Revista E - Desembro 2025

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Revista E | dezembro de 2025 nº 6 | ano 32

Acordes da História Do erudito ao popular, os percursos do violão brasileiro

Sons de Heliópolis Transformação social sob a batuta de Edilson Ventureli

Pertencimento A força da comunidade em prol da saúde mental

Letras e Filetes Passeio visual pela arte diversa da América Latina

saiba mais em sescsp.org.br

Obra de Tuan Andrew Nguyen Exposicão Cartas à Memória

SANTO AMARO

Eu Sou o Brasil: Artistas Populares

Curadoria: Renan Quevedo

Até 28/12/25

INTERLAGOS

Presença Espiral

Curadoria: Lentes Malungas

Até 4/1/26

POMPEIA

O Poder de Minhas Mãos

Curadoria: Odile Burluraux, Suzana

Sousa e Aline Albuquerque

Exposição que integra a temporada França-Brasil 2025

Até 18/1/26

PINHEIROS

PLAY - FITE Biennale

Textile Clermont-Ferrand

Curadoria: HS_Projets, Musée d’Art Roger-Quilliot, Musée

Bargoin e Sesc São Paulo

Exposição que integra a temporada França-Brasil 2025

Até 25/1/26

VILA MARIANA

Antípodas: Tão Distantes, Tão Próximos

Curadoria: Tomoe Moriyama

Até 25/1/26

GUARULHOS

Maxwell AlexandreNovo Poder: Passabilidade

Até 1/2/26

BELENZINHO Ònà Irin:

Caminho de Ferro

De Nádia Taquary. Curadoria: Amanda Bonan, Ayrson Heráclito e Marcelo Campos

Até 22/2/26

CAMPO LIMPO

Vozes da Várzea

Parceria com o Museu do Futebol. Curadoria: Alberto Luiz dos Santos e Diego Viñas

Até 1/3/26

24 DE MAIO

Hip-Hop 80’sp - São

Paulo na Onda do Break

Curadoria: OSGEMEOS, Rooneyoyo O Guardião, KL Jay, Thaíde, Sharylaine, ALAM Beat e Rose MC

Até 29/3/26

IPIRANGA

Letras & Filetes: Memória

Afetiva e Latinidades

Curadoria: Filipe Grimaldi e Thiago Nevs

Até 5/4/26

AVENIDA PAULISTA

Cartas à Memória

Curadoria: Yudi Rafael

Até 30/4/26

Confira o funcionamento das unidades durante o fim de ano em sescsp.org.br/feriados

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Portal do Sesc (QR Code ao lado)

CAPA: Detalhe de carroceria de madeira decorado com filetes – técnica com linhas finas e dançantes, traçadas com pincel ou carretilha, que mistura arabescos, florais e molduras e compõe a tradição popular da ornamentação de caminhões. De autoria de Paulinho Mazuco, de Vargem Grande do Sul (SP), a obra foi criada em 2025, para a exposição Letras & Filetes: Memória Afetiva e Latinidades, em cartaz no Sesc Ipiranga até 5 de abril de 2026. A mostra reúne cerca de 60 artistas de diversas regiões do Brasil e da América Latina para celebrar a riqueza gráfica das letras populares e da ornamentação fileteada, presentes nas ruas, mercados, fachadas, caminhões e embarcações.

Crédito: Nilton Fukuda

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Legendas Acessibilidade

Novos futuros possíveis

No mês que marca o encerramento de 2025, somos convidados a uma retrospectiva para perceber avanços e conquistas, frutos do esforço realizado neste período. Com otimismo, renovamos nossas esperanças para o que está por vir, reafirmando os propósitos que orientam nossa atuação. Afinal, promover o bem-estar e a qualidade de vida dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, de seus familiares e de toda a comunidade está no centro das ações do Sesc – Serviço Social do Comércio. Criada em 1946, por iniciativa do empresariado do setor, a entidade desenvolve uma ação educativa contínua por meio de ampla programação nas áreas da cultura, do lazer, dos esportes, do turismo, da saúde e da alimentação.

Trata-se de uma iniciativa que se transformou ao longo das décadas, acompanhando os novos desafios e as condições de uma sociedade em constante mudança. Ao se renovar, sem renunciar a sua essência, permanece relevante ao público que o frequenta, compreendendo e se ajustando ao tempo presente, sem perder de vista a trajetória da qual fez parte, e projetando-se para o futuro de maneira dialógica e construtiva.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Estimular o encontro de saberes, promover trocas, ampliar repertórios culturais e fortalecer o desenvolvimento interpessoal continua sendo um compromisso da entidade, contribuindo, assim, para a construção de uma sociedade mais justa e melhor para todos, em busca de novos futuros possíveis.

Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo

Construir pontes, tecer relações

Pode parecer paradoxal afirmar que o caminho de construção da nossa identidade prescinde do outro. Somos seres individualmente distintos e carregamos uma soma de características físicas e de personalidade que nos diferenciam das demais pessoas. Se esse conjunto de atributos nos constitui enquanto seres únicos, é na relação com a comunidade, porém, que iremos desempenhar nossos papeis sociais, destacando e desenvolvendo nossos potenciais a partir dos estímulos que recebemos.

Desse modo, o território e o grupo sociocultural a que estamos inseridos é também um fator determinante para a constituição de quem nos tornamos. Mais do que isso: humanos, somos gregários e nos desenvolvemos ao longo da história a partir de aldeias, vilas e cidades.

A aceleração da vida contemporânea somada aos avanços tecnológicos e à disseminação desenfreada de informações têm provocado, como efeito colateral, o isolamento. Se, por um lado, nunca estivemos tão conectados por essas ferramentas, por outro, temos lidado com as crescentes queixas de solidão manifestadas pelas pessoas nos consultórios. Fator que tem causado danos à saúde mental, como alertam os profissionais da área.

Reportagem desta edição da Revista E reflete sobre a importância da construção de vínculos para não adoecer e aponta caminhos para uma relação interpessoal mais efetiva e afetiva, capaz de gerar uma vida mais saudável. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Junior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Airá Fuentes Tacca, Aline Ribenboim, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, Andréa de Araujo Nogueira, Andreia Dorta Martins Castilho Grande, Anna Raissa Costa Silva, Betina de Tella, Bruna Piccirillo Damasceno, Bruna Zarnoviec Daniel, Bruno Correa da Silva, Camila Freitas Curaca, Camila Oliveira Silva, Camilo de Araujo Otelac, Carla Teixeira Namura Rennar, Caroline Figueira Zeferino, Chiara Regina Peixe, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Maria da Silva Ribeiro de Souza, Clovis Ribeiro de Carvalho, Corina de Assis Maria, Cristiane Toshie Komesu, Desiane Pereira da Silva, Diego Polezel Zebele, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Edson da Silva Horacio, Eldan Pedro da Silva, Elisangela da Silva Pimenta, Emily Fonseca de Souza, Fernanda Soares Nogueira, Fernando Andrade de Oliveira, Flavia Teixeira S Coelho, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriela Grande Amorim, Gabriela Xabay Gimenes, Geraldo Soares Ramos Junior, Giovanna Cordeiro Nunes, Gleiceane Conceição Nascimento, Guilherme Nascimento Mendes dos Santos, Gustavo Barreto, Gustavo Nogueira de Paula, Isadora Vasconcelos de Oliveira Silva, Ivy Granata Delalibera, Jefferson Alves de Lima, Jefferson Alves Leite dos Santos, Joana Rocha Eca de Queiroz, Joao Carlos Doescher Fernandes, Joao Ricardo Cotrim Dias, Julia Thayssa S. P. Fortunato, Lara Fernandes Andrade Teodoro, Leandro Henrique da Silva Vicente, Luana Brito Lima, Luciana Fernanda Vivian de Lemos, Marcelo Baradel, Marcelo Dias de Carvalho, Marcia Cassiano da Silva, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Marquiori, Marina Reis, Milena Ostan da Luz, Milena Piva Carvalho, Natalia de Souza Freitas, Natalia Lemes Araujo, Paulo Henrique Vilela Arid, Rafael Nicolas da Silva, Renata Barros da Silva, Roberta Triaca, Rodrigo Rodrigues Griggio, Roselaine de Souza, Sabrina Grazielly Belém Barbosa, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Silvia Mayeda Dangelo, Stefano Santos Solovijovas, Stephany Tiveron Guerra, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Thamires Magalhaes Motta, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Valcir Belle Junior, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vanessa Cristina de Carvalho Fidalgo, Vivianne de Castro.

Coordenação-Geral: Ricardo Gentil

Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Lucas Blat • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Adriana Terra, Cristiane Komesu, Julio Maria, Lucas Nobile, Luciana Oncken, Luna D'Alama, Maria Júlia Lledó, Marina Pereira e Rachel Sciré •

Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Marina Pereira, Marcel Verrumo e Rachel Sciré • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo, Julia Parpulov e Vitor Penteado • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Cleber Paes, Gabriela Batista Borsoi, Glauco Gotardi, Leandro Vicente, Mildred Conde Gonzalez e Wendell de Lima Vieira • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Cleber Paes e Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago

Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488).

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS). Fale conosco: revistae@sescsp.org.br

Entre os destaques de dezembro, a ampliação das ações do programa de saúde, em especial nos atendimentos odontológicos, no Sesc São Bento

Diretor executivo do Instituto Baccarelli, maestro Edilson Ventureli celebra a longevidade da Orquestra Sinfônica de Heliópolis e impacto coletivo provocado pela música

Diante de uma sociedade cada vez mais individualizada, como a construção de vínculos e o sentimento de pertencimento contribuem para a saúde mental?

Contrariando preconceitos, o violão ganhou destaque como instrumento popular e impulsionou revoluções na música brasileira

O talento do acordeonista e maestro Orlando Silveira, parceiro de Luiz Gonzaga, presente em arranjos de uma constelação de astros da música brasileira

Um passeio visual por filetes e letras em cartazes, caminhões e até mesmo embarcações mostra diversidade dessa expressão artística latino-americana

dossiê entrevista saúde bio gráfica música

Nilton Fukuda (Entrevista e Gráfica); Acervo Regional do Canhoto (Bio)

Artigos de Paolo Parise e Eda Nagayama expõem desafios vivenciados por migrantes e refugiados e a importância da defesa dos direitos humanos e do exercício da alteridade

Curadora da Flip 2026, a editora e crítica literária Rita Palmeira constata novo alcance da literatura brasileira e diversificação de autores, temas e plataformas de divulgação

Doutora em história da arte e curadora ítalo-francesa, Cecilia Braschi defende pluralidade de expressões em museus e contínuo intercâmbio cultural com a América Latina

Rodrigo Garcia Lopes (poesia) e Carlos Carcarah (ilustração)

Conheça cinco museus comunitários que preservam a memória e transformam territórios em São Paulo

Mario Luiz Alves de Matos

em pauta encontros inéditos

APRESENTA

Uma viagem pelas cinco regiões do Brasil revela a força e a diversidade sonora do país: encontros inéditos entre artistas e novos ritmos convidam a ver, ouvir e sentir a energia que mantém viva a essência criativa da música brasileira.

Encontros, temposterritorios '

Quartas, 21h

A cantora Luedji Luna (à direita) dividiu o palco da Comedoria do Sesc Pompeia com a veterana Alaíde Costa, em espetáculo que integrou a programação do Sesc Jazz 2025. No repertório, composições do projeto duplo mais recente da artista baiana, que fala de amor de diferentes formas, combinando sonoridades como neo-soul, jazz, ritmos brasileiros e hip-hop. Entre 14/10 e 2/11, o Sesc Jazz 2025 reuniu 27 artistas e grupos do Brasil e do mundo, em edição que destacou o protagonismo feminino na música.

POR UM TEATRO LIBERTÁRIO

Diretor, ator e pedagogo, um dos fundadores do Teatro Oficina e idealizador do grupo Tá na Rua, Amir Haddad revolucionou o teatro ao romper as fronteiras entre palco e público.

Com prefácio de Fernanda Montenegro e depoimentos de parceiros de vida e carreira como Renata Sorrah e Pedro Cardoso, esta biografia é um dos mais completos levantamentos já feitos sobre o percurso do artista, colocando em perspectiva suas percepções sobre o tempo vivido e seu pensamento estético.

saiba mais

DOSSIÊ

No Sesc São Bento, o atendimento odontológico passa a contar com três novos espaços que potencializam a saúde bucal

Para além do sorriso

Sesc São Paulo amplia serviços no campo da saúde bucal com ações na unidade especializada em odontologia, agora chamada de Sesc São Bento

OSesc São Paulo fortalece o atendimento em odontologia com espaços renovados na sua mais antiga unidade, o Sesc Florêncio de Abreu, inaugurado em 1947, no Centro da capital paulista, e que se consolidou por décadas como polo odontológico. Agora, a unidade passa a se chamar Sesc São Bento, em referência à importante história da região onde se localiza.

Nela, o atendimento odontológico passa a contar com três novos espaços que potencializam o cuidado bucal. O Centro de Diagnóstico por Imagem tem

equipamentos de tecnologia mais avançada, para avaliações de alta qualidade e com o mínimo de impacto ambiental. Já o Laboratório de Prótese Dentária apoiará as clínicas das unidades de todo o estado, utilizando tecnologia digital para maior precisão e qualidade. Por fim, o Centro de Material e Esterilização traz um conceito inovador de biossegurança e autonomia ao setor.

Para o diretor regional do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, “a partir das premissas que destacam a importância de uma boca saudável, primordial para

a autoestima, o Sesc estabelece seu trabalho tanto por meio de práticas educativas e preventivas –com atual foco na promoção da saúde integral – quanto por tratamentos odontológicos com equipes especializadas e uso de equipamentos de tecnologia avançada”.

Atualmente, o Sesc dispõe de 34 clínicas – 29 fixas e cinco móveis –e um total de 154 consultórios. Em 2024, foram atendidas 49.912 pessoas e realizadas 857.811 consultas por uma equipe composta por 315 dentistas e 203 auxiliares. Os serviços incluem diversas especialidades, como preventiva, odontopediatria, prótese e ortodontia. O acesso ao atendimento odontológico do Sesc São Paulo é exclusivo para trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes que possuam a Credencial Plena válida. A inscrição é realizada anualmente e a seleção dos inscritos é feita com base no grau de vulnerabilidade social. Mais informações em sescsp.org.br/odontologia.

O Sesc estabelece seu trabalho tanto por meio de práticas educativas e preventivas quanto por tratamentos odontológicos com equipes especializadas e uso de equipamentos de tecnologia avançada

Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor Regional do Sesc São Paulo

DOSSIÊ

DIVERSIDADE MUSICAL BRASILEIRA

O SescTV estreia, no dia 26/11, às 21h, a temporada 2025 da série documental Sonora Brasil –Encontros, tempos e territórios, com direção de Gabriela Barreto e Tobias Rodil. O projeto, realizado pelo Departamento Nacional do Sesc, mapeia e incentiva a diversidade musical do país, desde manifestações em territórios isolados até novas experiências. Com dez episódios, de 25 minutos cada, a série apresenta encontros

Gestão cultural

entre artistas e grupos que, a partir de suas vivências, constroem uma escuta compartilhada. O primeiro episódio, "Alagoas", reúne Chau do Pife e Andréa Laís revelando como o som do pífano – um tipo de flauta popular típica do nordeste brasileiro –, mesmo ligado à ancestralidade, dialoga com a nova geração. Com reapresentações ao longo da semana, a série também está disponível sob demanda em sesctv.org.br/sonorabrasil

Desde novembro, o Sesc São Paulo amplia sua ação educativa com o lançamento do projeto Sesc em Percurso: Gestão Cultural, um conjunto de ações voltadas à formação de gestores públicos e privados, produtores e profissionais da cultura. A iniciativa visa fortalecer a atuação cultural nos territórios do interior do estado. Por meio de cursos, oficinas e encontros, a formação aborda temas como políticas culturais, gestão de projetos culturais, patrimônio e leis de incentivo. Informações sobre inscrições, conteúdos e cronograma de encontros estão disponíveis em sescsp.org.br

30 ANOS DE ACOLHIMENTO

Neste mês, o Sesc São Paulo celebra três décadas do Trabalho Social com Pessoas Refugiadas, trajetória iniciada em 1995, com foco na promoção de direitos, fortalecimento de redes de apoio e ampliação de oportunidades para aqueles que reconstroem suas vidas no Brasil. Para marcar a ocasião, em 10/12, no Sesc Santo Amaro, haverá uma programação comemorativa, que inclui a intervenção Os escolhidos, a roda de conversa Vozes do refúgio: territórios, memórias e futuros possíveis e show de encerramento com a Orquestra Mundana Refúgi. Tendo a diversidade cultural como um valor, o Sesc São Paulo desenvolve, ao longo de 30 anos, atividades socioculturais e educacionais para pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio residentes no estado. Entre as ações permanentes está o curso de português, oferecido em parceria com o Senac, ACNUR e Cáritas de São Paulo. Saiba mais em sescsp.org.br

Na estreia da série documental Sonora Brasil, no SescTV, o primeiro episódio ("Alagoas") reúne Chau do Pife e Andréa Lais em uma imersão nas raízes e no cenário atual do pífano.

DOSSIÊ

CORAIS NATALINOS

De 6 a 20/12, o Sesc 24 de Maio recebe apresentações musicais que celebram as festividades de fim de ano. Nos dias 6, 13 e 14/12, o Coral Black Show, formado por uma nova geração de artistas

negros, interpreta canções ligadas à ancestralidade do jazz, blues e gospel. A Orquestra de Sinos UNASP também apresenta seu repertório, nos dias 7 e 17/12. Para encerrar a programação, dias 18, 19 e 20/12, a Magnífica Orquestra de Músicas do Mundo faz uma viagem sonora por diferentes culturas e ritmos do planeta. Confira a programação completa em sescsp.org.br/24demaio

A Orquestra de Sinos UNASP, o mais atuante grupo de sinos do país, é uma das atrações da programação deste mês, no Sesc 24 de Maio, em celebração às festividades de fim de ano.

Virada da inclusão

A 15ª edição da Virada Inclusiva será realizada de 1º a 7/12, com o tema “10 anos da LBI –Direito de ser, viver e protagonizar”. O evento celebra uma década da Lei Brasileira da Inclusão (nº 13.146/2015), marco legal que norteia o acesso de pessoas com deficiência aos direitos à saúde, educação, trabalho e renda, lazer, cultura entre outros. Desde 2011, o Sesc São Paulo participa da Virada Inclusiva e, em 2025, fortalece sua parceria

com a Secretaria do Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SEDPcD) para o desenvolvimento conjunto de ações. Serão realizadas mais de 120 ações gratuitas, em 39 unidades de todo o estado. Na programação de encerramento (7/12), no Sesc Vila Mariana, haverá apresentações musicais e aulas abertas, entre outras atividades, com a participação de atletas paralímpicos. Saiba mais em sescsp.org.br/sesc-na-virada-inclusiva

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

A Credencial Plena do Sesc é um benefício gratuito para pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares. Com a Credencial Plena você tem acesso prioritário e descontos na programação e serviços pagos do Sesc.

Qual é a validade da Credencial Plena?

A Credencial Plena tem validade de até 2 anos - para estagiários a validade da Credencial corresponde ao período de vigência do estágio e para desempregados a validade é de até 24 meses após a baixa na carteira de trabalho.

Como fazer a Credencial Plena?

On-line pelo aplicativo

Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br Se preferir, nesses mesmos canais, é possível agendar horários para realização desses serviços presencialmente, nas Centrais de Atendimento das unidades.

Quem pode ser dependente na Credencial Plena?

• Cônjuge ou companheiro

• Filhos, enteados, irmãos e netos até 20 anos ou até 24 anos, se estudantes

• Pai e mãe

• Padrasto e madrasta

• Avôs e avós

Relacionamento com Empresas

É o programa que facilita o acesso ao credenciamento dos funcionários das empresas parceiras dos ramos do comércio de bens, serviços e turismo. Nessa parceria, além do credenciamento, os aproximamos de nossa vasta programação e serviços. Saiba mais em sescsp.org.br/empresas

Acesse o texto "Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc"

Ricardo Ferreira

Programas Socioeducativos

Pré-Inscrições 2026

Para crianças de 7 a 12 anos O programa tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento integral das crianças, por meio de atividades artísticas, ambientais, corporais, tecnológicas, nutricionais e de saúde bucal, conduzidas por uma equipe de educadores.

As ações estimulam autoestima, pensamento crítico, ética, autonomia e solidariedade.

Para adolescentes e jovens de 13 a 29 anos

Ampliar o repertório cultural, estimular a convivência e fortalecer vínculos com base no respeito às diferenças, são os objetivos do programa. As atividades incluem cursos, oficinas, rodas de conversa, experimentações artísticas e projetos que convidam a expressar ideias, potencializar habilidades e construir redes.

Pré-inscrições para todos os públicos: De 9 de dezembro de 2025 a 18 de janeiro de 2026

Na Central de Atendimento das unidades do Sesc em todo o Estado de São Paulo.

Orquestrar futuros possíveis

Diretor executivo do Instituto Baccarelli, maestro Edilson

Ventureli reflete sobre o papel da música como ferramenta de transformação social

POR LUCIANA ONCKEN

FOTOS NILTON FUKUDA

Ainiciativa de levar música de concerto para a comunidade de Heliópolis, na zona Sul de São Paulo (SP), partiu do maestro Silvio Baccarelli (1931- 2019), em 1996, logo após um incêndio de grandes proporções na região. Movido pelo desejo de oferecer algum conforto à população naquele momento de dor, Baccarelli criou um projeto que, no começo, atendia pouco mais de 30 crianças. O que ele talvez não imaginasse era que essa semente se tornaria o Instituto Baccarelli, uma referência mundial de transformação social por meio da música. Felizmente, o maestro teve a oportunidade de ver boa parte desse caminho se concretizar diante dos seus olhos antes de falecer, em 2019.

Nos primeiros anos, as crianças participantes eram levadas até a sede da empresa de Baccarelli, na Vila Clementino, também na zona Sul da cidade, para aulas de música. Hoje, quase três décadas depois, o movimento se inverte: com cerca de 1,6 mil alunos atendidos dentro de Heliópolis, o instituto dá um novo passo e se prepara para a inauguração do Teatro Baccarelli. Será a primeira casa de concertos no mundo, de padrão internacional,

construída numa favela. Um marco simbólico e poderoso de inclusão social, que convida o público a atravessar os muros do preconceito e viver a cultura no território.

A Orquestra Sinfônica de Heliópolis, fruto dessa iniciativa do Instituto, já se apresentou nas principais casas de concerto do mundo e consolidou-se como símbolo de excelência musical. Além disso, o Instituto expandiu sua atuação para além da música, assumindo a gestão de 12 CEUs (Centros Educacionais Unificados). Criou também um restaurante-escola que forma e emprega mulheres da comunidade, além do Teatro Bacarelli, primeira sala de concertos do mundo construída dentro de uma comunidade, inaugurada em novembro.

Quem narra essa trajetória com orgulho é o maestro Edilson Ventureli, diretor executivo do Instituto Baccarelli, à frente da gestão da iniciativa há mais de 25 anos. Nesta Entrevista, ele conta como testemunhou e fez parte dessa transformação desde a adolescência, aos 13 anos, assumindo a gestão do instituto em 1998, e reflete sobre como uma ação individual pode gerar um impacto coletivo.

Quando tem uma só estrela no céu, ninguém olha para o céu. Aqui, a gente aprende que quanto mais pessoas brilham ao seu lado, mais você brilha.

No começo, as crianças saíam de Heliópolis para estudar música no Instituto Baccarelli, na Vila Clementino. Agora, a cidade é convidada a entrar na comunidade, com a inauguração do Teatro Bacarelli. Como estão as expectativas para essa nova fase da história do Instituto? Esse teatro é um sonho antigo. Quando começamos a desenhar o projeto da sede, em 2005, ele já fazia parte da visão do que queríamos construir. Em 2009, conseguimos inaugurar esse prédio onde estamos. Em 2013, o prédio ao lado. E agora, estamos finalizando o complexo com a construção do teatro, unindo todos esses espaços em um mesmo conjunto arquitetônico e simbólico. Ele é o coroamento de uma história de insistência, planejamento e, acima de tudo, propósito. A obra começou no ano passado e percebemos que aquele sonho de 2005 já estava defasado. Tivemos que revisar tudo, até os materiais e os acabamentos. O projeto acústico sempre foi muito bem pensado. Costumo dizer que somos meio “metidos” aqui na favela. Quem está cuidando disso é o mesmo escritório que fez a Sala São Paulo, a Sala Minas, o Teatro Cultura Artística. Só que, de 2005 para cá, o mundo mudou. Outras salas foram construídas, os materiais evoluíram, os parâmetros de excelência aumentaram. Então, mesmo mantendo as dimensões do espaço, por conta das fundações já feitas, repensamos todo o interior. Por exemplo, no projeto original a plateia era toda em granilite. Eu disse: quero madeira, não só pela acústica, mas pelo calor que ela transmite. A madeira acolhe. É aconchegante. Eu quero que, ao entrar aqui, o público sinta o mesmo que sente ao entrar na Sala São Paulo ou no Cultura Artística, porque Heliópolis merece uma sala de concertos de padrão internacional.

E o que esse teatro representa para Heliópolis? É muito simbólico esse movimento se inverter agora. Lá atrás, ouvi de vários colegas do meio da música clássica: “Vocês querem transformar música de concerto em coisa de favela?” Pois é. Conseguimos. E com a inauguração do

nosso teatro, isso se torna literal. Vai ser a primeira sala de concertos no mundo, de nível internacional, construída dentro de uma favela. E não é só para a nossa programação. Eu quero que grupos nacionais e internacionais venham se apresentar aqui. Já conversei com o governador, com o prefeito, e vou continuar conversando: quero que os corpos artísticos oficiais também venham. Porque isso muda a lógica da cultura. Não basta só levar quem está na favela para fora, é preciso trazer quem está fora, pessoas com poder político, econômico, de decisão, para dentro. Para conhecer, para entender, para participar. Isso é inclusão social de verdade. Quando essas pessoas conhecem o território, podem pensar políticas públicas mais eficazes, podem tomar decisões que realmente impactem a realidade de quem está aqui. A gente vai continuar tendo desigualdade, claro, mas não precisa ser tão abissal. A gente está em uma favela onde pessoas passam fome e não dá para pensar em um mundo melhor e seguro enquanto as pessoas não conseguirem pôr comida na mesa para alimentar seus filhos.

A história do Instituto tem início com uma visão do maestro Silvio Baccarelli, e começou com 36 crianças matriculadas no ensino de música. Como você enxerga esse primeiro passo do maestro e o impacto que teve? Essa é, para mim, a maior herança que o maestro deixou: a capacidade de transformar indignação em ação. A maioria das pessoas se sensibiliza com a dor do outro, e a gente vê isso o tempo todo. Quando alguém passa por uma pessoa dormindo na rua ou por famílias inteiras morando na rua, principalmente depois da pandemia, sente que aquilo não deveria estar acontecendo. Mas aí vem o bloqueio: achamos que só vale agir se for para fazer algo grandioso. Então, não fazemos nada. O maestro fez o oposto. Ele viu a tragédia em Heliópolis, se

comoveu, mas, ao invés de parar no sentimento, ele se perguntou: “o que eu posso fazer com o que eu tenho?” E a resposta foi simples e poderosa: “sei música, então vou ensinar música”. Começou com 36 crianças. Se ele tivesse esperado por uma grande estrutura, financiamento e equipe, talvez não tivesse começado nunca. E o mais bonito é que ele não saiu da área dele e, sim, ofereceu o que já sabia fazer com o que tinha à disposição.

Como foi esse primeiro período?

Quando ele começou o projeto em Heliópolis, ele bancava tudo, dentro das próprias possibilidades. Aos poucos, mais gente foi chegando, contribuindo, fortalecendo. Muita gente passou ao longo desses anos, alguns ficaram, outros seguiram outros caminhos, mas todos deixaram sua marca. Como eu sempre digo: todas as honras a ele. Porque se ele não tivesse dado o primeiro passo, nenhum de nós teria dado o segundo. E tem coisas que parecem mesmo guiadas por outra força. Eu sempre conto que, naquela época, quando ele subiu a Estrada das Lágrimas e parou na primeira escola pública para começar o projeto,

o patrono da escola era ninguém menos que Gonzaguinha (1945-1991). Uma escola pública, na favela, com um músico como patrono. Parece pouco, mas para mim é simbólico. São sinais. Às vezes a gente executa aqui na Terra algo que foi pensado em outra dimensão. O importante é estar disponível, com o coração aberto para fazer acontecer. E o maestro estava. E continua, em tudo que a gente constrói.

E como aconteceu a virada de chave, a constatação de que as atividades deveriam ser desenvolvidas dentro da comunidade?

As atividades aconteciam na empresa de casamento do maestro na Vila Clementino. Alugávamos um ônibus que buscava as crianças e as trazia de volta. Começamos a perceber que gastávamos mais tempo no trajeto do que nas atividades. Percebemos que precisávamos estar aqui dentro. E foi quando a gente começou a tentar vir para cá, porque percebemos que a gente podia fazer mais, e de uma forma melhor para a garotada, se estivéssemos dentro da comunidade. A gente, como sociedade, ainda carrega muito preconceito com a favela. Acha que é lugar de gente ruim,

Lá atrás, ouvi de vários colegas do meio da música clássica: “Vocês querem transformar música de concerto em coisa de favela?” Pois é. Conseguimos.

perigosa. E nós mesmos, quando começamos aqui, também fomos atravessados por esse olhar. Quando projetamos esse prédio, por exemplo, pensamos em uma porta blindada: “precisamos proteger isso”. Mas o tempo mostrou que não precisava, porque aqui dentro há muito respeito por esse trabalho. Nunca perdemos um instrumento. Os instrumentos vão para a casa dos alunos, ficam com crianças, jovens, famílias. E se, por algum motivo, alguém precisar ir embora, eles vêm e devolvem. A verdade é que a gente não vivenciava a favela, a gente não entendia o que ela era de verdade. Favela é lugar de gente boa. De gente solidária. E eu costumo dizer que quem melhor sabe conjugar o verbo “ajudar” é quem já precisou ser ajudado.

O que responde a colegas que mantém uma visão de que música de concerto não cabe dentro desse universo? Esse preconceito mudou? Hoje, felizmente, tem muitos projetos sociais que usam a música como ferramenta de transformação social espalhados pelo mundo. Projetos sociais que são celeiros das grandes orquestras. Por exemplo, o Theatro Municipal de São Paulo tem 102 músicos. Nove deles são daqui, saíram do Baccarelli, de Heliópolis. Tem oito na Filarmônica de Minas Gerais, na Orquestra Nacional do Chile, na Orquestra da Dinamarca. Sem contar, pelo Brasil: Bahia, Pernambuco, Fortaleza, Rio Grande do Sul, Paraná. Todos esses lugares têm gente nossa. Fora aqueles que estão aí pelo mundo, concluindo seus estudos. A gente tem um menino que foi aprovado, recentemente, como músico profissional da Orquestra de Lyon, na França. Então, eu acho que hoje, no mundo da música clássica, não existe mais esse preconceito. Lá atrás foi bem difícil, a gente não conseguia se apresentar. Os teatros não abriam data para a gente. Era difícil, mas a gente é muito guerreiro e nasceu para quebrar paradigmas.

Há uma inovação, em muitos aspectos, no trabalho da orquestra. Ela vai além desse diálogo entre diferentes gêneros musicais?

Fomos a primeira orquestra brasileira a adotar vestidos coloridos para as mulheres, desafiando a tradição do preto no mundo da música clássica. No início, houve resistência,

pois a mente coletiva do músico clássico associava a seriedade ao preto. Demorei a convencê-las, mas, em determinado momento, precisei decidir. A recepção no primeiro concerto foi tão positiva que elas se sentiram felizes e abraçaram a ideia. Hoje, não preciso mais insistir, e outras orquestras no Brasil já se inspiram em nossa iniciativa. As cores trazem mais beleza, mais alegria, quebram a sisudez. Eu falo sempre que podemos continuar apresentando as mesmas obras de 300 anos atrás, tocar Beethoven (1770-1827), posso e devo, mas podemos entregá-las em um “pacote diferente”, em um embrulho mais atual. É exatamente isso que buscamos com nossas experiências.

Na prática, como a música se tornou uma ferramenta de transformação social no Instituto? Nós atendemos 1,6 mil alunos aqui na sede do Baccarelli e você pode me perguntar: “Todos se tornarão músicos?”. Com certeza, não. Mas tenho outra certeza: 100% deles se tornarão pessoas melhores. É isso que buscamos em nosso trabalho. Nós temos um time de professores aqui de excelência. Caso o menino ou a menina queira ser um musicista profissional, a educação que a gente fornece aqui conduz a esse caminho. A música desenvolve habilidades muito legais. Quando a gente se apresenta, seja em um ensaio aberto para os pais, recebendo uma visita ou num grande palco, as pessoas nos aplaudem. Nosso esforço é reconhecido. O reconhecimento é algo poderoso. Isso mostra que somos potentes, talentosos, que podemos ser o que quisermos. Podemos acreditar em nós mesmos, e esse é o principal que a gente promove aqui. Para isso, a música é muito eficiente.

Além desse benefício individual, de que forma esse trabalho impacta o coletivo?

Além do reconhecimento, a música desenvolve habilidades essenciais para atuar coletivamente. Nossas crianças aprendem a trabalhar para o conjunto. Numa orquestra, eu toco para que o seu solo brilhe, e depois a música inverte os papéis e você oferece o seu melhor para que eu me destaque. Como a gente costuma dizer, no nosso universo, como músicos, artistas, estamos numa constelação de estrelas. Quando tem uma só estrela no céu, ninguém olha para o céu. Aqui, a gente aprende

Além do reconhecimento, a música desenvolve habilidades essenciais para atuar coletivamente. Nossas crianças aprendem a trabalhar para o conjunto.

que quanto mais pessoas brilham ao seu lado, mais você brilha. O brilho da minha estrela vai para você, volta para mim, e a gente se une, se soma, e consegue muito mais. Trabalhamos concentração, foco, disciplina. Nós, músicos de orquestra, somos como atletas de alta performance. São duas, três horas de ensaio. O negócio é tão intenso, estou sempre tentando me superar, sempre oferecendo o meu melhor som, a minha melhor afinação, a melhor audição. Você sai de um ensaio mentalmente cansado. E é uma competição consigo mesmo e não com o outro. Com o outro, é parceria. É isso que a gente desenvolve.

Como deram esse passo de assumir a gestão de 12 unidades dos CEUs?

Foi parte de um sonho que toda instituição do terceiro setor, que ganha maturidade, tem: se tornar uma política pública. Em determinado momento, entendemos que precisávamos ampliar nosso alcance e estar em outros territórios. Mudamos nosso ordenamento jurídico, nosso estatuto. Hoje, somos uma organização da sociedade civil, o que nos permite fazer parcerias com governos. Em 2021, houve quatro editais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para o gerenciamento de 12 unidades dos CEUs (Centro Educacional Unificado) e resolvemos participar. Lembro que a publicação no Diário Oficial saiu num sábado. Acordo muito cedo e, logo no início da manhã, vi que tínhamos vencido os quatro editais. Eu fiquei mudo. De apenas uma sede, passamos a ter, de repente, 13 sedes para cuidar. Não foi um crescimento progressivo, demos um salto muito grande. Hoje, estamos presentes em outras 12 regiões da cidade de São Paulo por meio dos CEUs, e oito desses estão em regiões de favela. Logo que assumimos a gestão, pedi aos gerentes de unidade, que contratamos às pressas, a mapear todas as lideranças do território e chamá-las para um bate-papo. Fui surpreendido positivamente ao ver como fomos bem recebidos por já virmos de uma favela, e da maior favela de São Paulo. Não éramos estranhos.

Diante de tudo o que construiu, como você avalia sua própria trajetória? Consegue se enxergar em outro lugar que não seja aqui?

Aqui é a minha vida, aqui é a minha missão. Um jornalista, há alguns anos, me perguntou onde eu via o Instituto daqui a dez anos, e eu respondi tranquilamente. Então, ele me perguntou onde eu me via daqui a dez anos. Eu nunca tinha me feito essa pergunta, mas eu pensei um pouquinho e respondi para ele: eu não me vejo, eu já estou. E é fato. Assim, não existe proposta, não existe nada que possa acontecer que me tire daqui. Eu falo para a turma que eles estão perdidos, porque eu vou viver mais de 100 anos e eu vou viver aqui. Eu não sou o maestro hoje que eu era há três anos. Hoje, por exemplo, eu pouco rejo programas de música clássica, de música erudita que exigem muita preparação, muito tempo dedicado. Não tenho esse tempo. Tenho que sentar na cadeira onde o Instituto mais precisa. E hoje é como gestor. Eu me sinto plenamente realizado, amo o que eu faço. A gestão dos CEUs foi o nosso grande desafio nos últimos três anos, mas a minha sala, a minha mesa, a minha cadeira continua aqui em Heliópolis, eu nunca saí daqui. Mesmo durante a pandemia, uma coisa tão louca, que mesmo com tudo fechado, eu vinha para cá e ficava sozinho. Eu precisava estar aqui, sentir a energia, respirar esse espaço. Estar aqui é a missão que o mestre Baccarelli me deixou. Eu sou o filho que ele não teve em vida e entendo que essa é a missão que ele me confiou. Vou honrar até o final da minha vida.

Assista a trechos da Entrevista com o maestro Edilson Ventureli, realizada no Instituto Bacarelli, em julho de 2025.

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Criar vínculos e fazer parte de comunidades fortalece o sentimento de pertencimento e promove benefícios à saúde da população

Clubes de corrida e outras iniciativas de conexão social são capazes de diminuir o risco de problemas graves de saúde e promover a saúde, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde.

Overão batia à porta. No campo, o tempo era muito agradável, e numa confortável sombra, uma pata se acomodava, contente, esperando chocar uma nova ninhada. Depois da celebrada chegada dos filhotes, um ovo parecia tímido. Até que um dia, o ovo se rompeu e um pequenino viu o mundo pela primeira vez. Mas "o patinho era muito grande e feio". Assim começa uma das mais famosas fábulas do autor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), O patinho feio, escrita no século 19. Essa alegoria, que trata do sentimento de inadequação, atravessa o tempo para se encaixar na contemporaneidade. “Deslocadas”, “insuficientes”, “imperfeitas”, milhões de pessoas em todo o mundo não se sentem capazes de criar vínculos, pois se veem inadequadas para pertencer a uma comunidade. O resultado é um quadro mundial crescente e preocupante de solidão.

Divulgado neste ano, o relatório da Comissão sobre Conexão Social da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou que uma em cada seis pessoas no mundo é afetada pela solidão. Esse cenário traz impactos significativos na saúde e no bem-estar –aumentam as probabilidades de desenvolvimento de depressão, de risco de acidente vascular cerebral (AVC), de doenças cardíacas, de diabetes e declínio cognitivo. Também segundo o documento, iniciativas de conexão social são capazes de diminuir o risco de problemas graves de saúde e promover a saúde mental.

Psicóloga e escritora, Ediane Ribeiro explica que a tecnologia tem tornado as relações virtuais tão ou às vezes mais importantes do que as relações reais. “E aí, com o fenômeno digital, surge uma vida paralela, digamos assim, que é uma identidade virtual que muitas vezes está fragmentada da identidade real. Assim, eu tenho mais um abismo para o vínculo. Porque se a minha identidade

virtual começa a se distanciar muito da minha identidade real, vou ficar mais amedrontada com a intimidade – e intimidade exige coragem para estar vulnerável diante do outro”, ressalta.

Sobre uma multidão que se sente inadequada e isolada – ainda que conectada virtualmente –, o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), e o palhaço, educador e escritor Cláudio Thebas fizeram um curso e irão lançar, em 2026, o livro A revolta dos patinhos feios, que reflete sobre a condição de não pertencimento e suas implicações nas relações sociais. “O que acontece no nosso momento? De repente, a gente passou a sentir que o não pertencer começou a se tornar mais preponderante. Você não precisa pertencer nem ao seu próprio corpo, nem à sua própria profissão, nem à sua própria idade. A gente pode, portanto, se redefinir a qualquer momento”, explica Dunker. “O resultado? Adoentadas, as pessoas não se encontram em nenhum lugar, não conseguem estar. E essa é uma definição possível de saúde mental: não é o mal-estar, nem o bem-estar, mas é a capacidade de estar, de pertencer”, completa.

ABRAÇAR AS DIFERENÇAS

Além de buscar criar vínculos, fazer parte de uma comunidade pressupõe acolher as próprias peculiaridades e diferenças para, então, acolher as dos outros. Segundo Ediane Ribeiro, apesar de uma “falsa liberdade” de poder escolher como se vive e o que se quer, “grande parte das pessoas se queixam dos preconceitos e das discriminações que sofrem ao fazerem escolhas pessoais diferentes daquelas dos grupos dos quais fazem parte”. Além disso, ela complementa, “grande parte das pessoas vive conforme uma métrica social que tem muita influência do mercado”.

Nilton Fukuda

Participar de oficinas e cursos de manualidades, por exemplo, abre portas para encontros com outras pessoas com interesses em comum e, assim, tecer vínculos que se integram ao seu círculo social.

TENHO DEFENDIDO A RECUPERAÇÃO DE

PEQUENAS ALDEIAS EMOCIONAIS. DE PESSOAS

COMEÇAREM A SE ENCONTRAR NA VIZINHANÇA, EM FAMÍLIA, EM PEQUENAS COMUNIDADES DE TROCA DE AFETO, DE PROPÓSITOS EM COMUM,

DE SUPORTE E DE REDES DE CELEBRAÇÃO.

Ediane Ribeiro, psicóloga

Por isso, em resposta ao patinho feio de Hans Christian Andersen, o patinho feio de Dunker e Thebas é interpretado de outra forma. Ao contrário do personagem do autor dinamarquês, que depois de sofrer injustiças e violências, prova ser um belo cisne, o patinho feio da dupla de escritores é autorizado a ser ele mesmo: conforme seus princípios. Esse pensamento, segundo Thebas, traduz uma compreensão de que nem sempre adequar-se leva o patinho feio a um final feliz.

“Como se adequar a lutar contra o outro? A competir com o outro? A achar que vou fazer sucesso se eu passar na frente de alguém? Me adequar à ideia de que eu preciso estar exausto para justificar o merecimento de trabalhar em algum lugar?”, indaga Thebas. “Acho que boa parte do que Christian e eu estamos falando de inadequação é inadequar-se ao que não é adequado. É voltar a entender que a revolta dos inadequados é a revolta das pessoas que consideram que a vida não é só trabalhar, por exemplo, porque se escutou, a vida inteira, que deveria ser desse jeito. Acho que a revolta dos patinhos feios é voltar à nossa essência. Porque quando a gente aceita o nosso desamparo é que a gente se ampara, e ampara os outros também”, defende.

Acolhidas as diferenças, para criar vínculos, Thebas acredita em pequenos e constantes passos, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o tempo e o espaço se encarregam de criar distanciamento e obstáculos. “Aceite ou proponha convites para os encontros sem pensar: ‘como eu crio uma comunidade?’

Saia do grande. Sabe quando você olha a pia depois de uma festa e você quer sumir de casa? Não tem outro jeito: você começa por um prato. Outro exercício bem desafiador é: quando for conversar com qualquer pessoa, escute-a pelo menos por um minuto sem falar nada. Escutar também é pertencer. No final, uma comunidade é feita de pequenos encontros”, destaca.

Ribeiro completa que outro passo importante é sustentar o encontro e as tensões que fazem parte de todo relacionamento. “O relacionamento real não cabe no 0 e 1 dos algoritmos. Os relacionamentos reais implicam em sustentar polos opostos: liberdade e conectividade, autonomia e interdependência, proximidade e afastamento, concordância e discordância. Relacionamentos reais e saudáveis exigem, o tempo todo, um balanço e uma pendulação entre polos opostos que muitas vezes causam fricções e tensões. Saber lidar com isso é um aprendizado social”, defende.

Dentro e fora das águas, a troca entre gerações permite o exercício de escutar e ser ouvido, o que nutre o sentimento de pertencer a uma comunidade.

ALDEIA EMOCIONAL

Às vezes, parecemos esquecer que o ser humano é um ser gregário. No princípio, a falta de atributos físicos naturais levou a espécie a se juntar aos seus pares a fim de sobreviver. Com o passar dos séculos, no entanto, a organização em grupos não necessariamente estaria atrelada à sobrevivência, mas se tornaria uma forma de ser, estar e interagir no mundo. Entre povos de diferentes partes do globo, a noção de comunidade é algo indissociável à vida. Em O espírito da intimidade – Ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar (Odysseus, 2003), a escritora e professora burquinense

Sobonfu Somé (falecida em 2017) traz a sabedoria do povo Dagara, na África Ocidental, como outra perspectiva de aldeamento e pertencimento.

Nesse território físico e afetivo, todos são responsáveis pelos cuidados com as crianças e os anciãos comandam sem soberba. Nele, a vida é diretamente inspirada pela terra, pelas árvores, montanhas e rios. “O objetivo da comunidade é assegurar que cada membro seja ouvido e consiga contribuir com os dons que trouxe ao mundo, da forma apropriada. Sem essa doação, a comunidade morre. E sem comunidade, o indivíduo fica sem um espaço para contribuir”, descreve Somé. No livro, a escritora ainda conta como foi experimentar outra formação de sociedade, quando morou nos Estados Unidos. “Aqui, no Ocidente, talvez nunca tenhamos o tipo de comunidade que tínhamos na África. No entanto, podemos ao menos ter uma noção dela, permitindo que amigos participem da nossa vida. Quinze minutos de comunicação

com os outros podem ajudar de forma profunda a compensar a falta de comunidade. Amigos e família proveem um recipiente, um lugar seguro no qual a pessoa possa buscar apoio (...). Cada um de nós precisa de algo para se segurar. É por isso que existem todas essas pequenas comunidades aqui e acolá – grupos de voluntários em questões sociais, grupos de apoio e todos esses pequenos grupos que perseguem um objetivo comum”, relata.

Num contexto em que 87% da população brasileira vive em centros urbanos, segundo dados do Censo 2022, onde o tempo de deslocamento, o tempo em frente às telas e o tempo de trabalho superam o tempo dedicado ao lazer, de que maneira criar e manter vínculos? Como é possível se sentir pertencente a uma comunidade? Segundo o psicanalista

Christian Dunker, os caminhos para a construção de comunidades nos centros urbanos passam por importantes intervenções. “Em relação ao trabalho, temos que reduzir a extensão da produtividade na nossa vida e aumentar a extensão daquilo que a gente chama de cultura. A cultura não é produtiva no mesmo sentido do trabalho. Então, é a leitura, é o acostamento da vida, é a memória, é a biografia, é a dança, é a arte. Tudo aquilo que se diz: ‘Meio inútil, né? Precisa?’. Precisa, senão você não tem comunidade.”

Para a psicóloga Ediane Ribeiro, grandes instituições e comunidades de bairro devem pensar em espaços que criem oportunidades para esses encontros.

“Também tenho defendido a recuperação de pequenas aldeias emocionais. De pessoas começarem a se encontrar na vizinhança, em família, em pequenas comunidades de troca de afeto, de propósitos em comum, de suporte e de redes de celebração. Movimentos de clube do livro e de corrida, por exemplo, aumentaram muito nos últimos tempos. Precisamos recuperar o hábito dos encontros, dos pequenos encontros que estão dissociados do trabalho. Para isso, a gente precisa de muita intencionalidade para buscar esses pequenos aldeamentos emocionais e recuperar nossa saúde individual e coletiva.”

Experimentar atividades em grupo passou a ser uma recomendação médica para lidar com o sentimento de isolamento e solidão.

Matheus José Maria
saúde

para ver no sesc / saúde

FORTALECER VÍNCULOS

Projetos e ações do Sesc São Paulo promovem conexões entre públicos de todas as idades e valorizam a formação de comunidades

A cultura do pertencimento está presente nas ações permanentes e na programação do Sesc São Paulo em todo o estado. A partir de oficinas, cursos, palestras, práticas físicas e esportivas, entre outras atividades, públicos diversos estreitam laços ao compartilhar afinidades e interesses em comum. Seja numa roda de bordado, num clube de leitura, numa aula de hidroginástica ou de yoga ministradas nas unidades da capital, interior e litoral do estado de São Paulo, o Sesc valoriza a importância da formação de comunidades para o bem-estar, a saúde mental e física de seus frequentadores. Sendo assim, tem como pilar uma visão integral de saúde, que atravessa todos os aspectos do cuidado consigo e com outros a partir da convivência e do bem viver.

Neste ano, o Sesc São Paulo expande essa atuação com o projeto Empresas Saudáveis, que realizou ações de incentivo a hábitos saudáveis e à prevenção de doenças no ambiente corporativo, para o cuidado e a saúde integral dos trabalhadores e trabalhadoras do comércio. Na programação, que reuniu mais de 250 empresas, iniciativas voltaram-se à troca de experiências e fomento de reflexões sobre: gerenciamento emocional, riscos psicossociais, sustentabilidade, neurodivergência e clima organizacional.

No encerramento, dia 3/12, no Sesc 14 Bis, será realizado o Fórum de Qualidade de Vida: Empresas Saudáveis, com a presença do psicanalista e professor da Universidade de São Paulo Christian Dunker e do palhaço, escritor e educador Cláudio Thebas com a palestra O não pertencimento – A revolta dos patinhos feios. Também participa o ator, palhaço e palestrante Marcio Ballas com a palestra Improvisação e criatividade – Desafios do cotidiano

para ver no sesc / saúde

Nas unidades da capital, interior e litoral (na foto, hidroanimação no Sesc Bertioga), o Sesc São Paulo realiza em sua programação permanente cursos e oficinas, além de atividades físicas e práticas esportivas em grupo, que promovem a cultura do pertencimento, o bem-estar e benefícios à saúde física e mental.

14 BIS

Fórum de Qualidade de Vida: Empresas Saudáveis Com Christian Dunker, Cláudio Thebas e Marcio Ballas. Na sequência, cerimônia de entrega do Prêmio Nacional de Qualidade de Vida, em parceria com a Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV). Dia 3/12, a partir das 10h15. GRÁTIS. Vagas limitadas.

Confira informações sobre retirada de ingressos em sescsp.org.br/14bis

Matheus
José Maria

O arranjador das ESTRELAS

Apadrinhado por Luiz Gonzaga, músico Orlando Silveira assinou mais de duas mil orquestrações para astros da música brasileira

POR LUCAS NOBILE

Ainda que tenham pautado suas carreiras pelos mais variados estilos musicais, artistas como Luiz Gonzaga (1912-1989), Jacob do Bandolim (1918-1969), Elza Soares (1930-2022), Beth Carvalho (1946-2019), Chico Buarque, Alceu Valença e Ed Motta têm algo em comum: todos, em algum momento, recorreram ao acordeon de Orlando Silveira. “Para mim, não existe música de classe A, classe B, classe C. Existem dois tipos de música: a bem-feita e a mal feita”. A declaração, dada por Silveira no fim da década de 1970, em uma entrevista inédita e preservada pelo acervo do radialista Simon Khoury, joga luz sobre a mentalidade sem preconceitos do músico que atraiu tantas estrelas.

Antes de morrer, aos 68 anos, em 1993, Orlando Silveira, cujo centenário de nascimento foi celebrado em 27 de maio, conquistou reconhecimento no Brasil e no exterior. Em 1980, encantou o papa João Paulo II (1920-2005) ao interpretar “Asa branca”, em duo com o autor, Luiz Gonzaga, para mais de 50 mil pessoas no estádio Castelão, em Fortaleza (CE). Nove anos antes, logrou o prêmio de melhor arranjo na 4ª Olimpíada da Canção, em Atenas (Grécia), com “Minha vida virá do sol da América”, composta pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle.

“Orlando extraía muito bem a essência da composição na hora de fazer as orquestrações. Trabalhamos juntos em alguns discos meus na Odeon, e eu o convidei para trabalharmos naquela música para o festival na Grécia. Foi um strike. Eu ganhei pela melhor música. Paulo Sérgio, pela melhor letra, Cláudia, como melhor intérprete, e Orlando, como melhor arranjador. Uma pena ele ter ido embora muito cedo daqui”, relembra Marcos Valle.

Ainda que tenha lançado alguns discos como intérprete de acordeon, Orlando Silveira se destacou muito mais por sua atuação como arranjador e como integrante de conjuntos. Um trabalho que acontecia mais nos bastidores e, portanto, aparecia menos sob os holofotes. Assim, por não seguir uma carreira primordialmente de solista, ainda que tivesse o mesmo talento de seus pares no instrumento –como Luiz Gonzaga, Dominguinhos (1941-2013), Sivuca (1930-2006) e Chiquinho do Acordeon (1928-1993) –, Silveira tornou-se menos conhecido pelo público.

Com os sanfoneiros acima, o maestro teve relações de admiração mútua. Dominguinhos, por exemplo, declarou em inúmeras entrevistas ter aprendido muito com Orlando Silveira. Ao lado de Luiz Gonzaga, a convivência foi ainda mais estreita e longeva.

PRIMEIROS BAILES

Ainda na infância, vivida em Rincão, interior de São Paulo, Silveira frustrou por duas vezes os planos de sua mãe, que sonhava que ele aprendesse a tocar violino. Depois de um breve começo no cavaquinho, ele se encantou com uma sanfona de oito baixos exposta na vitrine de uma loja. O interesse se intensificou após o menino, aos 12 anos, ouvir no rádio uma música do acordeonista Antenógenes Silva (1906-2001). Seu pai era músico amador e havia comprado um acordeon para tocar em bailes – sem permitir que o filho se aproximasse do instrumento. Resistência que em pouco tempo se transformaria em incentivo.

Em entrevista de 1978, Orlando Silveira relembrou aquele período. “Um dia meu pai chegou para o almoço e me pegou em flagrante com o acordeon. Me deu todo o apoio que precisei. Acabei a escola aos trancos e barrancos. Aprendi os princípios de música com o professor do grupo escolar de Descalvado, perto de Porto Ferreira. Quando ele se mudou para Pirassununga, me entregou para uma professora de piano, que me ensinou divisão de música, mas não teoria. Isso aí me bastou. Em seis meses, eu já lia qualquer música à primeira vista.”

Ainda na juventude, Silveira pulou de emprego em emprego. Vendeu jornais, trabalhou como marceneiro, tecelão e cortador de carnes em um frigorífico. Até que seu pai, que era manobrador de trens na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, conheceu Luiz Gonzaga em uma das idas do músico à capital de São Paulo. Numa ocasião, disse ao Rei do Baião que ele tocava acordeon, que seu filho também estudava o instrumento e que Gonzaga era seu grande ídolo. O compositor pernambucano deu uma sanfona ao jovem Orlando e logo passou a tê-lo como músico que o acompanhava nos shows em terras paulistanas.

“Em 1950, com o fim do Regional de Benedicto Lacerda e a formação do Regional do Canhoto o grupo convidou Luiz Gonzaga para ser o solista de acordeon. O baião começava a atingir seu auge e, com ele, a sanfona também se tornaria uma coqueluche no eixo Rio-São Paulo. Como Gonzaga começava a fazer grande sucesso como cantor, achou que seria um passo atrás na carreira fixar-se como músico de um conjunto”, conta o pesquisador Armando Andrade, que prepara um livro sobre o Regional do Canhoto.

Luiz Gonzaga indicou, então, Orlando Silveira, que àquela altura se destacava como acordeonista no Regional comandado pelo violonista e guitarrista

Antonio Rago, em São Paulo. Gonzaga bancou a ida de Silveira ao Rio para um período de testes no novo conjunto, mas a viagem foi definitiva. “Chegando no Rio, Orlando foi um fiel escudeiro de Gonzaga e arranjador de 80% de sua discografia, mas também trilhou seu caminho aprofundando seus estudos e transitando entre outros músicos, gravadoras e na noite carioca. Mas o vínculo com Gonzaga seria para sempre. Ele também passaria a assinar 90% dos arranjos do Regional do Canhoto”, complementa Andrade.

Na frieza dos números, a quantidade já seria relevante. Mas ela ganha outro peso por se tratar do Regional do Canhoto, o conjunto de acompanhamento mais importante da história da música brasileira. Formado por Canhoto (1908-1987), cavaquinho, Dino (1918-2006), violão 7 cordas, Meira, violão, Gilson de Freitas, ritmo, Altamiro Carrilho (1924-2012), seguido por Arthur Atayde e, posteriormente, Carlos Poyares (1928-2004), todos os três na flauta, o grupo dividiu os microfones de emissoras de rádio e de estúdios com um sem-fim de estrelas: de Cartola (1908-1980) a Elizeth Cardoso (1920-1990) e Pixinguinha (1897-1973), passando por Gilberto Gil, Clementina de Jesus (1901-1987), Luiz Melodia (1951-2017) e mais de uma centena de artistas. Cerca de duas mil gravações, sendo mais de 1,8 mil com arranjos de Orlando Silveira. Alguns deles, aliás, feitos para Orlando Silva (1915-1978), de quem o músico tinha o mesmo nome e o mesmo sobrenome. Ao seguir carreira artística, o acordeonista trocou Silva por Silveira para não ser confundido com o “Cantor das multidões”.

“O grande diferencial de Orlando Silveira é a leveza, a simplicidade e a genialidade em saber tocar num regional e acompanhar solistas e cantores. A maneira como ele escrevia suas composições e seus arranjos é uma extensão da sua forma de tocar. Quando Dominguinhos ouviu Orlando, ele disse: ‘Opa, é ali que eu vou amarrar meu burro’”, ressalta o acordeonista Rafael Meninão.

TEMPO DE VESTIR MÚSICAS

Após o fim da Rádio Mayrink Veiga, emissora em que o acordeonista atuou com o Regional do Canhoto entre 1951 e 1965, Orlando Silveira foi contratado pela Odeon, onde trabalhou por oito anos. Em tempos de efervescência do mercado fonográfico, a gravadora contava com outros seis arranjadores contratados e exclusivos: Lyrio Panicalli (1906-1984), Edmundo Peruzzi (1918-1975), Carlos Monteiro de Souza (1916-1975), JT

Em celebração à visita do Papa João Paulo II, no ano de 1980, Orlando Silveira (à esq.) e Luiz Gonzaga interpretaram “Asa Branca” e, depois, cumprimentaram o sumo pontífice no estádio do Castelão, em Fortaleza (CE).

Meirelles (1940-2008), Nelsinho e Lindolpho Gaya (19211987). Assim como Silveira, cada qual tinha um estilo próprio de vestir uma música, uma assinatura sonora única na distribuição das instrumentações. “Abandonei o acordeon quando estive na Odeon porque não havia tempo para o instrumento, sem sábados e domingos livres, que eram os dias para escrever os arranjos que seriam gravados. Eu tinha 90% do casting na minha mão, todo mundo queria trabalhar comigo, ganhei dinheiro, mas foi cansativo. E eu não admitia que me vissem tocando em má forma”, relembra o maestro.

“As divisões e os contrapontos que Orlando Silveira fazia em combinação com a flauta no Regional do Canhoto já não eram uma coisa simples. Ele tinha cabeça de arranjador e estava muito conectado com a vanguarda. Tinha arranjos modernos para a época. Ele deve ter absorvido muita coisa simplesmente de ouvir outros arranjadores. Da discografia dele, destaco dois álbuns: Choros – Ontem, hoje e sempre (1978) – com uma formação pouquíssimo usual no Brasil, com guitarra, vibrafone, baixo, bateria,

acordeon e três violões – e o primeiro disco dele, de 1956, com composições do Zequinha de Abreu em interpretações muito bonitas”, elenca o acordeonista Cleber Silveira.

Com especial devoção pelo choro, Orlando Silveira também deixou um legado como compositor. Entre suas obras mais conhecidas estão “Perigoso”, “Tudo azul” e “Dedilhando”, em parceria com outro grande chorão de São Paulo, Esmeraldino Sales (1916-1979). Além de “Acácia amarela”, feita com Luiz Gonzaga, e “Tema de Telck”, composta por Orlando e dedicada à sua esposa, com quem teve seu único filho, Orlando Ricardo.

“Na nossa casa no Rio de Janeiro, primeiro no Méier, depois em Copacabana, meu pai recebeu muita gente grande. O (violonista) Raphael Rabello (1962-1995) ia muito lá. Me lembro também de ir com o velho num churrasco na casa do Pixinguinha (1897-1973). Meu pai gostava de choro, mas ouvia muito as orquestras e big bands norte-americanas, gostava muito do (acordeonista) Art Van Damme (1920-2010), do Frank Sinatra (1915-1998) e escutava muito Bach (1685-1750)”, relembra o primogênito.

Acervo Paulo Vanderley

Chegando no Rio, Orlando foi um fiel escudeiro de Gonzaga e arranjador de 80% de sua discografia, mas também trilhou seu caminho aprofundando seus estudos e transitando entre outros músicos, gravadoras e na noite carioca. Mas o vínculo com Gonzaga seria para sempre. Ele também passaria a assinar 90% dos arranjos do Regional do Canhoto.

Armando Andrade, pesquisador

MAESTRO NO HYPE

Ainda que pouco conhecido pelas novas gerações de ouvintes, Orlando Silveira segue com prestígio no meio musical. Em maio passado, foi homenageado na edição 2025 do Choraço, festival realizado pelo Sesc 24 de Maio, em show protagonizado por Toninho Ferragutti. Nos últimos anos, a “mentalidade aberta” do maestro fez com que um de seus álbuns surfasse uma onda hype entre DJs e colecionadores de discos espalhados pelo mundo. Com sonoridade funky – misturando elementos de funk, soul, jazz e R&B –, um exemplar da primeira prensagem de LP S.O.S. – Band it, de 1974, chega a valer hoje mais de R$ 3 mil.

“Ele não tinha preconceitos nem limites para atuar nesse ofício. Choro, rock, forró, disco music, easy listening, samba, funk, orquestras de baile ou eruditas, ele atuava pela música em função do artista. E destacaria também a influência dele no forró, pois

Orlando Silveira apreciava diferentes gêneros musicais: samba, choro, baião, forró, funk, soul, jazz, rock e música clássica.

Orlando trouxe mais melodia para arranjos que se baseavam na questão rítmica e no jogo de fole”, comenta Armando Andrade. O pesquisador relembra ainda a importância de viagens ao exterior na ampliação do repertório de Orlando Silveira como arranjador.

“Entre as turnês mais representativas, ressalto a ida para a Europa e para o Oriente Médio, em 1962, como membro da 5ª Caravana da Música Popular Brasileira, ao lado de músicos como Waldir Azevedo (1923-1980), Poly (1920-1985), Dalton Vogeler (1926-2008) e do cantor Francisco Carlos (1928-2003). Essa viagem abriu ainda mais os horizontes do maestro, que passou a ter contato com músicos e públicos de diferentes nacionalidades. Essa excursão também fez Orlando Silveira trazer na sua mala muitos discos de música clássica e jazz, que influenciariam bastante seu modo de tocar e de arranjar”. Músico que tanto influenciou artistas renomados, Orlando Silveira também se tornaria, com sua trajetória, uma estrela a ser contemplada.

Acervo Regional do Canhoto

para ver no sesc / bio

CENTENÁRIO CELEBRADO

Orlando Silveira foi artista homenageado na edição

Choraço deste ano, realizado no Sesc 24 de Maio

O acordeon que tanto marcou o trabalho do artista Orlando Silveira segue presente em diferentes gêneros musicais em apresentações regulares nos palcos do Sesc São

Paulo. Celebrando o centenário de seu nascimento, em 2025, a unidade do Sesc 24 de Maio homenageou o músico, arranjador e maestro no projeto Choraço, realizado entre 23 de abril (Dia Nacional do Choro) e 11 de maio.

Entre as atividades que integraram essa programação, o especial 100 Anos de Orlando Silveira trouxe Toninho Ferragutti e Regional

celebrando a obra do sanfoneiro que transitou com maestria entre Chopin e Luiz Gonzaga – seu padrinho na música e no casamento. O show reuniu composições inéditas e clássicos do artista, com destaque para o álbum Choros – ontem, hoje e sempre (1978).

Confira a programação de música das unidades neste mês em sescsp.org.br

Nesse registro da década de 1950, ao centro está Orlando Silveira (acordeon), junto aos músicos: Canhoto (cavaquinho), Dino (violão de sete cordas), Meira (violão), Gilson de Freitas (pandeiro) e Altamiro Carrilho (flauta), que formavam o Regional do Canhoto.

SABEDORIA POPULAR

Dos cartazes de supermercado às embarcações amazônicas, um convite para apreciar as letras e os filetes pintados à mão que fazem parte da memória visual e afetiva da América Latina

POR CRISTIANE KOMESU

FOTOS NILTON FUKUDA

Cartazes de artistas brasileiros na exposição Letras & Filetes: Memória Afetiva e Latinidades, no Sesc Ipiranga.

Pinceladas e traços feitos à mão por diferentes povos da América Latina, transmitidos por mestres a aprendizes, de geração em geração, permanecem vivos em ruas, mercados, barcos, carroças e caminhões, apesar do crescimento das artes digitais e da Inteligência Artificial. Na pintura de letras, as curvas, cores, ornamentos e sombreados de cada caractere revelam a assinatura de um autor, seu país ou região.“Quando a gente pega um cartaz de mercado brasileiro e um cartaz de mercado chileno, vemos estilos e sombras diferentes. No Peru, por exemplo, há a presença do flúor (tonalidade) e do fundo preto. E, na Argentina, tem o fileteado portenho, uma sabedoria popular que é muito próxima da pintura tradicional, com sombras, luzes e ornamentação complexa”, descreve o letrista e designer Filipe Grimaldi.

Na arte dos filetes de caminhão – pinturas que decoram as carrocerias pelo Brasil – é comum que o pintor imprima, literalmente, sua digital, finalizando as artes com a ponta do dedo, segundo Grimaldi. Uma assinatura inconfundível para outros artistas que mantém viva a tradição. “Quando você vai ao interior de São Paulo, aqueles mestres fileteadores têm a história muito próxima deles. A gente ouve assim: ‘olha, há 50 anos, o meu amigo começou esse filete aqui’”.

A partir da observação e da reprodução, os estilos se perpetuam e são passados para novas gerações que, aos poucos, acrescentam outros contornos. Essa prática se dá tanto em muros quanto em carrocerias de caminhão e cascos de barcos – do interior paulista aos rios amazônicos. “As crianças ficam na beira do rio, vendo os barcos passarem... copiam a letra e depois, aos 15 anos, começam a pintar num estilo parecido

As letras do alfabeto desenhadas por diferentes artistas que integram a mostra, no mural Abcdário (2025).

com o do mestre que sempre viram”, conta Grimaldi, autor do bordão “Chora, fotoxópi!”, que se popularizou nas redes sociais por desafiar o famoso software de edição de imagem (Photoshop) e valorizar trabalhos manuais. Essa familiaridade intrínseca às criações visuais populares adiciona sentidos que vão muito além do puramente informativo, comercial ou estético. Com uma linguagem direta, e ao mesmo tempo afetiva e poética, letras e filetes revelam marcas de identidade, carregadas de sotaques e heranças. “Se a gente pega uma placa que foi pintada no Nordeste do Brasil sobre a venda de ‘dindin’, e outra placa pintada no Sudeste, que vende ‘sacolé’, elas estão falando da mesma coisa, só que de diferentes maneiras. Eu acho

que a letra também é isso, às vezes ela comunica o mesmo, só que com estilos diferentes”, resume o artista Thiago Nevs, que também atua na valorização de expressões visuais populares.

Nessas particularidades, capazes de aproximar e causar estranhamentos do público, é que as manualidades resistem frente às intervenções de novas tecnologias. Para Grimaldi, o avanço da IA ainda está longe de substituir o ofício de letristas e fileteadores: “Vai demorar para uma inteligência artificial fazer um trabalho manual ou algo que chegue perto. A gente acredita muito no poder das nossas mãos”.

Charrete (2025), de Paulinho Mazuco, veículo especialmente filetado para a mostra.

Acima, cartazes com a letra chicha, popular no Peru, feitos por Alinder Spada & Azucena Del Carmen, que formam a dupla peruana Carga Máxima. Abaixo, Carro de letrista (2025), de Filipe Grimaldi (SP), com participação de Luis Junior (Belém-PA).

gráfica

Borracharia 24h (2025), de Alexandro Marques (Santo André-SP).

customização do casaco de

realizada

A
camurça
por Filipe Grimaldi em Jaqueta de letrista (2015).

Pedaços de carrocerias de caminhão com diversos estilos de filetes, feitos por Paulinho Mazuco.

Letra Ribeirinha (2025), de Odir Abreu, artista do município de Soure, da Ilha de Marajó-PA.

Obras de artistas de Santo AndréSP: Cabelereira unissex (2025), de Alexandro Marques e Pedro Dropinho, e Carga e descarga (2025), de Chama no Giz.

Pingüino (2025), da artista argentina Ainelén Blanes. Na página seguinte, obra Sem título (2025), do colombiano Beto Serna.

para ver no sesc / gráfica

SOTAQUES EM CORES

Exposição reúne trabalhos de 66 artistas e mestres do Brasil e de outros países latino-americanos

O universo vibrante e multicolorido das letras pintadas à mão que dão vida aos cartazes de mercado, às carrocerias de caminhões e até às embarcações é celebrado em Letras & Filetes: Memória Afetiva e Latinidades, em cartaz no Sesc Ipiranga até 5 de abril de 2026. Com curadoria dos artistas Filipe Grimaldi e Thiago Nevs, a mostra propõe um mergulho nessa expressão da cultura visual popular do Brasil e de países como Argentina, Chile, Colômbia, México e Peru.

A exposição destaca como o gesto manual e a inventividade popular transformaram letras, palavras e ornamentos em expressões carregadas de identidades e memórias, a partir do trabalho de cartazistas, abridores de letras, letristas profissionais e mestres filetadores. Ao todo, 66 artistas estão presentes nessa mostra que reúne uma diversidade de sotaques e formas. “A gente tentou fazer uma

curadoria a partir de estilos e suportes. Tem quem pinta na madeira, na telha, num plástico, no metal, no cavalete, no toldo, na porta de metal e até no carrinho de pipoca. Isso tudo a gente quis mostrar, porque faz parte do trabalho do letrista”, conta Filipe Grimaldi. Vale destacar que toda a comunicação visual da exposição – das placas de identificação das obras, aos textos curatoriais nas paredes – foi inteiramente pintada à mão.

Durante o período da exposição, performances, oficinas, vivências e ações educativas levam ao público oportunidades de experienciar a cultura visual popular e aprender com mestres do Brasil e de outros países latino-americanos. Além disso, a plataforma EAD Sesc Digital disponibiliza o curso online e gratuito O pintor letrista – Lições introdutórias em pintura de letra em que Filipe Grimaldi compartilha ensinamentos básicos de seu ofício.

IPIRANGA

Letras & Filetes: Memória Afetiva e Latinidades

Até 5 de abril de 2026. Terça a sexta, das 9h às 21h30. Sábados, das 10h às 20h. Domingos e feriados, das 10h às 18h30. GRÁTIS. Saiba mais em sescsp.org.br/letrasefiletes

EAD DIGITAL

O pintor letrista –Lições introdutórias em pintura de letra

Com nada mais que pincel, esmalte à base de água e cartolinas, o designer e letrista Filipe Grimaldi apresenta, nesse curso, os ensinamentos básicos do seu ofício: a pintura de letras. 6 aulas. GRÁTIS. Saiba mais em ead.sesc.digital/cursos

Mural ghost sign (2025), do Atelier Sinlogo, de São Paulo-SP, na área interna do Sesc Ipiranga.

Nilton Fukuda
Melvin Santhana, violonista, guitarrista e cantor, é um dos nomes celebrados na cena contemporânea do violão, tanto em trabalhos solo quanto como integrante da formação atual do Trio Mocotó.

CORDAS GLORIOSAS

Desgosto dos críticos e de parte da sociedade no século 20, o violão se tornou o instrumento protagonista da música brasileira
POR JULIO MARIA

Não seria um susto se fosse a sanfona. Trazida por imigrantes italianos e alemães a partir de 1836, ela entrou pelo Sul e se espraiou pelo país, de baixo para cima. Entre muitas histórias, uma delas conta que no final de 1870, soldados nordestinos que lutaram na Guerra do Paraguai contra as tropas de Francisco Solano López (1827-1870) voltaram para suas casas aos farrapos, mas levaram foles de oito baixos na mochila. A novidade no país era festeira, logo pegava o sotaque das terras em que pisava, não demorou para se encaixar, sob medida, no peito do músico pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989).

Se não fosse a sanfona, seria o piano. Palaciano por origem, era altivo em porte, status e sonoridade. Tudo o que as elites priorizavam. Nos Estados Unidos, desde o pianista

Duke Ellington (1899-1974), fizeram dele o grande protagonista no jazz e, por extensão, na música pop. Um piano em cada casa: era o sonho dos críticos, das plateias e das famílias de “boa índole”. Por alguns instantes, quando Chiquinha Gonzaga (1847-1935) passou a usá-lo para criar choros no início do século 20, ou quando Tom Jobim (1927-1994) fez “Desafinado”, em 1958, era como se pudesse sair do piano a alma de um povo.

Poderia ser qualquer outro instrumento, menos aquele que os jornais do século 19 chamavam acusatoriamente de “pinho dos vadios”. Aliás, ninguém que lia jornais entre 1870 e 1930 poderia imaginar que aquela peça de seis cordas e corpo acinturado, descrita como “esconderijo de larápios”, instrumento de “perturbadores da ordem pública”

e passatempo de “vagabundos” e “seresteiros desajustados” se tornaria o catalisador de tantas revoluções musicais do Brasil.

PÁGINAS POLICIAIS

O violão tinha tudo para dar errado, e sua divulgação, por anos, se deu nas páginas policiais. “À noite, os vadios arranjam tocatas de violão e serenatas, com algazarras e motins, perturbando o sossego público. Não seria mau que o delegado os chamasse à fala”, incitou o Jornal do Brasil em 20 de junho de 1900. Seis dias depois, o senhor Manuel Pinheiro tocava violão em um botequim quando um policial entrou, olhou para o seresteiro e ordenou que parasse. Manuel disse que não iria incomodar. Segundo o Jornal do Brasil, o homem, a partir daquele momento, foi “agredido a sabre e multado.”

Para o violonista e compositor paulista Eduardo Gudin, “alguns músicos, mas muito poucos, são como Gepeto, o avô de Pinóquio: eles tocam na madeira e ela ganha a vida”.

No jornal O Commércio de São Paulo, de 1909, um leitor faz seu desabafo: “É intolerável estar às tantas antes de meia--noite, no gabinete de leitura, estudando ou meditando, e sentir uma voz roufenha zurrando, acompanhada por um ou mais violões desafinados. Pois isto dá-se quase que todas as noites, ali para as bandas da rua Conselheiro Furtado, bem pertinho do centro, e probabilissimamente também noutros pontos se dera sem que se possa protestar contra os espedaçadores dos nossos tímpanos (...)”.

Segundo a pesquisadora e violonista Flávia Prando, a intolerância ao violão urbano aumenta a partir de 1906, quando os códigos de segurança pública são estabelecidos nas metrópoles em crescimento. Autora da tese O mundo do

violão em São Paulo: processos de consolidação do circuito do instrumento na cidade (1890-1932) e doutora em música, Prando observa que uma ideia de ímpeto civilizador da época fez com que o estado passasse a ordenar as ruas e os barulhos. “O silêncio tornouse signo de progresso enquanto a sonoridade popular era tratada como resquício arcaico”, afirma. A pesquisadora acrescenta: “o som tornava-se, assim, um marcador de presença indesejada – e o violão, nesse contexto, uma ferramenta de mobilização estética e social dos grupos subalternos”.

CORDAS SOLTAS

A história começa a mudar quando concertistas europeus, sobretudo espanhóis, passam a vir ao Brasil e levam o instrumento aos teatros.

Das páginas policiais, o violão entra nas colunas de arte. Josefina Robledo era uma jovem violonista de Valência, Espanha, e discípula do reformador do violão, o também espanhol Francisco Tárrega. Ela chega ao Brasil em 1917 para fazer uma série de concertos, depois de passar por alguns países da América Latina, e dá um susto. “Era chocante vê-la tocar com essa autoridade de escola europeia. O instrumento de malandro estava nas mãos de uma mulher”, ressalta Prando.

Em 1902, chega ao Rio de Janeiro João Pernambuco (1883-1947), com a proposta de mistura de sons do populoso Brasil rural com as complexidades de um iniciante Brasil urbano. Sua composição “Sons de Carrilhões”, de 1912, torna-se a obra de violão brasileira mais regravada no mundo.

Nilton Fukuda

Depois que se rompe com os preconceitos na virada do século – pelo movimento de músicos como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em 1920, e Garoto (1915-1955), em 1930 –, Dorival Caymmi (1914-2008) torna-se, em 1940, o primeiro homem a colocar uma nação inteira no violão.

BOSSA NOVA

Em 1957, depois de encontrar o que chamaria de “batida perfeita”, o violonista baiano João Gilberto (1931-2019) vai para o Rio de Janeiro. Dois anos depois, grava o disco Chega de Saudade, e consagra nome e sobrenome do violão brasileiro.

O violão pós-1959 ocupa seu espaço na indústria fonográfica e provoca uma mudança de comportamento nos arranjos. Saem as orquestras de sopros e cordas, entra o minimalismo moderno orientado pela dupla: voz e violão. A bossa nova – apesar dos pianos de Johnny Alf (19292010), na vanguarda definitiva, e de Tom Jobim (1927-1994), pianista e, também, um violonista singular – será o reino do violão. “Todos nós estávamos procurando o violão perfeito, mas não estávamos satisfeitos. Quando João Gilberto chegou ao Rio, foi lá em casa e tocou. Estava ali o violão que procurávamos”, recorda Roberto Menescal.

A partir de 1960, um ano depois de sair Chega de Saudade, muitos jovens chegam para colocar uma camada pessoal sobre o chamado “violão de João”. O fato é que esses jovens se tornarão novas matrizes e alimentarão um fenômeno

multiplicador de referências, algo parecido com o que a guitarra fazia nos Estados Unidos e na Inglaterra pós-Chuck Berry (1926-2017).

Será esse o violão marcante do pós-1959 que iria inspirar nomes como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell, Moraes Moreira, Paulinho Nogueira, Paulo Bellinati, Gilberto Gil, Chico Buarque, Jorge Benjor, João Bosco, Luiz Bonfá, Rosinha de Valença, Caetano Veloso, Eduardo Gudin, Bola Sete, Raphael Rabello, Djavan, Filó Machado, Paulinho da Viola, Chico César, Lenine. Mesmo quando acompanham, seus instrumentos têm vida própria.

Quem estava longe dos grupos criativos dominantes no início dos anos 1960 – concentrados no eixo Rio-São Paulo – enviava sinais de fumaça. “Meu violão nasceu da minha solidão em Ouro Preto”, diz João Bosco, criador de uma das identidades violonísticas mais complexas da música popular. Ele vivia na cidade histórica mineira, observando o que os artistas faziam à distância. “Eu estava solitário e resolvi compor para ser percebido, como quem manda mensagens em uma garrafa.”

Também em terras mineiras, a 102 quilômetros de Ouro Preto, em Belo Horizonte, Milton Nascimento compunha, ao violão, canções libertas do sistema harmônico dos bossa novistas e das proezas afro-rítmicas de Jorge Ben, Djavan e Gilberto Gil. Seus acordes eram montados de outra forma, seu ritmo chegava diluído na atmosfera e as melodias eram concebidas pelas frestas.

Anos depois, o violonista e compositor paulista Eduardo Gudin perguntou a Nascimento, quais seriam seus ídolos do violão. “Sabe o que ele me disse? ‘Ninguém’.” Gudin tocou com os dois violonistas polarizados por alguns teóricos como donos das duas escolas extremas do violão moderno do século 20: Baden Powell (1937-2000) e Paulinho Nogueira (1927-2003). Powell seria o arroubo, a explosão. Nogueira, a delicadeza, o refinamento. Biógrafo do segundo violonista, o jornalista Vitor Nuzzi, coautor do livro Paulinho Nogueira, simplesmente (Acorde, 2025), ao lado de Marcos Martins, pondera: “a polarização, como vemos na política, vem da falta de nomes. Ou da escassez. Não é o caso de nosso violão”.

Para Gudin: “Baden chega e ofusca a todos. Ele muda o violão no ritmo, na divisão. Ninguém jamais conseguiu fazer aquilo”. Quanto a Nogueira, complementa: “seu som é grande. Eu o ouvia e pensava: como pode sair tanta vida desse instrumento?”. E sintetiza com uma metáfora: “alguns músicos, mas muito poucos, são como Gepeto, o avô de Pinóquio: eles tocam na madeira e ela ganha a vida”.

ACORDES NOTÍVAGOS

Há ainda um violão esquecido dos estudos oficiais, e o carioca Nelson Cavaquinho (1911-1986) é seu maior expoente. Autor, com Guilherme de Brito, de sambas como “A flor e o espinho” e “Folhas secas”, ele tocava um violão com cordas de aço, trazendo a imperfeição de notas espremidas,

desafinações e digitações de uma mão de articulação lenta, dura. “Eu ainda choro quando ouço esse violão”, diz João Bosco. “É um instrumento do sujeito que perambula pelas madrugadas, calibrado pelo álcool e pelas noites. O violão entorpecido.”

Quem faz a mediação do violão dos sambistas cariocas – um violão batuqueiro dos anos 1950 e 1960, tocado no tempo de um tamborim – com o “violão limpo” dos bossa novistas é Paulinho da Viola. “Minha formação vem das baixarias do choro, e isso foi claramente negado pela bossa nova. Contracanto de violão não existia lá. Eram agora sequências de acordes com harmonias mais sofisticadas. Creio que comecei a mudar depois de ouvir o violão que acompanhava Nara [Leão] cantando com Zé Keti. Acabei perdendo parte dessa escola do choro, mas sem abandonar o universo do samba”, conta Paulinho da Viola.

DEDILHAR MUDANÇAS

Quem manteve a cultura das “baixarias” do violão de sete cordas viu a tradição sobreviver. Hoje, um dos maiores nomes no instrumento é Carlinhos Sete Cordas, que se preocupa com um comportamento mais recente: “Os jovens chegam querendo tocar o sete [cordas], mas, antes, é preciso passar pelo violão de seis”. Quem concorda é Melvin Santhana, violonista, guitarrista e cantor, um dos nomes mais celebrados das gerações contemporâneas, com trabalhos solo e integrante da formação atual do Trio Mocotó, que por muitos anos acompanhou Jorge Benjor. “O jovem vive hoje a síndrome do protagonismo. Ele

quer solar, aprender logo a tocar para fazer um vídeo mostrando como sabe fazer uma ‘baixaria’.”

Enquanto isso, nas salas de concerto, um novo recorte de representantes se consolida na cena do violão brasileiro contemporâneo. Trata-se de uma inspiradora geração de homens e mulheres negros e negras lecionando, assumindo postos de liderança e se apresentando por teatros da Europa, Estados Unidos e América Latina.

João Luiz Rezende, recém-nomeado professor da Yale School of Music, nos Estados Unidos, estudioso da obra do violonista cubano Leo Brouwer, diz que ainda é cedo para falarmos em um “violão de concerto negro brasileiro”, mas sente a tendência. “A referência principal do violão clássico sempre se deu por homens brancos. Agora, as referências negras, nesse contexto, começam a surgir. Em cinco ou dez anos, talvez possamos dizer que exista esse violão negro brasileiro na música clássica.”

Rezende está junto a outros violonistas, como Plínio Fernandes, Henrique Carvalho, Franciel Monteiro e Gabriele Leite. Essa última, que lançou em 2023 o álbum Territórios, já fez uma turnê pela Europa, apresenta-se nos teatros municipais de Rio e São Paulo e é mestre formada pela Manhattan School of Music, além de doutora pela Stony Brook University. “Sinto que, nesse cenário, existem individualidades em termos de performance e tenho a sensação de que cada um surfa a própria onda, porém todos dividem a mesma praia”, descreve o professor.

SOLOS DE GUITARRA

O violão brasileiro não termina nas cercanias do choro, da bossa nova, do samba, da MPB ou da música de concerto. O rock brasileiro adotou as características dos timbres do aço quando as primeiras grandes canções começaram a ser feitas dentro desse segmento, nos anos 1970. “O primeiro roqueiro brasileiro que vi com um violão nas mãos foi Rita Lee (1947-2023), na época da música ‘Ovelha Negra’”, diz o músico Frejat.

Ele explica: “A função do violão de aço no rock é interessante. Em músicas com muitas guitarras, ele traz um ‘ar’”. Frejat ainda faz uma ressalva: foram das cordas de nylon que saiu a maioria das canções gravadas por Cazuza (1958-1990), ainda no Barão Vermelho, como: “Pro dia nascer feliz” e “Maior abandonado”. “Fiz tudo no nylon. Aliás, Erasmo Carlos (1941-2022) também. A Jovem Guarda nasceu dos violões de nylon.”

Filó Machado, paulista de Ribeirão Preto, de 74 anos, conta a história de seu violão como se falasse de um filho. Ou de um pai. Depois de iniciar a carreira como cantor aos 10 anos, aprendeu violão aos 14. Chegou a São Paulo em 1970 e, em 1972, já tocava em quatro casas. Cresceu gravando apenas aquilo que acreditava. Casou-se, descasou-se, teve filhos, sustentou a família, superou preconceitos e descrenças alheias e se tornou um dos mais respeitados violonistas do país, dono de uma capacidade criativa desconcertante. “Tudo foi o violão que me deu”, diz. “Até hoje durmo abraçado a ele e, às vezes, falo baixinho: ‘Você não pode imaginar como eu te amo’”.

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RESSONÂNCIAS PLURAIS

Série exibida pelo SescTV destaca o protagonismo do instrumento em concertos de música erudita e popular

A versatilidade do violão e a presença diversa de um dos mais populares instrumentos tocados no Brasil é o foco do projeto Movimento Violão, idealizado pelo violonista Paulo Martelli em 2003. Desde 2010, a iniciativa também está presente nas telas, por meio da série homônima, exibida pelo SescTV, que apresenta concertos de violonistas renomados e de novos talentos. Entre alguns, Edson Lopes, Maria Haro e João Camarero. O projeto celebra a pluralidade sonora do violão, promovendo concertos que vão da música erudita à popular, reunindo grandes nomes nacionais e internacionais. “O Movimento Violão promove

o diálogo entre diferentes estilos e gerações e se destaca como uma iniciativa fundamental para a difusão cultural, com apresentações ao vivo em várias unidades do Sesc São Paulo, além da criação de um importante acervo de obras audiovisuais”, explica Fernando Tuacek, gerente do SescTV. Segundo o idealizador do projeto, o violonista Paulo Martelli, “a intenção é mesclar um pouco de repertório popular com a música erudita, tradicional de violão, para aproximar os públicos e assim ter uma linguagem que cative não só o músico, mas que traga novos ouvintes”. Cada episódio apresenta uma rica diversidade de repertórios, com releituras de músicas populares e interpretações inéditas de peças eruditas. A direção musical é do idealizador do projeto, Paulo Martelli, já a direção para TV é de Flávio Rodrigues.

SESCTV

Série Movimento Violão

Apresenta a virtuose de violonistas em concertos de música erudita e popular que destacam a versatilidade desse instrumento. Assista em sesctv.org.br/movimentoviolao

No episódio "Violão Espanhol", os violonistas Guilherme de Camargo, Edson Lopes e Emiliano Castro (ao centro) apresentam a história e a evolução do instrumento na Espanha, desde suas raízes barrocas até as expressões flamencas e o virtuosismo dos séculos 19 e 20.

Alex Ribeiro

REFÚGIO E MIGRAÇÃO

Atravessamos um período histórico em que múltiplas e simultâneas crises – econômica, social, territorial, cultural, entre outras – provocam efeitos sem precedentes, principalmente, sobre populações mais vulneráveis em todo o mundo. Fatores como guerras, perseguições e violações de direitos humanos forçaram 123,2 milhões de pessoas a deixarem seus lares até o fim de 2024, segundo dados da ACNUR – Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados. Quando realocadas em outros territórios – na maior parte das vezes, vulneráveis à crise climática –, essas pessoas se veem novamente ameaçadas, dessa vez, pelas consequências de inundações, secas e ondas de calor.

De acordo com dados divulgados na última edição do relatório Refúgio em números, do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), entre 2015 e 2024, o Brasil recebeu solicitações de reconhecimento da condição de refugiados oriundos de 175 países. Ao todo, 156.612 pessoas foram reconhecidas como refugiadas. No país, apesar de iniciativas de acolhida, refugiados e migrantes ainda encontram preconceito e rejeição. “Em uma abordagem radical e simplista, os ‘remédios’ sociais aplicados são brutais e imponderados: por parte do Estado – perseguição, separação, prisão, expulsão e deportação; pela população civil – violência, em muitos modos e gradações. Seria possível cultivar uma sociedade pautada pela inclusividade, pela diferença como

descoberta e conjunção?”, questiona a escritora, doutora e pesquisadora em deslocamentos migratórios Eda Nagayama.

Atual diretor do Centro de Estudos sobre Migrações da Missão Paz, na cidade de São Paulo, e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), padre Paolo Parise acredita que, mesmo diante de legislações e políticas migratórias restritivas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos precisa ser incorporada como um marco fundamental na defesa da dignidade humana, além de base para o direito de migrar e a busca de proteção. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 1°, que 'todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos'. Essa premissa universal não faz distinção de nacionalidade, origem étnica, religião ou qualquer outra condição. Portanto, o migrante, independentemente do motivo que o levou a deixar a sua terra natal e das dificuldades que enfrenta em seu novo lar, é um ser humano com os mesmos direitos e a mesma dignidade que qualquer cidadão do país de acolhimento”, ressalta.

No mês em que o Sesc São Paulo celebra 30 anos do Trabalho Social com Pessoas Refugiadas, que abrange atividades permanentes e programações voltadas à criação de situações de convivência, aprendizagem e expressão cultural de refugiados e migrantes, Parise e Nagayama refletem sobre direitos e o exercício contínuo de alteridade.

Migração como direito humano

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, um marco fundamental na defesa da dignidade humana, estabelece a base para o direito de migrar e a busca de proteção. Em seu artigo 13, afirma: “Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”. Em seguida, o artigo 14 acrescenta: “Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”. A Declaração garante, assim, a liberdade de buscar uma vida melhor, fugir da perseguição, da guerra, da pobreza extrema ou das consequências das mudanças climáticas.

O princípio da liberdade de migrar é um direito humano básico e universalmente reconhecido. Contudo, na prática, esse direito se choca com as legislações e políticas migratórias, normalmente restritivas, dos países de destino. Além disso, colide com situações de marginalização, preconceito, xenofobia ou indiferença por parte da população dos países de destino.

Existe um conflito fundamental entre os direitos de buscar refúgio e a liberdade de movimento, consagrados internacionalmente, e o direito soberano dos Estados de controlarem suas fronteiras por meio de políticas migratórias. Estas se baseiam na soberania estatal, um princípio de direito internacional, que confere, a cada Estado, o direito de gerir o seu território – incluindo a definição de quem pode entrar, permanecer e residir no país – e a sua segurança, justificando o controle de fronteiras como medida de proteção da ordem pública e da segurança nacional.

As leis migratórias restritivas são a manifestação desse direito soberano e, ao exercê-lo, os Estados limitam a aplicação efetiva da Declaração Universal

dos Direitos Humanos a quem não é cidadão. As políticas migratórias restritivas são o conjunto de leis, regras e práticas implementadas pelos Estados para limitar, controlar e dificultar a entrada, a permanência e a integração de imigrantes no seu território. Entre essas medidas: endurecimento dos procedimentos de asilo, critérios mais rigorosos para concessão de visto, criação de campos de detenção nas fronteiras, militarização de fronteiras, construção de muros, criminalização da migração irregular, deportações e uso de acordos internacionais para facilitar a deportação de migrantes irregulares.

A comunidade internacional tenta conciliar esse conflito por meio de quadros de cooperação, como o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. É reconhecido, por um lado, o direito soberano do Estado e, por outro, a necessidade de proteger os direitos humanos dos migrantes, buscando ordenar os fluxos migratórios, minimizar os fatores adversos que levam à migração e garantir vias regulares de migração. Existe também o Pacto Global sobre Refugiados, com a finalidade de fortalecer a cooperação internacional, lidando com as crises dos refugiados, por meio do apoio a soluções de proteção. No entanto, esses pactos não são vinculativos, de modo que o debate sobre o equilíbrio entre a soberania e os direitos humanos continuam a ser um dos mais complexos da geopolítica atual.

O direito de migrar também encontra respostas da população. De fato, as posturas diante da chegada de migrantes oscilam entre a rejeição e a acolhida. Em alguns casos, aflora a percepção de que aquele que vem de fora é uma ameaça, outras vezes, alguém a ser tolerado, ou uma pessoa com “função positiva”. Entretanto, existe a visão de que é um sujeito de direitos com a mesma dignidade de outros cidadãos. Retomamos, sinteticamente, as várias posturas diante da chegada de migrantes.

A percepção de que o migrante constitui uma ameaça é comum em vários contextos, inclusive no Brasil, e baseia-se majoritariamente em estereótipos, desinformação e medos. O migrante é enxergado como um risco em múltiplas dimensões. É uma ameaça econômica – competição por vagas de tra-

Reconhecer o migrante como pessoa implica ir além da visão superficial que o associa apenas ao seu status migratório. Significa enxergar a complexidade de sua história, suas experiências, seus sonhos e suas contribuições potenciais para a sociedade.

balho, ameaça social e estrutural – sobrecarga nos serviços públicos (saúde e educação); ameaça à segurança – associação, desmentida por estudos, entre imigração e aumento da criminalidade; ameaça à saúde pública – receio de que sejam vetores de doenças; e uma ameaça cultural e religiosa – em contextos de nacionalismo, um risco à identidade cultural e religiosa. A tendência natural de migrantes se unirem em comunidades é vista, erroneamente, como uma ameaça à coesão social, em decorrência da perspectiva de criação de guetos.

Existe a postura de ver o migrante como alguém a ser tolerado. A tolerância representa um avanço, mas implica em suportar a presença do outro, em vez de acolhê-lo e valorizá-lo. Essa postura cria uma exclusão sutil, relegando o migrante à marginalidade. A aceitação é muitas vezes relutante e condicional, de forma a ser definida a partir da adaptação do migrante às normas da sociedade anfitriã, reforçando a ideia de que ele é um “outro” aceito sob reserva. Esta postura, embora represente um avanço em relação à rejeição, ainda se mostra insuficiente para o reconhecimento da dignidade plena do migrante.

Outra postura enxerga o migrante como alguém com uma “função positiva”. Esta visão utilitarista valoriza a pessoa não por seu ser, mas pela função que exerce na sociedade de acolhida. Os migrantes fazem “os trabalhos que ninguém quer fazer” (mal remunerados e de grande esforço físico). Migrantes jovens ajudam a compensar o envelhecimento

da pirâmide etária, gerando um equilíbrio demográfico. A naturalização de migrantes, em alguns casos, quando se trata de atletas, fortalece equipes esportivas nacionais. A chegada de migrantes da mesma religião pode aumentar o número de fiéis. Essa perspectiva é criticada por não considerar o migrante como um ser que tem valor em si, mas apenas a partir de um interesse, gerando uma situação existencial desconfortável e a sensação de que o migrante não tem valor como sujeito.

Após a apresentação dessas percepções, é fundamental resgatar a perspectiva humana do migrante, reconhecendo-o como um indivíduo pleno, dotado da mesma dignidade inerente a qualquer ser humano.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 1°, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Essa premissa universal não faz distinção de nacionalidade, origem étnica, religião ou qualquer outra condição. Portanto, o migrante, independentemente do motivo que o levou a deixar a sua terra natal e das dificuldades que enfrenta em seu novo lar, é um ser humano com os mesmos direitos e a mesma dignidade que qualquer cidadão do país de acolhimento.

Enfim, reconhecer o migrante como pessoa implica ir além da visão superficial que o associa apenas ao seu status migratório. Significa enxergar a complexidade de sua história, suas experiências, seus sonhos e suas contribuições potenciais para a sociedade. Numa palavra, trata-se de acolhê-lo como pessoa. Cada migrante traz consigo uma bagagem cultural única, conhecimentos, habilidades e perspectivas originais.

Paolo Parise é padre, professor de teologia sistemática no Instituto Teológico São Paulo (ITESP) e diretor do Centro de Estudos Migratórios. Foi membro do Conselho de Gestão da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (2017-2018) e do Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil sobre Ações de Migração e Refúgio (CASC- Migrante) no Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça (2015-2016).

Sapatos sem dono, pés descalços: o chamado ético da vulnerabilidade

Um par de chinelos de plástico cor-de-rosa. Sobre a larga tira, um Piu-Piu amarelo. Sem Frajola. Vi pela primeira vez nos pés de Maria, uma menina de uns seis anos em um campo de refugiados na minúscula Alexandreia, Grécia, em 2016. Pés e chinelos sujos de poeira e terra, unhas mal aparadas. Ficou a imagem dos pés, não sendo permitido fotografar os rostos.

Vi os chinelos pela segunda vez, alinhados a outros sapatos por tamanho e cor, na instalação Laundromat (2017), do artista e ativista chinês Ai Weiwei, exposta na Galeria Nacional de Praga, República Tcheca. As muitas roupas e sapatos que compunham a obra haviam sido abandonados no campo de Idomeni, também na Grécia, depois coletados e higienizados, antes de serem selecionados e organizados em diálogo com imagens postadas no então Twitter, hoje X.

Alguns pares pareciam recém-saídos de lojas, outros traziam marcas de uso, algum dano. Vistos em conjunto, eram os sapatos sem par que, órfãos, causavam apreensão: um pé deixado descalço, o outro lado perdido, afundado no lodaçal do campo abarrotado e inundado pelas chuvas. Agora ordenados, os sapatos evidenciavam seu potencial de afetividade ao remeterem à condição humana de vulnerabilidade e desproteção, bem como à necessidade de alento e conexão para uma existência plena.

Mais do que as roupas, sapatos são objetos vestigiais, nos quais são impressos rastros do uso, uma pessoalidade orgânica e biológica, o suor e o formato dos pés, o caminhar e a maneira como

corpo e pés se equilibram em movimento. Sapatos dizem, também, de sua época, da moda e do gosto, dos recursos usados em sua fabricação, podendo ainda denotar posição social.

Na obra do artista chinês, os sapatos eram indícios – presentes – de uma massa de individualidades – ausentes –, anônimas e sem voz, aos milhares. Em um mercado de modelos e materiais globalizados, os sapatos não são exclusivos de lugar algum, habitados por sírios ou bengalis, somalis ou ucranianos, ou mesmo por nossos próprios pés. Podem ainda dialogar no tempo e no espaço, com sentidos criados a partir de contextos singulares: a montanha de sapatos de prisioneiros mortos pelo regime nazista, exibidos no museu do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia; o pé de uma bota degustada com bons modos no filme Em busca do ouro ( The gold rush , 1925), de Charles Chaplin (1889-1977), semelhante ao par muito desgastado e sujo pintado por Vincent Van Gogh (1853-1890): Shoes (1888), exibido no Van Gogh Museum em Amsterdã, Holanda.

Vistos sob o risco de contaminação e contágio, ao portarem vestígios das terras de origem, os sapatos devem ser deixados para trás. Na Mare Nostrum (2013-2014), operação aérea e naval do governo italiano que resgatou mais de 150 mil pessoas no Mar Mediterrâneo, a equipe de acolhida, em rigorosas vestimentas de proteção, que se tornariam familiares na pandemia, oferecia calçados Crocs genéricos. A contaminação não se restringiria àquela de doenças e bactérias, mas ao próprio senso de alteridade, em sua carga arquetípica e simbólica, quando a diferença é alvo de um julgamento moral, tomada como ameaça a ser combatida e eliminada: o outro é indesejável, mau.

Em uma abordagem radical e simplista, os “remédios” sociais aplicados são brutais e imponderados: por parte do Estado – perseguição, separação, prisão, expulsão e deportação; pela população civil – violência, em muitos modos e gradações. Seria possível cultivar uma sociedade pautada pela inclusividade, pela diferença como descoberta e conjunção?

Em inglês, a expressão “calçar os sapatos do outro” descreve o sentimento de empatia. A analogia traz consigo empecilho e desconforto: todos diferentes, os pés nem sempre se ajustam. E como diz o ditado: “cada um sabe onde lhe aperta o sapato”.

Esse foi o cerne da revisão do projeto Refúgios Humanos, quando o Sesc São Paulo celebra 30 anos de desafios, realizações e méritos diante de um tema de urgência e exponencial crescimento futuro. Ao repensar os encontros entre educadores, migrantes e refugiados, atestou-se a incontornável questão da comunicabilidade: como transmitir a intensidade e complexidade de experiências, por vezes traumáticas e específicas de um grupo e localidade, a priori, distintas e distantes da realidade brasileira?

Em inglês, a expressão “calçar os sapatos do outro” descreve o sentimento de empatia. A analogia traz consigo empecilho e desconforto: todos diferentes, os pés nem sempre se ajustam. E como diz o ditado: cada um sabe onde lhe aperta o sapato. O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa apresenta uma relação entre identidade e um repetitivo espelhamento: “capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender do modo como ela apreende etc.”. Trata-se, então, de outro tipo de impasse: como sentir, querer, apreender como outro que não eu, sem que haja algum tipo de falseamento, um “eu” travestido de “outro”?

No lastro dessa impossibilidade empática, podemos, então, retomar a proposição moral do filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) como princípio fundamental da ética: o ser humano deve ser responsável pelo outro. Tal chamado não se estabelece por força, mas justamente pela vulnerabilidade e necessidade moral de proteção do outro contra qualquer forma de violência. Essa vulnerabilidade poderia encontrar analogia na desproteção dos pés.

Na recorrente longa trajetória dos deslocamentos forçados, os sapatos se perdem: pés infantis crescem, sapatos se estragam, se entregam, desistem da jornada. Descalços e vulneráveis, os pés se ferem nos escombros de terras devastadas por bombardeios. Se nus, sim, mas também sujos, desonram a sagrada oração voltada para Meca, sem água para livrá-los das impurezas. Cuidar e lavar os pés do outro é um gesto consagrado de humildade e reverência a uma vida de sentido e compaixão, de comunidade. Em uma responsividade ao chamado ético, que os nossos – todos os pés –, possam estar protegidos, limpos e livres para caminhar sobre o mundo.

Eda Nagayama é escritora e doutora em Estudos Literários pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com pesquisa em pós-memória, trauma, Holocausto e deslocamentos forçados contemporâneos. Autora de Desgarrados (Cosac Naify, 2015), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Yaser (Ateliê Editorial, 2018), baseado na experiência como observadora de direitos humanos na Palestina.

pauta

Ler o MUNDO

Editora, crítica literária e curadora da Flip 2026, Rita Palmeira observa expansão do mercado editorial e diversificação de autores, temáticas e leitores no país

Criada em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chega à sua 24ª edição em 2026. Imersa em livros e autores, quem fará a curadoria da Flip no próximo ano é a editora e crítica literária Rita Palmeira, doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), ex-curadora da livraria Megafauna e apresentadora do podcast Livros no Centro até o fim de 2025.

Rita Palmeira já atuava, desde 2017, como mediadora de mesas e debates da programação principal do evento de Paraty. Debateu com grandes nomes contemporâneos, como a francesa Annie Ernaux (Nobel de Literatura em 2022) e o chileno Benjamín Labatut, além dos brasileiros Jeferson Tenório, Socorro Acioli e Micheliny Verunschk. Sucedendo a curadoria de Ana Lima Cecilio,

realizada em 2024 e 2025, Rita traz consigo a paixão pelos livros e por novidades do mercado, bem como uma habilidade para escuta, que contempla vozes diversas.

Um de seus escritores prediletos é Milton Hatoum, e ela indica o novo romance do amazonense, que fecha a trilogia O lugar mais sombrio: Dança de enganos (Companhia das Letras, 2025).

“É das melhores coisas que já li, de um autor brasileiro vivo, muito vivo”, revela.

Neste Encontros, Rita Palmeira fala sobre a ampliação do mercado editorial, com cada vez mais feiras, festas e festivais, e a crescente diversidade de autores em termos de gênero, raça, região, orientação sexual, temas e perspectivas.

EXPANSÃO DO MERCADO

O Brasil ainda tem grandes grupos que publicam livros fundamentais, mas hoje também há uma ampliação do mercado, com maior circulação e distribuição, inclusive de editoras fora do eixo Rio-São Paulo, o que sempre foi uma dificuldade. Além disso, novas livrarias, espaços, festas e feiras literárias vêm contribuindo para ampliar a presença de autores publicados. Essas editoras pequenas e independentes ajudam a fortalecer o debate, ao publicar livros sobre temas particulares que, talvez, as grandes não tenham interesse ou não possam.

DIVERSIDADE AUTORAL

Há, atualmente, uma presença feminina no mercado editorial muito maior que em outros tempos, além de uma diversidade racial, regional, de orientação sexual, de temáticas e de perspectivas. Há, inclusive, um interesse maior por autores e autoras que tratem desses assuntos. Também podemos citar o fenômeno Itamar Vieira Junior, que é um baita escritor e acabou de publicar Coração sem medo, o terceiro livro de sua trilogia [formada por Torto arado (2019) e Salvar o fogo (2023), todos editados pela Todavia]. Então, além da expansão do mercado, há um amadurecimento do debate sobre as minorias e uma ampliação de quem produz e de quem consome literatura no país. Isso muda o perfil das editoras, das livrarias e das festas literárias, porque é uma onda que chegou para ficar. Ninguém vai retroceder. Esse fenômeno reorienta a literatura brasileira contemporânea, pois criaram-se possibilidades para autores que antes não tinham espaço.

RESGATE DO TEMPO

A internet e as redes sociais nos trouxeram uma imensidão de coisas boas. Não sou saudosista do tempo absolutamente analógico. Agora, há um lado tenebroso [da economia da atenção] que nos sequestra horas importantes de leitura e de escrita. Pesquisas apontam que, a partir do momento em que você pega o celular, se passam mais de 20 minutos para voltar a ter foco no que estava fazendo. Isso nos tira a capacidade de leitura e de concentração, algo que também serve para a produção escrita, intelectual. Alguns autores conseguiram tematizar esse assunto de uma maneira muito interessante, a ideia de cancelamento, de perfil, de lacração e todo esse vocabulário e universo de sociabilidade e afetividade que é perpassado pelo uso das redes, como fenômeno social. Esse sequestro do tempo pode gerar histórias que discutam, debatam e reflitam sobre a situação.

ESPAÇO DA CRÍTICA

Houve, neste século, um esvaziamento do espaço de crítica cultural nos jornais, o encerramento de suplementos literários. No Rio, hoje só restou O Globo. Tudo rareou. Ao mesmo tempo, surgiu a Quatro Cinco Um, que é a revista dos livros e ocupa essa grande lacuna. Talvez seja a principal publicação impressa de resenhas do país, num sentido mais comercial e menos acadêmico, para o grande público. Essa publicação – da mesma associação que faz A Feira do Livro de São Paulo – se firmou no mercado e tem também um podcast. Agora, não adianta ter apenas uma revista num país com dimensões continentais, com uma produção muito variada.

O Suplemento Pernambuco também é excelente, mas são iniciativas que não dão conta do tamanho do nosso mercado editorial e, portanto, do que a crítica poderia contribuir na divulgação de livros.

ESTRATÉGIAS DE DIVULGAÇÃO

Como é que as pessoas estão conhecendo os livros hoje? Elas chegam à livraria, são surpreendidas e compram? Aí entra a importância das redes sociais. No TikTok, você tem influenciadores e outras pessoas que trabalham com livros e fazem a divulgação. Há os booktubers, que são figuras fundamentais, além de podcasts e clubes do livro que também têm ampliado a divulgação de novos títulos. Então, você vai criando estratégias, faz críticas ou resenhas ligeiras, ações pagas ou não. Há, ainda, divulgadores de grandes editoras que ajudam essa nova produção a circular. E, do ponto de vista da democratização do acesso, as pequenas editoras têm criado mecanismos para divulgar seus livros sem depender tanto da crítica especializada. Existem mil estratégias. Nesse sentido, as redes sociais contribuem muito para uma maior divulgação e circulação dos livros.

FEIRAS E FESTAS

As feiras e festas literárias têm um papel muito importante, e a proliferação delas pelo Brasil e por cidades pequenas é um fenômeno deste século. Acredito que o sucesso da Flip foi fundamental para isso, mostrando que há um espaço grande que pode ser ocupado por organizações de estados e cidades diferentes, com suas próprias curadorias e convidados. Se esses festivais não existissem, haveria

uma dependência maior em relação às editoras, que precisariam se encarregar de levar o autor às principais capitais – um jeito de as obras ficarem conhecidas. Então, as feiras e festas literárias contribuem para que eles viajem e divulguem suas produções. Além disso, promovem um grande intercâmbio entre escritores brasileiros e estrangeiros. Isso é fundamental, tanto do ponto de vista doméstico –para a circulação de autores aqui dentro – quanto internacional, para que tenhamos nossos direitos de publicação comprados lá fora. Os principais autores brasileiros são superconhecidos no exterior, e isso, em parte, se deve às feiras e festas literárias.

PASSAPORTE FLIP

O que aconteceu nos últimos 20 anos foi uma internacionalização da nossa literatura. E aí tem mil razões para isso ter acontecido, como o Brasil ter sido o país homenageado na Feira do Livro de Frankfurt (Alemanha), em 2013, e outras tantas iniciativas, como de universidades estrangeiras que fazem convites para que escritores brasileiros viajem. Além disso, a Flip teve alguns pilares para se internacionalizar, e um deles foi a editora inglesa Liz Calder, fundadora da Bloomsbury. Já na segunda

edição da Flip, o evento saiu num jornal inglês. Além disso, quando você traz figurões globais junto a escritores nacionais, chama a atenção das editoras e de agentes literários para esse universo. Nesse sentido, as feiras e festas literárias são fundamentais para que a literatura brasileira ganhe outro status, não só interna, mas internacionalmente.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Quando a Flip surgiu, foi estabelecida uma parceria fundamental com o editor Luiz Schwarcz, dono da Companhia das Letras. Devo citar também Mauro Munhoz, Belita Cermelli, Luiz Farkas e a inglesa Liz Calder. Schwartz e Liz, nessa parceria, conseguiram trazer autores muito importantes para o Brasil. Num primeiro momento, poderia parecer uma festa de uma editora só, mas rapidamente isso se desfez. Houve uma série de manifestações de que era preciso dar espaço para editoras menores. Surgiu a Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes) em 2018, com seu barco, e vieram as casas parceiras, como a das Edições Sesc. Hoje em dia, são cerca de 90 casas. Além disso, foi ampliada a programação paralela, o que responde a uma demanda por democratização.

PODCASTS LITERÁRIOS

Quando surgiram os podcasts literários no Brasil, eles eram, sobretudo, entrevistas, algo que é maravilhoso e fundamental também. Há podcasts excelentes, produzidos tanto por editoras quanto por escritores. O podcast da livraria Megafauna, Livros no Centro, conta histórias de pessoas que tiveram a vida, de alguma maneira, alterada pelo convívio com livros ou por leituras específicas. Transformamos o ato de ler numa coisa divertida, e esse encontro com o livro ou com o autor – ou com a leitura, a poesia, livros infantis – em uma experiência narrativa também. Contamos uma história sobre alguém que gosta de histórias. Isso ajuda a aproximar leitores e não leitores do universo dos livros.

A editora e crítica literária Rita Palmeira, curadora da Flip 2026, participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 23 de outubro de 2025. A mediação do bate-papo foi do jornalista Jefferson Alves de Lima, editor nas Edições Sesc São Paulo.

inéditos

PALAVRAS EM TRÂNSITO

POR RODRIGO GARCIA LOPES ILUSTRAÇÃO CARLOS CARCARAH

SEXTINA*: A TRADUTORA

Ela andava pelo château como um fantasma.

Havia terminado de traduzir o livro

E o perdera. Ela o deixara junto às flores secas,

Em cima do dicionário na janela.

Foi quando sua imagem, no espelho, reapareceu

E a sala encheu-se de relâmpagos.

Esperou um pouco. Mais relâmpagos

Lhe deram o aspecto de uma fantasma

Enquanto contemplava a janela.

Ela serviu-se de vinho branco. Tudo pareceu

Exatamente uma das cenas do livro

Que ela traduzira: Flores Secas

(Seus personagens pitorescos, suas vidas secas).

No devaneio, até se esquecera dos relâmpagos

Quando Blanche Durée apareceu,

Puro osso, branca como a página do livro

Que ela ainda não escreveu, fantasma

Folgada, sorrindo, pairando na janela.

“Palavras”, disse a autora, “não são janelas.

Você deixou as minhas veias secas, Não foi nada fiel ao traduzir meu livro.

Agora não passo de uma reles fantasma, Tão fugaz e real quanto esses relâmpagos

Ou a lua nos Alpes que, mais cedo, apareceu”.

E, tão rápido quanto veio, Blanche desapareceu.

Tudo o que ficou foi a janela.

Pensou: “Não serei eu a verdadeira fantasma, Esta sextina com cheiro de relâmpagos,

Esse dicionário mudo, essas flores secas, E esse vazio imenso, onde repousava um livro?”

Passou a noite procurando, obsessiva, por seu livro, Como a suíça que nunca mais apareceu.

E caminhando no escuro do château, entre relâmpagos, A tradutora olhou para suas mãos, vazias, secas, E para a chuva tamborilando nas janelas

Como os pensamentos de um fantasma.

Ela dormia quando o livro reapareceu:

Estava na janela, junto às flores secas, E pairava como um fantasma entre os relâmpagos.

(Château de Lavigny, Suíça, 11/5/2024)

*Sextina: forma criada pelo trovador provençal Arnaut Daniel, provavelmente adaptada. São 39 versos, divididos em seis sextetos e um terceto final. Não usa rimas, mas repete palavras finais em uma ordem específica.

inéditos

Message in a Bottle

Fale dos pássaros que pairam acima do mar, em noites azuis, apenas para serem salpicados com pérolas de espuma e luar.

Fale dos ventos que escrevem nomes na areia, das vozes que o recife abafa em sua garganta de coral: fantasmas de camaradas, sussurros que dissolvem-se na névoa salgada.

Fale das estrelas de dia, invisíveis, Do mar severo como um comandante Que escuta, ao pé do ouvido, As primeiras palavras Do último habitante de uma ilha.

Hino ao Pântano (Aos pescadores do Pântano do Sul)

Espante o caos & a serpente roube o ouro do arrebol

Nut, portal do horizonte, sob as escamas das almas

Meu belo Nilo infinito Tarrafeando as estrelas

Promessas de céu e terra lento papiro das ondas

Milhões de dias ainda Milhões de anos ainda

Tire as estivas da noite E arraste o barco do sol

Rodrigo Garcia Lopes nasceu em 1965, em Londrina (PR). É poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Tem 22 livros publicados e dois álbuns. Seu romance O trovador (Record, 2013) foi finalista do Prêmio

São Paulo de Literatura de 2014. Em 2019, seu Roteiro literário - Paulo Leminski, foi um dos três vencedores do Prêmio da Biblioteca Nacional do Brasil para Melhor Livro (Categoria Ensaio Literário) de 2018. Em 2023, a Kotter Editorial, de Curitiba, lançou Poemas coligidos (1983-2020), reunindo seus sete livros de poemas na íntegra. Tem três livros publicados na Itália e um em Portugal. Em 2024, lançou, pela Penguin-Companhia das Letras, Zona e outros poemas, de Guillaume Apollinaire.

Carlos Carcarah nasceu em Brasília (DF), em 1979, é ilustrador e ator. Dividido entre as artes plásticas e o teatro, já expôs obras no Brasil e em Portugal. Publicou em revistas, ilustrou livros e CDs. Desde 2008 integra o grupo Cemitério de Automóveis, atuando e produzindo diversas peças teatrais.

DESLOCAR OLHARES

Doutora em história da arte e curadora ítalo-francesa, Cecilia

Braschi acredita em intercâmbio cultural com a América

Latina para soma de perspectivas no cenário das artes

Na década de 1920, Tarsila do Amaral (1886-1973) chegava a Paris, epicentro de movimentos artísticos, de mestres, museus e galerias. Lá, ela aprenderia lições na Academia Julian e iria expor uma primeira fase de seu trabalho, para depois retornar ao Brasil e se tornar ícone do modernismo no país. Junto a Anita Malfatti (1889-1964) e a outras pioneiras, Tarsila inscreveria a presença das mulheres na história da arte moderna no Brasil. No entanto, a artista seria escamoteada pelos livros de história da arte europeus, nos quais seu nome permanece desconhecido. Ao se dar conta da trajetória e da importância da artista brasileira, bem como de outros expoentes latino-americanos que estiveram em Paris, a pesquisadora e curadora ítalo-francesa Cecilia Braschi se

empenhou em jogar luz sobre artistas latino-americanos –além de Tarsila, o colombiano Fernando Botero (1932-2023).

“Na universidade, nunca estudei nada sobre a arte do Brasil.(...) Então, partiu de uma curiosidade pessoal saber por que tantos artistas vieram a Paris”, recorda Braschi, que assinou a curadoria das exposições Fernando Botero, além das formas, no Museu de Belas Artes de Mons, na Bélgica, em 2021, e Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno, a primeira que abrange toda a carreira da artista, realizada no Museu de Luxemburgo, em Paris, e no Guggenheim, em Bilbao (Espanha), entre 2024 e 2025.

Além de acertar o passo com o tempo e com a necessidade da incorporação de outras narrativas

a uma história da arte colonialista, segundo Braschi, ambas exposições abriram frestas na perspectiva do público. “Então, a proposta não é só da curadora, nem da obra em si, que é muito interessante, mas também do olhar do público, quando ele para, comenta e discute. Para mim, essa é uma parte fundamental da existência da exposição”, acredita Cecilia Braschi, que participou do curso Novas perspectivas museográficas e curatoriais: Modernismos sulamericanos e públicos europeus, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, em agosto passado. Neste Depoimento, a curadora compartilha seu encontro com a obra de Tarsila, a exposição e a recepção do público, além da importância de intercâmbios culturais para ampliação de repertórios e pontos de vista.

depoimento

curiosidade

Na minha formação não havia contato com expressões artísticas sul-americanas. Na universidade, nunca estudei nada sobre a arte do Brasil. Mas o que me chamou a atenção, em uma pesquisa pessoal, foi constatar a presença de muitos artistas latino-americanos –argentinos, brasileiros, uruguaios –em Paris, em particular, nos anos 1950, o período que mais estudei durante o mestrado. Então, partiu de uma curiosidade pessoal, saber por que tantos artistas vieram a Paris. Foi aí que comecei a fazer viagens para vários desses países. Essa curiosidade vem da minha experiência também, porque sou italiana, moro na França e acho muito rico esse deslocamento. Cansativo, também, do ponto de vista emocional e cultural. Imagino que para todos os artistas que se deslocaram de suas origens foi a mesma coisa, mas também enriquecedor. Foi isso que me convidou a pensar no deslocamento dos artistas e das ideias no âmbito da cultura em geral.

tarsila

Impossível não passar por Tarsila do Amaral quando você se aproxima da arte brasileira. No meu doutorado, estudei os anos 1950 e 1960, e essa personalidade da arte sempre aparecia. Muito frequentemente, acontece assim: você começa a estudar uma época e busca entender o que aconteceu antes. A minha tese era sobre revistas de arte e de arquitetura, e achei vários artigos e discussões sobre artistas, entre os quais, Tarsila. Ela participou da 1ª Bienal de São Paulo (1951), da 32ª Bienal de Veneza (1966), então descobri essa figura maior do panorama da cena artística

brasileira. Também me chamou a atenção o fato de Tarsila ter estado em Paris por tanto tempo e como isso foi importante para ela. Olhando desde o Brasil, parece que essa temporada foi fundamental. No entanto, Paris esqueceu essa artista, como esqueceu muitos outros. Agora, há um novo interesse para cenas artísticas que a França desconsiderou e, também, para artistas mulheres.

intercâmbio

Cada narrativa depende de um ponto de vista e, portanto, das experiências e pensamentos que o conformam. Não se trata de negar um ou outro, mas de entender como vários pontos de vista coexistem e como um pode acrescentar ao outro. Então, fazendo uma exposição na Europa sobre artistas, nesse caso, de dois países da América Latina [Fernando Botero e Tarsila do Amaral], não se trata de tomar de novo o comando da história ou da narrativa artística. Sobre Tarsila, por exemplo, existem muitos estudos profundos feitos no Brasil. Então, para mim era importante começar por aí. Mas depois, ver também o que esse olhar desde a Europa pode acrescentar. Senão, não faz muito sentido simplesmente deslocar exposições de um lugar para outro. Cada lugar tem uma alma, uma experiência diferente e

foi bem interessante [realizar as exposições de Botero e Tarsila], porque, de fato, eu achei ideias novas que nasceram justamente desse olhar de fora, que não apaga nada, mas acrescenta ideias e possibilidades de pontos de vista.

imaginários

Eu acho que Tarsila inventou uma ideia de Brasil, até porque fazia parte do projeto modernista inventar um ideal brasileiro que fosse, também, exportável para os europeus. Então, havia uma consciência de que o olhar estrangeiro era importante. Sendo assim, como ela constrói esse imaginário? Por um lado, olhando e sintetizando a própria paisagem, e a intenção dessa exposição foi mostrar como ela seleciona os elementos visuais dessa paisagem, traduzindo-os em linhas e formas geométricas simples, que se tornam o vocabulário da nova linguagem moderna brasileira, que ela inventa em suas paisagens pintadas nos anos 1924-1925. Mas depois, inventar um povo é bem mais problemático. Quem são esses brasileiros? Uma obra como A negra foi, primeiramente, exaltada como homenagem à população afro-brasileira, mas agora é criticada como um estereótipo racista e sexista, a representação de uma mulher negra e ama de leite, com todo o

É JUSTAMENTE ESSA IDEIA DE “UMA HISTÓRIA DA ARTE”

peso desse imaginário. Em Paris, estamos acostumados a ver obras de Pablo Picasso (1881-1973), e estamos familiarizados com obras literárias como Antologia negra, do poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), escrito pouco tempo antes de Tarsila pintar A negra. Então, dá para entender o contexto. Com certeza, Tarsila estava tentando se encaixar numa época. Ela estava, também, respondendo a uma expectativa que é propriamente europeia.

diálogo

A maior gratificação dessa exposição [Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno] foi um grupo de jovens, entre 20 e 25 anos, que me disse que essa era uma exposição que falava com eles. Esse, para mim, foi o maior elogio. Porque, justamente, não era apenas contar a história da arte de uma época já passada, mas todo o jeito de apresentá-la era meu foco, assim como atualizar esse discurso. Ao olhar para uma mulher artista em Paris, que estava inventando um personagem em um mundo bem estereotipado e masculino, dá para pensar qual é hoje a situação das mulheres artistas. Além disso, pensar a invenção de uma identidade nacional. Qual é hoje a nossa identidade? Ela existe, é inventada ou construída? Outro aspecto que também me chama muita atenção é a implicação política de Tarsila na segunda parte da sua carreira, uma época pouco explorada e apresentada, mas que deu para levantar novas pesquisas e textos no catálogo.

público

Eu acredito muito no público, que é muito mais inteligente do que o mercado das exposições nos

deixa pensar. Então, esse diálogo é importante. Uma exposição não se limita apenas a apresentar coisas fechadas e prontas. É o olhar do público que faz metade da exposição. A recepção e as perguntas que são elaboradas fazem parte também. Eu gostei muito disso, sobretudo, em Paris, no Museu de Luxemburgo, um museu pequeno, aonde o público vai porque está interessado na programação, uma vez que há muitas ofertas na cidade. E eu observei e ouvi muitos comentários inteligentes dos visitantes. Então, a proposta não é só da curadora nem da obra em si, que é muito interessante, mas também do olhar do público, quando ele para, comenta e discute. Para mim, essa é uma parte fundamental da existência da exposição.

pluralidade

É justamente essa ideia de “uma história da arte” que devemos romper. Ouço muitas vezes em discursos na França que: “hoje temos que reescrever a história da arte”. Mas e se a gente parar de escrever e, então, ler outras histórias? Ouvir as histórias. Porque elas são plurais. A partir da trajetória de uma mulher artista dá para aprender outras coisas sobre a história da arte, como a trajetória de uma artista brasileira, que conta tantas outras coisas. E como o contexto influencia muito a carreira de cada artista, assim é possível multiplicar as histórias da arte, o que eu acho muito mais interessante. A mentalidade europeia está acostumada a classificar e a fichar, desde sempre, e com isso, estamos contando a história como “ela é”. Mudar é um exercício mental difícil, vai tomar tempo, mas vai dar certo.

Assista a trechos desse Depoimento com a doutora em história da arte, pesquisadora e curadora ítalo-francesa Cecilia Braschi, realizado em agosto no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.

ALMANAQUE

Memórias da comunidade

Museus comunitários fortalecem laços sociais e tornam-se ferramentas de transformação e preservação da história de territórios

POR ADRIANA TERRA

Ésábado à tarde no Jardim Vermelhão, em Guarulhos (SP), quando um grupo de crianças, jovens e adultos se reúne em uma oficina de colagem. Da janela do sobrado, o campo de terra marca a paisagem desse bairro construído pela luta por moradia em 1992. A oficina faz parte de uma das crescentes iniciativas pelo Brasil baseadas na museologia social – conceito que tem origem nos anos 1970, com a reivindicação por direitos, e que aponta para a necessidade de se repensar o que é um museu e para quem se destina.

“Museologia social é o trabalho com memória e referências culturais feito coletivamente a favor de sujeitos e povos historicamente marginalizados”, resume Inês Gouveia, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “Muitos grupos já lidavam com a memória, não é o formato museu que inaugura isso, mas, na perspectiva de Nêgo Bispo [(1959-2023), pensador e líder quilombola], aprendemos que esse instrumento que foi da colonização pode ser útil para se contrapor às suas forças”, complementa. Alavancada a partir dos anos 2000, com a articulação de políticas públicas no país, a museologia social hoje ocupa diferentes estados e territórios. Conheça cinco museus, na capital paulista e em municípios vizinhos, que preservam a história e a memória de suas comunidades.

MUSEU COMUNITÁRIO JARDIM VERMELHÃO

Acolher a memória da luta que originou o bairro Jardim Vermelhão, na região dos Pimentas, em Guarulhos, e articular projetos no território são fios condutores desse museu comunitário. Em 2019, o espaço realizou um documentário ouvindo pessoas que viveram essa história. “Eles falam com muito orgulho do que é o Vermelhão porque construíram tudo isso aqui”, conta Suzy Santos, uma das idealizadoras do museu. A partir desse filme e do Projeto Cultural Pimenteiros e Pimenteiras do Vermelhão, o museu é fortalecido pelos moradores. Hoje, são realizados roteiros, exposições, oficinas e outras ações, seja no Nosso Espaço sede do projeto cultural, ou nas ruas. “O museu é o bairro, sua história e sua luta”, explica Marco Cesar Silva, integrante do projeto. “Passar para as pessoas o que a gente viveu desde os tempos do 'pé de barro' é emocionante”, acrescenta Soraia dos Santos, que integra a equipe do museu.

Campo do Vermelhão. Rua da Pátria, s/n, Jardim Vermelhão, Pimentas. Guarulhos-SP. instagram.com/museu.vermelhao

Campo reconhecido como o principal patrimônio do bairro Jardim Vermelhão é o principal local de visitação nos roteiros promovidos pelo museu comunitário.

MUSEU DOS AFLITOS

Fruto da luta pela preservação da memória de povos índígenas e negros escravizados no Brasil, o museu parte dos territórios da Liberdade e da Baixada do Glicério, na região central, onde se localiza o cemitério mais antigo da cidade. De 2022 para cá, o espaço tem atuado a partir da Capela dos Aflitos, mas com a compreensão de que o museu é bem mais do que uma edificação. Outra compreensão é a de que projetos no bairro já fazem museologia social, seja no futebol de várzea ou em oficinas de samba, portanto os acervos de memória estão em vários locais desse território e devem ser preservados em seus contextos. A partir da criação de um Comitê de Gestão Territorial, um plano museológico e um diagnóstico de território, Lucas Inocêncio, que integra a equipe, explica que o Museu dos Aflitos fomenta diálogos com agentes da região, promove uma articulação em rede e suporte para salvaguarda e financiamento. “O impacto do museu tem que ser local”, conclui Inocêncio. As atividades abertas ao público incluem roteiros de memória.

Capela dos Aflitos. Rua dos Aflitos, 70, Liberdade. São Paulo-SP. instagram.com/museudosaflitos

De 2022 para cá, o Museu dos Aflitos tem atuado a partir da Capela dos Aflitos, que passa por um processo de restauro: um tapume ilustrado pela artista Marilia Marz convida a comunidade a redescobrir esse espaço tão simbólico da cidade de São Paulo.

Nilton Fukuda

ALMANAQUE

MUSEU MEMÓRIA DO BIXIGA

Em 1979, o arquiteto e museólogo Júlio Abe Wakahara (1941-2020) organizou a exposição Museu de Rua do Bixiga, para a qual ouviu 30 moradores do bairro na região central de São Paulo, reunindo depoimentos e fotos. O evento animou a comunidade e o arquiteto conheceu Armandinho Puglisi, que já tinha a intenção de fazer um arquivo histórico local e chamou os vizinhos para doar objetos cotidianos. “Em seis meses, tinha muita coisa”, recorda Paulo Santiago que, ao lado de Puglisi (1931-1994), cofundou o Museu Memória do Bixiga (Mumbi), em 1981. Instalado em um sobrado da União, a instituição enfrenta percalços para sobreviver e, no momento, tenta retomar as atividades, estabelecendo parcerias. O objetivo é recuperar o imóvel e inventariar o acervo, que tem desde uma geladeira do início do século 20 até um antigo tamborim, quadrado, da Escola de Samba Vai-Vai. Atualmente, o Mumbi abre as portas para visitação do público aos finais de semana, pela tarde.

Rua dos Ingleses, 118, Bixiga, São Paulo-SP. instagram.com/mumbixiga

MEMORIAL NEGRO DE ATIBAIA

A cerca de 70 km de São Paulo fica o Memorial Negro de Atibaia, que surge a partir da Associação Cultural Negra Visão, fundada em 2018 e sediada no Quilombo Urbano Negra Visão, no Centro da cidade, com atividades que promovem letramento racial, além de aulas de capoeira, dança africana e contação de histórias. Em 2023, o espaço ganhou a gestão do acervo de peças do então chamado Museu do Escravo, que ficava na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Atibaia. A partir daquele

ano, o Museu Negro faz a salvaguarda e a exposição, buscando ampliar o olhar sobre esse acervo. “Vamos chamar artistas negros para pensarem esses objetos. Temos um dia mensal de Memorial Livre, quando o museu é aberto para visitação geral, e organizamos visitas educativas”, conta Silvana Cotrim, idealizadora do projeto.

Rua Dr. Osvaldo Urioste, 41, Centro. Atibaia-SP. instagram.com/negra.visao

CENTRO DE MEMÓRIA QUEIXADAS – SEBASTIÃO SILVA DE SOUZA

É plantada nos anos 1970 a semente de um projeto que veio ao mundo somente em 2022, a partir da memória da greve mais longa do país, entre 1962 e 1969, na fábrica de cimento Portland, em Perus, região noroeste de São Paulo. Os trabalhadores adotaram o nome “Queixadas” em alusão a um porco-do-mato que tem o hábito de se agrupar frente ao perigo. Lembrar a história operária da região é preservar um legado mantido por moradores, incluindo Sheila Moreira, neta de um dos trabalhadores da época, Sebastião Silva de Souza, que ainda dá nome ao espaço. Ela conta que a ideia de criar um museu comunitário foi aprimorada por décadas e por muitas mãos. Até que a iniciativa saiu do papel há três anos, com ajuda de um edital, e hoje se encontra na Biblioteca Municipal Padre José de Anchieta. O espaço preserva e divulga seu acervo em oficinas, jogos e kits com materiais para as escolas, e também recebe doações.

Biblioteca Municipal Padre José de Anchieta Rua Carlos Santos Xavier de Moraes, 138, Perus. São Paulo-SP. cmqueixadas.com.br

Dentro da Biblioteca Municipal Padre José de Anchieta, em Perus, noroeste da cidade de São Paulo, fica o Centro de Memória Queixadas, que reúne um acervo de histórias sobre os trabalhadores da região.

Formas de fazer e pertencer

No Centro da cidade, onde quase tudo parece urgente, aprendi a reconhecer outra cadência. Entre o vai e vem das ruas, entre as sombras antigas de ruínas e os reflexos dos prédios, há algo que permanece – uma respiração mais lenta, feita de memórias e presenças. Descobri que o Centro não é apenas passagem, mas permanência. Um lugar onde o tempo se acumula em camadas, revelando novas formas de fazer e pertencer.

Estar no Sesc São Bento [antes conhecido como Sesc Florêncio de Abreu], em pleno Triângulo Histórico de São Paulo, é habitar esse tempo sobreposto. Cada esquina e cada viela formadas por edificações aglomeradas guardam ecos de outras épocas: o barulho dos bondes, as vitrines antigas, as vozes que insistem em permanecer. Entre o ruído e o silêncio, a pressa e a pausa, encontro o sentido de estar no Centro. Essa metáfora urbana e arquitetônica reflete, ainda, a alta densidade construtiva, a escassez de áreas verdes e as ilhas de calor. Uma região que carrega em si a identidade, a história e os desafios da cidade.

Por trás do comércio e do trânsito incessante, surge o exercício de viver nesta rede de vidas que se cruzam diariamente: trabalhadores, artistas, moradores antigos, pessoas que, ao longo desses quase quatro anos em que atuo na unidade, reconheço pelo olhar. Neste território, o fazer deixou de ser apenas ação planejada para ser convivência, escuta e partilha. O ato de oferecer tornou-se, acima de tudo, um ato de aprender com o entorno, com as pessoas, com o cenário fragmentado e com as possibilidades que ele revela, como o próprio tempo que se move devagar.

Poeira e fragmento atravessam meu olhar e me ensinam a ver beleza onde antes via desgaste. A poeira não é sinal de abandono, mas de resistência,

vestígio do que persiste, mesmo depois que o novo se instala. Cada fragmento encontrado nas ruas – como um bunker (tem na unidade), caixa forte (bar cofre), uma janela antiga, uma conversa interrompida, o som de um sino distante – é parte de uma narrativa ainda viva. Recolher esses pedaços é um gesto de cuidado, uma tentativa de recompor pertencimentos.

O trabalho que realizo no Sesc São Bento vai além das quatro paredes do equipamento. Acontece nas praças, calçadas, ruas, no Mercadão, no pátio do metrô, no Vale do Anhangabaú, nos becos e vielas do entorno. É neste território de encontros breves e afetos discretos que percebo a cidade em sua potência mais humana. Aqui, fazer e oferecer é criar vínculos, valorizar a diversidade e reconhecer que o cotidiano também é patrimônio.

Cada oficina, mediação ou atividade realizada é, de algum modo, uma tentativa de reconstruir fragmentos de histórias, gestos e presenças. É convidar as pessoas a enxergar o Centro não apenas como lugar de passagem, mas como espaço de vida, troca e pertencimento.

Com o tempo, percebo que a cidade também me transforma. Ela me ensina a escutar com mais atenção, a reconhecer, a reinventar formas de existir em comunidade. Entre o peso da história e a leveza do cotidiano, encontro no Sesc São Bento um território de equilíbrio, um ponto onde memória e reinvenção caminham juntas, na ressignificação dessa trajetória do equipamento e da própria cidade. Sigo descobrindo maneiras mais próximas, sensíveis e humanas que ajudam a construir presença no território. Porque, no fim, o que o Centro me revela é simples e essencial: é nele que a cidade, teimosamente, se refaz todos os dias.

Mario Luiz Alves de Matos é contabilista, administrador de empresas, gestor cultural e gerente do Sesc São Bento.

Túlio Cerquize
DEZEMBRO 2025
Kazuo Kijihara (foto); Túlio Cerquize (colagem)

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