o máximo que suscitaram foram processos com indenizações, mas nada que chegasse a, por exemplo, uma cassação por falta de decoro parlamentar e mesmo uma eventual prisão por proferir discursos racistas – crime inafiançável –, ou defender a tortura e/ou pessoas que a ela foram ligadas no último período ditatorial do Brasil, como ao declarar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, em que elogiou o general torturador Carlos Brilhante Ustra. Voltemos ao discurso e, primeiramente, a Foucault. Para ele,

“Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (...) o discurso... não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo.” (FOUCAULT, 2014, p. 9-10)

Servidão e poder

Aqui, lanço mão de José Antônio Orlando e Vera Casa Nova (2021). “Para Barthes, o signo da servidão e o signo do poder se confundem inelutavelmente”, apontam. E completam: “...assim que é proferida, Barthes destaca, a língua entra a serviço de um poder” (ORLANDO, CASA NOVA, 2021, p. 82). Orlando e Casa Nova vão além, ao citar Étienne de La Boétie, e seu Discurso da Servidão Voluntária. A ideia de La Boétie é a de que liberdade e igualdade na dimensão política evidenciam “pela primeira vez na história a força da opinião pública” (ORLANDO, CASA NOVA, 2021, p.82). Neste sentido é forçoso pensar que, cinco séculos depois, estamos diante de circunstâncias que confirmam La Boétie, em especial quando ele afirma que:

Ver infinitas pessoas servindo em vez de obedecer, sendo tiranizadas em vez de governadas; sendo desprovidas de bens e parentes, mulheres e crianças, até mesmo de uma vida própria! Sofrendo as pilhagens, as obscenidades, as crueldades, não de uma armada, não de um exército bárbaro do qual devam, antes de tudo, defender seu sangue e sua vida, mas sim de um único indivíduo; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um reles homenzinho. (LA BOÉTIE, in ORLANDO, CASA NOVA, 2021, p. 82-83)

Incrível imaginar-se que, em um Brasil do século XXI, tantos atributos negativos vistos em um tirano do século XVI estejam evidenciados em

um governante. Mais curioso ainda é que este governante seja fruto das urnas. Claro que, para chegar ao poder, Bolsonaro construiu uma reputação de extrema direita, em sua atuação na Câmara Federal e em suas ações carregadas de obscenidades e crueldades. Despertou uma horda de seguidores, aparentemente adormecidos, que se dedicaram a repercutir e dar conhecimento a todas as suas falas. Bolsonaro soube aproveitar a oportunidade em que se projetou sobre a sociedade uma visão distorcida da realidade, que trouxe culpabilidade à política e seus atores, em um forte processo de demonização. À tal demonização somaram-se ações nos campos do Legislativo e do Judiciário, este último, da primeira à última instância. Processos passados à frente e julgados de forma sumária – hoje um a um caindo diante dos novos olhares e de uma espécie de “precisamos parar o monstro que despertamos”. Na mesma direção dos outros espaços de poder, a mídia convencional abriu espaços para um ataque jamais visto àqueles que ocupavam o poder. Foram peças fundamentais no grande jogo. Porém, nem a classe política liberal e conservadora, que compactuou com todas estas ações, nem aqueles que então ocupavam o poder, entenderam a forma de agir dentro do jogo. Já com exemplos vindos de outras partes do mundo, a extrema direita, representada no Brasil, de forma explícita, por Bolsonaro e seus filhos, entendeu bem o momento e agiu de forma a criar uma legião de seguidores e fazer o uso das redes sociais e, em especial, do WhatsApp, para disseminar não apenas as suas ideias, mas as notícias falsas, que contaminavam os espectros ultraconservadores, em especial em meio ao empresariado e a algumas lideranças religiosas, notadamente as neopentecostais. Da Empoli é preciso ao afirmar:

Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração.(DA EMPOLI, 2019, p. 21)

Para muitos - aqueles que não percebiam o que se passava ou mesmo que apenas lutavam nos campos convencionais contra o que estaria por vir -, o que estava diante de todos era o “discurso de um louco”. Aquele a quem não

se dá ouvidos. Aquele que profere uma determinada verdade, uma verdade própria, como qualquer verdade. Como afirma Foucault (2014, p.11), “[...] todo este imenso discurso do louco retornava ao ruído”. E o que é o ruído senão uma falha na comunicação? E assim foi entendido. Mas este ruído transformou-se em um grito. Um grito recheado de uma falsa indignação e que era devolvido à sociedade em forma de agressão, de violência.

O comentário

Ao analisar o comentário, ou seja, a maneira de o discurso tomar novas formas e fronteiras, Foucault insere três discussões que se encaixam perfeitamente ao “cercadinho” e às lives de Bolsonaro. Primeiro,

No que se chama globalmente um comentário, o desnível entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papeis que são solidários. Por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos discursos (...) por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. (FOUCAULT, 2014, p. 23)

Assim, qual o objetivo de Bolsonaro em seu “cercadinho”? Em primeiro grau, desmontar toda e qualquer iniciativa da grande imprensa, que para o presidente defende interesses diferentes daqueles de seu governo. Desqualificar a mídia convencional, exceção àqueles veículos que faziam e fazem o seu jogo, como o Grupo Record e o Grupo Jovem Pan. E como agem aqueles que comentam, que divulgam, que distribuem o seu discurso? Extrapolando o próprio discurso do presidente e passando a atacar os veículos de comunicação contrários a ele, além de toda e qualquer pessoa que também o seja, com a pecha de “comunista”, por exemplo. Foucault, já aqui no segundo aspecto da discussão que traduziria, hoje, as funções do “cercadinho” e das lives de Bolsonaro, reforça este caminho ao afirmar que:

O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certa forma realizado. (FOUCAULT, 2014, p. 24)

Para completar o já dito e dar a dimensão da importância do comentário, Foucault completa: “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (2014, p. 25). O discurso, o comentário e a retomada do discurso original. Um círculo vicioso, item terceiro, que envolve diversos personagens.

Ritual e doutrina

[...] o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que deve acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. (FOUCAULT, 2014, p. 36-37)

Nada melhor define as falas proferidas por Bolsonaro no “cercadinho” ou em suas “lives” que a ritualística por ele imposta. Um rito às avessas. Bolsonaro aposta no caos, tema que vamos explorar mais à frente neste texto, quando dedicarmos a análise aos escritos de Giuliano Da Empoli e seu Os engenheiros do caos. Aqui, no momento, busco destacar parte do texto acima de Foucault, em especial os “gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que deve acompanhar o discurso” (2014, p.37). Qual a marca da performance de Bolsonaro em seus discursos? Da famosa arminha feita com a mão, passando por ataques de nervos diante das câmeras e de jornalistas atônitos, ao abandono das coletivas quando o assunto não lhe agrada, à fala direcionada à claque do “cercadinho” e seus gritos frenéticos de “mito”. Tudo um grande jogo, no qual domina a cena, cumpre um papel imagético para a sua bolha – diga-se de passagem, uma bolha composta por pelo menos 20% do eleitorado – e enche de indignação, por hora sem efeito, todos os que esperam que cumpra aquilo que é o papel de um presidente. Se, por um lado, ainda segundo Foucault, “os discursos (...) políticos, não podem ser dissociados desta prática de um ritual” (2014, p.37), o que complementa seu pensamento também não pode ser desvirtuado, ou seja, o ritual “determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos” (2014, p.37). Aqui vem a distorção. Não há, em Bolsonaro, aquilo que poderia ser chamado, e voltamos ao as-

sunto, um cumprimento e respeito à liturgia do cargo. Se, por um lado, há propriedades singulares em seu comportamento e discurso, de outro não há o cumprimento de um papel pré-estabelecido, ou seja, abrir uma linha de diálogo com a sociedade brasileira como um todo. No entanto, há uma conduta adotada por Bolsonaro, na perspectiva de uma linha ideológica.

A doutrina (...) se serve de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros. A doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam. (FOUCAULT, 2014, p. 41)

Bolsonaro, não apenas faz, por meio de seus discursos, mas estimula, por sua vasta rede, um tipo de doutrina, com determinados tipos de enunciados, quase todos pobres, com intensa repetição. Ele cumpre o papel de ligar seus seguidores, de torná-los um só grupo, e, ao mesmo tempo, como define Foucault, diferenciá-los de todos aqueles que, de alguma forma, se opõem ao pensamento dominante em tais enunciados. E onde fica o discurso dentro deste caos? Ou melhor, como o caos pode definir uma conduta que tem em conta ritual e doutrina? Tudo parece muito rápido e, ao mesmo tempo, muito estagnado. Explico. De um lado, há uma velocidade nas respostas, quase todas desconexas, quase todas agressivas e direcionadas à geração de impacto negativo sobre o outro, em especial quando a mídia pressiona e, fato raro, enfrenta. Uma linguagem autoritária e ao mesmo tempo evasiva, onde conteúdo é elemento dispensável. Responde-se rápido e sem consistência, encerra-se com coletivas, até mesmo ofende-se quem pergunta, tornando uma mera entrevista em uma briga de rua, tudo para atender a um tremendo vazio, um domínio da ignorância e da falta de conhecimento, um desrespeito às relações e ao público. Daí ser necessário resgatar que

[...] parece que o pensamento ocidental tomou cuidado para que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a palavra; parece que tomou cuidado para que o discurso aparecesse apenas como certo aporte entre pensar e falar [...] (FOUCAULT, 2014, p. 44)

Assim, em um campo que tira a realidade de cena e desencadeia uma série de delírios, Bolsonaro e seus seguidores, em especial aqueles que também dominam espaços de repercussão, seja nos veículos convencionais, seja nas redes sociais, disseminam todas as teorias da conspiração, alimentam toda a ignorância, contaminam todo o ambiente, descartam o conhecimento e a ciência, por fim, buscam levar para o seu campo curto, estreito, em que a distância entre pensar e falar é mínima, em que a análise e a crítica ficam fora, todos aqueles que de alguma forma sentem-se alijados de uma sociedade que deve e precisa buscar a excelência e que, mesmo sem a presença deles, já encontrava-se ainda distante disso. E o discurso se perde. Porque ele nada mais é do que um rompante de momento. Um deixar fluir irresponsável, que leva ao atraso e à crença de que todos somos iguais na ignorância.

É Foucault, é Barthes… Mas é diferente

[...] o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões que eles produzem em nível internacional ilustram sua independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito. (DA EMPOLI, 2019, p. 17-18)

Faz-se necessário abrir para uma discussão – até mesmo por ser subscrita dentro de um contexto e marcada por fatos que determinaram os caminhos do que hoje vivemos e que são uma realidade não apenas do Brasil, mas de todo o planeta. Dar um descanso para Foucault e Barthes e introduzir uma leitura complementar e totalmente adequada de Giuliano Da Empoli e seu Os engenheiros do caos (2019). Até mesmo pela contemporaneidade, pretendo abrir aqui um novo caminho. Pois se até o momento vínhamos em uma análise que levava em conta uma teoria e buscava nela as linhas gerais para entender os descaminhos enfrentados pelo Brasil, neste tempo de pesadelo bolsonarista, agora a ideia é buscar algo que permita uma leitura com base na história política recente, mesmo que, ao fim e ao cabo, esbarre-se nas mesmas conclusões. Então, vamos.

Dizem que as coincidências existem. Uma data emblemática – 25 de fevereiro de 2013 – dá início ao capítulo 3 do livro Os engenheiros do caos (DA EMPOLI, 2019), intitulado Waldo conquista o planeta. Neste dia, o canal inglês Channel Four passa um episódio da série Black Mirror. Um urso, Waldo, é o apresentador de um talk-show, com um estilo ao mesmo tempo pesado e zombeteiro. No mesmo 25 de fevereiro, o Movimento 5 Estrelas, de extrema direita, concorria pela primeira vez às eleições italianas, conquistando 25% dos votos. Na série, enquanto o urso Waldo é sádico e bem-humorado, o ator debaixo da fantasia é pouco criativo. Convidado a participar de um debate e querendo recusar porque não teria argumentos, o ator – ou seria o urso – recebe como resposta para a falta de capacidade em argumentar: “Você é o alívio cômico”. Diante de quantos “alívios cômicos” estivemos nos últimos anos no Brasil? Um dos últimos rendeu a prisão de um médico brasileiro “engraçadinho” no exterior2. Outros são executados cotidianamente pelo presidente da República, ávido em rir de suas próprias piadas, em sua imensa maioria carregadas de preconceito, proferidas do “cercadinho” real ou das lives das quintas. Voltando à série e ao livro, os argumentos racionais do candidato conservador em um debate público sucumbem diante de um Waldo agressivo – “Vá para o inferno” – e ao mesmo tempo antissistema – “Vocês, os políticos, são todos iguais, e é culpa de vocês mesmos se a democracia virou uma piada e ninguém sabe mais para que ela serve”. Isso, certamente, lembra muito do que vivemos nos últimos anos, no Brasil e no mundo. Para além das frases cortantes, a viralização da resposta de Waldo no YouTube, os likes e compartilhamentos dão o tom do que estaria por vir. Este é um dos pontos centrais do livro de Da Empoli (2019), que mostra como as ações via redes sociais alavancaram os movimentos populistas no mundo, com forte utilização de fake news e o uso indiscriminado dos sentimentos comuns, apenas com o intuito de conquistar e dominar.

2. Em 30 de maio de 2021, o médico brasileiro, Victor Sorrentino, apoiador do presidente Jair Messias Bolsonaro e defensor do chamado “tratamento precoce” para Covid-19, foi preso no Egito. O motivo: publicou um vídeo no qual assediava, de forma supostamente cômica, uma vendedora de origem muçulmana. O caso teve ampla repercussão.

Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade’, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug. ‘Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército. (DA EMPOLI, 2019, p. 23-24)

A relação de Waldo com os seus entrevistados e entrevistadores, sempre que confrontado, também é marcada por ofensas, do tipo “Cala a boca, hipócrita. Graças a mim você vai ter o maior número de compartilhamentos da sua vida”. Aqui, novamente uma ponte para o Brasil real de hoje, que tem nos últimos anos um personagem com as mesmas características do urso Waldo: cômico – dá certo para o “cercadinho” e para a bolha das redes sociais -, antissistema, agressivo com a mídia e ávido ator nas redes. A partir das viralizações, surge a ideia: “No momento, Waldo é antipolítico, mas no futuro ele poderá veicular qualquer conteúdo político. E isso pode funcionar em cadeia mundial” . E funcionou, no mundo real. Passados anos do episódio de Black Mirror, “Waldo está, de certa forma, em vias de tomar o poder simultaneamente em todas as praças”, sugere Da Empoli. E conclui, antes de dar vazão a uma série de fatos, que “vale a pena estudar as características dessa estranha besta, que se nutre do ódio, da paranoia e da frustração dos outros” (DA EMPOLI, 2019, p.71).

E tudo começou...

As ações dos engenheiros do caos não explicam tudo, longe disso. O que torna tais personagens interessantes, mais que o fato de terem sabido captar antes dos outros os sinais da mudança em curso, é a forma pela qual se aproveitaram disso para avançar da margem para o centro do sistema. Para o bem e, sobretudo, para o mal, suas intuições, suas contradições e suas idiossincrasias são aquelas que marcam o nosso tempo. (DA EMPOLI, 2019, p. 25)

Da origem da cólera à história e realidade no século XXI, Da Empoli extrai de Peter Sloterdijk que este sentimento atravessa as sociedades e é alimentado por aqueles que se sentem “lesados, excluídos, discriminados ou insuficientemente ouvidos” (2019, p.71). Daí a cólera direcionar-se a um desejo de punição

das elites. Daí, votar nos líderes populistas pode significar agir contra os governantes. Os partidos, sejam de direita ou esquerda, mas principalmente estes últimos, teriam traído as massas, a “maioria silenciosa”. A raiva passa a dominar os discursos nas redes sociais e, consequentemente, os discursos políticos antissistema, do Brexit a Trump, dos movimentos de direita na Europa, em especial o 5 Estrelas, na Itália, e os Coletes Amarelos, na França, à extrema direita brasileira de Jair Bolsonaro. A ideia, do ponto de vista do apoio a estes movimentos, é a de que “não só as elites que mudaram, mas também ‘o povo’” (DA EMPOLI, 2019, p.74). Há uma desconfiança em relação às elites. Com a internet e, em especial, os celulares, o sentimento passa a ser o de “andar por aí com a verdade nos bolsos” (DA EMPOLI, 2019, p.74). Além disso, as redes sociais e as relações por ali estabelecidas são massageadoras do ego e funcionam como uma espécie de validação social. Mas, segundo Da Empoli (2019), seus objetivos principais estão longe daí, recaindo sobre sentimentos de carência e incerteza, o que gera dependência. “O problema é que hoje, nas redes sociais, somos todos adolescentes...” (2019. p.76), descreve Da Empoli. E a figura do adolescente é caracterizada por solidão e impotência, que canaliza a raiva. Estamos sempre em busca de aprovação. Ao não termos, lançamos sobre “os outros” a responsabilidade. Daí o surgimento de conspirações e, claro, mais raiva. Em um dado momento, reflete Da Empoli, algo chama as pessoas a participarem destes movimentos. São verdadeiras convocações que partem de assuntos banais – no caso do Brasil, os R$0,203 nas passagens de ônibus, por exemplo. E de repente você se vê como parte de uma “legião”. Olha Barthes aí. Fortes emoções, polêmicas, indignação e raiva. Os motores dos complôs nas redes sociais, reforça da Empoli. “...emoções geram cliques e mantêm os usuários colados ao monitor” (2019, p.78), destaca. O mecanismo do medo é forte referência nas redes. Tornar o público nervoso, sentindo-se em perigo e com medo gera audiência. E ele traduz: “... um dos efeitos da propagação de

3. Em junho de 2013, foram convocados atos, pelo Movimento Passe Livre, contra o aumento nas tarifas de ônibus em São Paulo. O aumento também contemplava trens e metrô. O protesto ganhou dimensão nacional, ocorrendo também em outras capitais, e tinha como pano de fundo uma ação política, na busca de atrair opositores às políticas adotadas por governos estaduais e,em especial, pelo Governo Federal.

redes sociais foi o de aumentar estruturalmente a nível de cólera já presente na nossa sociedade” (DA EMPOLI, 2019, p.79). Na esteira dessa disseminação de sentimentos negativos, Facebook e YouTube tomam a dianteira. A partir desta constatação, Da Empoli descreve os diversos movimentos surgidos daí: youtubers que se tornam influenciadores nas redes, movimentos que terminam por eleger políticos, como o caso do MBL no Brasil e seu apoio ao golpe contra a presidente Dilma Rousseff e o apoio ao extremista de direita Jair Bolsonaro para a Presidência da República. Os Coletes Amarelos, na França, e seus “Grupos de Cólera”, movimento que teve como características a rapidez de montagem e impacto sobre os públicos e a violência explícita, dão voz à raiva. Da Empoli aponta que “... o movimento dos Coletes Amarelos mostrou pela enésima vez que a raiva contemporânea não nasce somente de causas objetivas de natureza econômica e social” (2019, p.84). As causas são o enfraquecimento das organizações – Igreja e partidos de massa – e as novas mídias, que exacerbam as paixões mais extremadas. Aqui, mais uma vez, fica evidenciada a raiva como elemento central.

Explorar o que há de pior

Os engenheiros do caos compreenderam, portanto, antes dos outros, que a raiva era uma fonte de energia colossal, e que era possível explorá-la para realizar qualquer objetivo, a partir do momento em que se decifrassem os códigos e se dominasse a tecnologia. (DA EMPOLI, 2019, p. 85)

Feito. Mecanismos prontos para selecionar e controlar. Com o surgimento da Liga, partido italiano de extrema direita, Matteo Salvini, um de seus fundadores, incentiva a criação de um mecanismo de medição de nome “A Besta”, que age em tempo real. Por ele, “as redes sociais de Salvini são sistematicamente analisadas para que se compreenda quais são as postagens e os tweets que têm o maior número de respostas e que tipo de pessoas interagem em suas órbitas” (DA EMPOLI, 2019, p. 85-86). Os dados, segundo Da Empoli, são lançados no sistema e mastigados para em seguida serem lançados de volta como slogans e campanhas que atingem os eleitores.

Não por acaso, Salvini era chamado de “Capitão”. Qualquer semelhança com Bolsonaro não é mera coincidência. Fazem parte de um mesmo produto, um mesmo prato apresentado a um público em estado de descontentamento, de raiva. A chamada “comunicação polarizada” é o instrumento. É o desejo do conflito. Na mesma linha que Bolsonaro, que busca o enfrentamento para chamar a atenção para si. Nas palavras de Luca Morisi, criador de “A Besta”: “A continuidade do contato é o que há de mais importante” (in DA EMPOLI, 2019, p.86). Da Empoli gira rapidamente pela Alemanha, Estados Unidos e chega ao Brasil de Bolsonaro e sua utilização do WhatsApp e das fake news: “A indignação, o medo, o preconceito, o insulto, a polêmica racista ou de gênero se propagam nas telas e proporcionam muito mais atenção e engajamento que os debates enfadonhos da velha política.” (DA EMPOLI, 2019, p. 88). Bolsonaro é o Waldo brasileiro. Ele gera um efeito multiplicador. A nova propaganda, partindo do ex-presidente estadunidense Donald Trump e do atual primeiro-ministro da Hungria Viktor Orbán, tem como primeiro efeito a “liberação da palavra e dos comportamentos” e “pela primeira vez depois de muito tempo, a vulgaridade e os insultos não são mais tabus. (...) As mentiras e o conspiracionismo se tornam chave de interpretação da realidade” (DA EMPOLI, 2019, p. 89). Da Empoli nos premia com um pensamento ao mesmo tempo aterrador e lúcido, ao afirmar que “uma vez liberada a cólera, passa a ser possível construir qualquer tipo de operação política” (2019, p.90). Nas palavras de Trump – e que fique para sempre relegado ao lixo da história política dos EUA –: “Deixem-me ser o porta voz da sua ira” (DA EMPOLI, 2019, p.90). Para “os engenheiros do caos, o populismo é filho do casamento entre a cólera e os algoritmos” (DA EMPOLI, 2019, p.90). Que este casamento se desfaça e que as sociedades retomem o caminho da tolerância, expurgando todo aquele que ultrapasse os limites justos da convivência pacífica e respeito ao outro. Trump e Netanyahu já foram. Se, como defende Foucault, discurso é desejo, então, que bons ares também soprem por aqui.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980.

DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

ORLANDO, José Antônio, CASA NOVA, Vera. Uma retórica do poder. Criação & Crítica, n.30, set. 2021. Disponível em: <http://revistas.usp.br/criacaoecritica>. Acesso em: 01/10/2021.

THE WALDO MOMENT (temporada 2, ep.3). Black Mirror [Seriado]. Direção: Bryn Higgins. Roteiro: Charlie Brooker. Inglaterra: Channel 4, 2013. 1 DVD (44 min.).

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