A colmeia

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Um clássico perdido da ficção distópica finalmente no Brasil.

O CONTO DA AIA LIVRO PRECURSOR DE

tradução
Bia Nunes de Sousa

Copyright © 1980 Margaret O’Donnell

Copyright desta edição © 2025 Editora Vestígio

Copyright da tradução de Apocalipse 18:4-6 (p. 197) Almeida Corrigida Fiel © 1994, 1995, 2007, 2011 Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil (SBTB)

Título original: The Beehive

Esta edição é publicada mediante acordo com Valancourt LLC através de Piergiorgio Nicolazzini Literary Agency (PNLA) em conjunto com LVB & Co. Agência e Consultoria Literária.

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direção editorial

Arnaud Vin

edição e preparação de texto

Samira Vilela

adaptação de capa

Diogo Droschi

(Sobre ilustração de Henry Petrides)

diagramação

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

O’Donnell, Margaret, 1932-2019

A colmeia / Margaret O’Donnell ; tradução Bia Nunes de Sousa. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio Editora, 2025.

Título original: The Beehive.

ISBN 978-65-6002-116-7

1. Ficção inglesa I. Título. 25-270443 CDD-823

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura inglesa 823

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

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– Tem certeza de que ninguém a seguiu? – insistiu Sarah. – Claro que tenho. Se algum guarda tivesse me visto, teria me levado presa na hora.

– Pelo amor de Deus, Steph, tenha juízo. Eles sabem que a nossa organização existe agora, e não a prenderiam se achassem que você poderia trazê-los até nós.

A mente de Stephanie repassou com urgência o curto caminho entre o albergue e o prédio abandonado onde elas estavam.

– Não, ninguém me seguiu. Tenho certeza. Sarah relaxou um pouco, perguntando-se se as outras teriam notado o quanto seus nervos estavam à flor da pele. Achou que dar início à concretização dos planos abrandaria parte da tensão dentro dela, mas não; aumentava mais a cada dia desde o primeiro movimento que havia comprometido a ela, e a todas as outras, com o Levante. Não era mais o exercício teórico com o qual tinham se entretido durante tanto tempo; agora era algo independente, com movimento e curso próprio, que ou as faria atingir seus objetivos ou destruiria a todas. Fitou o pequeno grupo ao redor, que aguardava em silêncio que ela começasse, e se perguntou como as mulheres reagiriam caso soubessem dos seus medos e dúvidas. Para elas, Sarah era a mente lúcida e calma que criara e planejara tudo nos mínimos detalhes; uma mente na qual não havia lugar para temores e incertezas. Ela afastou esses pensamentos e, com sobriedade, tomou para si o papel que lhe havia sido designado. Virou-se primeiro para Joan, sabendo que a eficiência daquela mulher a acalmaria.

– Conseguimos distribuir tudo?

Joan ajeitou os óculos no nariz sem nem perceber o gesto e desdobrou uma folha de papel, preparando-se para apresentar seu breve relatório.

A tensão de Sarah se dissipou um pouco mais, pois os trejeitos de Joan antecipavam que a operação tinha sido um sucesso antes mesmo que a outra falasse qualquer coisa. Sarah havia passado tanto tempo planejando e trabalhando em conjunto com aquelas mulheres que até seus gestos automáticos comunicavam tanto quanto palavras.

– Fizemos a tiragem completa de cinquenta mil dentro do prazo e sem incidentes. Nossos planos para recolher os jornais da gráfica funcionaram perfeitamente, e as mensageiras receberam a cota para distribuição pouco depois das nove e meia. A distribuição começou à meia-noite e foi finalizada às cinco e meia. – Joan olhou de relance para as mulheres atentas. – Como sabem, essa parte da operação era a que mais nos preocupava, por causa da quantidade de mulheres envolvidas e da dificuldade de coordenar todas elas. A coisa toda correu tranquilamente, com exceção de um incidente isolado, e todos os jornais foram distribuídos como planejado.

Joan se recostou e aguardou as inevitáveis perguntas de Sarah, cuja mente estava a mil. Àquela altura, elas não podiam se dar ao luxo de ter nenhum incidente, por mais isolado que fosse.

– Que “incidente” foi esse, Joan? – Sarah perguntou.

– Foi na área oito. Recebemos informações incorretas sobre a movimentação dos guardas. A mensageira estava do lado de fora dos portões quando eles a avistaram, mas ela deu sorte, pois já tinha conseguido terminar a distribuição.

– Pegaram ela? – Duas mulheres perguntaram ao mesmo tempo.

– Sim. – A voz de Joan estava cuidadosamente impassível. – Ela teve sorte de não ter nada incriminador em mãos, mas o guarda estava sozinho e entediado. Bateu bastante nela.

A voz de Sarah rompeu o silêncio e trouxe as mulheres de volta de seus pensamentos.

– Quem ficou responsável por mapear a área oito?

– Fui eu. – Eli sustentou o olhar das outras, segura e confiante. – Tudo foi pesquisado minuciosamente e todas as informações foram vistas e revistas. Se o relatório da operação está correto, então a escala dos guardas foi alterada durante a noite. – Ela se sentou de novo. Era uma mulher grande, atlética, agressiva.

– É possível que eles soubessem que estávamos monitorando os guardas? – Sarah sondou.

– Bom, acho que sim, mas é muito improvável. – Eli estava relutante em admitir que poderia ter havido qualquer falha em seu trabalho. – E, claro, se os guardas tivessem recebido qualquer alerta, aquele lá não teria se arriscado a fazer o que fez. Teria prendido a mensageira.

Era uma boa justificativa, e Sarah estava disposta a aceitá-la.

– Mas mesmo que não tenha suspeitado de nada na hora, ele deve ter se dado conta mais tarde de que ela era a responsável pelos jornais – uma voz comentou.

Sarah controlou a impaciência. O comentário era de Stephanie, e Sarah se sentia especialmente responsável pela jovem, que não tinha o menor pendor para toda aquela coisa de espionagem. Manteve o tom casual.

– Ele não teria como tomar nenhuma atitude sem que isso o comprometesse. – Olhou para as companheiras, percebendo os próprios medos espelhados no rosto de cada uma. Retomou a reunião. – Acho que podemos considerar que não haverá repercussão desse incidente. Joan, tudo a postos para a próxima edição?

– Sim. Já temos o papel. Precisamos só revisar um ou dois artigos que você queria que entrassem.

– Ann, como está a contagem para a greve?

– Até o momento, podemos garantir o fechamento total de oitenta e um por cento das repartições públicas, com severas

paralisações nas demais. Cinquenta e três por cento dos escritórios não conseguirão funcionar, e haverá considerável paralisação em outros vinte e sete por cento. Sessenta e dois por cento do comércio vão fechar; todos os serviços domésticos ficarão severamente prejudicados. Conseguiremos cortar toda a comunicação ultramarina e de longa distância, mas não as transmissões automáticas.

Sarah disfarçou um sorriso. Ann era incrível, seu mundo quase que inteiramente povoado por estatísticas. Ela recitava os números de cor, calculando a probabilidade de sobreviver, ou não, às próximas semanas. Seria interessante, Sarah pensou com um humor bastante sombrio, saber quais probabilidades Ann enxergava para ela.

– Você precisa de ajuda? Mais mulheres? – perguntou.

Ann gesticulou que não.

– Ainda temos o problema das estações de TV e rádio. Não temos aliadas suficientes em nenhuma delas para causar algum impacto.

– Ainda acho que devemos acrescentar esses lugares à lista de bombardeios. – Eli estava sentada na ponta da cadeira, desafiando Sarah a rejeitar sua sugestão. Sarah escondeu a impaciência. Eli era importante para a operação e era preciso ter cuidado ao lidar com ela. Enxergava os problemas sempre preto no branco, assim como as soluções. Soluções, aliás, que invariavelmente também eram violentas. Era consumida pelo ódio, que a envolvia de um jeito quase palpável.

– Preferiria não destruir as estações, se possível – Sarah respondeu. – O ideal é que permaneçam funcionando. Se não conseguirmos o controle internamente, teremos de achar um jeito de causar interferência. Creio, Eli, que conseguirá, com as mulheres que tem em seu setor, desenvolver um aparelho para isso. Se conseguirmos bloquear o sinal quando necessário e depois entrarmos com a nossa transmissão, será muito mais efetivo. – Sarah virou-se para Eli, determinada a ignorar a agressão. – Cuide disso, ok? Você tem apenas duas semanas.

Se não conseguir chegar a uma solução, acrescentaremos à sua lista de bombardeios. – A mulherona ainda estava assimilando seu desagrado com a concessão quando Sarah continuou: –Como está o progresso com os suprimentos?

O foco de Eli se desviou.

– Temos explosivos suficientes. As faxineiras no Depósito de Artilharia tiveram cinco anos para trazer de lá o que estava obsoleto. O problema é o material para os detonadores, mas já está quase resolvido. Estaremos prontas a tempo, mas ainda acho que deveríamos tentar entrar no estoque de munições.

Sarah ignorou o novo desafio e aceitou a declaração de Eli de que estavam prontas. Sabia que podia confiar nela para organizar tudo nessa área. O problema seria contê-la depois que a operação estivesse em curso. Um embate entre as duas seria inevitável, e Sarah se questionava se teria forças para isso. Tais dúvidas, porém, eram inúteis. O que quer que acontecesse, ela sabia que precisaria encontrar forças para conter Eli e sua necessidade de destruição.

– E como vão as instalações médicas? – Sarah recorreu à docilidade de Stephanie.

A jovem se remexeu no caixote de madeira e deu de ombros.

– Precárias. Não teremos medicamentos nem anestésicos suficientes, e nossas habilidades médicas são limitadas. Só rezo para que consigamos dar conta.

Sarah tentou tranquilizá-la.

– Se nossos planos derem certo, não precisaremos de nenhum serviço médico, e você ficará sentada lá o dia inteiro sem ter o que fazer. Se não, sei que vai dar conta. Você se subestima, Steph. – Sarah deixou de mencionar, de propósito, que não haveria remédios nem habilidades médicas capazes de ajudá-las se o plano não desse certo. Elas seriam dizimadas.

Olhou para as mulheres ao seu redor. O ar frio e estagnado daquele porão abandonado as consumia por dentro,

drenando-lhes a cor da face e fazendo-as parecer tão cinzentas quanto seus cabelos e suas roupas amorfas. A luz da pequena lâmpada lançava sombras duras, que acentuavam seus ossos, aumentando a ilusão de serem mortas-vivas. Ela pensou na força dessas mulheres que cresciam e se desenvolviam por detrás das máscaras, que desempenhavam o papel de zumbis acéfalas, mas sem nunca confundir a máscara com a realidade. Sarah sentiu uma descarga de sua antiga convicção. Aquelas mulheres eram fortes, assim como todas as outras que haviam se juntado para colocar seu plano em ação. A luta para encontrar a própria identidade, e depois para mantê-la escondida e protegida por trás de sua fachada anônima, dava-lhes força para seguir o plano mesmo até o final mais amargo, se assim fosse. Não que fosse um compromisso cego, inflamado. Todas elas haviam considerado a situação com tranquilidade e chegado à mesma conclusão. Gorston plantara a semente da própria ruína quando criou a Seleção. O que mais teria conseguido reunir, de forma tão efetiva, algumas das melhores mentes do país inteiro? Parecia adequado, Sarah pensou, que uma das mais cruéis leis de Gorston fosse o que enfim o destruiria.

– Está ficando tarde – disse Sarah. – É melhor voltarmos.

Acho que não devemos arriscar nos encontrarmos de novo até o domingo antes do Levante, a menos que surja alguma emergência. Nesse caso, entraremos em contato umas com as outras como de costume. Joan, podemos nos encontrar na segunda-feira para fechar a próxima edição do jornal.

As mulheres já estavam recolhendo as cadeiras quebradas e caixas de madeira que serviam de assento, espalhando-as ao léu entre os entulhos, em meio à sujeira do prédio parcialmente demolido. Todas olharam para Ann, meio escondida nas sombras, quando ela deu uma risadinha.

– Vocês se deram conta de que, com um pouco de sorte, daremos adeus a essa sujeira e aos ratos depois de só mais uma reunião? – Ela fez um muxoxo de nojo. – Sinto que o fedor de umidade dessa espelunca me impregna por dias depois que nos

encontramos aqui. – Ann caminhou em direção à porta, que oscilava como um bêbado, pendendo de uma das dobradiças, e onde Eli já a aguardava. – Falei para vocês que meu aniversário é no dia seguinte ao Levante? Vou fazer vinte e nove anos.

As outras se apressaram pela porta, sabendo o que se passava na cabeça de Ann, mas sem comentar nada, deixando Sarah sozinha naquele cômodo sombrio com uma mulher mais velha que não dissera uma palavra durante toda a reunião.

Mary pertencia a uma geração anterior e, embora sempre lhes oferecesse uma gentileza genuína, mantinha uma barreira sutil de distância com as outras. Com exceção de Sarah. De vez em quando, Sarah se perguntava o que a destacava das demais, mas aceitava o fato com gratidão. A companhia da mulher mais velha lhe era reconfortante e tranquilizadora, como se não houvesse necessidade de esconder as próprias dúvidas e incertezas, de projetar o tempo todo uma imagem de competência e assertividade.

– O que vai fazer em relação à mensageira que foi pega?

– Mary perguntou, e, vendo o rosto inexpressivo de Sarah, completou: – Aquela que foi espancada. Tenho certeza de que as mulheres de Joan cuidaram dela, mas...

A reprimenda fez Sarah corar.

– Acha que eu deveria procurá-la?

Mary acariciou seu braço.

– Não. Você está com a cabeça muito ocupada para saber o que dizer a ela. Deixe que eu vou. – Sentada bem embaixo da luz hostil, ela olhou diretamente para Sarah e falou com gentileza: – Você deveria ir para casa. Parece muito cansada. E não se ofenda com o que acabei de dizer. As mulheres precisam de você como você é, com a cabeça firme e no lugar. Essa é a sua força.

Sarah devolveu o olhar, sentindo de novo a forte conexão entre elas. Aquilo a confundia. Não conseguia entender, mas sabia que existia.

Virou-se e foi embora.

A curta caminhada de volta ao albergue ocorreu sem incidentes, e Sarah ficou agradecida quando entrou em seu quarto. Mary estava certa, ela estava exausta. Despiu-se depressa e sentiu uma ligeira satisfação ao deixar cair no chão a pilha de roupas cinza que usava. O lampião lançava uma luz fraca sobre o espelho. Cruzou o quarto e fitou o próprio reflexo. Fazia muito tempo desde que havia se olhado no espelho e ficou chocada com o rosto acinzentado que a encarava de volta, tão desbotado quanto os rostos naquele porão. Afrouxou o coque e deixou os cabelos caírem ao redor da face. Cabelos cinzentos para combinar com o rosto cinzento. Sempre se impressionava quando via a própria imagem. Não havia nada cinzento em seu íntimo, nada cinzento em seus pensamentos. Sua mente era repleta de cores, tons, ânimos variados. Inclinou-se em direção ao espelho, tentando aproveitar ao máximo a iluminação irregular, tentando vislumbrar um lampejo das cores que sabia que existiam dentro de si. Mas os olhos cinzentos a fitaram inexpressivos, sem nada revelarem. Será que teria aquela aparência para sempre? Uma farsa cinza. Tentou se lembrar de como era seu cabelo pouco antes de fazer dezoito anos e ser obrigada a tingi-lo. Era louro, muito louro, quase branco. Se elas fossem bem-sucedidas, ela nunca teria que tingi-los de novo. Afastou-se do espelho e subiu devagar na cama estreita. Talvez seu cabelo fosse naturalmente cinzento agora.

Dois

Sarah posicionou a pasta exatamente no meio da escrivaninha de Nesbitt, sentindo o cheiro suave de sabonete perfumado e uísque. Ao que parecia, ele estava começando a beber cada vez mais cedo.

Ela atravessou a sala até as janelas altas para ajustar as cortinas, encobrindo o brilho dos primeiros raios de sol da manhã, e olhou para a rua movimentada. O trânsito matinal diminuía conforme os carros preenchiam as vagas de estacionamento ao redor da praça, com um carro aqui e outro ali passando devagar naquela busca ritualística por um espaço vazio. Sarah voltou-se para o homem pesado que se largava detrás da escrivaninha. A bebida era apenas um dos sinais de estresse que ele vinha demonstrando nos últimos tempos, mas ela não tinha nenhuma curiosidade acerca da causa. Ele resvalava na vida dela durante o expediente de trabalho e desaparecia de sua mente assim que ela vestia o casaco; e sabia que, na cabeça dele, ela não passava de uma máquina eficiente.

Sarah caminhou em direção à escrivaninha, postando-se em uma das laterais.

– Há sete cartas para assinar, e o senhor tem uma reunião com o Sr. Hawkins às quatro da tarde. – Notou um leve titubeio da cabeça dele, então explicou. – O senhor aceitou a proposta que a Hawkins & Companhia apresentou para aquele serviço do Governo. Vai se encontrar com o Sr. Hawkins à tarde para transmitir as especificações finais. Essa lista, além do cronograma de trabalho, está na pasta. – Fez uma pausa para se certificar de

que Nesbitt estava ouvindo. Ele ainda estava esparramado na cadeira como de costume, a cabeça jogada para trás, olhando o teto, balançando levemente de um lado para o outro. Em resposta ao silêncio dela, Nesbitt tirou uma caneta do bolso e abriu a pasta que ela colocara à sua frente.

– Tenho mesmo que ler tudo isso? – ele perguntou. Sarah balançou a cabeça em negativa. – E de que raios de serviço do Governo você está falando?

– O senhor discutiu isso comigo detalhadamente há três semanas. – A voz de Sarah soou baixa e monótona. – É para a inauguração oficial do novo Hall do Povo. A Hawkins é a gráfica que vai imprimir os materiais de divulgação. Os detalhes estão na pasta.

Ele já estava com a atenção em outro lugar quando terminou de rabiscar sua assinatura nas cartas.

– À tarde, logo depois do almoço, o senhor também vai entrevistar três homens para a vaga do Sr. Hollman. Ele vai embora daqui a três semanas.

– Hollman?

O rosto de Sarah permaneceu inexpressivo.

– Sim, ele pediu demissão na semana passada. O senhor vai encontrar o currículo dos três candidatos na pasta. – Ela voltou-se para a porta e então hesitou. – O primeiro homem a ser entrevistado é o artista que acabou de entregar a encomenda dos murais do Hall do Povo. Pode ser uma boa política oferecer o cargo a ele.

Nesbitt olhou para ela com um lampejo de interesse, mas logo voltou a fitar o teto. Colocou os pés devagar e com cuidado sobre a escrivaninha e se afundou ainda mais na cadeira.

– Você ainda não trouxe meu café.

– Vou buscar.

Ele esperou que Sarah alcançasse a porta para então falar.

– Hillard. Esses murais aí, do Hall do Povo. Você já os viu?

– Não. Estive lá semana passada para tratar da disposição dos assentos, mas os murais ainda estavam cobertos por lonas.

– Pode ser uma boa ir até lá de novo – ele sugeriu. – Veja se consegue dar uma olhada neles.

– Para você saber do que se trata antes da entrevista de hoje à tarde?

Nesbitt a fitou em busca de algum indício do sarcasmo contido naquelas palavras. Sarah sustentou o olhar friamente e se voltou para a porta.

– Vou buscar seu café.

– Não, pode deixar. Não quero mais.

Ela então deixou a sala em silêncio. Conferiu o relógio e decidiu ir até o Hall do Povo imediatamente. Considerando meia hora para dar uma olhada nos murais e mais meia hora para datilografar o relatório que permitiria a Nesbitt demonstrar seus conhecimentos artísticos na reunião, ela ainda teria uma hora para perambular pelas margens do canal. Àquela hora do dia, as amplas áreas gramadas estariam desertas, e a água estática lhe traria a ilusão de paz e solitude.

O sol havia se escondido quando Sarah desceu os degraus do escritório, e o céu ameaçava uma chuva de verão repentina. Os pedestres apertavam o passo conforme as primeiras gotas, grandes e preguiçosas, começavam a cair. Ela ainda pensava na conversa com Nesbitt. Será que ele precisava mesmo encenar aquele teatro do café toda vez? O sujeito nem gostava de café, mas repetia o mesmo ritual todas as manhãs, como se precisasse constantemente colocá-la em seu lugar; ou, quem sabe, assegurar-se do dele. Os dois sabiam que era ela quem dirigia a empresa. Pouco a pouco, ele se contentara com apenas preencher a cadeira, confiante na segurança de seu cargo, atrofiando-se no tédio.

Alguém esbarrou no braço de Sarah, puxando-a de volta à realidade. A chuva estava mais forte, cobrindo as ruas com um falso brilho. Ela olhou as pessoas ao seu redor – quase todas mulheres. Andavam em pequenos grupos ou aos pares, abrigando-se da tempestade sob guarda-chuvas ou dentro de golas levantadas. Curioso, elas pareciam nunca andar sozinhas,

sempre necessitadas de companhia. Sarah vagamente se perguntou por quê. E havia os carrinhos de bebê – por toda parte, carrinhos, bebês e crianças pequenas. Criancinhas penduradas em saias, demandando atenção, enciumadas com os adultos que monopolizavam as mães. E as cores – estranho ela nunca ter se dado conta antes. Talvez a umidade da chuva as tivesse acentuado. Atravessou a rua, parando para desviar do aglomerado de mulheres e crianças que tentava se abrigar sob a marquise iluminada das lojas. Observou as roupas coloridas das outras mulheres, apreciando os distintos tons de vermelho e verde, os azuis e os amarelos. E os cabelos delas, semicobertos por echarpes e guarda-chuvas, mas ainda assim revelando suas diferentes cores – castanhos, pretos, acobreados. Quando avistou um cabelo louro, Sarah diminuiu o passo sem perceber. Fitou a mulher curvada sobre um garotinho, limpando com um lenço o rostinho sujo de alguma guloseima. A mulher percebeu que estava sendo observada e levantou o rosto, encarando Sarah. O olhar se sustentou por um instante, em um contato anônimo e casual, e então os olhos da mulher passaram pelos cabelos e roupas de Sarah antes de se desviarem, envergonhados. A desconhecida se voltou para a criança, e agora a bronca parecia um tanto veemente demais.

Sarah deixou aquilo para trás e subiu com pressa os largos degraus do Hall do Povo, o último presente de Gorston para a nação. Parou diante das portas maciças, preparando-se mentalmente para a imensidão além delas e lembrando-se do desalento que sentira na semana anterior, quando visitara aquele prédio monstruoso com um grupo de funcionários. Ainda que estivesse repleto de trabalhadores irreverentes, com o chão coberto por sujeira e entulho, ela se sentira diminuída pelo tamanho do lugar.

Sarah empurrou a porta pesada e adentrou a frieza do salão. Estava vazio; os trabalhadores haviam ido embora sem deixar vestígios de sua recente ocupação. Ela estacou, despreparada para o sentimento de desolação que crescia conforme observava

a vastidão de granito, as colunas em forma de torre sombreadas de cinza, cuja base se assentava com firmeza em um piso igualmente sombreado. Sentia-se diminuída, exposta, uma figura solitária soterrada por pilares monstruosos que avançavam cegamente através das sombras em direção ao teto. Mal conseguia divisar a longa galeria que percorria o comprimento de todo o hall, lá em cima em meio às sombras. Ela viu a balaustrada de onde os eventuais visitantes poderiam se debruçar e admirar a vista abaixo. Parecia tão pequena, mas ao mesmo tempo era alta o suficiente para que as pessoas pudessem se apoiar. As pedras acinzentadas pareciam sufocá-la, oprimindo-a com sua solidez e imponência. Precisava se proteger, encontrar algum canto, uma sombra que fosse, onde pudesse esconder sua própria fragilidade.

Ela se esgueirou para dentro de uma das alcovas, sentindo a frieza do granito contra os ombros. Voltou o rosto para uma das colunas em forma de torre, envolvendo parte dela com os braços, como se, por um momento, pudesse se tornar uma só com aquela odiosa personificação imutável de vida. O frio beliscou sua bochecha quando pressionou o rosto contra a superfície firme, e toda a realidade se extinguiu, restando apenas sua fraqueza e desolação. Era impensável medir forças contra aquela pedra; seria melhor, muito melhor abraçá-la, sucumbir a ela e abrir mão de toda a esperança. O frio penetrava em seu corpo conforme ela se apoiava na pedra, até que, aos poucos, Sarah se deu conta de que ainda havia calor em seu rosto. Afastou-se da coluna, tocou a face com a ponta dos dedos, as lágrimas escorrendo entre eles, trazendo de volta o ardor. Esperou, paciente e impassível, que a onda de desamparo passasse – uma figurazinha acinzentada se imiscuindo na pedra massiva. Ela não podia perder as esperanças. Não importava o quanto aquela sociedade fosse poderosa e imutável, não importava o quanto ela própria fosse insignificante, não podia perder as esperanças. Ela seguiria tentando destruí-la.

Com as mãos nos bolsos, Sarah caminhou até o centro do hall.

– Tem alguém aqui? – ela chamou.

“... aqui... aqui...”, o eco daquela vastidão vazia.

Ela aguardou. Talvez os trabalhadores estivessem no horário de almoço.

– Alguém aqui?

“... aqui... aqui...”

Sarah olhou em volta, depois inclinou a cabeça para o alto, fitando os recônditos escuros do teto. De repente, girou sobre os calcanhares com um olhar divertido. Abriu bem os braços, envolvendo toda a vastidão.

– Você não é nada.

“... nada... nada...”

O edifício imponente que a diminuíra e aterrorizara não podia ver, sentir, pensar. Sua fraqueza estava embutida nele, uma falha estrutural, oculta de si mesmo, mas às claras para ela e para as outras mulheres. Elas o destruiriam porque era cego. Parada ali, Sarah olhou de novo para a galeria distante, lá no alto, as mãos novamente enfiadas nos bolsos, a postura ereta, desafiadora.

– Você vai cair.

“... cair... cair...”

– Achei mesmo que tinha ouvido alguma coisa. – O trabalhador a olhou aborrecido, segurando um sanduíche pela metade.

Sarah se voltou, o rosto inexpressivo.

– Os murais. Vim ver os murais. – Estendeu o cartão de autorização, mas o homem já tinha lhe dado as costas e estava se afastando.

– Por ali. – Ele apontou na direção do Hall Interior.

Era quase uma réplica do saguão de entrada, mas em uma escala ainda maior. Ela atravessou a arcada com confiança, preparando-se para a imensidão do lugar.

Cores cantavam para ela, vindas de todos os lados; fortes, vibrantes, vivas. Ela estacou abruptamente, e então virou-se devagar, mirando cada parede. Era real. Ali, nas paredes de granito, apagando-as, transformando-as; cores, movimentos,

emoções, esperanças e medos; aspirações que subiam aos céus; pessoas vivas e vivendo, plenas e prósperas. Estava tudo ali, transbordando de vitalidade e arrebatando-a para dentro de seu ser. Ela observou, maravilhada, os elementos retratados: os cabelos da mulher ecoando a flexível resistência das árvores, as copas curvadas pelo vento; a imensidão brilhante do mar poderoso; o sol do entardecer refletido nas estrias prateadas, sinal de muitos nascimentos, estático, forte, fértil; a terra marrom, acolhedora, responsiva ao trabalho das pessoas, abundante, rica, generosa. E as pessoas, amando e rindo, prosperando e ajudando, em harmonia umas com as outras e com o ambiente. Em uníssono e em equilíbrio, uma unidade que se combina e se mescla, formando o todo.

Como aquilo era possível? Ali, naquele lugar? E quem...?

Sarah andou junto às paredes, maravilhada com a alegria no rosto de um casal jovem que subia as encostas varridas pelo vento de uma montanha pedregosa. Olhou bem de perto o rosto de um velho, marcado e enrugado pela vida, mas com um ar de contentamento, que observava crianças brincando e rolando pela grama almofadada. Ela se afastou, voltando ao centro do saguão para admirar a grandeza envolvente dos marrons e amarelos das colinas ondulantes que se transformavam em um azul profundo conforme o olhar era levado além, para cima, mesclando-se e confundindo-se, sem limites claros, com a vastidão do céu, envolvendo tudo.

Como era possível que a visão de um único homem se parecesse tanto com os sonhos secretos dela? Como teria ele conseguido retratar, naquelas paredes áridas, as convicções dela de que a vida buscava equilíbrio, de que os mais fracos se juntariam aos mais fortes, os menores aos maiores, para que todos pudessem atingir seu potencial máximo, cumprindo sua função no todo?

Aproximou-se de novo de uma das paredes e seguiu com os dedos a espuma que surgia onde a água e as pedras se encontravam. Ela precisava conhecer esse homem, conversar com ele,

interrogá-lo. Será que aquilo advinha de suas visões mais íntimas, ou teria ele experimentado aquelas vívidas representações? As perguntas se atropelavam na mente dela. Afundou-se no chão, emocionalmente drenada. Vivera as profundezas e as alturas em poucos minutos, e agora sentia-se anestesiada. Ficou sentada, imóvel, fitando as paredes, mas incapaz de absorver mais nada, incapaz de esboçar qualquer reação àqueles sonhos pintados. Aos poucos, Sarah percebeu que a frieza do granito cinza se fechava ao seu redor e foi se levantando lentamente. Não suportaria olhar de novo para os murais, então manteve a cabeça baixa, os olhos fixos nos próprios sapatos contra as placas de granito. Precisava se apartar das visões nas paredes, voltar à realidade de sua existência. Começou a se movimentar sobre o piso, sapatos pretos brilhantes, passadas cuidadosas, dois passos em cada placa, respingos de chuva ofuscando o polimento, cruzando o chão anônimo, passando pelas arcadas e pelo vazio do saguão de entrada em direção às ruas da cidade. Parou no alto da escadaria para observar os pedestres apressados, a chuva que formava poças no calçamento irregular, e se lembrou do olhar da mulher loura se desviando, rejeitando o contato visual, envergonhada pela invasão casual. Desceu rapidamente os degraus e se juntou às pessoas distraídas, ajustando seu ritmo ao delas. Estava atrasada. Haveria pouco tempo para datilografar o relatório antes das entrevistas. Mas o que ela relataria? Afastou a dúvida ao entrar na praça. Preencheria o papel com jargões sem sentido e frases pseudointelectuais que fariam as vezes de apreciação artística, e Nesbitt ficaria satisfeito.

O relatório estava pronto quando Sarah ouviu os passos dele na escada.

– Hillard, você foi ver os murais?

– Sim, o relatório está sobre a sua escrivaninha.

– Perda de tempo, perda de tempo.

Ela aguardou pacientemente pela explicação, notando o rubor róseo que se espalhava pelo rosto dele, desaparecendo gola adentro.

– Você pisou feio na bola quando me disse para indicar o sujeito que pintou os murais. – Ela respirou com cuidado, o rosto inexpressivo enquanto ele despejava a bronca. – Ele é estrangeiro. Que sugestão mais cretina, mais besta. Você sabe qual é a posição oficial sobre a contratação de estrangeiros.

– Ele nasceu aqui na cidade. Vi os documentos. – A voz dela era calma.

– Eu sei, eu sei. – Ele dispensou as objeções dela com um gesto impaciente. – Só que ele passou a maior parte da vida fora. Dá no mesmo. Passa a maior parte do tempo fora do país e daí volta com a cabeça cheia de ideias malucas. – Olhou fixamente para Sarah, como se esperasse uma demonstração de desconforto. Tentou com mais afinco. – Entendo que há uma comoção acerca dessas pinturas aí que você foi ver. – Dirigiu-se para a porta. – Bom, mais tarde, quando ele chegar, diga que a vaga já foi preenchida. – Ele ficou ali parado por um momento, a mão na maçaneta, sua decisão tomada e comunicada, antes de entrar no escritório e fechar a porta atrás de si. Sarah encarou a porta fechada. Nesbitt tinha necessidade de se impor sobre ela e conseguira a munição para isso durante o almoço, decerto por alguma fofoca banal. Não havia tempo para fazê-lo mudar de ideia.

O intercomunicador soou.

– Sim, Sr. Nesbitt?

– Quando conversar com o sujeito, tenha tato.

Sarah devolveu o fone para o gancho, relembrando o impacto dos murais. Precisava falar com o homem que os pintara, mas agora sua única oportunidade de um contato real se fora. Distraída, atendeu novamente o telefone assim que tocou.

– O Sr. Carl Tolland está na recepção – a voz de Joan soou em seu ouvido. – Ele tem horário marcado com o Sr. Nesbitt às duas e meia.

– Desço num instante.

Ela continuou sentada. Sinto muito, Sr. Tolland, mas não podemos lhe oferecer o cargo. Sei que pintou murais milagrosos,

mas o senhor passou muito tempo fora do país. Voltou cheio de ideias perigosas sobre vida e liberdade, e isso não se pode tolerar.

O senhor compreende, não é mesmo?

O que ela faria? A reação provocada pelos murais lhe causava uma urgência, e sua necessidade de conversar sobre eles era quase insuportável. Viu-se descendo as escadas em direção à recepção, um turbilhão na mente.

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