Freud pediatra

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Freud pediatra

A experiência com crianças na origem da psicanálise e suas ressonâncias na contemporaneidade

Marcela Carolina Schild Vieira

FREUD PEDIATRA

A experiência com crianças na origem da psicanálise e suas ressonâncias na contemporaneidade

Marcela Carolina Schild Vieira

Freud pediatra: a experiência com crianças na origem da psicanálise e suas ressonâncias na contemporaneidade

© 2025 Marcela Carolina Schild Vieira

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Kedma Marques

Preparação de texto Regiane Miyashiro

Diagramação Thaís Pereira

Revisão de texto Lidiane Pedroso Gonçalves

Capa Juliana Midori Horie

Imagem da capa iStockphoto

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Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Vieira, Marcela Carolina Schild

Freud pediatra : a experiência com crianças na origem da psicanálise e suas ressonâncias na contemporaneidade / Marcela Carolina Schild Vieira. – São Paulo : Blucher, 2025.

200 p. Bibliografia

ISBN 978-85-212-2641-3 (Impresso)

ISBN 978-85-212-2639-0 (Eletrônico - Epub)

ISBN 978-85-212-2642-0 (Eletrônico - PDF)

1. Psicanálise. 2. Psicanálise infantil. 3. Análise da criança. 4. Freud, Sigmund, 1856-1939. I. Título.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático:

1. Psicanálise

CDU 159.964.2

Conteúdo

Apresentação

Ensaio: entre o antes e o depois

Introdução

O que é um começo?

1. Em busca das pegadas: caminhos de Freud entre 1886 e 1896 41

2. Releituras a partir da experiência com crianças 83

3. Por que Freud hoje? A psicanálise com crianças 135

Considerações existenciais: esboços conclusivos 173

Referências e sugestões de leitura

1. Em busca das pegadas: caminhos de Freud entre 1886 e 1896

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou por aquela pedra –responde Marco –, mas pela curva do arco que elas formam. Kublai Kahn permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: – Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.

Polo responde: – Sem as pedras o arco não existe. (Calvino, 1923-1985/1990, p. 79)

Sigmund Freud nasceu no dia 6 de maio de 1856 em Freiberg, na Morávia, pertencente ao então Império Austríaco, e aos quatro anos de idade se mudou para Viena. Quando ele estava com três anos, o cientista inglês Charles Darwin, cientista tão admirado e fonte declarada de inspiração, destronava a humanidade de uma existência divinizada com o lançamento de sua obra A origem das espécies e reposicionava os seres humanos como parte de uma cadeia animal evolutiva. Trezentos anos antes, em 1543, Nicolau Copérnico publicou os princípios da teoria

heliocêntrica e anunciava o deslocamento radical da humanidade do centro do universo. Foram ainda necessários alguns séculos e outros tantos ilustres pensadores, como Giordano Bruno, Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton para, enfim, elevar tal proposição à condição científica, nos termos de Karl Popper. Anos depois, em 1896, Freud utiliza pela primeira vez o termo psicanálise e se tornará mundialmente conhecido por formular uma teoria paradoxal, não necessariamente afeita às explicações, mas profundamente sustentada nas análises minuciosas sobre o indivíduo e o coletivo, o sonho e a cultura, o corpo e o sensível, o cérebro e a mente, ao passo que, mais uma vez na história da ciência, nossa ingênua soberania é descortinada.

Desde então, o desígnio socrático de nada saber para, com sorte, algo descobrir segue desnorteando a racionalidade humana e os projetos de controle totalitários.

Sobre esse descaminho, o importante neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis1 contou em entrevista que, mesmo fazendo parte de grupos altamente gabaritados das mais importantes universidades do mundo e contando com os maiores especialistas de áreas complexas, foi numa aula dirigida a crianças que recebeu um questionamento que o suspendeu dos princípios cartesianos. Em uma das aulas com seus pequenos alunos cientistas, explicou ser um astrônomo que estudava um outro meio e (apontando para sua a cabeça) disse investigar o universo que fica entre as orelhas. Ao final da explanação uma garotinha se aproximou dele e perguntou:

– Professor, e onde ficam as estrelas?

Ao revelar o inconsciente, Freud restaurou pilares existenciais da humanidade, com destaque para a dimensão onírica, os afetos e o desejo, preservando em si a potência do pensamento infantil que nada

1 Nicolelis e sua equipe, entre as mais representativas conquistas no contexto científico, buscam desenvolver próteses neurais para a reabilitação de pacientes que sofrem de paralisia corporal.

em busca das pegadas: caminhos de freud entre 1886 e 1896 43

exclui, que existe entre o sensível, o técnico e o mágico. Demonstrou e navegou com suas ideias entre margens repressoras que jamais dariam importância às estrelas, estabeleceu assim uma teoria com “um modo particular de defesa, mas de uma defesa diferente de repressão, pois trabalha com o próprio material sobre o qual esta se desencadeia: seu trabalho é, paulatinamente, o de aliviar o peso da repressão, e nisso reside, talvez, um dos critérios para designar como psicanalítica uma teoria” (Mezan, 1985/2019, p. 173).

Primeiros trechos...

Não gosto de palavra acostumada. (Barros, 2010, p. 348)

A leitura e a escrita psicanalítica continuam a ser reconhecidas como atividades subjetivas, intimamente relacionadas à clínica e ao conjunto das experiências individuais daqueles que, em alguma medida, se dedicam a elas. Com isso, todo um campo se estabelece entre o autor, sua obra, o leitor e o panorama histórico do qual fazem parte. As escolhas e preferências por certos temas, suas influências e articulações são apenas alguns exemplos dessa condição na qual, com uma certa dose de sorte, um espaço favorável à livre associação se estabelece e coloca em relação uma elaborada teia teórica.

A psicanálise pretendeu, desde sua criação, existir na tensão entre o saber crítico sobre a cultura e a emergência transgressora; carregava um potencial revolucionário que faria emergir do núcleo da própria cultura a possibilidade de transformação. Em linha com tal premissa, como pontuado por Mezan, a “preocupação constante de Freud em não reduzir sua disciplina a uma especialidade terapêutica significa que a investigação psicanalítica, movida por sua própria dinâmica, não pode deixar de se estender às manifestações culturais” (Mezan, 1985/2019,

p. 158). O nascimento e os primeiros anos da psicanálise, como já descritos pelo próprio Freud, foram vividos à margem dos discursos científicos, da Associação Médica de Viena e dos centros acadêmicos, sobre os quais Freud virá a reivindicar tempos depois ser o único a ter sofrido pessoalmente toda a agressividade e isolamento desse cenário. Apesar das vulnerabilidades dessa condição e de não ser sua intenção permanecer nesse lugar, considerou inevitável aceitar os desalinhos de sua descoberta e permanecer insistentemente com suas formulações teóricas a partir da compreensão de que naquele momento “estava entre aqueles que ‘incomodaram o sono do mundo’ . . . Decidi-me a crer que coubera a sorte de desvendar nexos particularmente importantes, e me vi disposto a aceitar o destino que às vezes se liga a tais descobertas” (Freud, 1914/2012, p. 265). Não é mera coincidência que, ao longo da biografia de Freud, tantas outras passagens dão notícias sobre sua obstinada rebeldia, indiscutível ambição, aproximações e rupturas edificadas sobre um traço de sua personalidade reconhecida por ele como de um “opositor ousado”. Sobre isso, escreve Martha já em fevereiro de 1886:

Ainda que não pareça, já na escola era um opositor ousado. Encontrava-me sempre onde havia uma posição extrema a defender e, em geral, estava pronto a sacrificar-me por ela. Depois, conseguido o primeiro lugar, que viria a conservar durante anos, e ganha a confiança de todos, ninguém mais teve ocasião de se queixar de mim. Sabe o que Breuer disse-me um dia? Fiquei tão comovido que mais tarde lhe confiei o segredo do nosso noivado. Disse-me que tinha descoberto em mim um homem intrépido incrivelmente audacioso sob uma aparência de timidez. Sempre o pensei, sem porém ousar dizê-lo a quem quer que fosse. Muitas vezes tive a impressão de haver herdado toda a audácia e paixão que os nossos antepassados punham na defesa do templo, de ser

2. Releituras a partir da experiência com crianças

Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. Caminha-se em trilhos de madeira, atentando para não enfiar o pé nos intervalos, ou agarra-se aos fios de cânhamo. Abaixo não há nada por centenas e centenas de metros: passam algumas nuvens; mais abaixo entrevê-se o fundo do desfiladeiro.

Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com a forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, montacargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogo, teleféricos, lâmpada-rios, vasos com plantas de folhagens pendente. Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.

(Calvino, 1923-1985/1990, p. 71)

A imagem de uma cidade suspensa e habitável pelo movimento existente entre suas pontes, fios, teias, barbantes, malhas, circuitos e múltiplos caminhos me coloca novamente diante das noções de infância e psicanálise, ou mais especificamente, nesta etapa da reflexão, sobre um encontro possível no compartilhamento da posição da criança e da psicanalista. Reconheço, na contínua suspensão sobre o abismo das incertezas, maravilhamentos e atitude investigativa, uma condição inescapável que nos une numa caminhada curiosa e confiante para o horizonte profundo.

Uma garotinha que sempre vinha para as sessões em vestidos bufantes e muitos adereços de princesa, na época com quatro anos, contava-me num tom efervescente o quanto os adultos eram desinteressantes – “chatos, brigam muito e reclamam de tudo” eram algumas de suas percepções – e por essa razão estava decidida a ser sempre criança.

O jeito a la Mafalda do cartunista argentino Quino me causou graça, sorri para ela e disse: “mas veja, eu sou uma adulta e acho que estamos tendo um ótimo momento juntas, talvez haja esperança”. Tirando os olhos da massinha de modelar e olhando bem para mim, disse: “É porque você é uma Peter Pan menina”. Mais uma vez ri e não pude discordar: “é verdade, eu achei um jeito e acredito que você também vai encontrar um”. Seguimos brincando.

Esse trecho clínico compõe um arcabouço de uma, nenhuma, cem mil lembranças1 das experiências transformadoras que me remetem à frase inicial deste trabalho, quando Freud diz que se arranjaria sem demora na clínica com crianças. Penso se tratar de um reconhecimento mútuo sobre o fluxo da curiosidade e arrisco a dizer que me encanta reconhecer aí um dos maiores legados subjacentes da teoria psicanalítica,

1 Expressão que faz referência ao livro Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello, em que uma desconcertante descoberta sobre um suposto nariz imperfeito coloca o personagem diante de dilemas existenciais profundos, atravessa as fronteiras identitárias do “quem sou?” para “o que somos?” com habilidosa capacidade para sustentar com humor a dimensão paradoxal da vida.

releituras a partir da experiência com crianças 85 a saber, sobre a celebração da essência da pesquisa, da busca e da pergunta. As crianças com seus “porquês”, contínua observância, inquietude pesquisadora e atitude perturbadora da ordem civilizatória foram aceitas por Freud. Ele não apenas reconheceu que o infantil é a matéria-prima em si sobre a qual somos o que somos, como também deu a isso uma função nomeada como inconsciente, sustentou a partir de dentro e com vocabulário próprio do núcleo científico o protótipo de uma existência composta por dimensões oníricas, imaginativas, simbólicas e emocionais. Enalteceu a imaginação, as artes, o sonho e o brincar como funções constitucionais, processos vitais sobre os quais nos encontramos desde os tempos mais remotos, uma protopercepção sensível anterior à consciência ou à cognição como propõe na ideia de que “há bem mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que nos faz crer a notável ruptura do ato do nascimento” (Freud, 1926/2014, p. 80).

Sobre essa alusão, é verdadeiramente um grande achado o artigo “Psiquismo fetal: bases neurodinâmicas e psicanalíticas” (Laurentino & Boxwell, 2022), escrito a partir das pesquisas de Silvia Laurentino e Suzana Boxwell, em que propõem uma discussão acerca da possível existência de um psiquismo fetal com base nos estudos sobre os comportamentos intrauterinos e a hipótese de um aparelho psíquico rudimentar. Com base na revisão do extenso conhecimento sobre o desenvolvimento do sistema nervoso e da sinaptogênese do feto, articulado às pesquisas neurofisiológicas e da neurofísica, as autoras realizaram análises que relacionam esse campo do conhecimento e a ideia de energia psíquica descrita por Freud em Projeto para uma psicologia científica (Bezerra Jr., 2013). Toda uma profunda reflexão se apresenta sobre as questões levantadas, colocando em cena novas considerações e releituras para a teoria freudiana por meio dos estudos neurocientíficos atuais, demonstrando, mais uma vez, a fertilidade do solo teórico psicanalítico.

Algo disso me fez recordar o pedido de uma garotinha de nove anos, uma vez que precisava de ajuda para explicar para uma outra menina de três anos como eram feitos os bebês. Perguntei-lhe se já havia uma ideia inicial ou se havia algo mais detalhado que ela realmente gostaria de saber, o que rapidamente virou uma explicação sobre nada ter a ver com a história do pai e da mãe namorarem, isso ela já sabia. O que realmente não fazia sentido algum era “como que uma semente juntando com a outra semente vira um bebê?”; concordei completamente, isso sim é um enigma difícil de compreender, e respondi que achava ser uma mágica da natureza. A garotinha me olhou e disse com convicção: “eu também acho que é mágica... Imagina só, um bebê! Um BEBÊ, tem noção?!”.

Freud fez o que essa garotinha parecia querer: precisou encontrar formas científicas e lógicas para explicar o que é impecavelmente “explicado” pela arte, pelo mágico e pelo sensível. A proposta a seguir é passear por alguns importantes escritos, seguindo pistas e inspirações suscitadas pela ressonância da notícia das experiências pediátricas freudianas, revisitando trechos e tecendo reconsiderações que dialoguem mais intimamente com o material histórico do contexto geral da época.

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905)

Não pode haver ausência de boca nas palavras: Nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. (Barros, 2010, p. 345)

O particular desafio de um capítulo com releituras dos textos freudianos, primeira e obviamente, aponta na direção da complicada tarefa de escolher entre tantas opções interessantes, de modo que o desafio se aprofundou grandemente quando o que parecia ser o critério inicial para essa seleção se mostrou completamente frágil e ineficaz. A primeira ideia era fazer uma triagem entre os textos principais e

3. Por que Freud hoje? A psicanálise com crianças

Então Marco Polo disse: – O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como são dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. –Até então o Grande Kahn não se dera conta de que o estrangeiro sabia se exprimir fluentemente em sua língua, mas não foi isso que o surpreendeu. – Eis um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de um caruncho, pois este, logo depois de nascer, teria continuado a escavar, mas de uma lagarta que roeu as folhas e foi a causa pela qual a árvore foi escolhida para ser abatida... Esta margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente...

A quantidade de coisas que se podia tirar de um pedacinho de madeira lisa e vazia abismava Kublai; Polo já começava a falar de bosques de ébanos, de balsas de troncos que desciam os rios, dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas... (Calvino, 1923-1985/1990, p. 121)

Freud reconheceu na criança sua condição observadora, formuladora de teorias e esquemas sofisticados sobre tudo aquilo que se passa com ela e ao seu redor. Um estado contínuo de curiosidade, investigação e atitude científica que não permanece inofensivo frente ao aparato alienador de uma sociedade que, de tempos em tempos, se entusiasma com a precária ideia de controle absoluto. Simultaneamente ao adoecimento que se instala e traz consigo níveis trágicos de sofrimento, a criança denuncia na personificação de toda confusão as fraturas e a faceta mais cínica do frágil conjunto que nos orienta. Ademais, o desajuste diante do projeto existencial que lhe exige obediência irrestrita e adequação submissa culmina por vezes num potente gesto transgressor, de modo que a reivindicação criativa e existencial gradativamente tensiona o tecido social obscurecido pela lógica conformista do pragmatismo.

A psicanálise trouxe ao tempo da infância um nível de complexidade e um volume de indagações que se renovam incessantemente. Ao dar visibilidade e expansão ao infantil, nossa existência e os diversos desdobramentos nos campos sociais carregam referências sobre esse período que nos constitui. Para além de sua inscrição no tempo, enquanto um marco fundamental no desenvolvimento, o infantil revela algo muito singular quanto à experiência e ao funcionamento inconsciente. Como descrito por Bernardo Tanis, em seu livro O infantil na psicanálise: memória e temporalidade:

O infantil se revela e se expressa como um manancial criativo ancorado na dimensão pulsional sublimatória e transicional, dando lugar à construção da experiência cultural e simbólica, assim como também é fonte de sofrimento e mal-estar vinculados às feridas que dão testemunho do encontro com o outro, ao traumático e à pressão da compulsão à repetição. (Tanis, 2021, p. 188)

Essa passagem é especialmente relevante diante da concepção que considera a temática da infância como tema estrutural da psicanálise,

por que freud hoje? a psicanálise com crianças 137

não sendo objeto de atenção e intervenção apenas dos analistas de crianças. O infantil se relaciona a todo um esquema de noções e paradigmas que orientam visões sobre as complexas perspectivas que entrelaçam memória e temporalidade, dinâmicas relacionais e os circuitos irrepresentáveis das esferas mais arcaicas da nossa existência –especialmente exigidas e acionadas em tempos como o da pandemia de Covid-19, em que os extremos se tornam mais aparentes e evidentes no cotidiano de um número majoritário da população.

De tempos em tempos, podemos dizer que alguns temas ganham maior ou menor projeção no campo teórico, sendo tal movimento um efeito da combinação entre impasses e manifestações patológicas que, por inúmeros motivos, passam a chamar mais atenção, além do próprio desenvolvimento da teoria em sintonia com as múltiplas camadas dos fenômenos. Se adotarmos como referência uma linha histórica marcada por esses temas, podemos dizer que na contemporaneidade acompanhamos um crescente interesse para o que antecede esse momento dos humanos e uma forte tendência às explicações genéticas ocupam uma significativa relevância do entendimento geral, contornando a primeira infância com muitos olhares e alguma escuta.

Nesse sentido, além de abordarem sobre o que há de mais primitivo e orgânico no ser humano, os questionamentos também irão dirigir nossa atenção para as fases mais precoces das relações de objeto – um território interessantíssimo, que convoca principalmente os psicanalistas e outros profissionais envolvidos com a infância. Colocando em contínuo movimento o que se revela na clínica, nas manifestações contemporâneas e seus efeitos na organização da experiência subjetiva, as coordenadas oferecidas pela perspectiva psicanalítica oferecem uma extensa fundamentação no percurso dessa jornada. Múltiplos contornos e impasses convocam o diálogo necessariamente alicerçado nos obstáculos, naquilo que não é resolvido e está em permanente construção. O desconcerto, o desassossego e os entraves teóricos são

a matéria-prima desse trabalho que tende a se prolongar para uma forma de ver e estar no mundo.

Como um andarilho se coloca diante do potencial emergente trazido pelo horizonte, os analistas também se lançam por meio da disponibilidade de ser afetado e de correr riscos, a meu ver, pela iminente e constante experiência de encontro com o inusitado, com a surpresa e a impossibilidade de não controlar todas as condições. É admirável como os andarilhos se enchem de motivação na busca por direções, se transformam ao longo do percurso e revisitam suas rotas numa íntima relação com o ambiente, mesmo que isso represente adotar estratégias distintas e mudanças do plano original. Essa imagem sempre me emociona e serve para que esteja atenta às oportunidades de incrementar o conjunto psicanalítico ao manter meu núcleo conceitual arejado.

Nessa sequência, acompanhar a onipresença da criança nos textos freudianos, direta ou indiretamente, fez pulsar o que considero ser o mais elementar dessa obra: sua dimensão política. A profundidade e a obstinação científica de Freud, que tanto lhe conferem reconhecimento enquanto perspicaz pesquisador, não são maiores que sua sensibilidade e disposição clínica perante a dor revelada pelo compromisso com a delicadeza, com o belo, com o detalhe e tantos outros elementos como lindamente descritos no poema “O apanhador de desperdícios”, de Manoel de Barros (2015, p. 149):

Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar.

Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Considerações existenciais: esboços conclusivos

Um monge descabelado me disse no caminho: “eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem embaixo de uma ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado. (Barros, 2010, p. 385)

É curioso para mim, após o percurso realizado, que a frase de abertura desta pesquisa siga pulsando e produzindo um efeito emocionante. Acho que me arranjaria sem demora na clínica com crianças abre perspectivas em tantas direções que seria profundamente ingênuo

imaginar que ao final haveria um ponto de chegada. Definitivamente as considerações que me parecem relevantes precisam ter envergadura de início, marcar começos e registrar princípios essenciais. Ao reposicionar o seu olhar e sua escuta sobre o conjunto infantil, Freud ainda não tinha concebido a concepção do eu descentralizado e a irremediável divisão promovida pelo inconsciente, de modo que sua reação parece pertencer à comoção pela experiência do sofrimento e a uma inexorável afeição para com o humano – há indícios de que também tinha um forte apego por seus cachorros.

O interesse na biografia de Freud não cessa de revelar experiências e percursos de uma trajetória verdadeiramente empenhada no conhecimento da condição existencial humana, de modo que tamanha intensidade o colocou na linha de frente de movimentos humanos verdadeiramente decisivos. Sem dúvida, o eu descentralizado proposto por Freud ocupa um lugar de destaque nesse cenário, causando um efeito perturbador na concepção de subjetividade vigente que não mais poderia saber e alcançar o conhecimento total sobre si. Nesse eu essencialmente dividido pela realidade inconsciente por meio do sintoma, do sonho e do ato falho; regido e orientado por forças sobre as quais ele não governa, não controla e não escolhe, o eu passa a se constituir a partir de uma forte relação com as circunstâncias. Assim sendo, mas antes que tais ideias estivessem sendo formuladas em seu constructo teórico, é notório que algo nele já circulava sob dimensões sensíveis, empáticas e éticas. Na busca por boas perguntas em vez de rápidas respostas, o que poderia ter ressoado sobre ele pertence ao universo das leituras e conjecturas a partir de um grande acervo teórico, inferências com base no grande volume de escritos e registros históricos existentes. Possivelmente, o que reverberou em Freud tão instantaneamente em relação às crianças foi efeito do reconhecimento da dimensão subjetiva que ali existia, especialmente diante das necessidades básicas de sobrevivência e estados de profunda vulnerabilidade. Algo sobre as manifestações e os comportamentos dos pequenos não o

considerações existenciais: esboços conclusivos 175

deixou esquecer que um dia todos nós tivemos uma infância, um estado sob o qual nossa vida estava assegurada pela presença da alteridade e um rico universo interno que, desde muito cedo, constrói hipóteses sobre o mundo ao redor.

Pensar sobre a criança inclui considerar contornos cronológicos, mas significa mais do que isso: aponta para a direção de um estado e uma configuração existencial orientada por outros referenciais, sentidos e dinâmicas relacionais em que tudo está em profunda conexão.

A criança, assim reconhecida, torna-se sábia, observadora, pensante e questionadora do conformismo alienante de uma sociedade que sequestra o essencial em nome da civilização. Ao mesmo tempo, os pequenos estão mais profundamente expostos a demandas, piores condições e mazelas dos registros ideológicos que podem se fazer dominantes. Com sua imaginação lúdica e racionalidade amalgamadas, sem fronteiras entre o corpo e a mente, entre a ação e a linguagem, entre o eu e o mundo, a criança coloca em ação toda potência de uma existência não cindida.

Se Freud pensava a educação como um espaço e uma condição sobre a qual as crianças pudessem se constituir com menos impacto frente ao narcisismo dos pais e ideais sociais, a contemporaneidade segue desafiando tal propósito. Seguimos em ritmo acelerado na direção de parâmetros excludentes e fortemente orientados às práticas impositivas de um certo modelo de excelência e produtividade supostamente definidos por leis de mercado – incrementadas por releituras dos projetos de poder autoritários. Com a negação dessa condição das mais variadas formas e meios possíveis, é evidente o quanto a disciplina freudiana segue seu princípio enquanto “um verdadeiro contradiscurso, a chamar de maneira particularmente vigorosa a atenção para o custo psíquico que as atitudes e comportamentos preconizados por ele impõem aos humanos do nosso tempo” (Mezan, 2017, p. 278). A noção de contemporâneo aqui pensada segue a dupla acepção, especialmente desenvolvida por André Green, enquanto uma localização

no princípio da atualidade, mas também uma conceituação histórica que visa incluir as mudanças ocorridas no cerne psicanalítico:

O movimento contemporâneo é marcado por forças que puxam para direções diversas, a partir do corpus comum formado pela clínica. Os casos-limites, os distúrbios narcísicos, as patologias psicossomáticas; em suma, a predominância das estruturas não neuróticas suscitou a emergência de uma clínica nova. Essa clínica exige, a meu ver, a elaboração de uma teoria geral do psiquismo e, muito logicamente, uma técnica. (Green, 2019, p. 96, grifo do original)

Nessa sequência, a ideia de reaproximar a abelha do pote de mel pela restituição do lugar da criança na história da psicanálise é recebida como uma pista. Considerando a reinserção dos princípios inspiradores e, sobretudo, incômodos com os quais Freud tanto trabalhou, não apenas a narrativa, mas, principalmente, a clínica são atravessadas por perspectivas criativas. A obra de Freud segue sendo uma fonte inesgotável e profundamente estabelecida na condição de enfrentar os desafios impostos pelo psiquismo. Como a nascente de um rio, as diretrizes freudianas fazem brotar o conjunto dos componentes necessários para a complexidade e diversidade das problemáticas da existência ajustadas ao tempo em questão. Essa perspectiva me parece profundamente interessante, especialmente quando colocada em referência à noção de sujeito brincante proposta por André Green, em que o sujeito seria aquele da brincadeira, “da atividade criadora enquanto movimento enquadrado pela estrutura do simbólico, mas tendo uma margem de ação para, no caminho, transformar tanto a si mesmo quanto as regras da brincadeira” (Green, 1991/2019, p. 43).

Lembro com alegria de um episódio no período em que mais aprendia sobre a vida do que dava aulas de inglês: a proposta da atividade parecia bastante simples: em uma extremidade da página havia

Como psicanalista de crianças, Marcela Carolina Schild Vieira é reconhecida por sua sensibilidade e inventividade. Como pesquisadora, destacou-se com um estudo sobre a noção de espelho em Lacan e Winnicott. Em seu doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, defendeu a tese de que os dez anos em que Freud atendeu no hospital infantil de Viena influenciaram profundamente sua teoria da sexualidade infantil. Neste livro, a autora aborda uma questão alarmante da sociedade contemporânea: a medicalização excessiva e, muitas vezes, indiscriminada na infância. Comportamentos e processos naturais são tratados como patológicos, é preciso observar: as crianças estão vivenciando seu pleno desenvolvimento ou respondendo à sobrecarga do complexo modelo atual de existência? Quando poderão simplesmente brincar, explorar e criar?

Com escrita clara, argumentos sólidos e éticos, o livro é uma leitura essencial para pais, educadores, profissionais da saúde e do direito, interessados pelo tema infância.

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