O sonhar compartilhado em análise

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Carolina Paixão

O sonhar compartilhado em análise

Rêverie e fotografia na escuta clínica

O SONHAR COMPARTILHADO EM ANÁLISE

Rêverie e fotografia na escuta clínica

Carolina Paixão

O sonhar compartilhado em análise: rêverie e fotografia na escuta clínica

© 2025 Carolina Paixão

Editora Edgard Blücher Ltda.

Série Psicanálise Contemporânea

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blucher

Coordenação editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Ana Cristina Garcia

Preparação de texto Nanci Ricci

Diagramação Mônica Landi

Revisão de texto Juliana Bormio

Capa Andressa Lira

Imagem da capa Carolina Paixão

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil

Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Paixão, Carolina

O sonhar compartilhado em análise : rêverie e fotografia na escuta clínica / Carolina Paixão. –

São Paulo : Blucher, 2025.

360 p. (Série Psicanálise Contemporânea / coord. de Flávio Ferraz)

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2687-1 (impresso)

ISBN 978-85-212-2688-8 (eletrônico – Epub)

ISBN 978-85-212-2685-7 (eletrônico – PDF)

1. Psicanálise. 2. Rêverie. 3. Sonhos. 4. Contratransferência. 5. Clínica psicanalítica. I. Título.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático:

1. Psicanálise

CDU 159.964.2

1. Considerações preliminares: sonho e imagem na situação analisante

1.1 Contornos psicanalíticos: a situação analisante pautada no modelo do sonho

1.2 Devaneios fotográficos: trânsitos possíveis entre imagem fotográfica e imagem mental

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2.2.1 Alguns fundamentos de uma clínica autoral 104

2.2.2 Rêveries no terceiro analítico 126

2.3 Discussão do Caso Clara: reservas fotográficas compartilhadas em análise 148

3. Expansões do sonhar 183

3.1 O campo analítico pós-bioniano 183

3.2 Caso Marina 192

3.3 Sonhando a clínica com Antonino Ferro 201

3.3.1 Rêveries, transformação em sonho e working through 213

3.3.2 Personagens em busca de um autor, interpretações não saturadas e derivados narrativos 233

3.4 Discussão do Caso Marina: criação e autoria no teatro dos sonhos 246

4. Nas margens do sonhar

4.1 As reservas extraviadas do analista: não sonho e função antianalítica da imagem

Vinheta Fabiano

Vinheta Petra

4.2 Contratransferência e uso do analista

4.3 Impasses, baluartes e enactments no sonhar compartilhado em análise

4.3.1 Das Polaroids à pinhole

4.3.2 Do gesto ao sonho

1. Considerações preliminares: sonho e imagem na situação analisante

1.1 Contornos psicanalíticos: a situação analisante pautada no modelo do sonho

Em nossa prática clínica cotidiana, com frequência somos desafiados com questões fundamentais para a instalação e o prosseguimento do tratamento de nossos analisandos: como oferecer uma escuta capaz de acolher cada sofrimento em sua singularidade? Como manter o contato com as necessidades de cada analisando sem perder de vista nosso posicionamento ético e técnico? Como manejar as situações de modo a favorecer transformações?

Sabemos que mudanças se fizeram necessárias para que diferentes formas de sofrimento psíquico pudessem ser analisadas e transformadas pelo encontro analítico. Se o método analítico elaborado por Freud para o tratamento das neuroses encontrou limitações diante de resistências mais tenazes em outras formas de subjetivação (como as neuroses narcísicas, as neuroses traumáticas e as psicoses, diante

das quais a psicanálise não poderia recuar), ficou a cargo de analistas posteriores as maiores contribuições para a revisão do método e a ampliação da escuta analítica, como que oferecendo à psicanálise novos meios para sonhar caminhos possíveis.

Na história da psicanálise, o advento da clínica psicanalítica pode ser entendido menos como a revelação de uma grande descoberta e mais como a realização de uma necessidade filogenética para acolher e elaborar nossa própria condição humana. Os corpos histéricos, bem como as grandes guerras do século XX, reivindicaram um dispositivo clínico que pudesse acolher os traumas e os horrores de nossa condição. Em termos bionianos, ao criar a situação analisante Freud realizou a preconcepção da necessidade de um dispositivo voltado para a escuta do inconsciente, isto é, ofereceu à mente humana um lugar de elaboração dos conflitos inconscientes provenientes do encontro sempre turbulento entre o psíquico e o social, ou, de todo modo, um lugar seguro onde pudéssemos ter nossos sonhos e pesadelos testemunhados por outrem.

Bollas (2013) nomeia o advento da psicanálise como o “Momento Freudiano”, justamente uma das maiores contribuições de Freud à sociedade ocidental, em virtude da formalização de um espaço-tempo para o relato do sonho. A criação do processo analítico consistiu, desde sempre, em oferecer um dispositivo de escuta, de testemunho e de elaboração para o sonho, ambicionando, assim, expansões da mente a partir de uma necessidade primordial. Com Bollas:

A existência era assustadora e uma única mente não era suficiente para pensar na condição humana. Sonhar a si mesmo deve ter sido uma experiência muito poderosa. Podemos conjecturar que os sonhos frequentemente sobrecarregavam a mente, pois não se poderia pensar em seus conteúdos, mesmo com o auxílio das poderosas

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crenças religiosas que atuavam como continentes para a ansiedade. Ao relatar o sonho para outro ser humano, muito cedo o homem descobriu que, para sobreviver à vida mental, era essencial ter a assistência de um outro. (Bollas, 2013, p. 1)

Freud foi capaz de sonhar uma teoria e um método clínico de modo a oferecer uma organização ou um enquadramento àquilo que trazia enigmas à medicina da época e se configurava, de certa maneira, nos moldes de pensamentos selvagens em busca de um pensador. O empenho de Freud para conceber e praticar psicanálise – sobretudo uma que não fosse mais “selvagem” – esteve intimamente vinculado à sua disponibilidade para aprofundar-se na compreensão dos desafios clínicos da época, sobremaneira a histeria, bem como à disponibilidade interna para efetuar sua autoanálise.

Na visão de Khan (1962/1977), a autoanálise freudiana foi um feito heroico não por implicar uma solidão nessa jornada, mas pela capacidade inaugural de Freud para adentrar certos territórios psíquicos até então desconhecidos e inexplorados. Ainda que por meio de cartas, o inventor da psicanálise tinha o médico alemão Wilhelm Fliess (1858-1928) como importante interlocutor, facilitando o desenrolar de uma relação transferencial que impelia ao trabalho analítico, expandindo o conhecimento de Freud acerca de seu próprio inconsciente, ao sonhar na companhia de outrem.

Tomando como base a interpretação dos sonhos e a necessidade de um interlocutor para essa tarefa, partindo do particular de sua experiência para o universal da mente humana no que tange à existência de conflitos intrapsíquicos inconscientes, Freud deu início à construção da situação analisante, cujos fundamentos repousam sobre o modelo do sonho e sobre os trabalhos do sonhar. Na leitura de Khan:

O que permitiu que Freud transformasse sua heroica experiência subjetiva de auto-análise (“esta análise é mais difícil que qualquer outra”, 1950a) num método terapêutico foi a sua genial capacidade de abstração, que o levou a recriar, no setting analítico, todos os elementos vitais da situação da pessoa que sonha, de forma que, num estado consciente de vigília, quem está sendo analisado possa, psiquicamente, re-experimentar, por meio de neurose de transferência, os distúrbios psíquicos inconscientes e estados de enclausuramento que distorcem o seu funcionamento de ego e lhe tolhem a liberdade afetiva. (Khan, 1962/1977, p. 41, grifo do original)

Dessa maneira, a escuta do desejo e do conflito inconsciente passou a ocorrer em uma ambiência física e psíquica similar ao estado do sono, em que a restrição dos polos perceptivos e dos motores buscava favorecer o trabalho psíquico em análise tal como o trabalho do sonho, em uma espécie de sonho em vigília compartilhado e testemunhado pelo analista.

Ora, na pré-história da psicanálise é verdade que o método catártico de Breuer já conduzia as histéricas, por meio da hipnose, a um estado de sono até mais explícito. No entanto, a passagem do método catártico de Breuer para o método analítico de Freud consistiu em considerar as defesas e as resistências, que deveriam ser convocadas ao trabalho psíquico em vigília. Sob hipnose, as defesas e as resistências acabavam sendo subtraídas em vez de elaboradas, e uma análise poderia expandir os processos psíquicos conscientes e inconscientes somente por meio dessa elaboração, de modo a alcançar resultados mais satisfatórios e duradouros.

Ao abandonar a técnica hipnótica, Freud convida os analisandos a um discurso em associação livre, ao passo que o analista deve escutar com um modo de atenção igualmente flutuante (Freud, 1912/2010e).

considerações preliminares: sonho e imagem na situação analisante 53

Essa modalidade de escuta consiste em não se ater ao textual do discurso manifesto, não buscar por algo previamente esperado segundo as inclinações do próprio analista. Por outro lado, propõe que as associações ocorram livremente e que a escuta mantenha-se suspensa a qualquer antecipação ou seleção de material, sem direcionamentos ou prescrições, de modo que a trilha associativa possa seguir espontaneamente e ser escutada segundo seu modo de processamento inconsciente. Assim, evitamos a armadilha de encontrar somente o que já sabemos, abrindo todo um campo de escuta para conteúdos cujo significado será conhecido posteriormente.

Para tanto, é necessário ao analista “entregar-se totalmente à sua ‘memória inconsciente’” (Freud, 1912/2010e, p. 150) e utilizar seu próprio inconsciente como instrumento para analisar, conforme descreve Freud com a metáfora do telefone:

Expresso numa fórmula: ele [o analista] deve voltar seu inconsciente, como órgão receptor, para o inconsciente emissor do doente, colocar-se ante o analisando como o receptor do telefone em relação ao microfone. Assim como o receptor transforma novamente em ondas sonoras as vibrações elétricas da linha provocadas por ondas sonoras, o inconsciente do médico está capacitado a, partindo dos derivados do inconsciente que lhe foram comunicados, reconstruir o inconsciente que determinou os pensamentos espontâneos do paciente. (Freud, 1912/2010e, p. 156)

Dessa maneira, a comunicação primordial entre analisando e analista ocorre pela via do encontro entre dois inconscientes. No entanto, o analista deverá tomar cuidado com suas próprias resistências e seus pontos cegos capazes de perturbar a escuta do que é transmitido pelo analisando. A análise pessoal é o melhor antídoto para isso,

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fundamental e indispensável àquele que pretende conhecer e praticar psicanálise (Freud, 1912/2010e).

Nesse mesmo contexto dos textos técnicos, Freud mostra-se preocupado com possíveis efeitos negativos decorrentes do envolvimento afetivo do analista e, desse modo, sugere ainda dois outros modelos nos quais se inspirar: o modelo do cirurgião, que apresenta uma frieza de sentimentos a fim de bem operar e de alcançar os objetivos esperados; e o modelo do espelho, cuja atividade consiste em refletir somente o que é mostrado. Para além das recomendações que tantas vezes consistem no que o analista não deve fazer, Freud reconhece que suas estratégias técnicas adequam-se bastante bem à sua própria individualidade e, portanto, podem não servir a todos os que praticam psicanálise. Sugere que os analistas, por seu turno, acrescentem coisas novas ao que já está formulado, até mesmo porque

a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes resistem à mecanização da técnica e permitem que um procedimento em geral correto permaneça eventualmente sem efeito, e que um outro, normalmente errado, conduza ao objetivo. Essas circunstâncias não impedem, porém, que se estabeleça uma conduta medianamente adequada para o médico. (Freud, 1913/2010d, p. 164)

Sendo assim, encontramos já em Freud um convite a aprender, pensar e construir a partir de nossa própria experiência clínica, com uma escuta criativa e não burocrática. Do legado freudiano, portanto, herdamos sinalizações e recomendações que circunscrevem uma postura ética de escuta pautada em uma disponibilidade de mente e prontidão para o outro, ainda que as técnicas possam variar (Figueiredo, 2008; Figueiredo & Coelho Jr., 2018). Por mais que as estratégias

2. Ativações do sonhar

Em nosso trabalho clínico, não raro recebemos analisandos que apresentam maiores dificuldades na apropriação de sua vivência subjetiva, no reconhecimento e na sustentação dos afetos, na construção de sentido e de narrativas para a experiência emocional. Como analistas, estamos familiarizados com os trabalhos psíquicos conscientes e inconscientes (Figueiredo, 2014a) necessários para que possamos, de modo geral, entrar em contato com afetos e angústias, elaborar conflitos internos e metabolizar o que é despertado pelo outro. Não é preciso ir tão longe em termos de gravidade psicopatológica para, em alguns analisandos, notarmos maiores engodos em termos intrapsíquicos e intersubjetivos.

Comumente, notamos um profundo sofrimento subjacente ao que pode aparentar, de início, um bom funcionamento pessoal e social. A despeito de categorias diagnósticas específicas, situações de impasse ou perturbações podem deslanchar efeitos de inibição, de retraimento e de depressão, bem como apontar para saídas que se aproximam mais das defesas maníacas diante do que é inconscientemente vivido como imutável, irreparável. Muitos desses pacientes

vêm sendo descritos na literatura contemporânea como aqueles cujas queixas referem-se a um vazio existencial, a estarem vivendo uma vida sem propósito e sem sentido, a sensações de impotência e de inutilidade, em suma, sujeitos cansados de serem si mesmos, 1 pacientes cuja dor de existir não parece encontrar circuitos criativos de elaboração e de transformação da experiência emocional.

Pelo viés intersubjetivo, tais analisandos demonstram ser assombrados por afetos e convocações despertados pela relação eu-outro, trazendo implicações para a construção e para a manutenção dos laços afetivos, amorosos e demais possibilidades de vínculos sociais. Pelo viés intrapsíquico, inferimos a preponderância de obstruções ou de paralisias no âmbito das simbolizações, o que incide sobre os elos, tais como a construção de representações, a capacidade associativa e narrativa, a figurabilidade psíquica, o pensar e o sonhar – em suma, elementos e funções que mobilizam os trabalhos psíquicos conscientes e inconscientes e possibilitam a elaboração da experiência emocional.

Na clínica, notamos que as obstruções e as paralisias acabam por promover uma desconexão ainda maior do analisando com seu mundo interno, deixando-o distante de uma interioridade com a qual contar como fonte de conhecimento e de instrumento para as transformações. Por conseguinte, isso ofusca o reconhecimento não só das dificuldades como também das potencialidades e dos recursos pessoais para o crescimento. Nessa conjuntura, é comum o direcionamento a uma exterioridade na busca por respostas, por asseguramentos e por recomendações. Nessa esteira, o analista torna-se uma

1 Expressão cunhada pelo sociólogo francês Alain Ehrenberg, em La fatigue d’être soi: dépression et société (1998). Para uma descrição dos casos difíceis na literatura psicanalítica, recomendamos os escritos de André Green, sobretudo o livro La folie privée (1990), traduzido para o português com o título A loucura privada: psicanálise de casos-limite (2017).

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nova figura a ser solicitada, e é justamente aí que se inicia nossa aposta clínica, desde que o tempo da análise possa ser sustentado na contracorrente das respostas rapidamente exigidas, das angústias e das defesas previamente erigidas ou até mesmo despertadas pelo encontro analítico.

Uma vez construído um pedido de análise, o analista vai progressivamente ocupando um território na interface do mundo externo com o mundo interno do analisando – lugar transferencial privilegiado a partir do qual seguirá o diálogo analítico. Evidentemente, para ocupar esse lugar deveras limítrofe, é necessário ao analista salvaguardar seu posicionamento ético e técnico nos contornos de um papel de cuidado e de compromisso profissional. Os pilares éticos e técnicos são construídos e sustentados, sobremaneira, pela análise pessoal, pelos espaços de supervisão e pelas demais trocas teórico-clínicas, bem como pela transferência do analista com a própria psicanálise, teoria e prática.

Na psicanálise contemporânea ou, como preferimos chamar, pós-escolas ou transmatricial (Figueiredo & Coelho Jr., 2018), a participação do analista com seu funcionamento mental é considerada parte fundamental e indispensável do processo analítico. Isso não quer dizer que sua contribuição adentrará o primeiro plano, nem que o analista fará intervenções sem balizadores compartilhados ou bem fundamentados teoricamente. Muito pelo contrário: desde meados do século XX, toda uma construção teórico-clínica vem sendo elaborada por diversos autores2 de forma a sustentar os desafios colocados à técnica analítica no encontro com pacientes cujo funcionamento psíquico denota a prevalência de modos de ligação não simbólica.

2 Um apanhado dos principais autores pode ser encontrado no artigo de André Green “O analista, a simbolização e a ausência no enquadre analítico” (1975/2017b).

Uma vez que as dificuldades em associar livremente apontam para os limites da representação e da rememoração diante de um traumático inacessível, torna-se imperativo ter outros recursos para a compreensão do mundo interno do paciente e, assim, elaborar novas estratégias terapêuticas. Como sugere Green (1975/2017b), tais desafios clínicos acabam por convocar uma “mudança no analista” (p. 72) a partir do que ele possa vir a sentir ou imaginar.

No encontro com analisandos com poucos recursos simbólicos, o analista é levado a emprestar seu aparelho de pensar, lançando mão de uma participação mais implicada e de sua contratransferência como fonte de conhecimento e instrumento de trabalho a partir das trocas do par. Tal mudança, elencada por Green há quase cinquenta anos como uma das prioridades em nosso ofício, constitui objeto de estudo central para Thomas Ogden. Psicanalista estadunidense nascido em 1946 e atuante nos dias de hoje, Ogden é um autor bastante criativo e instigante, com quem buscaremos tecer um diálogo teórico-clínico neste segundo capítulo.

Influenciado sobretudo por Winnicott e Bion, Thomas Ogden –assim como André Green, René Roussillon e Anne Alvarez – é um dos analistas que mais contribuem para a construção, o aprofundamento e a transmissão de uma psicanálise independente da formação de escolas, sem que isso aponte, por outro lado, para um ecletismo por demais abrangente e inespecífico (Figueiredo & Coelho Jr., 2018). Ao acompanharmos os escritos de Ogden, vemos que suas construções são de uma criatividade ímpar. Suas inovações no solo das tradições bioniana e winnicottiana têm como ponto de partida os seguintes vértices: com Bion, a noção de identificação projetiva como comunicação no solo intersubjetivo, o papel fundamental da rêverie e a indispensabilidade de dois psiquismos para pensar; com Winnicott, a noção de espaço potencial, os fenômenos transicionais e a noção de uma “morte dentro” como algo universal em termos de vitalidade

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e de desvitalização, valências que revelam importantes indicadores clínicos a depender de sua dinâmica (Figueiredo & Coelho Jr., 2018).

De suas elaborações originais, sua principal construção teórico-clínica diz respeito ao terceiro analítico intersubjetivo (Ogden, 2013a). Essa noção diz respeito ao encontro de subjetividades entre analisando e analista, levando à criação de uma terceira subjetividade vinculada pelas trocas do par, o terceiro analítico. A noção de terceiro engloba, entre outras coisas, a contratransferência e as rêveries do analista, que adquirem papel privilegiado na compreensão das relações de objeto internas do analisando e do que está-se passando no cerne da transferência-contratransferência. Nas descrições que Ogden faz do terceiro analítico, vemos elaborações clínicas complexas e minuciosamente detalhadas, valorizando formas diversas de comunicação não verbal.

A consideração do funcionamento mental do analista em sessão adquire diferentes contornos em suas descrições clínicas, tais como: no que Ogden esteve pensando enquanto escutava o analisando; qual o conteúdo e também a forma de cada pensamento; quais fantasias e imagens lhe ocorreram; que sentimentos e sensações experimentou em uma sessão; se o analista se sentia disposto e bem, ou se percebia indisponibilidade ou falta de vitalidade ao estar com certo paciente num dado momento do processo analítico, e por aí vai. Todo esse conjunto é tomado pelo autor como fenômenos no e do terceiro analítico, que veiculam, por sua vez, possibilidades de compreensão e de manejo clínico. Em muitos casos descritos, a formação do terceiro analítico comporta rêveries com grande acuidade imagética, como veremos no subitem 2.2.2 a seguir, com a observação de casos de Ogden que operaram transformações a partir dos usos de suas rêveries acompanhadas por imagens.

Os relatos clínicos de Ogden, somados às suas formulações teóricas, ajudarão a construir uma “casuística ogdeniana” em torno da problemática da imagem no funcionamento mental do analista.

Acreditamos que mergulhar na clínica de Ogden nos ajudará a esclarecer algumas questões: O que Ogden entende por rêveries? Como ele se utiliza de suas rêveries, que funções e efeitos elas demonstraram operar sobre o processo analítico e de que modo puderam promover – como ele gosta de chamar – uma “mudança psicológica”?3 (Ogden, 2016a; Ribeiro, 2020a). Tendo em vista seus casos clínicos, poderemos, em seguida, compreender aproximações e/ou distanciamentos entre nossos modos de escutar e manejar clinicamente.

Conforme mencionado na Apresentação, o Caso Clara, proveniente de minha própria experiência clínica, instalou a necessidade de um reposicionamento na escuta e no manejo clínico, convocando-me à criação de um instrumental ainda pouco conhecido ou pouco disponível para ser inserido clinicamente como recurso. Pouco conhecido porque, embora atravessado por algo muito familiar, estava presente timidamente, em grande medida em estado latente. Como analista, vejo que eu seguia trabalhando um tanto resguardada nos modos de fazer conhecidos em minha análise pessoal – lugar primordial de identificação e de fornecimento de uma base que, acredito, sempre sustentará o eixo fundamental do meu corpo clínico, mas a partir de onde também aprendi a criar. Foi no encontro com Clara que comecei a construir e a poder utilizar-me de uma linguagem clínica mais pessoal e, por conseguinte, a elaborar uma reflexão a posteriori. Sem perder de vista diretrizes éticas e técnicas, bem como

3 Entendemos que, na visão de Ogden, mudança psicológica engloba fatores como: expansão das capacidades de pensar e sonhar; poder utilizar-se de modos de pensamento onírico e transformador de forma a operar mudanças subjetivas e a sustentar psicologicamente situações complexas; formas de crescimento psicológico a partir da elaboração da experiência emocional; tornar sonháveis e assimiláveis os sonhos não sonhados ou interrompidos, oriundos de um traumático até então impensável. O autor afirma ainda que as rêveries provocam mudança psicológica também no analista.

3. Expansões do sonhar

3.1 O campo analítico pós-bioniano

Como abordamos brevemente no Capítulo 1, o campo analítico pós-bioniano possui suas raízes na combinação da noção de situação analisante como campo dinâmico segundo o casal Baranger (19611962/1969) com a obra de Bion, em especial a teoria do pensar e a noção de transformações (Bion, 1962/1994b, 1965/2004). Tanto o pensamento teórico-clínico de Bion quanto a noção de campo trazida à psicanálise pelo casal Baranger colocam em perspectiva o funcionamento mental do analista em sessão, algo extremamente valorizado pelos analistas do campo pós-bioniano, que destacam com uma tinta marcada o caráter intersubjetivo de toda a análise, assim como toda a relação humana.

No contexto da teoria do campo pós-bioniano ou BFT (Bionian Field Theory), podemos afirmar que Antonino Ferro é o precursor da combinação do pensamento dos Baranger com o pensamento de Bion, gerando um modelo clínico que passa a ser acompanhado por

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autores como Bezoari, Basile, Di Chiara, Civitarese, o casal Rocha Barros, Cassorla, entre outros. São autores que contribuem com importantes desdobramentos e expansões do pensamento de Bion, como que conseguindo germinar boas sementes facilitadas pelo fértil solo bioniano. Um exemplo disso é a exploração que tais analistas fazem do conceito de rêverie, ao considerá-lo um fenômeno central na escuta analítica, oferecendo a esse conceito – criado por Bion, mas mencionado por ele poucas vezes – frutíferos desenvolvimentos clínicos e teóricos, como veremos a partir de então.

No próprio Bion, encontramos o termo field theory em uma carta de 7 de março de 1943 a seu primeiro analista, John Rickman (1891-1951), em que ele dizia: “Quanto mais eu olho para isso [funcionamento mental e fenômenos grupais], mais me parece que algum trabalho muito sério precisa ser feito ao longo de linhas analíticas e de teoria do campo a serem elucidadas” (Conci, 2011 apud Ferro & Civitarese, 2016, tradução nossa). Desdobramentos dessa correspondência integraram-se à apresentação do livro Experiências com grupos (1961/1975), escrita em colaboração com Rickman e denominada “Tensões intragrupais na terapêutica”, que Ferro e Civitarese (2016) consideram “inequivocamente uma teoria do campo” (p. 133).

No contexto de sua análise com Rickman, considerando sua experiência com grupos e até mesmo sua passagem pelas duas Guerras Mundiais (onde trabalhou com grupos no exército britânico), Bion sugeriu que uma dupla funciona como uma espécie de grupo. Em uma análise, paciente e analista operam como um grupo cuja dinâmica é impulsionada por diferentes dimensões do psiquismo, considerando seus aspectos funcionais e disfuncionais tanto em um âmbito intrapsíquico quanto intersubjetivo. O encontro de mentes comporta, portanto, uma vasta constelação de trocas conscientes e inconscientes que incluem não somente dimensões de pensabilidade como também de pensamentos selvagens, trânsitos entre elementos beta e elementos alfa, núcleos neuróticos e psicóticos da personalidade, e

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por aí vai. Uma vez que o encontro de mentes é tomado como um fenômeno grupal, passa-se a investigar a mente dentro de um sistema de relações cuja totalidade dinâmica vai além da soma das partes envolvidas.

Na lógica do campo analítico, sujeito e objeto não são tidos como signos opostos, mas componentes de um sistema único, participantes de um campo inconsciente comum. Nesse sentido, transferência e contratransferência são considerados fenômenos de influências mútuas, codeterminantes das trocas no campo. É importante notar que, apesar de analisando e analista cocriarem as trocas no campo, isso não consiste em uma horizontalidade que subtrai do analista sua função analítica e seu referencial a uma função terceirizante. Sendo assim, o campo é entendido como uma neoformação ou uma espécie de terceiro, e não como um território neutro restrito a respaldar um sistema dual de operações.

Espera-se, naturalmente, que o fluxo de identificações projetivas seja maior do lado do analisando, por causa das condições particulares – grosso modo, mais treinadas – da mente do analista, cuja assimetria favorece e impulsiona os processos de transformação. Por outro lado, a situação de assimetria perde-se quando as identificações projetivas cruzadas aglutinam zonas de resistência capazes de estancar o processo analítico. Em nossa visão, a discussão em torno da problemática da contratransferência segue merecendo atenção, e a ela voltaremos, mais precisamente, no Capítulo 4. Buscaremos entender se é possível encontrar ainda alguma especificidade sobre a contratransferência no contexto do campo analítico – para além do que se convencionou chamar de “trocas do par” –, sobretudo em momentos em que a capacidade de pensar do analista encontra-se obstruída por defesas e resistências compartilhadas, implicando nesse percurso uma necessária perlaboração da contratransferência.

Com o casal Baranger (1961-1962/1969), vimos a situação analisante estruturada como um campo bipessoal, em que a comunicação

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inconsciente da dupla ocorre através das identificações e das contraidentificações projetivas constantemente presentes e atuantes. Com forte influência de Klein e kleinianos como Susan Isaacs (considerando seu célebre artigo sobre fantasia inconsciente), os Baranger entendem que as comunicações inconscientes fomentam fantasias e resistências compartilhadas, levando à formação dos baluartes como zonas de obstrução e de paralisia no processo analítico. Em tal contexto, um dos objetivos de uma análise é desfazer essas estruturas de resistência, e para isso é preciso ter um segundo olhar capaz de promover certa distância entre o psiquismo do analista e as partes projetadas pelo analisando. Uma vez que o analista emerge de uma resistência compartilhada e encontra o ponto de urgência da interpretação, os baluartes são desfeitos através de interpretações em momentos oportunos, capazes de devolver ao analisando seus conteúdos projetados, para fins de elaboração psíquica.

Nos comentários de Ferro (2019a), os baluartes não são uma exceção, como poderíamos imaginar como instalando um momento de crise em uma análise. Ao contrário, os baluartes como obstruções, impasses e paralisias são nada menos que uma tendência do campo. Diante disso, o trabalho analítico consiste em um “desembaraçar e desembaraçar-se constante do campo que [o analista] inconscientemente gera em conjunto com o paciente” (Ferro, 2021, p. 92). Como já mencionado, no contexto do campo bipessoal do casal Baranger, são as interpretações que têm o poder de desembaraçar os nós de resistência, promovendo uma reestruturação do campo e a retomada do processo analítico com seus desenvolvimentos ulteriores.

Na visão de Ferro, o método interpretativo utilizado pelo casal Baranger consiste no que o autor italiano nomeou como sendo de interpretações fortes ou saturadas, que encontram sua pauta na história de vida do paciente ou em seu mundo interno, e assentam sobre um modelo interpretativo segundo as heranças de Freud e Klein. No campo analítico pós-bioniano, as interpretações fortes ou saturadas

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não deixam de ser utilizadas, porém com uma frequência muito menor, e geralmente após percorrerem um trajeto indireto através de diversos elementos do campo (como veremos, por exemplo, com os personagens da sessão). Diferentemente, prioriza-se um modo de intervenção analítica que opera através das interpretações fracas ou insaturadas que, grosso modo, consistem na construção de enredos narrativos elaborados a quatro mãos, tecendo sentidos partilhados na dinâmica da sessão. Entende-se que, se o analisando inconscientemente escolhe contar esta história neste momento, isso pode, de fato, ter a ver com sua história de vida e/ou seu mundo interno, mas não deixa de inserir na trama narrativa o que está acontecendo na relação transferencial ou como a situação analisante está sendo experimentada.

De acordo com Ferro & Civitarese (2015), ao mesmo tempo que o interesse na obra de Bion vem crescendo em diversos países,1 a teoria do campo analítico vem ganhando reconhecimento e disseminação, configurando possivelmente um novo paradigma em psicanálise, sobretudo por sua forte inspiração no legado de Bion. Conceitos e noções bionianas como identificação projetiva como modo de comunicação inconsciente não patológica, relação conteúdo-continente, oscilação entre as posições esquizoparanoide e depressiva (PS ←→D), rêverie, transformações, capacidade negativa, fato selecionado e pensamento onírico de vigília articulam-se em torno de um modelo de mente que leva em consideração a necessidade de se tolerarem estados de incerteza ou de fragmentação, em paralelo à capacidade de criar-se um continente para abarcar os conteúdos e promover transformações e construções de sentido.

1 No caso da Itália e do Brasil, países para onde Bion viajou diversas vezes para oferecer seminários teóricos e supervisões clínicas, podemos dizer que seu pensamento exerce uma influência profunda. Também Ferro e Civitarese têm passagens pelo Brasil para seminários teórico-clínicos e supervisões.

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Sendo assim, o próprio modelo bioniano de mente incrementa modos mais férteis de construir-se teoria em psicanálise: o pensamento de Bion e sua forma de instigar o leitor a construir suas próprias explorações a partir do seu texto nos fornecem instrumentos para contínuas expansões e desdobramentos inexplorados, ainda a serem imaginados sem que o campo teórico torne-se saturado de compreensões a encerrar os sentidos da experiência. Isso tem por efeito abastecer pensamentos teórico-clínicos em constante movimento.

Exemplo de leitor arguto e desbravador de mundos possíveis, Ferro volta e meia fala-nos sobre o “seu Bion”, em uma “escolha de campo de um Bion não kleiniano, profundo estudioso de Freud, que faz uma cesura em relação aos modelos anteriores de mente (especialmente os de Klein)” (Ferro 2021, p. 131). Entende que a abertura para um novo paradigma em psicanálise faz-se possível justamente através de um modelo completamente original trilhado por Bion, sobretudo se consideramos seu modelo de mente e suas reformulações acerca do sonho e do sonhar em um contexto relacional, aportes fundamentais para uma clínica da intersubjetividade. Diante do pilar psicanalítico que sustenta a problemática do aparelho psíquico e a lógica do sonho – fundamentais ao pensamento clínico e metapsicológico desde 1900 –, Bion oferece-nos, por exemplo, uma leitura bastante criativa.

Em seus escritos e seminários, vemos que a compreensão tradicional do sonho como via régia para o inconsciente (Freud, 1900/2019) adquire uma torsão. Bion sustenta, em uma lógica inversa, que os sonhos criam o inconsciente, nutrem um modo de funcionamento que origina e expande nosso arcabouço simbólico e nossa capacidade de sonhar e de pensar. Sonhar, nesse caso, é entendido como uma forma de criar símbolos e dar sentido pessoal à experiência, não só quando estamos dormindo, mas também acordados, através do pensamento

4. Nas margens do sonhar

Entre o fotógrafo e seu tema, tem de haver distância. Susan Sontag, 1977/2004

Neste último capítulo, tomamos como ponto de partida situações clínicas que se apresentam no que dessa vez denominamos “as margens do sonhar”, dando prioridade aos impasses, às obstruções e às paralisias nas esferas do sonhar, incluindo extravios na própria capacidade de sonhar da analista.

As maiores dificuldades encontradas em nosso percurso são: 1) quando a atividade de rêverie parece operar com frequência, tanto na analista quanto no analisando, mas não promove transformações, e sim obstruções no processo analítico, sugerindo que as imagens contribuem com defesas e resistências compartilhadas; 2) quando a atividade de rêverie está presente na mente da analista, porém se depara com outras dificuldades, tais como a presença de um superego técnico que atravanca o uso da rêverie e fomenta situações de paralisia e de enactment; 3) quando prevalecem as resistências incoercíveis e os ataques à ligação, e a analista tem suas reservas esgotadas e suas

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rêveries tornam-se praticamente nulas, impossibilitando a atividade de sonhar a experiência emocional em curso. Essas são situações que mapeamos como entraves no âmbito da rêverie e que foram experimentadas, respectivamente, junto aos casos Júlio, Fabiano e Petra, cujas vinhetas apresentaremos a seguir.

Nos capítulos anteriores, nota-se que as discussões dos casos Clara e Marina foram embaladas pela possibilidade crescente de ir sonhando os casos, construindo para eles um lugar de inteligibilidade em forma de pensamento clínico-teórico. Apesar das dificuldades que um caso clínico é capaz de suscitar, os limites encontrados puderam ser atravessados, seja nas situações clínicas relatadas, seja nas elaborações teóricas. Quando uma questão mais complicada era apresentada e não sabíamos de antemão como superá-la, foi possível seguir apostando por entre novos caminhos e vias travessadeiras de uma elaboração.

Sentimo-nos, portanto, até então motivados pelas potencialidades criativas que tais discussões acionavam. Seu efeito de promover mais e mais trabalho psíquico fez-se notar em termos de expansão da rede simbólica e da associatividade com elementos da cultura e das artes, de construção de novos enredos narrativos para as situações experimentadas, bem como novas possibilidades de sonhar o próprio fazer clínico psicanalítico.

No presente capítulo, apresentamos problemas que levantam questões difíceis de serem respondidas, diante das quais precisaremos lidar ainda mais com as imprecisões e os limites de nosso entendimento, já que tantas vezes os mistérios da alma humana e o caráter imprevisível dos encontros oferecem a chance de uma construção de mais singela compreensão. Apesar dos pesares, a partir das dificuldades que se tornam motor para a continuidade da pesquisa, seguiremos empenhados em lançar luz sobre as questões, buscando oferecer desdobramentos para os problemas levantados e apontamentos pelos quais possa continuar guiando-se nosso pensamento clínico e teórico.

Este último capítulo, portanto, não tem a intenção de promover um fechamento de nosso percurso de pesquisa; ao contrário, intenta justamente não encerrar o trabalho depois de construídas tantas linhas de elaboração, a contar com uma criatividade expandida. Desta vez, retornaremos a um núcleo mais espinhoso para, a partir daí, tentarmos expandir ainda mais nosso pensamento clínico, em uma construção que se nos mostra mais complexa e desafiadora. A intenção é não perder o fio dos desafios a fim de manter o campo aberto para futuros desenvolvimentos e soluções não imaginadas, apostando que novas trocas poderão ocorrer com interlocutores que ainda não tivemos o privilégio de conhecer ou, por causa dos limites de cada elaboração, terão nos escapado até a conclusão deste livro.

Os relatos clínicos, elencados no item 4.1 a seguir, serão menores e terão suas discussões iniciadas no item 4.2 e aprofundadas no item 4 3, em conjunto com as formulações teóricas que virão auxiliar o pensamento clínico. Tentaremos manter o foco nos problemas encontrados, e as questões suscitadas pelas vinhetas irão atravessar-se horizontalmente; logo não será feito um longo mergulho em cada caso, conforme feito nos capítulos anteriores. Desta vez, os entraves vividos em um caso poderão auxiliar a compreensão do caso seguinte, com o cuidado de não promovermos uma compreensão totalizante das dificuldades que podem ser experimentadas nas esferas do sonhar. Sem dúvida, os desafios que tomam os analistas nesse âmbito são muitos e podem adquirir os mais variados tons – do mais barulhento pesadelo ao mais silencioso não sonhar. Nesse contexto, a problemática da contratransferência ganha interesse especial, capaz de sinalizar o uso que o analisando faz da analista em determinado momento da análise, algo intimamente ligado à dinâmica das relações objetais precoces. A perlaboração da contratransferência e a necessidade de working through a partir da rêverie tornam-se parte fundamental para compreender o que se passa

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no campo, ajudando no atravessamento das defesas e das resistências que obstruem ou paralisam o processo analítico.

Reconhecendo que viemos adentrando, progressivamente, um modo de trabalho e um pensamento clínico que têm como referência o campo analítico pós-bioniano, antes de prosseguirmos com a análise das vinhetas selecionadas, levantaremos algumas questões e inquietações que nos ocorrem acerca da nossa posição como uma analista trabalhando com o modelo do campo.

4.1 As reservas extraviadas do analista: não sonho e função antianalítica da imagem

Como pontapé para a apresentação das vinhetas e da discussão sobre os impasses e os extravios relacionados à imagem na escuta do analista e nas trocas do par, trazemos um breve disparador de questões vinculadas à imagem fotográfica, nossa antiga companheira de percurso. Desta vez, estamos considerando outros efeitos que as imagens podem provocar, bem como certos usos que delas podemos fazer.

Para além da atribuição de facilitar processos de simbolização e de expandir trabalhos psíquicos conscientes e inconscientes, uma imagem também comporta um poder autorreferente e retentivo. Tal poder tem por efeito chapar uma compreensão em determinada realidade, sem que se possa ir além do que se vê, do que uma imagem é capaz de mostrar junto a um recorte específico, privilegiado e sempre manipulado em algum grau. Por esse viés, o que poderia configurar a magia da imagem aproxima-se mais de um feitiço, restringindo possibilidades de movimento, valendo-se de uma imagem que não anima, tornando-se, em algum grau, imagem “des”-animada. Fascinante e hipnotizante, uma imagem pode capturar-nos e aprisionar-nos tanto pelo belo quanto pelo horror.

Considerando determinado uso, podemos ligar-nos a uma imagem tornando-a imaculada em forma de amuleto ou de objeto fetiche, diferentemente do objeto transicional, que engendra o sonhar e o brincar. Nesse tom, a imagem adquire um grau de saturação que ameaça esgotar as próprias reservas ofertadas pelos objetos da cultura, que podem ser usados de inúmeras maneiras na promoção de diversos circuitos afetivos e criativos, a depender do sujeito e da ocasião. Como antes nos falara Sontag (1977/2004), desse modo não tiramos melhor proveito do que uma fotografia é capaz de abrigar em sua dimensão de ausência e de estímulo para o sonho.

Se vincularmos esses outros usos da imagem com o que aqui chamamos de função antianalítica da imagem na situação analisante, tal correspondência se fará em razão de considerarmos determinados fenômenos que poderiam constituir-se como rêveries e promoverem transformações, mas que, se olharmos bem – ou além –, não cumprem uma função analítica. Isto é, não fomentam processos de simbolização e de transformação, mas, por outro lado, contribuem com a formação de baluartes, de situações de impasses, obstruções e paralisias que incidem diretamente sobre as possibilidades de mudança e de crescimento. Com isso, a situação analisante torna-se cega (ou surda) para certos eventos que escamoteiam o processo.

Em uma situação de impasse ou paralisia, certo estado de coisas é mantido, geralmente de modo a evitar que elementos cindidos no psiquismo adentrem o processo analítico e tornem-se analisáveis, que ganhem movimento, trilhando rumos de integração e de apropriação subjetiva. Nesse sentido, vias travessadeiras encontram-se interditadas, dificultando o alcance de terceiras margens possíveis. Em termos emocionais, ficam prejudicados o processamento da experiência emocional bruta, o chacoalhar das certezas irrefutáveis, a sustentação de ambivalências e o aprender da experiência, minimizando o potencial de enriquecimento psíquico diante do desconhecido, diante de tudo o que ainda não conseguimos imaginar, pensar,

sonhar. É novamente como ver uma fotografia somente através do que ela é capaz de mostrar, sem tirarmos proveito de tudo o que ela é capaz de evocar

Em tal contexto de impasses e de paralisias na situação analisante, estamos às voltas com a inexistência do sonho ou com momentos em que o sonho parece estar lá, mas não abriga a experiência do sonhar. O analista corre o sério risco de ter suas reservas ameaçadas, extraviadas, esgotadas, o que acaba por saturar sua capacidade de escuta e de receptividade ao outro, bem como sua disponibilidade para deixar-se usar de maneiras diversas pelo analisando.

Neste ponto, reencontramo-nos com o antigo problema dos aspectos negativos da contratransferência, capazes de obstruir a escuta, retirando o analista de sua posição. Ou será que, de outro ponto de vista, tais situações englobariam determinado uso que o analisando está podendo fazer do analista, provocando, em última instância, paralisias e obstruções? Nesse sentido, como podemos discriminar certos efeitos a partir do envolvimento e da implicação do analista no bojo de uma perspectiva intersubjetiva? Como compreender e atravessar os prejuízos na capacidade de sonhar em um paradigma clínico voltado para as trocas do par?

Em nosso caso, veremos como e se foi possível atravessar as situações descritas nas vinhetas a seguir, além de mapear os limites e as potencialidades das trocas do par junto a uma analista enfeitiçada, paralisada, curto-circuitada em seu aparelho de pensar e sonhar, cujas reservas fotográficas sofreram uma torsão, extraviando ou esgotando sua máquina de rêverie.

4.1.1

Vinheta Júlio

A vinheta refere-se ao primeiro ano da análise de Júlio, que chega com a demanda de entender-se melhor. Em casa, acha que seus familiares não o compreendem, pois sente que seus pais sempre desejam

Fechando o obturador

No caminho percorrido até aqui, por tantas páginas perscrutei palavras que pudessem falar sobre imagens. Partindo de minha experiência clínica, lancei-me ao desafio de compreender e de justificar a ocorrência de imagens mentais quando de minha escuta, encontrando para o conjunto de fenômenos imagéticos um possível lugar em termos teóricos e metapsicológicos.

Busquei entender se tais fenômenos poderiam ser considerados rêveries, segundo a concepção original de Bion, seguida de autores como Ogden, Ferro e Civitarese, que seguem dedicando grande parte de seus estudos às trocas intersubjetivas da dupla analítica e ao funcionamento mental do analista em sessão. Fui percebendo que o conjunto imagético comportava especificidades clínicas a depender de cada encontro específico, tendo adquirido diferentes funções e percorrido diversos caminhos de processamento a partir da contratransferência e das idiossincrasias presentes nas trocas de cada par.

Atestei que uma rêverie, para ser considerada como tal, tem de percorrer, necessariamente, outros processos psíquicos de transformação da imagem ocorrida inicialmente. Só assim a rêverie pode

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trilhar caminhos a partir do que ela é capaz de evocar/representar, mais do que encerrar uma questão junto ao que ela pode simplesmente mostrar/apresentar. Nesse percurso, tornam-se indispensáveis o processamento da rêverie ou seu working through, bem como a perlaboração da contratransferência, de modo a compreender o uso que o analisando está fazendo do analista e da situação analisante como um todo, investigando também os pontos cegos do analista capazes de obstruir ou de paralisar o processo.

Elaborando as situações relatadas em forma de pensamento clínico, constatei que as imagens surgidas em minha mente tiveram ora a função de promover transformações, ativações e expansões da capacidade de pensar e de sonhar, ora uma função a princípio antianalítica, enredando-se em defesas e resistências compartilhadas, participando de impasses, de paralisias e de enactments surgidos ao longo do processo. Em todo caso, não deixaram de promover questões e desdobramentos posteriores, se não ao longo das análises enquanto elas ocorriam, certamente na elaboração deste escrito como forma de proporcionar inteligibilidade aos fenômenos clínicos experimentados. Ainda que em diferentes temporalidades clínicas e teóricas, tais situações implicaram, necessariamente, o atravessamento mais ou menos afortunado entre palavra e imagem.

Um dos pontos de partida e embalo criador foi considerar um outro tipo de escrita que participa do meu modo de olhar para o mundo e de ser afetada por ele: a foto-grafia ou a arte de escrever com a luz. Assumi que a prática fotográfica, desde há muito, passou a habitar uma espécie de matriz simbolizante em meu psiquismo e, por essa razão, também participa das reservas disponíveis à minha escuta no trabalho clínico cotidiano.

Entendendo que a feitura de uma imagem fotográfica não só se submete ao aparelho fotográfico, mas, antes, atravessa o aparelho de pensar/sonhar do fotógrafo, este não se torna um mero funcionário do aparelho, mas insere intencionalidade humana no ato de

fotografar. Antes de capturar uma fotografia, portanto, o fotógrafo é capturado por ela, e isso está intimamente relacionado à sua própria capacidade de brincar e de sonhar cenas e processos em seu aparelho psíquico. Assim faz da prática fotográfica uma espécie de jogo, a contar com um dispositivo que vai-se tornando, cada vez mais, um aparelho lúdico a revelar suas maiores potencialidades.

Por essa linha de raciocínio, comecei a articular afinidades poéticas e metafóricas entre fotografia e clínica psicanalítica. Propus aproximações entre imagem fotográfica, imagem mental e rêverie, não somente em termos de forma e conteúdo, mas de uma temporalidade necessária à dinâmica dos processos ali envolvidos. Na clínica, as imagens “vistas” nas rêveries adquirem mais comumente uma via de processamento e de narratividade capaz de favorecer a elaboração das experiências emocionais, os reposicionamentos subjetivos e as expansões da capacidade de efetuar trabalhos psíquicos conscientes e inconscientes – em uma sobreposição das dimensões intersubjetiva e intrapsíquica, ambas indispensáveis ao trabalho analítico. Nesse sentido, o trabalho de rêverie aproxima-se do fazer fotográfico na medida em que comporta processos que transformam conteúdos brutos em elementos compartilháveis e assimiláveis, se não em uma imagem vista sobre um suporte plano e palpável, em uma imagem mental que abriga uma mensagem a ser transformada para tornar-se inteligível ao outro em palavras.

Assim como o fotógrafo prepara detalhadamente seu aparelho fotográfico para com ele brincar, o analista que se empresta às vias relacionais do encontro e usa a contratransferência como instrumento também prepara seu enquadre externo com rigor e disciplina. Progressivamente, seu enquadre interno torna-se cada vez mais confiável e maleável para que ele possa lançar mão de sua capacidade imaginativa e de técnicas variadas, sem perder as rédeas de uma escuta analítica simbolizante e ética.

338 o sonhar compartilhado em análise

Todo o conjunto que envolve a formação, o cultivo e os espaços de “higiene mental” do analista ajudam a incrementar seu enquadre interno e a preservar ou reinstalar sua disponibilidade de mente para acolher o analisando e hospedá-lo em seu inconsciente. Ao colocar-se a trabalho nas mais variadas circunstâncias, o analista vai expandindo suas reservas e seu repertório para pensar e sonhar, sentindo-se cada vez mais à vontade para convidar o analisando a brincarem juntos.

Na construção de um pensar/sonhar/brincar que não ocorre sem limites, mas cuja liberdade leva em consideração preceitos de cuidado dentro de contornos bem estabelecidos, é justamente a ativação e a expansão das funções de pensar, de sonhar e de brincar que estão em jogo como tarefa primordial da análise, mais do que a interpretação dos conteúdos que habitam seus processos. Sobre isso, encontramos nesta reta final uma passagem de Civitarese (2018) que elucida bem o que intentamos fazer ao longo deste trabalho:

Na psicanálise contemporânea, essa capacidade de dar forma às emoções tornou-se o cerne do tratamento. Diz-se mesmo que a mãe ama o filho por sua capacidade de rêverie. Se existe um vínculo de amor, ela é capaz de sonhar, ou seja, de intuir suas necessidades e angústias profundas e contê-las. [...] Segundo Bion, é fundamental que os analistas possam ser pintores ou fotógrafos das emoções, que se iluminam na relação ou no campo analítico. É claro que isso não deve permanecer uma referência vaga e imprecisa. Fosse assim, não teria muito valor. Para um analista, ser artista significa ter um arcabouço teórico rigoroso e uma técnica coerente que lhe permita fazer uso disciplinado de momentos intuitivos. A ferramenta do analista torna-se a faculdade da imaginação e, como se supõe que a comunicação inconsciente entre as mentes está sempre ocorrendo, as fotografias que cada pessoa tira

em sua mente são vistas como uma criação conjunta. É como se o casal estivesse o tempo todo engajado em uma dança em que está em jogo o reconhecimento mútuo e a digestão/representação da experiência emocional em curso. (Civitarese, 2018, pp. 124-125, tradução nossa)

Nesse interjogo, não é possível compreender a mente do analisando sem que se compreenda ao menos algo da mente do analista.

Do mesmo modo, não é possível pensar o fazer clínico sem recorrer a metáforas que podemos encontrar-criar no rico solo da cultura, onde também nasce a poesia.

No ponto derradeiro de nossas incursões por entre vias principais e travessadeiras, do intrincamento não sem consequências entre palavra e imagem, recorremos novamente a Manoel de Barros, grande brincante de imagens erigidas sobre palavras. No livro Ensaios fotográficos, o poema intitulado “O poeta” diz assim:

Vão dizer que não existo propriamente dito.

Que sou um ente de sílabas.

Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.

Meu pai costumava me alertar:

Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som das palavras

Ou é ninguém ou é zoró.

Eu teria treze anos.

De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que se perdia nos longes da Bolívia

E veio uma iluminura em mim.

Foi a primeira iluminura.

Daí botei meu primeiro verso:

Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.

Mostrei a obra pra minha mãe.

A mãe falou:

Agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades.

Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

Da conclusão deste livro como uma importante travessia que nasce do meu percurso de formação e o revigora junto a um cultivo constante, assumo também aqui minhas irresponsabilidades.

Faz-se necessário agora fechar o obturador e deixar que as fotografias sejam reveladas no encontro com o mundo.

Este livro é o apaixonante percurso de uma analista formulando em palavras as imagens espontâneas que atravessam o seu aparelho de pensar/fotografar em uma sessão de psicanálise. O que as imagens estão querendo dizer? Carolina Paixão prepara a sua câmera para captar imagens do inconsciente, desejos, expectativas, angústias e defesas. Hospeda o paciente em uma sala agradável e o convida a entrar no enquadre interno da analista. Cria o foco de sua escuta flutuante com a ajuda de Bion, Green, Ogden, Ferro, Civitarese e muitos outros autores. Então nos revela direitinho como aprendeu a captar e a transformar imagens em palavras: sua rêverie escapa aos caminhos excessivamente limitados da razão.

Flávio Ferraz série

PSICANÁLISE
PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA Coord.

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O sonhar compartilhado em análise by Editora Blucher - Issuu