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Gabriel Scarpellini e Leonardo Crociari

uma análise do poder de virulência das notícias falsas

Gabriel Scarpellini1 Leonardo Crociari2

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Este trabalho tem como objetivo debater o fenômeno das fake news e sua relação com o fluxo de informações e a disrupção do jogo político. Questiona-se o que são as fake news, de onde surgiram, como elas impactam o jogo político, por que são compartilhadas e qual seria a solução mais aceitável para o combate à desinformação. Na primeira parte, será feita uma abordagem sobre a origem das notícias falsas e a consequente banalização do termo fake news. Posteriormente, estudaremos os efeitos da comunicação no mundo político. Depois, abordaremos questões psicológicas e sociais que contribuem para a viralização dos conteúdos falsos e, por último, buscaremos apontar projeções e possíveis caminhos sobre o tema.

A anatomia de uma fake news

À primeira vista, as fake news podem parecer um fenômeno muito particular do nosso tempo, trazidas ao debate público recentemente e viabilizadas apenas na era da hiperinformação e da facilidade dos fluxos comunicativos. A roupagem e a forma de utilização do termo, de fato, é algo contemporâneo, surgido a partir das já famosas alterações nas campanhas políticas de Hillary Clinton e Donald Trump para a eleição presidencial americana de 2016. Sobre isso, uma linha do tempo simplificada nos oferece algumas datas relevantes sobre a utilização moderna desta expressão:

1. Publicitário com 20 anos de atuação no mercado tanto no setor privado como em campanhas políticas por todo Brasil. Especialista em Marketing, Empreendedorismo e Finanças pela PUC Minas e Marketing Político e Comunicação Pública pelo IDP-Brasília. 2. Analista de Sistemas, especialista em Gestão da Informação pela FeF-Fernandópolis e em marketing político pelo IDP-Brasília. Atua no ramo da publicidade com 6 anos de mercado, no setor privado e em campanhas políticas no Noroeste Paulista.

Em 8 de dezembro de 2016, Hillary Clinton fez um pronunciamento em que mencionou “a epidemia de notícias falsas e maliciosas e a propaganda falsa que inundou as mídias sociais no ano passado”. […] Presidente-eleito Trump tomou a frase no mês seguinte, em janeiro de 2017, pouco mais de uma semana depois de assumir a presidência. Ao responder uma questão, ele disse: “você é fake news” para o repórter da CNN Jim Acosta. Nesse interim, começou a repetir a frase no Twitter. (WENDLING, 2018)

Apesar de todo esse “movimento fake news” ter seu início neste confronto, as notícias falsas têm uma história muito rica, remetendo-se a outros períodos da história.

Os habitantes da lua

Em 1835, o quase falido jornal The New York Sun publicou uma série de artigos, hoje conhecidos como The Great Moon Hoax. A história, escrita pelo Dr. Andrew Grant, narra a descoberta de uma civilização lunar (nomeados de vespertillo-homo) e toda sua ecologia, de animais à vegetação. A descoberta fora atribuída ao astrônomo Sir John Herschel, um dos mais proeminentes cientistas da época. Além disso, o trabalho teria sido publicado em um periódico científico, o Edinburgh Journal of Science. Contudo, Dr. Grant nunca existiu. Era o alter ego de Richard Adams Locke, que até hoje é creditado como autor da série. Já o Edinburgh Journal of Science havia falido dois anos antes da veiculação das peças pelo The Sun. Após a veiculação dos conteúdos, o pequeno tabloide se tornou o diário mais vendido do mundo.

O século dezenove também teve sua parte de boatos e notícias falsas. Neste artigo, analisarei um dos mais criativos boatos jornalísticos de todos os tempos, que, através de uma mistura impressionante de ficção científica embrionária e uma bem concebida pegadinha, enganou centenas de milhares de leitores dentro e fora dos EUA, e fez um tabloide novaiorquino o jornal diário mais vendido no mundo. (VIDA, 2012, p. 431)

Esta história reserva, portanto, algo em comum com as fake news contemporâneas: a forma de como a narrativa foi cuidadosamente construída para que atingisse o maior número de pessoas possível e uma falsidade contada por meio de meias verdades.

De maneira geral, um fator importante para a análise do poder de uma fake news é a quantidade de mensagens que um leitor/espectador entra em contato enquanto navega pelo celular ou assiste à televisão. Poucas pesquisas na área de mensuração de dados e marketing são tornadas efetivamente públicas com todas as suas metodologias. Entre elas menciona-se o estudo feito pela Media Dynamics Inc. para mensurar os efeitos da exposição de anúncios entre 1945 e 2014, com resultado inusitado: apesar do número de horas em consumo de mídia quase ter dobrado no intervalo de tempo (de 5,2 para 9,8, respectivamente), as pessoas foram expostas, em média, a 362 anúncios por dia em 2014, contra 340 anúncios em 1945.

Ainda que a poluição publicitária na TV tenha aumentado constantemente, nota Ed Papazian, presidente da Media Dynamics, Inc, o espectador de hoje tem muito mais opções de esquiva, como controles remotos e DVRs, e muito mais canais para escolher. Como resultado, o número de anúncios aos quais adultos são expostos nas cinco mídias (TV, Rádio, Internet, jornais e revistas) é algo em torno de 360 por dia. Desses, apenas 150-155 são notados, e menos ainda fazem uma venda. (MDI, 2014, p.1)

É importante ressaltar que estes números se referem apenas à mídia paga, mesmo assim, muito distante do que é comumente alardeado. Desta pesquisa do MDI, um outro dado dá clareza real não só sobre a poluição publicitária, mas sobre a percepção de um indivíduo aos anúncios a que ele é exposto. Se um anúncio fosse capaz de reter a atenção por mais de alguns segundos, ele era mensurado pela pesquisa como noted3. Dentre os 360 estímulos diários, apenas 150, em média, eram capazes de reter a atenção dos espectadores. Ou seja, pouco menos da metade. Empiricamente, contudo, parece que os problemas relacionados à poluição publicitária aumentam à medida que as megacorporações de advertising, como Facebook e Google, investem cada vez mais em personalização de conteúdo para o usuário. Nesse terreno complexo da web dos dias atuais, as fake news parecem se destacar em meio a tantos es-

3. A pesquisa separou a reação do público aos anúncios em duas categorias. Exposed são os anúncios que foram exibidos ao público e Noted são os anúncios que foram lembrados pelos participantes.

tímulos visuais diferentes. Uma das ferramentas para que isso aconteça é a forma como os títulos são cuidadosamente construídos. Antes disso, um alerta: apesar da identificação de elementos comuns nas notícias falsas, isto não quer dizer que há uma fórmula ou uma maneira exata de se redigir fake news. Por outro lado, apesar de um olhar treinado conseguir identificá-las com mais clareza ou facilidade, não há como uma pessoa ser totalmente imune à notícia falsa. Entendemos que os elementos de virulência são psicológicos, desobedecem a qualquer princípio de design e/ou de linguagem e desrespeitam qualquer hierarquia de comunicação e redação. Na nossa sociedade hiperinformada e ávida por sinalizar virtude, os primeiros a “denunciar” as injustiças geralmente lideram a disputa midiática pela atenção. Se a indicação de revolta expõe às claras o contexto da notícia, o motor de narrativa é algo mais sutil. Acredita-se que o jornalista ganhador do prêmio Pulitzer, Tom French, tenha sido o primeiro a usar esse termo. O motor é o poder central que move a narrativa adiante, uma pergunta que só poderá ser respondida no final do texto.

Para mim, o motor é esse poder visceral bruto, que movimenta a história e mantém o leitor engajado. Como o escritor usa esse motor – as ideias que exploramos ao longo do caminho e a profundidade dos temas que esperamos iluminar – é uma questão de escolha (FRENCH apud CLARK, 2008)

Finalmente, o argumento de autoridade é indispensável. A autoridade tem que ser uma pessoa, não importa se real ou falsa, com vasto currículo ou popular, mas é obrigatório que ela tenha realizado, presenciado, participado ou testemunhado eventos importantes ou conexos ao ponto central da narrativa. Importa também o status de celebridade, facilmente referenciável que todos reconhecem como confiável.

Meias verdades são mais perigosas que mentiras inteiras

É fácil identificar uma mentira completamente deslavada. Por isso, para uma narrativa falsa atingir sua eficiência, deve se basear em fatos, debates, discussões ou acontecimentos políticos que tenham relevância pública.

Sendo assim, as fake news mais elegantes não manipulam os fatos propriamente ditos – uma mentira clara é fácil de desmascarar. O que fazem é comunicar os fatos verdadeiros de maneira perversa, com a indicação de conclusões espúrias4 . Essa vulnerabilidade se dá pelo fato de que ninguém consegue ser juiz de tudo, em outras palavras, a quantidade de pessoas que de fato dominam um assunto é bem menor do que a quantidade de pessoas que querem comentá-lo.

Uma tribo para chamar de minha

Sem embargo, a sociedade hoje mostra-se ultracrepidiária. Todos são instigados a emitir uma opinião sobre todos os assuntos o tempo todo, na tentativa de aumentar o “crédito social”, sinalizar princípios e virtudes para pertencer a uma tribo e receber a recompensa em forma de likes e/ou compartilhamentos de opiniões. Como as relações sociais mudaram e se virtualizaram, as pessoas que antes podiam se encontrar, hoje dependem da internet para se agregar a outras e difundir suas características sociais. Se o ser humano é um animal gregário, a internet agora deu alcance global às tribos, o que permite que uma opinião nunca fique sem a validação externa de outra pessoa. Deste modo, uma notícia falsa é compartilhada muitas vezes pela proximidade de princípios e valores destas pessoas, organizadas em comunidades e grupos ao longo da extensão da internet, e isso é um terreno fértil para o compartilhamento em massa de notícias falsas.

A verdade política existe de fato?

Sem pretensão de lecionar metodologia e ante a necessidade de ilustrar o fenômeno político de maneira investigativa, deve-se entender, antes de tudo, a proposição de que há duas formas de se investigar cientificamente este assunto: a dogmática e a zetética.

4. Lógica espúria é um termo amplo que indica a capacidade de pegar pacotes de dados ou de informações verdadeiras e realizar uma justaposição que parece lógica, mas leva à uma conclusão falsa, parecida com um sofisma.

Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve-ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação. (FERRAZ JR, 2003, p. 39)

Cuida-se de apresentar esta distinção por dois motivos: apesar de haver claro objetivo dogmático ao analisar o fenômeno social das fake news, este trabalho não se posiciona ao lado desta ou daquela pontuação política. O fenômeno político contemporâneo é hipercomplexo, tridimensional e incapaz de ser enumerado em um plano cartesiano de virtude/vício. Aliás, este é também um alerta para qualquer investigação que envolva a situação de propagação de notícias falsas: nenhuma pessoa está isenta de viés, ou seja, todos estão sujeitos à interferência política, social, econômica e filosófica quando se trata de identificar a “veracidade” ou “falsidade” de determinada informação.

A pluralidade de ideias

Quando se analisa com maior profundidade e rigor científico, vemos que algumas posições políticas que popularmente são consideradas antagônicas, na verdade, são bem mais próximas do que parecem. Sobre isso, Jean Pierre Faye (1974), ao analisar a composição política da República de Weimar, anota que os partidos políticos eram desenhados na forma de uma ferradura. Em um polo estava o nacional-socialismo e no outro o comunismo.

É preciso representar os partidos como uma ferradura: em uma das pontas estão situados os nacional-socialistas e na outra, os comunistas. Logo depois enumeram-se os partidos de Weimar: ao lado dos nacional-socialistas, os nacionalistas alemães de Hugenberg, ao lado deles a DVP de Streseman, depois o Zentrum. À sua esquerda, os Democratas, depois os social democratas e por fim, o Kominunistische Partei (FAYE, 1974. p. 589)

Enquanto se começa a arranhar o fenômeno político, sem embargo, não é difícil concluir que os extremos da narrativa – e, por consequência, do jogo político – se aproximem. Torna difícil a investigação da “verdade” política.

Narrativas, narrativas, narrativas

A verdade política é construída por meio das narrativas que comungam com a visão de mundo de determinado partido, de determinado político ou, claro, de determinado grupo. Como anotado anteriormente, Donald Trump teceu o comentário “you’re fake news” para o repórter Jim Acosta, em 2017, durante a sua primeira coletiva de imprensa como presidente eleito. A frase foi conjecturada em razão do fato de que, durante toda a vasta midiática campanha de Trump para presidência, seu inimigo preferido – e vice-versa – foi a CNN. Ao mencionar publicamente que a CNN era uma “fake news network” e “terrible organization”, Trump deslegitimava qualquer possibilidade de interação entre a rede e seu governo, e utilizava as informações, opiniões e editoriais propagados pela CNN como base para fundamentar sua própria narrativa política. A CNN, é claro, fez o mesmo. Evidentemente, o debate público americano que estava no centro da batalha entre Trump x CNN, foi corrompido. Previsões erradas e feitas às pressas, interpretações amplas em desfavor do oponente ou mesmo assistir reportagens das quais não se gostava, todas eram taxadas de fake news, como parte da estratégia de deslegitimação do discurso do oponente. Até mesmo sátiras, páginas de humor e memes foram vez ou outra denominadas de fake news. Logo, se todas as notícias, narrativas editoriais, interpretações fáticas e piadas que um dos lados da ferradura faz sobre o outro são taxadas de fake news, nenhuma notícia ou fato pode ser considerado verdadeiro. Se então tudo é falso, nada é falso. Por essa ótica, assim poderia ser analisado o problema. Portanto, a banalização do termo – tanto na esfera pública quanto na esfera científica – impede que o verdadeiro problema seja atacado: que é o discurso narrativo construído para desinformar, manipular e desorientar a opinião pública.

Em 22 de fevereiro de 2019, o Jornal Nacional exibiu uma reportagem baseada em um falso pronunciamento do então ministro do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno. Ainda na mesma edição, William Bonner pediu desculpas. O fato é que mesmo o maior e mais tradicional jornalístico televisivo do Brasil não esteve a salvo de cair e propagar fake news. Adicionalmente, a caça às fake news no Brasil aparentemente é o único ponto de concordância entre os três poderes. Claro, há discordância de conceitos entre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, cada qual em luta para saber quem garante o direito de ser o “detentor da verdade”. Igualmente, cada qual veículo disputa com outro veículo para saber quem é o “detentor da verdade”, ou seja, aquele que noticia os fatos sem viés político – não de fazer política, mas de influenciar a opinião pública em favor desta ou daquela agenda5 . Por outro lado, as organizações de checagem de fatos também não estão isentas de erro ou de escrutínio público. Há indícios de má interpretação de fatos, erros jornalísticos e até mesmo de parcialidade. Um dos erros de maior destaque das agências de checagem foi a produção de uma lista de veículos de desinformação e fake news, que chegou ao Congresso Nacional por ocasião da CPMI das fake news. Nesta lista, constava o nome da Gazeta do Povo, jornal paranaense com mais de 100 anos de existência. Nesse imbróglio, duas anotações são interessantes: a manifestação da Gazeta do Povo requerendo a retirada de seu nome do anexo e a conclusão do Poder Legislativo. A Diretora-Geral da Gazeta do Povo, Ana Amélia Cunha Pereira Filizola, escreveu o seguinte:

Como em qualquer democracia, um jornal diário pode eventualmente cometer erros ou, ainda, emitir opiniões sujeitas ao escrutínio da discordância. Caso este fosse o critério para qualificar um veículo como propagador e divulgador de fake news, certamente os maiores periódicos do mundo, por igualdade, deveriam figurar na mesma lista. (FILIZOLA, 2020, p. 4)

5. Definida como o conjunto de assuntos sobre os quais o governo, e pessoas ligadas a ele, concentram sua atenção num determinado momento.

Em consequência desta manifestação, o relatório legislativo afirmou que:

Desse modo, concluímos que a inclusão do jornal Gazeta do Povo na categoria “canais com comportamento desinformativo” foi equivocada. Nos retratamos, portanto, de ter atribuído essa classificação no anexo da informação e promoveremos a sua retirada. (LOPES; PETERSEN, 2020, p. 4)

Indubitavelmente, toda e qualquer forma de intervenção humana é sujeita ao erro, toda teoria sujeita a falseamento e toda verificação factual sujeita à interpretação humana, esta sim, baseada em suas próprias idiossincrasias e contradições.

O poder de virulência da informação falsa

Informações falsas circulam muito mais do que as verdadeiras. Um estudo do Massachussets institute of Tecnology (MIT), feito em 2018 por Soroush Vosoughi, Deb Roy e Sinan Aral, indicou que as notícias falsas viajam muito mais longe, mais rápido, mais profundamente e mais amplamente do que as verdadeiras. Inicialmente, o estudo reforça a ideia de que a classificação política de falsidade de uma notícia – e consequentemente da credibilidade do veículo que a propaga – depende se o veículo apoia ou se opõe ao político que a compartilha.

[…] políticos estão classificando notícias como “fake” como parte de uma estratégia política, citando que fontes que não os apoiam são “não-confiáveis” enquanto fontes que os apoiam são confiáveis, efetivamente politizando o significado e a classificação de fontes confiáveis. (Vosoughi et al, 2018 p. 5)

Nesse mesmo esteio, os pesquisadores optaram pela utilização do termo false ao invés de fake. A banalização do termo fake news exige que as notícias sejam atestadas no plano da veracidade ou da falsidade, já que o uso da expressão fake news foi também politizado. Essa tarefa é de maior dificuldade em nosso idioma pátrio.

Um último destaque é que a pesquisa de Vosouhgi et al (2018 p. 29) utilizou algoritmos para identificar e isolar robôs do fluxo de informações falsas a serem compartilhadas. Surpreendentemente, mesmo após a eliminação dos robôs, as notícias falsas mantém sua taxa virulenta de propagação: uma notícia falsa tem até 70% de chance de ser compartilhada, em comparação com uma notícia verdadeira. Deste modo, ao focar a pesquisa no componente humano da virulência, dois parâmetros foram selecionados para o estudo: (1) as emoções que as notícias causam nas pessoas que compartilham e (2) o fator de novidade de cada notícia. No quesito emocional, Vosoughi et al (2018) encontrou que o compartilhamento de uma notícia falsa tem mais chances de ser feito com a finalidade de dissenso (para fundamentar discordância) do que com a finalidade de consenso (para sinalizar concordância). Embora esta seja uma diferença pequena (13% dos compartilhamentos) é significativa, pois notícias falsas tendem a gerar mais discordância, como aponta a pesquisa Vosoughi et al (2018, p.31) Por outro lado, o fator novidade é o causador do grande desequilíbrio no compartilhamento entre notícias falsas e verdadeiras. Segundo os modelos matemáticos utilizados por Vosoughi et al (2018, p.32), as notícias falsas contêm alto “fator de novidade” e, em razão disso, são compartilhadas com grande velocidade.

Viés de confirmação

Raymond Nickerson define assim a expressão “viés de confirmação”:

Viés de confirmação é o termo tipicamente utilizado na literatura da psicologia, que conota a busca ou a interpretação de evidência em formas que são parciais às crenças, expectativas ou hipóteses já existentes (NICKERSON, 1998, p.1)

Além disso, o autor também faz uma observação sobre o viés de confirmação na busca por informação:

Pessoas tendem a buscar informação que eles consideram acolhedoras da hipótese preferida ou de crenças existentes, e a interpretar informação de maneiras que são parciais a essas hipóteses ou crenças. Por outro lado, tendem a não buscar e até mesmo rejeitar informações que seriam consideradas contraintuitivas a respeito daquelas crenças ou acolhedoras de possibilidades alternativas (NICKERSON, 1998, p.4)

Neste sentido, é possível teorizar que a propagação de uma notícia falsa, para além do fator de novidade, traça um paralelo às próprias confirmações e hipóteses pessoais de cada indivíduo. Seja para contestá-la ou para acatá-la, cada pessoa está sujeita a acreditar em rumores ou notícias falsas que dialogam com as suas próprias convicções. Hugo Mercier e Dan Sperder (2017) expandem o viés de confirmação para o que eles chamam de “myside” bias, ou viés de “meu lado”.

Até o momento, nós tomamos por garantido que o viés descrito é um viés de confirmação, um viés para confirmar qualquer visão que alguém considere interessante. Contudo, alguns experimentos revelam claramente que esta não é uma boa descrição do que faz a razoabilidade. Por exemplo, notamos cedo que participantes tinham problemas em encontrar argumentos que discordavam de suas teorias favoritas. Mas quando pedimos aos participantes para racionalizar ideias que eles discordavam, eles encontraram facilmente argumentos para discordar. (MERCIER, SPERDER, 2017, p. 201)

Para os autores, a dificuldade não é exatamente confirmar as notícias que indivíduos acreditam ser verdadeiras, mas sim algo mais profundo: encontrar argumentos que desafiam as próprias opiniões.

Raciocinar não envolve a confirmação cega de qualquer crença que incida. Ao invés disso, raciocinar funciona sistematicamente para encontrar razão a favor de nossas ideias e contra as ideias a qual nos opomos. Razão sempre ficará do nosso lado. Como um resultado, é preferível falar em viés de meu lado, em vez de viés de confirmação. (MERCIER; SPERDER, 2017, p. 200)

O remédio não pode ser pior que a doença

A liberdade de expressão é o corolário da democracia, e não há organismo político, pelo exposto no tópico anterior, totalmente capacitado para

dizer o que é verdade ou não, posto que as facetas destes organismos são corruptíveis. Assim, qualquer método de combate à propagação de notícias falsas que passe por controle regulatório, por qualquer entidade ou poder que seja, pode cair em descrédito. Sendo assim, combater fake news delegando poder para interposta pessoa dizer o que é ou não é verdade pode causar, a longo prazo, muito mais mal do que bem. Exemplos na literatura são infinitos, como 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Piores ainda são os exemplos no mundo real6 . Ao longo deste trabalho, tanto pelos conceitos teóricos utilizados quanto pelos exemplos encontrados na mídia em diversos países, e também aqui citados, há um forte indicativo de que, para a política, fake news não deveria ser simplesmente uma expressão para designar uma notícia falsa.

A visão jurídica

É necessária uma exposição, ainda que inicial, das legislações e decisões importantes que visam proteger a liberdade de expressão e de imprensa contra tentativas de controle e regulação dos meios de comunicação, por parte dos Estados e Poderes antidemocráticos. Em 30 de abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei 5.250/67, a Lei de Imprensa. Segundo o relator, ministro Carlos Britto:

Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação. (BRASIL, 2009)

O Pacto Interamericano de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica de 1969, expressa literalmente em seu Artigo 13:

6. Enquanto este artigo era redigido, a guerra entre Rússia e Ucrânia tomou conta dos noticiários e Vladimir Putin sancionou uma legislação que pune com até 15 anos de cadeia quem compartilhar fake news, ou seja, notícias derrogatórias contra o esforço de guerra russo. Disponível em: https://www.reuters. com/world/uk/bbc-halts-reporting-russia-after-new-law-passes-2022-03-04/. Acesso em: 20/03/22.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

Por sua vez, a Declaração de Chapultepec de 1994, poderoso instrumento de defesa da liberdade de imprensa dispõe:

5. A censura prévia, as restrições à circulação dos meios ou de divulgação de suas mensagens, a imposição arbitrária de informação, a criação de obstáculos ao livre fluxo informativo e as limitações ao livre exercício e mobilização dos jornalistas, opõem-se diretamente à liberdade de imprensa.

Ainda em âmbito internacional, a Convenção de Princípios Sobre Liberdade de Expressão, da Organização do Estados Americanos, de 2000, também se pronuncia a favor da livre circulação de ideias:

7. Condicionamentos prévios, tais como de veracidade, oportunidade ou imparcialidade por parte dos Estados, são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão reconhecido nos instrumentos internacionais.

Finalmente, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, em seu artigo 220:

A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Considerações finais

Como vimos, no substrato jurídico moderno, o ideal de democracia não permite nenhuma forma de controle prévio da informação. Também não permite que o Poder Estatal decida o que é verdadeiro ou falso. E mais ainda, não se pode tirar a liberdade de manifestação do pensamen-

to, de expressão e de imprensa, que são fundamentos de uma sociedade livre, justa e igualitária. As informações falsas deveriam ser combatidas por meio de instrumentos posteriores, da responsabilização do autor ou do organismo que fabricou a desinformação. Mesmo assim, deveria ser dado o direito ao contraditório e nunca oferecer censura prévia ou cassação de voz. Apesar de ser este o objetivo, cada vez mais nos distanciamos desse ideal de liberdade de acesso, divulgação e interpretação das informações. E este é o real problema. A Internet potencializou o compartilhamento das informações tidas como falsas e a banalização do termo fake news permitiu o início de uma caça às bruxas inquisitória, que ameaça mais o tecido democrático do que o compartilhamento das notícias em si. Uma notícia falsa gera distúrbio no fluxo de informação, mas seria facilmente combatida por ocasião de mais transparência dos poderes públicos, melhores instrumentos de comunicação oficial e menos tentativas de controlar o fluxo de informação pelo simples atestado da verdade. Afinal, quem tem o poder de dizer o que é ou o que não é verdade?

Referências

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NICKERSON, Raymond S. Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises. Review of General Psychology 1998, Vol. 2, No. 2, 175-220. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/280685490_Confirmation_Bias_A_Ubiquitous_Phenomenon_in_Many_Guises/link/564b3b2b08ae020ae9f7ece6/download Acesso em 05.03.22

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