Dependências 9789896931940

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Coordenação

M argarida Ferraz

Mauro Paulino

Jorge Negreiros M

Dependências Manual de Intervenção Psicológica

Dependências

Coordenação

Margarida Ferraz

Mauro Paulino

Jorge Negreiros

www.pactor.pt

Uso

Intervenção Psicológica na Dependência de Substâncias

A Entrevista Motivacional na Intervenção nas Dependências: Um Foco na Liberdade da Abstinência

Introdução

Os princípios da EM: da empatia à promoção da autoeficácia, o desafio da desconstrução da ambivalência e da resistência

A avaliação da motivação e a preparação para a mudança: estádios evolutivos e estratégias de intervenção

1.ª fase – pré-contemplação

2.ª fase – contemplação

3.ª fase – estádio de determinação

4.ª fase – estádio de ação

5.ª fase – estádio de manutenção

6.ª fase – estádio de recaída 148

As estratégias motivacionais: a importância da atmosfera e qualidade do diálogo terapêutico desde a primeira entrevista

1.ª estratégia motivacional – fazer perguntas abertas

2.ª

3.ª estratégia motivacional – encorajar

4.ª estratégia

5.ª

Intervenções motivacionais em contextos específicos: EM com jovens, com a

Drogas e Novas Drogas

Correspondência entre os estádios de mudança e as tarefas motivacionais

Modelo de prevenção da recaída de Marlatt e Gordon...........................................

de terceira geração aplicadas à PUS .............................................................

da Aceitação e Compromisso .....................................................................

na prevenção da recaída

Dados mais relevantes, recolhidos durante as sessões de avaliação ....................

Psicológica na Dependência de Álcool

Margarida Soliz e Zélia Macedo Teixeira

Introdução

Especificidades da intervenção psicológica nos consumos problemáticos de álcool

Dimensões psicológicas da avaliação da dependência de álcool ................................

Rastreio

Motivação para a mudança ...........................................................................................

Regulação emocional e competências de confronto ....................................................

Modelos e práticas na intervenção psicológica

Abordagem Psicológica na Cessação Tabágica Manuel

Cognitivo em Pessoas com Perturbações por Uso de Substâncias

Intervenção, Tratamento e Recaída na Perturbação de Jogo

Mergulho no Gaming e nos Ecrãs como Alívio do Abandono e do Sofrimento Sarha

A terapia familiar como modelo interpretativo e integrativo das dependências

A terapia familiar como intervenção catalisadora do “tornar-se adulto”

fase de vida, género e tipo de dependência: ajustamentos da intervenção

A ética na intervenção: observar, ligar, perguntar, não julgar, dialogar

A criação do diálogo terapêutico: ética e estética na mudança

Redução de Riscos e Minimização de Danos

de riscos: uma síntese dos seus contornos gerais

Os AutOres

Coordenadores e Autores

Jorge Negreiros

Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).

Margarida Ferraz

Psicóloga Clínica e da Saúde. Doutoranda em Neuropsicologia, com estudo na área das Dependências pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC). Especializada em Psicologia Forense pela FPCEUC e em Adições Químicas e Comportamentais pelo Instituto CRIAP. Membro efetivo da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Fundadora e Diretora Clínica da ForYourMind – Serviços de Formação, Psicologia e Consultoria. Formadora, supervisora e orientadora de estágios académicos e profissionais na área da Psicologia.

Mauro Paulino

Coordenador da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense. Membro efetivo da OPP, com grau de especialidade avançada em Psicologia da Justiça e em Neuropsicologia. Mestre em Medicina Legal e Ciências Forenses pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Pós-graduado em Análise de Dados em Ciências Sociais pelo ISCTE – Instituto Universitário. Doutorado em Psicologia, com especialidade em Psicologia Forense pela FPCEUC. Especialização avançada em Linguística Forense pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Docente na Universidade Europeia. Autor e coordenador de diversos livros da PACTOR.

Autores

Ana Cristina Martins

Psicóloga Clínica. Doutorada pela FPCEUP.

Ana Nunes da Silva

Psicóloga Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Psicoterapia. Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL). Investigadora integrada no Centro de Investigação em Ciência Psicológica (CICPSI). Membro do Conselho Científico e da Comissão de Ética da FPUL. Membro do Board of Country Coordinators da Society for Psychotherapy Research. Representante da OPP no Fórum Nacional Álcool e Saúde (FNAS).

André Tavares Rodrigues

Codiretor do departamento de Psicologia e Educação Física e diretor do mestrado em Psicologia do Trabalho e da Saúde Ocupacional no Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes (ISMAT). Professor auxiliar no Ensino-Lusófona.

Bruno Faustino

Psicólogo Clínico e da Saúde, Neuropsicólogo e Psicoterapeuta. Professor auxiliar e investigador na FPUL. Codiretor do mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde da Escola de Psicologia e Ciências da Vida da Universidade Lusófona. Formador no Instituto CRIAP e na ForYourMind. Editor associado na revista International Journal of Rational-Emotive & Cognitive-Behavior Therapy (JORE). Membro da Associação Portuguesa de Terapias, Comportamentais, Cognitivas e Integrativas (APTCCI), Sociedade Portuguesa da Terapia Focada nas Emoções (SPTEE) e na Society for the Exploration of Psychotherapy Integration (SEPI).

Carina Cristino

Psicóloga Clínica. Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pela FPUL.

Carlos Braz Saraiva

Professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) (aposentado). Chefe de serviço de psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra (aposentado). Subespecialista em Psiquiatria Forense pela Ordem dos Médicos; Coordenador-docente de cursos de Psiquiatria e Saúde Mental e Suicídio e Comportamentos Autolesivos na modalidade de ensino à distância, a convite do Instituto CRIAP.

Carlos Filipe-Saraiva

Licenciado em Psicologia pela Universidade Fernando Pessoa. Mestre em Psicologia da Justiça pela FPCEUP. Membro especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia da Justiça. Desempenhou funções como psicólogo clínico no Estabelecimento Prisional do Porto e no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. Autor de várias publicações. Exerce funções na reinserção social e como psicólogo clínico na clínica MIND.

Dulce Pires

Licenciada em Psicologia, na área da Clínica e Aconselhamento. Doutorada em Psicologia, na área da Clínica Forense pela Universidade de Aveiro. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia da Justiça pela OPP. Consultora de Psicologia Forense no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Psicóloga Clínica, formadora e investigadora em contexto prisional. Docente em várias especializações avançadas e coordenadora científica da especialização avançada em Reinserção Social e Criminalidade no Instituto CRIAP. Coordenadora e coautora da obra Intervenção Psicológica em Perturbações de Personalidade da PACTOR. Autora e coautora de artigos/ /capítulos de livros no âmbito científico.

Filipa Gonçalves

Psicologia Clínica na unidade de Comportamentos Aditivos do serviço de consulta psicológica da FPCEUP. Psicóloga Clínica, Comunitária e da Justiça. Investigadora no Centro de Ciências do Comportamento Desviante da FPCEUP. Técnica de Redução de Riscos e Minimização de Danos.

Ivone Patrão

Psicóloga Clínica e da Saúde. Terapeuta familiar. Docente no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA).

Joana Pereira

Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto Universitário de Ciências Psicológicas (ISPA). Psicóloga clínica em contexto de comunidade terapêutica, na área dos Comportamentos Aditivos. Membro efetivo da OPP.

João Tiago Oliveira

Psicólogo. Investigador do Centro de Investigação em Psicologia (CIPsi). Docente da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Coordenadora da Consulta de Psicologia para a Perturbação Obsessivo-Compulsiva da Associação de Psicologia da Universidade do Minho. Coordenador nacional da Society for Psychotherapy Research e da divisão 29 da American Psychological Association: Society for the Advancement of Psychotherapy.

José Vicente

Licenciado em Serviço Social. Pós-graduado em Intervenção Social. Mestre em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo, com diploma de estudos avançados em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC). Doutoramento em Serviço Social pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Professor adjunto convidado da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS) do Instituto Politécnico de Leiria. Na qualidade de assistente social é coordenador da Ação Social da Comunidade Terapêutica ReCare em Leiria e outras respostas sociais na área das Dependências e Comportamentos Aditivos. Nestes últimos anos, também tem desenvolvido a sua atividade profissional como mediador de conflitos e socioeducativo em contexto educativo, especialmente no Plano Integrado e Inovador de Combate ao Insucesso Escolar (PiiCiE) promovido pela Comunidade Intermunicipal de Leiria e executado nos Agrupamentos de Escolas dos Municípios Leiria e da Batalha. Dedica-se ao ensino e à investigação e tem várias publicações em revistas especializadas nacionais e internacionais.

Jully Pereira

Psicóloga Clínica e da Saúde. Mestre em Psicologia pela Universidade Lusófona – Centro Universitário de Lisboa.

Luís Simões

Mestre em Psicologia, na área de especialização em Motivação e Aprendizagem. Psicólogo dos Serviços de Psicologia e Orientação do Ministério da Educação, presentemente a exercer funções no Agrupamento de Escolas da Batalha. Especialista em Psicologia da Educação, com diplomas de especialidade avançada em Psicologia Vocacional e do Desenvolvimento da Carreira, e em Necessidades Educativas Especiais atribuídos pela OPP. Durante vários anos, foi docente do Ensino Superior Privado e do Ensino Superior Politécnico. Coautor de artigos e capítulos científicos publicados em revistas e livros nacionais nas áreas da Motivação e Aprendizagem, Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção e da Sobredotação/Perturbações do Neurodesenvolvimento.

Manuel Rosas

Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Minho. Psicólogo Clínico na Delegação Regional de Saúde do Norte (DRS Norte) da Direção-Geral da Saúde (DGS). Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela OPP.

Manuela Vilar

Psicóloga. Professora Auxiliar na FPCEUC. Membro do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria – PsyAssessmentLab.

Margarida Farinha

Psicóloga na Câmara Municipal de Almeirim. Mestre em Psicologia da Educação.

Margarida Soliz

Psicóloga Clínica e da Saúde na Unidade de Alcoologia do Porto (UAP) e no Centro Clínico de Desenvolvimento.

Maria dos Anjos Dixe

Professora na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Leiria. Doutorada em Intervenção Psicológica. Investigadora no Centro de Inovação em Tecnologias e Cuidados de Saúde (ciTechcare) do Instituto Politécnico de Leiria.

Maria Salomé Pinho

Professora auxiliar na Universidade de Coimbra no Center for Research in Neuropsychology and Cognitive and Behavioral Intervention (CINEICC). Membro do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria – PsyAsssementLab da FPCEUC.

Mário R. Simões

Psicólogo. Professor Catedrático na FPCEUC. Diretor do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria – PsyAssessmentLab.

Marta Pinto

Professora auxiliar e investigadora na FPCEUP. Psicóloga Clínica, Comunitária e da Justiça.

Paula Carriço

Assistente graduada em Psiquiatria. Coordenadora do Centro de Respostas Integradas de Coimbra na área das Dependências do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD). Sócio didata da Sociedade Portuguesa de Psicodrama e terapeuta familiar pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar (SPTF).

Paula Carvalho

Psicóloga Clínica no ICAD. Especialista em Psicologia Clínica pelo Ministério da Saúde e em Psicologia Clínica e da Saúde pela OPP. Psicóloga clínica no Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências. Tem colaborado na construção e implementação de projetos de intervenção na área do Tratamento da Toxicodependência e Dependências Comportamentais e na área da Prevenção Indicada.

Pedro Aires Fernandes

Psicólogo especialista em Psicologia da Educação e em Psicologia Comunitária pela OPP. Conta com 20 anos de experiência no desenvolvimento de projetos no âmbito da Promoção e Educação para a Saúde, em especial na área da Prevenção dos Comportamentos Aditivos e Dependências, em contexto autárquico e sociocomunitário, sendo técnico superior da Câmara Municipal de Odivelas.

Psicoterapeuta certificado pela Associação Portuguesa de Terapias Comportamental, Cognitiva e Integrativa (APTCCI), desenvolvendo atividade clínica com adolescentes, adultos e famílias, com intervenção em matéria de dependências online. Coach certificado pela International Coaching Community (ICC). Formador certificado, integrando a equipa formativa da OPP e do CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão.

Autor de diversas comunicações, publicações e materiais psicoeducativos, com especial destaque para a área dos comportamentos e dependências online e, ainda, da escrita terapêutica.

Pedro Hubert

Psicólogo Criminal e do Comportamento Desviante pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela OPP. Diretor do Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ) e coordenador da Linha de Ajuda ao Jogador (LAJ) do IAJ e Jogo Responsável desde 2009. Coordenador da Linha de Apoio e Jogo Responsável para o departamento de jogos de Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Colaborador no ICAD na área do Problema de Jogo no geral. Formador e supervisor em Comunidades Terapêuticas, faculdades, etc. Doutorado na Caracterização dos Jogadores Patológicos Offline e Online em Portugal. Autor do livro O problema do jogo: tratamento da dependência invisível

Rita Morais

Psicóloga Clínica e da Saúde, especialista pela OPP. Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde pelo ISPA. Doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho. CEO da clínica Sea Yourself e coordenadora clínica da Recare – Tratamento, Suporte e Aconselhamento de Comportamentos Aditivos em articulação com parceria internacional com Verslavingszorg Achterhoek na Holanda. Exerceu funções como docente universitária convidada no Instituto Politécnico de Leiria e na Universidade Internacional da Figueira da Foz. Especialista em Terapias Experienciais como o EMDR (N2), Brainspotting, Terapia dos Esquemas e Internal Family System. Membro efetivo e orientadora de estágios da OPP e membro associado na EMDR – Portugal.

Sarha Menezes

Psicóloga Clínica com mestrado integrado pelo ISPA.

Tânia Caetano

Mestre em Psicologia Clínica, no ramo de especialização em Psicoterapia e Psicologia Clínica. Doutoranda em Psicologia Clínica, com especialidade em Neuropsicologia. Membro colaborador do CINEICC da FPCEUC. Membro efetivo da OPP.

Zélia Macedo Teixeira

Psicóloga Clínica e da Saúde na Unidade de Alcoologia do Porto (UAP) e no Centro Clínico de Desenvolvimento.

PrefáciO

Aceitei com muito gosto o honroso convite para prefaciar este livro, associando-me a esta iniciativa de aprofundamento da reflexão e do conhecimento científico, no âmbito da Intervenção Psicológica nos Comportamentos Aditivos e Dependências.

Por feliz coincidência, comecei a escrever estas palavras no dia 4 de setembro, Dia Nacional do Psicólogo, e, nesse sentido, aproveito para cumprimentar todos/as os/as profissionais desta área e desejar que o papel do psicólogo seja cada vez mais valorizado na sociedade portuguesa e na intervenção que podem realizar neste domínio.

A sociedade contemporânea confronta-se hoje, tal como ontem, com a questão da ligação das pessoas com as substâncias, com as “coisas”, tenham elas “as formas ou as cores” que se possa imaginar. De facto, o Homem, desde os seus primórdios, estabeleceu sempre relações com substâncias, na procura de (boas) sensações que, simplificando, lhes proporcionassem, por um lado, prazer e/ou alienação e por outro, lhe aliviassem as angústias e o sofrimento inerentes à sua condição humana. Embora com nova “roupagem”, outros ritmos e novos contextos, continua a ser este o valor instrumental das substâncias psicoativas (SPA), quer sejam lícitas ou ilícitas, e das “coisas/objetos” (seja o jogo, os conteúdos da internet e do ecrã, as redes sociais, etc.), para as pessoas lidarem com a realidade, seja na relação consigo próprias, com os outros ou com o mundo.

Assim, a relação dos conceitos de Dependência e de Comportamentos Aditivos com a dimensão psicológica é inegavelmente relevante. Desde logo, falamos na circunstância do estado de dependência da pessoa humana, no sentido em que o bebé humano é aquele que, no reino animal, nasce mais dependente (aliás, absolutamente dependente) dos seus cuidadores, em particular da sua mãe, designadamente no que diz respeito aos cuidados psicoafetivos. Ainda assim, no seu percurso de vida, todo o desenvolvimento da pessoa se faz de laços, de conquistas, mas também de separações, que permitirão a construção da autonomia e identidade próprias. Este processo, como sabemos (porque também o vivemos), não é linear nem fácil.

Os Comportamentos Aditivos, por seu lado, são um fenómeno de enorme complexidade, sempre em mudança, que envolvem a personalidade da pessoa, o(s) contexto(s) de vida e as múltiplas SPA e os comportamentos. Isto significa que este fenómeno, enquanto realidade dinâmica, exige sempre uma leitura e compreensão multidimensional e multifatorial. E, por conseguinte, obriga também a uma intervenção multidisciplinar e integrada, que contempla, necessariamente, a dimensão da Psicologia.

Efetivamente, esta perspetiva de uma ação integrada nos comportamentos aditivos e dependências (CAD) baseia-se no pressuposto de que esta problemática é multidimensional e multifatorial e, por isso, exige uma intervenção multidisciplinar que contempla os saberes (nas suas várias especialidades) da Medicina, da Enfermagem, da Psicologia, do Serviço Social e das várias ciências sociais e humanas, entre outras. E, também por isso mesmo, requer vários tipos de intervenção, nos diferentes contextos, ao longo do ciclo de vida da pessoa e ao nível das áreas da Prevenção, da Dissuasão, da Redução de Riscos e Minimização

de Danos, do Tratamento e da Reinserção, temas objeto de reflexão ao longo dos vários capítulos deste livro.

A atual Estrutura Nacional que é dedicada e enquadra os CAD, também num outro plano, visa garantir uma eficaz coordenação política e estratégica, promovendo o envolvimento e a articulação dos diversos serviços da administração pública e áreas governativas envolvidas nestes temas. Também os diferentes atores da sociedade, designadamente, a família, as instituições cívicas e sociais de base comunitária, socioprofissionais (as várias Sociedades Científicas, a Academia, a Ordem dos Psicólogos Portugueses [OPP], que são exemplo de parceiros de relevo) e religiosas, garantem um envolvimento direto ou indireto na área dos CAD. Neste sentido, considerando a complexidade do fenómeno dos CAD, pode dizer-se, parafraseando um ditado africano: “para educar uma criança é preciso a aldeia toda”, assumindo que, para cuidar de uma pessoa com CAD, é necessária toda a comunidade.

De uma maneira geral, nesta obra, começa-se por fazer uma reflexão sobre a especificidade dos comportamentos aditivos, o que, em linguagem simples, pretende responder à questão: o que é isso dos comportamentos aditivos? Como diagnosticar e como compreender as fronteiras entre o normal e o patológico neste domínio? Como compreender as comorbilidades associadas (no sentido em que o comportamento humano, nas suas mais variadas manifestações, expressa sempre uma realidade psíquica multifacetada)? É sabido que a patologia dos comportamentos aditivos tem, muitas vezes, conexões com outras perturbações psicoafetivas e/ou do “agir” (como é referido, por exemplo, no quadro do suicídio ou do comportamento criminal).

Aborda-se, posteriormente, a importância da intervenção psicológica, através dos seus instrumentos específicos de avaliação diagnóstica; das técnicas motivacionais que permitem ultrapassar as resistências ao pedido de ajuda/tratamento; do treino cognitivo na abordagem a esta patologia; bem como outros modelos inovadores de intervenção psicológica em CAD, com o olhar focado nos problemas ligados ao álcool, às SPA ilícitas, ao jogo, à internet, entre outras. Também se dirige a atenção, em alguns dos capítulos, para temas centrais na compreensão desta problemática, como o texto sobre a adolescência, que sabemos bem ser a etapa do ciclo de vida que é marcada por turbulência e inquietação, próprias do processo de desenvolvimento e de transformação biopsicossocial vivida pelo adolescente. Este conhecimento exige o desenvolvimento de programas baseados na evidência, a todos os níveis da prevenção, da redução de riscos e/ou minimização de danos (RRMD), bem como ao nível do atendimento especializado para este grupo etário, contando com a expertise dos profissionais de saúde especializados em CAD, designadamente da área da Psicologia.

Relativamente à perspetiva de intervenção psicológica, nos diferentes contextos que cruzam o percurso de vida de cada um de nós, a obra destaca num dos seus capítulos, a(s) família(s), primeira casa da relação e do afeto, onde se começa a construir o sentimento de segurança e de autoconfiança que permite caminhar para a autonomia e exploração do mundo. Neste sentido, a intervenção psicológica junto das famílias é peça central na promoção da saúde em geral e nas várias abordagens aos CAD.

Também num outro capítulo da obra foca-se a atenção na escola, outro espaço essencial de relação, de aprendizagem e de crescimento da pessoa, onde se aprendem coisas novas, se brinca, se ganha e se perde, se acerta e se falha, se ri e se chora, enfim, onde se alargam horizontes, permitindo a construção de duas capacidades essenciais: a capacidade

de pensar (criticamente) e de tomar decisões. É por isso que a intervenção psicológica em CAD, designadamente ao nível da prevenção, tem vindo a privilegiar a implementação, no contexto escolar, de programas baseados na evidência.

Em resumo, esta obra, com a multiplicidade de perspetivas que oferece sobre o fenómeno dos CAD, espelha bem a visão holística e abrangente que pretende apresentar, trazendo contributos para a reflexão e para o aprofundamento do conhecimento e de perspetivas inovadoras na intervenção em CAD. A dimensão psicológica é, seguramente, uma vertente essencial na compreensão da etiologia desta problemática, na avaliação diagnóstica da experimentação dos consumos de risco e nocivos, e na dependência (temas a que este livro dedica a sua atenção). De igual forma disponibiliza contributos significativos ao nível dos diferentes modelos psicológicos de intervenção terapêutica no domínio dos CAD e patologias associadas, sabendo-se, pela evidência científica, que os modelos de intervenção mais eficazes em CAD (e em saúde mental) são aqueles que combinam a intervenção médica/psiquiátrica/psicofarmacológica, com a intervenção psicoterapêutica e o apoio na área social.

A avaliação diagnóstica, a intervenção especializada e a prevenção da recaída (PR) são outros dos temas abordados nesta obra e são aspetos centrais na análise a esta patologia, que sabemos ser marcada por avanços e recuos ao longo do processo terapêutico. Por esta razão, o trabalho formativo dirigido aos técnicos especialistas, onde se incluem os psicólogos, passará também por refletir com estes sobre dois polos da “atitude terapêutica”: por um lado, a tentação de omnipotência do técnico e, por outro, a desesperança e/ou desistência, por parte do mesmo, em relação à pessoa com CAD.

Como é referido pela coordenação, este livro, que reúne um conjunto de textos baseados na experiência e “boas práticas” de especialistas neste domínio, pretende constituir-se como uma “ferramenta de trabalho” para a utilização de profissionais especializados nesta área (que é já “competência” consagrada pela Ordem dos Médicos), reforçando competências e melhorando a qualidade das suas práticas profissionais e clínicas. Efetivamente, a formação contínua que permita o aprofundamento de novos conhecimentos, desde as neurociências (a que este livro dedica um capítulo), aos modelos terapêuticos inovadores de intervenção psicológica/psicoterapêutica e social, é uma exigência permanente para o aperfeiçoamento da qualidade da intervenção, para a qual este livro pretende dar o seu valioso contributo. Por fim, em meu nome pessoal, mas também na qualidade de Presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, IP (ICAD), gostaria de apresentar toda a disponibilidade para contar sempre com a prestimosa colaboração dos profissionais de Psicologia, das Faculdades de Psicologia, das suas associações científicas e dos seus órgãos de representação, designadamente a OPP, nas dinâmicas a desenvolver e a implementar na área dos CAD.

João Castel-Branco

Presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências

Reflexão às Partes I e II

Os comportamentos aditivos aludem a indivíduos consumidores, rotulados, negativamente, como que diagnosticados com uma personalidade dita toxicodependente. De acordo com Páges-Berthier (2002), não existe uma personalidade dita toxicómana, mas sim características de personalidade predisponentes para o comportamento aditivo. O mesmo autor abordou as principais características, similares com as indicadas por Zocali et al. (2007):

■ Dificuldade em lidar com frustração;

■ Comportamento impulsivo;

■ Procura de novas sensações.

O consumo de substâncias psicoativas (SPA) serviria como forma de estabelecer uma harmonia entre emoções, cognições e a realidade, mediada pelos consumos, pelo reforço positivo para a continuidade e pela escalada dos consumos como principal motivador para os mesmos (Filipe-Saraiva, 2016). A problemática aditiva apresenta várias sequelas para os seus consumidores, sendo uma das associações mais conhecidas com o comportamento criminal.

Brochu et al. (1995) constataram a presença elevada de população consumidora em reclusão. A perda das funções cognitivas decorrentes dos consumos etílicos e de SPA ajudam a compreender esta associação, embora de forma redutora (Brunelle et al., 2005). Brochu (2001), acrescentou a interligação que pode manifestar-se resultante da intoxicação – desinibição dos impulsos –, elevados custos económicos derivados de uma dependência onerosa e, por fim, o submundo do tráfico de substâncias promotor de comportamentos violentos como estratégia de gestão de conflitos.

Para a intervenção terapêutica o diagnóstico de transtorno por uso de substâncias é facilmente compreendido de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais – texto revisto (DSM-5-TR). No entanto, acarreta a elevada probabilidade de coexistência de vários diagnósticos, o que nos conduz a quadros de comorbilidade psiquiátrica (Farges, 2002), concomitantes com quadros de perturbação de humor, de ansiedade, quadros psicóticos, mas também com perturbações de personalidade nomeadamente do Cluster B. De acordo com o mesmo autor, os consumos podem coexistir e potenciarem a sua continuidade, com impacto negativo para a intervenção psicológica e para a sua remissão. A referência à comorbilidade psiquiátrica leva-nos a abordar a importância do impacto dos consumos no cérebro, com potencial para alterar não só o comportamento, mas também as emoções (Filipe-Saraiva, 2025). Das alterações mais conhecidas destacamos o impacto no circuito do prazer, com o esboroar da capacidade da sensação de bem-estar e sem o recurso ao consumo de substâncias, num ciclo de consumos, tolerância e síndrome de privação com impacto neuronal nas áreas do córtex pré-frontal e no giro cingulado. Afeta a inibição dos impulsos (Volkow et al., 2007), o processo de tomada das decisões, motivação e controlo inibitório associado às adições (Goldstein et al., 2004).

As consequências e as alterações disruptivas decorrentes dos comportamentos aditivos apresentam ainda o risco acrescido para comportamento autolesivo, como é o caso do suicídio, especialmente nos quadros com consumos etílicos e nas situações em que exista patologia dual, particularmente com perturbações de humor. McLellan (2017) fez referência ao risco para o suicídio, tanto nos casos de abuso de substâncias, como nos transtornos por uso de substâncias. Athey et al. (2024) referiram a elevada prevalência de suicídio e de abuso de substância (até 5,58 vezes superiores), em comparação com o grupo de controlo e com prevalência mais elevada no sexo feminino.

Finalizamos com uma breve referência à avaliação neuropsicológica clínica, ramo da ciência que estuda os processos fisiológicos do sistema nervoso relacionados com o comportamento e cognição que permite estudar a função e a disfunção cerebral, permitindo uma avaliação e reabilitação de modo a promover a recuperação das funções neuronais afetadas pelos consumos de substâncias (American Psychological Association, s.d).

Referências

Athey, A., Shaff, J., Kahn, G., Brodie, K., Ryan, T. C., Sawyer, H., DeVinney, A., Nestadt, P. S., & Wilcox, H. C. (2024). Association of substance use with suicide mortality: an updated systematic review and meta-analysis. Drug and alcohol dependence reports, 14, 100310. https://doi.org/10.1016/j.dadr.2024.100310

American Psychological Association. (s.d). Neuropsychology. American Psychological Association Brochu, S., Brunelle, N., Plourde, C. (1995). Drogue et criminalité: une relation complexe. Les Presses de l’Université de Montréal.

Brochu, S. (2001). The relationship between drugs and crime. Illegal Drugs (Special) ILLE –Special Committee. Brunelle, N., Brochu, S., & Cousineau, M. M. (2005). Youth drug use and delinquency: youth telling their story. Les jeunes et les drogues: usages et dépendances, 279-325.

Farges, F. (2002). Toxicomania e perturbações mentais: a questão da co-morbilidade. In Angel, P., Richard, D., & Valleur, M. (Eds.), Toxicomanias. Climepsi, 188-194.

Filipe-Saraiva, C. (2016). “Drogas”: conhecer para prevenir. A experiência do psicólogo clínico em contexto prisional. Chiado Editora.

Filipe-Saraiva, C. (2025). Manual das adições e sua prevenção. Instituto Português de Criminologia. Goldstein, R. Z., Leskovjan, A. C., Hoff, A. L., Hitzemann, R., Bashan, F., Khalsa, S. S., Wang, G. J., Fowler, J. S., & Volkow, N. D. (2004). Severity of neuropsychological impairment in cocaine and alcohol addiction: association with metabolism in the prefrontal cortex. Neuropsychologia, 42(11), 1447-1458. https://doi.org/10.1016/j. neuropsychologia.2004.04.002

McLellan, A. T. (2017). Substance misuse and substance use disorders: why do they matter in healthcare?. Transactions of the American clinical and climatological association, 128, 112-130. Pagès-Berthier, J. (2002). Personalidade e toxicomania: abordagem psicanalítica – a questão da estrutura. In Angel, P., Richard, D., Valleur, M. (Eds.), Toxicomanias. Climepsi, 179-185. Wickelgren, I. (1997). “Getting the brain`s attention”. Science, 278, 35-37. Volkow, N. D., Fowler, J. S., Wang, G. J., Swanson, J. M., & Telang, F. (2007). Dopamine in drug abuse and addiction: results of imaging studies and treatment implications. Archives of neurology, 64(11), 1575-1579. https://doi.org/10.1001/archneur.64.11.1575

Zoccali, R., Muscatello, M. R., Bruno, A., Bilardi, F., De Stefano, C., Felletti, E., Isgrò, S., Micalizzi, V., Micò, U., Romeo, A., & Meduri, M. (2007). Temperament and character dimensions in opiate addicts: comparing subjects who completed inpatient treatment in therapeutic communities vs. incompleters. The American journal of drug and alcohol abuse, 33(5), 707-715. https://doi.org/10.1080/00952990701522625

Suicídio e Dependências

Introdução

O estudo das adições a substâncias psicoativas (SPA) (vulgarmente designadas por drogas) e dependências no campo da psiquiatria, quer na morbilidade isolada, quer na comorbilidade da patologia dual, ocupa uma preocupação crescente na prática clínica. Existe um consenso, na generalidade das teorias, acerca do consumo de SPA quanto ao risco de ideação de morte, independentemente da patologia psiquiátrica de base (Youdelis-Flores & Ries, 2019). Em função do largo espetro dos comportamentos suicidários e, procurando simplificar os aspetos concetuais, é de esperar uma diversidade de fenómenos entre dois polos, desde a suicidalidade passiva à suicidalidade ativa, ou seja, o desejo de morte passiva e o desejo de morte ativa com intencionalidade e passagem a eventual gesto fatal (Saraiva, 2014).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que mais de 700 000 indivíduos cometem suicídio todos os anos (World Health Organization [WHO], 2021). O suicídio é um fenómeno multideterminado e complexo que obedece a fatores predisponentes e precipitantes, frequentemente considerados sob o modelo diátese-stress, que procura explicar as doenças pela interação entre fatores predisponentes vulneráveis e certos fatores perturbadores vivenciados (Rubinstein, 1986; Schotte & Clum, 1982). Entre os países com as taxas mais elevadas de suicídio no mundo (número de mortes por 100 mil habitantes e por ano) destacam-se, por exemplo, Lituânia, Letónia, Cazaquistão, Hungria, Bielorrússia, Coreia do Sul, entre outros. A taxa de suicídio em Portugal tem oscilado à volta de 11 mortes por 100 000 habitantes. Embora não sendo um número muito elevado em comparação com outros países, a verdade é que cresceu cerca de 22% nos últimos anos. Existe, todavia, um número elevado de mortes indeterminadas, situação peculiar dentro da União Europeia (UE). Tal facto tem gerado forte polémica sobre a fiabilidade dos dados estatísticos, ainda que a subdeclaração do fenómeno seja universal por razões de ineficiência médico-legal, cultural ou religiosa.

Num estudo de amostra relevante, o risco de suicídio entre indivíduos que padeciam de adições, sem outras patologias psiquiátricas, foi 7,13 mais alto quando comparado com a população geral sem história recente de psicopatologia. Este número quase duplicaria (13,48) se também ocorresse existência de história psiquiátrica recente. Numa análise de regressão, o tempo médio de evolução para suicídio consumado em pacientes com adição foi de 5,8 anos (Hesse et al., 2020).

consumado, quer para as designadas tentativas de suicídio (Murphy et al., 1992; Preuss et al., 2003).

Alcoólicos que cometeram suicídio (Murphy et al., 1992):

■ Excesso de consumo dias ou meses antes do suicídio;

■ Falta de suporte social;

■ Solidão;

■ Ter falado com alguém sobre suicídio;

■ Doença física grave;

■ Desemprego.

Alcoólicos que fizeram tentativas de suicídio (Preuss et al., 2003):

■ Histórico de tentativas anteriores;

■ Início precoce da adição;

■ Dependência grave;

■ Dependência de outras substâncias (por exemplo, opioides e cocaína);

■ Situação de divórcio/separação;

■ Histórico de tratamentos anteriores (por exemplo, depressão major);

■ Sintomas de pânico (por exemplo, ataques de pânico recorrentes);

■ Diagnóstico adicional de perturbação psiquiátrica induzida por substâncias (por exemplo, psicose paranoide).

No modelo de Conner e Duberstein (2004) percebe-se a dicotomia clássica entre fatores predisponentes e fatores precipitantes. De entre os primeiros, destacam-se a agressividade, a impulsividade e a gravidade do alcoolismo; já nos segundos, relevam-se a depressão major e a conflitualidade interpessoal. Aliás, o traço temperamental de impulsividade, não se limitando apenas ao alcoolismo, surge também frequentemente associado a agitação psicomotora e outras condições suscetíveis de contribuir para a suicidalidade (Mack & Lightdale, 2006).

Substâncias e suicidalidade (Mack e Lightdale, 2006):

■ Desinibição (dose-dependente);

■ Agitação psicomotora;

■ Psicose (por exemplo, surto psicótico e certos casos de bad trip/má viagem);

■ Impulsividade;

■ Irritabilidade;

■ Depressão major;

■ Violência;

■ Overdose;

Reflexão às Partes III, IV e V

Os comportamentos aditivos são um fenómeno complexo e multidimensional que afeta milhões de indivíduos em todo o mundo (Devi & Singh, 2023). O impacto não atinge apenas os indivíduos que têm o comportamento aditivo, mas também as suas famílias, a comunidade e a sociedade em geral (Adzrago et al., 2018, Mardani et al., 2023). Na sua essência, a adição não se resume à dependência de substâncias ou a comportamentos compulsivos, sendo um fenómeno multifacetado, profundamente enraizado em processos psicológicos, influências socioambientais e mecanismos neurobiológicos (Xu & LaBar, 2019). Desta forma, para abordar efetivamente este problema, é essencial reconhecer que a intervenção tem de ser abrangente. Enquanto os tratamentos farmacológicos abordam os aspetos fisiológicos, como a síndrome de abstinência, a psicologia aprofunda o intrincado funcionamento da mente humana, desvendando os processos cognitivos da adição e promovendo transformações duradouras. A intervenção psicológica desempenha, portanto, um papel fundamental no tratamento, uma vez que visa os fatores psicológicos subjacentes que contribuem para os comportamentos aditivos (Gifford & Humphreys, 2007).

Ao longo desta obra, iremos abordar um espetro de modelos de intervenção psicológica, cada um oferecendo uma lente única, através da qual entende e aborda os comportamentos aditivos. Dentro do leque dos diversos modelos de intervenção, a terapia cognitivo-comportamental (TCC) destaca-se em termos de evidência científica pela sua eficácia e versatilidade (Magill et al., 2020). Fundamentada na premissa de que pensamentos, emoções e comportamentos estão interconectados, a TCC fornece aos indivíduos as ferramentas práticas para desafiar padrões desadaptativos, ressignificar o pensamento negativo e promover estratégias de confronto mais saudáveis. Ainda dentro da corrente da TCC, a entrevista motivacional (EM) baseia-se numa abordagem empática e centrada no cliente, que orienta os indivíduos para a mudança, explorando e ampliando as motivações intrínsecas. Através de uma abordagem colaborativa e intervenções estratégicas, a EM capacita os indivíduos a normalizarem a ambivalência inerente ao processo de mudança, promovendo o crescimento autodirigido. Ainda na alçada da TCC, o Modelo de Prevenção de Recaída fornece aos indivíduos competências e estratégias necessárias para identificar, antecipar e lidar eficazmente com situações de alto risco, minimizando a probabilidade de recaída e promovendo a mudança de longo prazo (Wanigaratne, 2006).

A terapia psicodinâmica orienta-se para os processos subconscientes, explora as experiências passadas, os conflitos inconscientes e as dinâmicas relacionais que moldam comportamentos aditivos (Wanigaratne, 2006). Já a terapia sistémica familiar reconhece a dependência como um fenómeno sistémico, implicando não apenas o indivíduo, mas também os contextos familiares e sociais nos quais ela prospera ou diminui. O Modelo de Minnesota, proveniente do trabalho pioneiro da Fundação Hazelden, oferece uma abordagem holística para o tratamento da dependência, misturando elementos de psicoeducação, terapia de grupo e princípios dos 12 passos (Anderson et al., 1999). Tendo como objetivos a abstinência, a espiritualidade e o apoio dos pares, o Modelo de Minnesota tornou-se a base

de muitos programas de tratamento residencial, moldando o cenário do tratamento da dependência em todo o mundo.

À medida que atravessamos estes modelos de intervenção, os seus fundamentos teóricos, as aplicações clínicas e as evidências empíricas, fornecemos a profissionais, investigadores e estudantes as ferramentas necessárias para aceder às complexidades da intervenção nas adições. Numa área onde a história de cada indivíduo é única, este livro serve como um guia para uma compreensão mais profunda das adições e oferece orientações para o tratamento psicológico de um fenómeno que está em constante mutação e crescimento.

Referências

Adzrago, D., Doku, D. T., & Adu-Gyamfi, A. B. (2018). Experiences of individuals with alcohol and drug addiction at rehabilitation centres in Ghana. Journal of addiction research & therapy, 9(4).

Anderson, D. J., McGovern, J. P., & DuPont, R. L. (1999). The origins of the Minnesota model of addiction treatment – a first person account. Journal of addictive diseases, 18(1), 107-114. https://doi.org/10.1300/J069v18n01_10

Devi, S., & Singh, S. (2023). Relapse in drug addiction: a review. Indian journal of health and wellbeing, 14(3), 405-409.

Gifford, E., & Humphreys, K. (2007). The psychological science of addiction. Addiction (Abingdon, England), 102(3), 352-361. https://doi.org/10.1111/j.1360-0443.2006.01706.x

Magill, M., Tonigan, J. S., Kiluk, B., Ray, L., Walthers, J., & Carroll, K. (2020). The search for mechanisms of cognitive behavioral therapy for alcohol or other drug use disorders: a systematic review. Behaviour research and therapy, 131, 103648. https://doi.org/10.1016/j. brat.2020.103648

Mardani, M., Alipour, F., Rafiey, H., Fallahi-Khoshknab, M., & Arshi, M. (2023). Challenges in addiction-affected families: a systematic review of qualitative studies. BMC psychiatry, 23, 439. https://doi.org/10.1186/s12888-023-04927-1

Míguez, M. C., & Becoña, E. (2015). Do cigarette smoking and alcohol consumption associate with cannabis use and problem gambling among Spanish adolescents?. Adicciones, 27(1), 8-16.

Wanigaratne, S. (2006). Psychology of addiction. Psychiatry, 5(12), 455-460. https://doi. org/10.1053/j.mppsy.2006.09.007

Xu, B., & LaBar, K. S. (2019). Advances in understanding addiction treatment and recovery. Science advances, 5(10), eaaz6596. https://doi.org/10.1126/sciadv.aaz6596

através da aquisição de novos padrões funcionais pelos quais a obtenção do prazer e a alteração dos estados emocionais não são mediados pelo consumo de substâncias, sendo fundamental compreender os fatores sociais (antecedentes ambientais) e cognitivos (crenças e expectativas) das condutas e respetivas consequências (Marlatt & Gordon, 1985). O presente modelo é, assim, encarado como uma alternativa terapêutica bastante eficaz para os clientes que estão na fase da manutenção, uma vez que apoia a sua intervenção num conjunto de estratégias orientadas para o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento, restruturação cognitiva e promoção de um estilo de vida saudável.

Segundo Marlatt e Gordon (1985), o objetivo central do modelo é intervir no processo de recaída, através do qual, após um lapso, se procura auxiliar o cliente na sua recuperação, dotando-o de técnicas e/ou habilidades, desenvolvidas com base num referencial cognitivo comportamental, contribuindo para a PR.

A Figura 8.1, que representa o modelo em causa, permite-nos entender que, perante uma situação de alto risco, entendida como qualquer gatilho interno (psicológico) ou externo (ambiental) que ameace a perceção de controlo (autoeficácia), o indivíduo poderá seguir dois caminhos:

■ Enfrentamento – perceber o momento em que a intervenção deve ser feita de modo a impedir o lapso;

■ Recaída – retorno ao padrão anterior de consumo.

Situação de alto risco

Resposta de confronto

Autoeficácia aumentada

Nenhuma resposta de confronto

Autoeficácia diminuída e expectativas de resultado positivo (para efeitos iniciais da substância)

Probabilidade diminuída de recaída

Uso inicial da substância

Fig. 8.1 Modelo de Marlatt da

Efeito de violação da abstinência (EVA), conflito de dissonância e autoatribuição (culpa e perceção de perda de controlo)

Probabilidade aumentada de recaída

Face às críticas que lhe foram sendo apontadas, nomeadamente por não considerar questões como a intensidade do craving, os sintomas de abstinência e o suporte social, o modelo foi sofrendo alterações significativas. Marlatt (1985, citado por Beck et al., 1999) descreveu os processos cognitivos ligados às adições que refletem os modelos cognitivos.

prevenção da recaída

Abordagem Psicológica na Cessação Tabágica

Introdução

A tendência atual do fenómeno relacionado com o consumo e exposição a produtos de tabaco continua a ser um desafio para a saúde pública. Segundo o último relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (World Health Organization [WHO], 2023) o consumo de tabaco continua a dizimar vidas humanas – mais de 8 milhões de pessoas em todo o mundo – com tendência crescente, mas desigual em diferentes latitudes.

O tabagismo é classificado pela OMS como a principal causa evitável de doença e morte, sobretudo nos países desenvolvidos (WHO, 1999). A OMS previa, para 2020, que o tabaco se tornasse a maior causa de invalidez e mortalidade, causando mais mortes que o vírus da imunodeficiência humana (VIH), a tuberculose, a mortalidade infantil, os acidentes de viação, entre outros (WHO, 2004). A nível mundial estima-se que a nicotina seja a segunda substância psicoativa mais consumida – 1,2 mil milhões de fumadores, maiores de 15 anos. Há uma maior prevalência de homens fumadores do que mulheres (48% versus 12%), a nível global, mas as diferenças são bem menores nos países desenvolvidos, onde cerca de um quarto das mulheres fumam (Corrao et al., 2000).

De acordo com as últimas estimativas elaboradas pelo Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), em 2019 morreram, em Portugal, mais de 13 500 pessoas por doenças atribuíveis ao tabaco, das quais 10 814 eram homens (18,6% do total de óbitos) e 2745 mulheres (4,7% do total de óbitos). No mesmo ano, estima-se que o tabaco tenha contribuído para 32,6% dos óbitos por doença respiratória crónica; 19,1% por cancro; 8,5% por doenças cérebro-cardiovasculares; 9,8% por diabetes mellitus tipo 2 e 14% por infeções respiratórias do trato inferior. Segundo resultados do Inquérito Nacional de Saúde (INS), 17% da população residente em Portugal, com 15 ou mais anos, era fumadora, diária ou ocasional (23,9% homens e 10,9% mulheres), menos três pontos percentuais que em 2014; 1,3 milhões de pessoas (14,2%) fumavam diariamente e 248 mil (2,8%) faziam-no ocasionalmente (Nunes, 2002; 2021).

Atualmente, existe evidência científica suficiente para advertir as crianças e adolescentes, grávidas e a população em geral para o risco real que a nicotina provoca no organismo, a médio e longo prazo e, em particular, a nível do sistema nervoso central (SNC). O cigarro e o seu fumo são um verdadeiro “cocktail” de substâncias tóxicas que provocam, de forma direta ou indireta, diversos tipos de doenças oncológicas, doenças cardio e cérebro vasculares, doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), entre outras (Edwards, 2004; Nunes, 2006).

Tratamento e Recaída na Perturbação

artigo, que quatro de cinco estudos económicos encontraram benefícios substanciais em termos de redução de custos, o que indica que as intervenções AA/TSF provavelmente reduzem, substancialmente, os custos de cuidados de saúde.

Em conclusão, as intervenções clinicamente realizadas pela TSF, destinadas a aumentar a participação de AA, geralmente levam a melhores resultados ao longo dos meses ou anos subsequentes, em termos de produção de maiores taxas de abstinência contínua. Apesar destes estudos terem sido efetuados sobretudo para o álcool, podemos concluir que os resultados para o problema de jogo serão muito idênticos, pois a metodologia é semelhante em termos de programa, passos, tradições, formatos, abstinência de consumos ou de apostas a dinheiro (Kelly et al., 2020a).

Impacto do jogo patológico nos familiares e pessoas significativas

A pessoa com perturbação de jogo vai afetar diretamente entre cinco a dez pessoas (Wardle et al., 2019) à sua volta. Frequentemente, estes familiares ou pessoas significativas sentem-se incapazes, ignorando como poderão ajudar o jogador, não sabendo também como se salvaguardar de um desgaste físico, mental e emocional que os acompanhou na dependência do apostador. Este sofrimento do familiar perdura durante o tratamento, que não sabe como se posicionar em todo o processo. Além de reencaminhar estas pessoas significativas para o apoio adequado, podemos integrá-las no tratamento do jogador, salvaguardando a confidencialidade e confiança do paciente no processo terapêutico. No estudo de Ingle et al. (2008), as pessoas significativas podem atuar como apoio social para os jogadores que procuram tratamento, aumentando a duração do mesmo. Envolver entes queridos em modelos de tratamento do jogo pode significar influenciar positivamente os resultados terapêuticos dos jogadores, aumentando, assim, as probabilidades de sucesso. No geral, 6% da população adulta declara ser um “outro afetado pelo jogo” (aqueles que foram afetados negativamente pelo jogo de terceiros). Isto equivale a uma estimativa de aproximadamente 3 343 000 adultos na Grã-Bretanha (Gunstone et al., 2021).

O apoio social de boa qualidade, sob a forma de suporte emocional, boa informação e ajuda material, é um recurso inestimável para os membros das famílias afetadas, apoiando os seus esforços de sobrevivência e contribuindo positivamente para a sua saúde (Orford et al., 2010). Ao participar no tratamento do familiar com problemas de jogo e ao obter ajuda para si próprio, ganha-se uma situação em que todos beneficiam a um nível mais estrutural e funcional.

Autoexcluir-se de apostar é uma possibilidade com inúmeras vantagens, se bem que, qualquer apostador que decida jogar consegue sempre fazê-lo de uma forma ou outra, nem que seja no jogo clandestino ou ilegal. Num estudo efetuado por Uríszar et al. (2023) evidenciam-se os seguintes resultados: a autoexclusão foi significativamente relacionada com o sexo feminino; ao elevado status socioeconómico; a uma preferência por jogos de azar estratégicos e mistos; maior duração e gravidade da perturbação de jogo; altas taxas de psicopatologia geral; maior presença de atos ilegais e altas taxas de procura de sensações; mais anos de evolução da perturbação e elevados índices de sofrimento emocional. No entanto, esses pacientes apresentam melhor resposta ao tratamento. Clinicamente, é expectável que essa

Plano de intervenção clínica

Observando a Figura 15.1 é, esquematicamente, apresentado o plano de intervenção clínica com uma abordagem integrativa e transversal, do ponto de vista temporal, acompanhando a complexidade biopsicossocial inerente a este quadro clínico do caso em estudo.

Preparação:

• Contrato terapêutico;

• Consentimento informado;

• Objetivos/Motivação;

• Estádio de mudança;

• AP;

• História clínica e familiar;

• Sintomas;

• Comorbilidade;

• História de dependêcia;

• Função/Ganhos.

Futuro:

• Terapia quinzenal no 1.º ano;

• Modelo dos 12 Passos;

• Espiritualidade e autenticidade;

• Projeto de vida;

• Monitorização de vontades de uso e situações de risco.

Psicoeducacional Regulação emocional

Presente:

• Recursos positivos;

• Lugar seguro;

• Narrativa interna;

• Competências sociais;

• Empoderamento;

• Trabalhos terapêuticos;

• Diário emocional.

Prevenção de recaída

Trauma e vínculo

Passado:

• Protocolos de EMDR;

• IFS – trabalho de partes;

• Esquemas maladaptativos;

• Corpo;

• 12 Passos – 1.º-4.º passo.

Fig. 15.1 Intervenção clínica integrativa com Terapia do Esquema (TE), EMDR, MTT, IFS, Método Minnesota e os 12 Passos

Na fase inicial de construção do plano psicoterapêutico define-se o contrato terapêutico (CT); estabelecem-se objetivos de curto, médio e longo prazo; define-se o protocolo de avaliação em função das necessidades; faz-se o levantamento da história clínica, familiar e dos comportamentos aditivos; desenha-se o mapa genealógico; exploram-se recursos e a qualidade da motivação; e constrói-se e fortalece-se a aliança terapêutica.

Aprofundando as diferentes etapas do processo terapêutico, na Figura 15.2 encontra-se exposta a contextualização do caso e um resumo clínico das fases de preparação, regulação emocional, trauma e vínculo, e a PR.

POsfáciO

Nas duas últimas décadas do século xx, Portugal teve um grave problema com o consumo de drogas ilegais de administração preferencialmente endovenosa. Em 10 anos (1989-1999), as mortes por overdose quadruplicaram, atingindo os 400 óbitos/ano, enquanto as taxas de doenças infectocontagiosas (vírus da imunodeficiência humana [VIH]/síndrome da imunodeficiência adquirida [SIDA], tuberculose e hepatite B e C) aumentavam significativamente. Em 1999, Portugal tinha a maior taxa de incidência de seropositivos por VIH/SIDA na Europa. A lei da droga, que estava em vigor, criminalizava o consumo de drogas e penalizava o consumidor.

Perante a gravidade do problema e sabendo-se que o consumo de drogas não estava concentrado em grupos marginais, mas disseminado em todas as classes sociais, vários foram os intervenientes, como famílias, profissionais de saúde e da justiça e políticos, que questionaram esta estratégia de repressão e de abstinência de consumo, enquanto salientavam a necessidade de se criarem medidas de saúde pública coerentes e respeitassem os direitos das pessoas. É neste sentido que, ainda na dependência do Ministério da Justiça, abrem, em 1976, os Centros de Estudos da Profilaxia da Droga (CEPD) com intervenção na prevenção, tratamento e inserção social dos toxicodependentes e em 1977, as comunidades terapêuticas para internamentos mais prolongados. Tem início, em 1977, o programa de substituição com metadona para dependentes de opiáceos. Mas é quando a área das adições passa para o Ministério da Saúde que começam a ser dados os primeiros passos para uma abordagem mais integrada e diversificada nos cuidados a esta população. Em 1987, surge o Projeto Vida, muito ligado à prevenção da toxicodependência, e abre o Centro das Taipas para tratamento a toxicodependentes. Na área da redução de riscos e minimização de danos é lançado, em 1993, o Programa Troca de Seringas – Diz Não a Uma Seringa em Segunda Mão, que ainda hoje se mantém, tendo já sido distribuídas/trocadas mais de 58 milhões de seringas. Já no processo de reabilitação e reinserção familiar e profissional surge o Programa Vida Emprego, em 1997, que tinha como estratégia o apoio técnico e financeiro à contratação de toxicodependentes em tratamento, com vista à sua inserção socioprofissional, programa que acabou com a chegada da troika a Portugal em 2011. Ainda em 1997, há o alargamento do Programa de Substituição com Metadona às farmácias, o que permitiu que estas passassem a disponibilizar metadona. Numa altura em que vigorava uma lei que criminalizava o consumo de drogas, Portugal preferia cuidar e tratar, em vez de punir os consumidores de drogas.

Em 1999, estas práticas clínicas tiveram reflexo no desenvolvimento de uma Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, elaborada por uma comissão de peritos, que passou a encarar o toxicodependente como um cidadão doente, com comportamentos de risco que podem originar graves problemas de saúde pública, sendo, por isso, necessário motivá-lo e encaminhá-lo para tratamento. A partir de 2001, Portugal inicia uma nova política em matéria de drogas com a lei da descriminalização do consumo e posse de todas as drogas, adotando uma abordagem orientada para a saúde.

A maior enfâse foi colocada na reabilitação e no tratamento, alargando-se a rede pública de centros de tratamento a todo o país, havendo, pelo menos, um centro em cada distrito de

Portugal Continental. Houve também uma forte aposta na área da redução de riscos e minimização de danos, com financiamento a Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e organizações não-governamentais (ONG) que já trabalhavam no terreno. Através de estratégias tolerantes, pragmáticas e humanistas, foi-se construindo uma rede global de respostas integradas e complementares, a nível local, com interlocutores públicos e privados, ao mesmo tempo que se diversificavam as opções de tratamento, de reinserção social e de intervenção comunitária com o objetivo de manter o toxicodependente no tratamento e, assim, reduzir o consumo de drogas; diminuir a percentagem de consumidores seropositivos; reduzir taxas de criminalidade; e aumentar a segurança pública. A situação do país melhorou com a introdução desta política. Entre 1998-2011, verificou-se um aumento de 60% (23 600 para 38 000) no número de toxicodependentes em tratamento na rede de serviços públicos; e, entre 1999 e 2003, o número de overdoses diminuiu 59%. Portugal tem, atualmente, as taxas de mortalidade relacionadas com o consumo de drogas mais baixas da Europa e o número de novos casos positivos para o VIH nos consumidores de drogas diminui mais de 90% (2000-2020). A intervenção clínica deve ser feita através de equipa multidisciplinar, na medida em que todos os programas de tratamento, para trazerem benefícios, implicam não só o tratamento ao consumo das drogas, mas também a abordagem de outras dimensões da vida da pessoa, como problemas físicos, psicológicos, sociais, profissionais e legais. Daí a necessidade de técnicos com diferentes áreas de formação que trabalham em equipa. Esta abordagem, baseada na saúde, tem sido considerada como um modelo a seguir por outros países, mas alguns estão com dificuldades em conseguir aplicá-lo. Veja-se, por exemplo, o que está a acontecer nos Estados Unidos da América (EUA) que passam por um grave problema de consumo de drogas ilegais, havendo mais de 100 mil mortes/ano por overdose. Em 2022, perto de 49 milhões de pessoas tinham problemas com o consumo de drogas, mas só uma quarta parte deles (13 milhões) tiveram acesso ao tratamento. Mais de oito milhões de adultos necessitavam tratamento para a adição a opioides, mas apenas 46% tiveram acesso ao tratamento e só 25% receberam medicamentos para esse problema. Para compreender melhor os fatores que limitam o acesso ao tratamento, foi publicado na revista The Journal of the American Medical Association (JAMA)1 um artigo de revisão que identifica as principais razões que levam os médicos a sentirem dificuldades quando têm de intervir em doentes com adições. Os autores analisaram 283 estudos publicados sobre este tema, nos últimos 61 anos, e concluíram que 81% dos médicos referiram falta de apoio institucional, 74% falta de conhecimentos suficientes e 72% disseram não ter formação. Preocupante é que 66% dos médicos disseram ter receio da aceitação pública e comunitária relativa à prestação de cuidados a consumidores de drogas, estando o estigma associado ao uso de drogas bem presente num número significativo destes profissionais de saúde. Desenvolver novos tratamentos é importante, mas é também fundamental estudar como aplicar esses tratamentos às pessoas que deles necessitam.

Este livro vem salientar a importância de continuarmos a investir na formação de técnicos para que tenham uma base sólida de conhecimentos sobre os comportamentos aditivos e acerca das dependências. Vários dos autores que participam neste livro têm dedicado muitos anos da sua vida profissional ao estudo deste tema e à organização de métodos de intervenção na prevenção, redução de risco e minimização de danos, avaliação, tratamento

1 Campopiano von Klimo, M., Nolan, L., Corbin, M., Farinelli, L., Pytell, J. D., Simon, C., Weiss, S. T., & Compton, W. M. (2024). Physician reluctance to intervene in addiction: a systematic review. JAMA network open, 7(7), e2420837. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2024.20837

e reinserção. A sua experiência está bem ilustrada com a descrição de casos clínicos. A partilha de conhecimentos é importante e necessária, mas tem maior eficácia quando acompanhada de práticas adaptadas à realidade local.

Confrontados com a evolução de um fenómeno que está em permanente mudança (há outro padrão de consumo, novas substâncias psicoativas (NSP) e adições sem substância) tem de se ajustar a intervenção a estas novas realidades. Porém, a partir de 2011, houve, em Portugal, um desinvestimento político nesta área, que se refletiu a nível do financiamento dos serviços públicos e privados. Deixou de se ouvir falar de droga e pensava-se que o problema estava “resolvido”. Antes pelo contrário, o que se verificou foi que houve um recrudescimento do fenómeno com impacto nas pessoas e no espaço mediático, situação que se agravou significativamente após a pandemia de COVID-19 em 2020. Passou a haver novamente consumo a céu aberto, com grande visibilidade na comunidade e que perturba o cidadão comum. Só que, ao contrário da década de 80/90 do século xx, os consumidores atuais são de classes sociais mais pobres, desprotegidas e vulneráveis, onde se inclui um vasto número de consumidores imigrantes. Daí que comecem a aparecer cidadãos, alguns com responsabilidade política, que questionam se não deveríamos voltar a criminalizar o consumo de drogas. Fazer pagar o ato de se drogar com o pesado preço de uma condenação penal, acaba por levar um pouco mais o consumidor para a exclusão e por agravar todas as consequências médicas, psicológicas e sociais. Para alguns, parece ser mais fácil punir do que cuidar e tratar consumidores de drogas.

A descriminalização das drogas não é uma solução para os problemas das drogas. Será sim, um primeiro passo que é necessário, mas não suficiente, para substituir a proibição por uma abordagem de saúde pública. Portugal tem uma experiência acumulada de mais de quatro décadas em matéria de intervenção em adições. Este saber fazer de muitos anos, justifica que não se perca a especificidade das intervenções nos comportamentos aditivos e dependências (CAD), já que elas são o garante, com base em conhecimentos e métodos com evidência científica, de uma intervenção integrada e multidisciplinar e, por isso, parte indispensável de uma política que deve ter continuidade. Por todas estas razões, mas não só, entendo que este livro merece especial atenção por parte de qualquer leitor interessado na área das adições.

Rocha Almeida

Médico e psiquiatra Presidente da Associação Portuguesa de Adictologia

Dependências

M anual de Intervenção Psicológica

As dependências, sejam de substâncias ou comportamentais, representam hoje um dos maiores desafios da saúde mental. A sua complexidade, alimentada por fatores psicológicos, sociais e contextuais, exige abordagens terapêuticas atualizadas, baseadas na evidência e centradas na pessoa. Este livro surge como resposta a essa necessidade urgente, apresentando uma abordagem integradora e prática, com um retrato claro e profundo das diferentes dependências – do consumo de drogas ao jogo, passando por comportamentos como o sexo, as compras, o exercício físico e a alimentação.

Com casos clínicos reais e exemplos práticos para aplicação imediata, a par de uma fundamentação teórico-prática sólida, este livro constitui-se como um guia essencial para profissionais da saúde que lidam com estes fenómenos no dia a dia, explorando ainda temáticas como a avaliação (neuro)psicológica, a entrevista motivacional, o papel da adolescência, da família e da escola, bem como o impacto crescente da canábis e os desafios que a sua legalização poderá implicar. A obra valoriza uma intervenção humanista, de redução de riscos e minimização de danos, promovendo um olhar crítico e informado sobre as práticas existentes.

CONTEÚDOS

Diagnóstico e comorbilidades

Personalidade, emoções e comportamentos nas adições

Impacto do consumo de substâncias psicoativas no cérebro

Suicídio e dependências

Comportamento criminal

Avaliação e intervenção psicológica

Entrevista motivacional

Treino cognitivo em pessoas com perturbações por uso de substâncias

Prevenção da recaída

Onde quer que esteja – no escritório, em casa, em território nacional ou no estrangeiro – a qualquer hora do dia ou da noite, as nossas obras estão sempre a um clique de distância…

DEPENDÊNCIAS

ABORDADAS

Drogas/novas drogas

Álcool

Destinado a estudantes, psicólogos, psiquiatras, técnicos de saúde mental e investigadores, este livro, escrito por um conjunto multidisciplinar de autores, constitui-se como uma ferramenta imprescindível para todos os que procuram compreender melhor as dependências e intervir de forma ética, eficaz e transformadora.

Tabaco

Perturbação de jogo

Dependências online

Outras dependências comportamentais

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