Este livro é resultado da conferência Imagem + política + estética: territórios fuidos do contemporâneo. Sua distribuição é gratuita, sendo proibida a venda. O conteúdo pode ser reproduzido e divulgado, total ou parcialmente, desde que citada a fonte. As autoras e os autores dos textos solicitaram permissão para reproduzir as imagens exclusivamente nesta obra, portanto, sua utilização por terceiros é proibida.
Organização e revisão de conteúdo
Ludimilla Carvalho e Nina Velasco e Cruz
Revisão
Thais Faria
Tradução
Catarina Andrade e Gustavo Táriba
Projeto gráfco e diagramação
Rodrigo Sarmento
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) I m a g e m , e s t é t i c a , p o l i t i c a [ l i v r o e l e t r ô n i c o ] : t e r r i t ó r i o s f l u i d o s d o c o n t e m p o r â n e o / o r g a n i z a ç ã o L u d i m i l l a C a r v a l h o , N i n a V e l a s c o e C r u z . - - R e c i f e , P E : E d . d a s A u t o r a s , 2 0 2 2 . P D F .
B i b l i o g r a f i a .
I S B N 9 7 8 - 6 5 - 0 0 - 4 0 7 8 0 - 8
1 . E s t é t i c a 2 . I m a g e m 3 . Po l í t i c a 4 . T e c n o l o g i a
5 . T e c n o l o g i a d i g i t a l I . C a r v a l h o , L u d i m i l l a .
I I C r u z , N i n a V e l a s c o e
A l i n e G r a z i e l e B e n i t e z - B i b l i o t e c á r i a - C R B - 1 / 3 1 2 9 ´
Índices para catálogo sistemático:
1 . I m a g e n s : E s t u d o s : C o m u n i c a ç ã o 3 0 2 . 2
APRESENTAÇÃO
Ludimilla Carvalho e Nina Velasco e Cruz
Em 2019, antes de nos depararmos com a pandemia do coronavírus que ainda vivenciamos, e que assola a todos e todas mundo afora, idealizamos a conferência Imagem+política+estética: terrirórios fuidos do contemporâneo. O projeto previa o intercâmbio entre pesquisadores interessados nos trânsitos, atravessamentos e reconfgurações da imagem contemporânea, um fértil campo de pesquisa que transpassa os campos do cinema, da fotografa, do vídeo, da performance, e das artes visuais. Nossa ideia era promover um diálogo, e ao mesmo tempo estabelecer parcerias, promovendo ainda a circulação de ideias através das apresentações de trabalhos.
O projeto recebeu apoio do Consulado da França para o Nordeste, por meio de um edital especifcamente voltado à realização de eventos, envolvendo pesquisadores de Brasil e França. Pensado inicialmente para ocorrer presencialmente, no ano de 2020, o evento acabou ocorrendo em formato remoto, em novembro de 2021. Contudo, mantivemos o espírito da interlocução entre Brasil e França e contamos com a participação de pesquisadores de diferentes estados brasileiros, com abordagens originais nas propostas apresentadas à conferência, em torno do tema “Hibridismo e imagem”. Realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE (PPGCOM-UFPE), com o apoio do referido consulado, e ainda, da própria UFPE, no que tange aos recursos fnanceiros, o resultado mais concreto do que foi apresentado na conferência é agora compartilhado através deste ebook, de distribuição e acesso gratuitos. Para nós é uma satisfação fnalizar este projeto, com um material consistente, realizado com empenho e seriedade, e através de parcerias preciosas. A todos e todas que nos ajudaram nessa empreitada, o nosso muito obrigada.
Os textos que compõem o livro são desdobramentos da conferência que aprofundam os debates propostos em cada trabalho, em um total de seis artigos. Atencedendo esses textos, temos um artigo de autoria do professor e pesquisador Philippe Dubois, que condensa as ideias trazidas por ele na palestra de encerramento do evento. Assim, em “Identidade e fronteira entre meios: a representação do movimento na fotografa e no cinema”, Philippe Dubois apresenta uma discussão teórica que pretende dar conta da “crise identitária” dos meios fotográfcos e cinematográfcos no cenário híbrido contemporâneo. Partindo de um apanhado histórico da discussão ontológica da teoria da Fotografa e da teoria do Cinema, Dubois ressalta a importância que o movimento (ou a falta dele) teve para que fosse estabelecido o elemento diferencial entre esses dois meios. Resgatando autores como Roland Barthes, André Bazin e Gilles Deleuze, assim como as experiências de pioneiros como Marey, Daguerre e Vertov, Dubois demonstra que a grande importância dada ao movimento para a busca de um diferencial entre Cinema e Fotografa no projeto ontológico, na realidade deixa escapar o quanto essas duas linguagens na realidade sempre lidaram com uma temporalidade fuida e maleável. O autor propõe, ao fnal, que as experiências que hoje se colocam como fronteiriças ou híbridas por natureza, muitas vezes associadas à “virada digital”, as práticas “pós-fotográfcas” (como em trabalhos de David Claerbout, Sam Taylor Wood e Douglas Gordon, entre outros) ou “pós-cinematográfcas” (como o cinema de Alexander Sokourov ou Gus Van Sant, por exemplo), sejam vistas não como uma ruptura em relação a essa identidade essencialista criada pelo discurso ontológico, mas sim como uma exploração de uma temporalidade potencialmente elástica e modulável já percebida por autores como Jean Epstein, desde os primeiros anos do cinema.
Após o trabalho de Dubois, o ebook se divide em duas sessões, estruturadas de acordo com a afnidade temática e conceitual dos trabalhos apresentados. Na primeira delas, intitulada “Imagem e hibridismo: revisões, problematizações e leituras críti-
cas”, os trabalhos de Caio Dayrell Santos, Josué Victor dos Santos Gomes e Fernando Gonçalves trazem refexões que ora revisitam, ora reconfguram, ora criticam as noções de híbrido, partindo de análises de objetos da cultura visual contemporânea da América Latina. Da fotografa, à performance, passando por vídeo, instalação, e cinema, os textos formam um interessante bloco de discussões que enfatizam a perspectiva da decolonialidade, que vem sendo fortemente utilizada para repensar os modelos estéticos e a produção artística nos territórios onde o passado colonial marca decisivamente as representações simbólicas.
O artigo de Caio Dayrell Santos, “Estética ch’ixi e ética não colonial nos retratos de Héroes del Brillo”, nos leva a pensar estratégias mais horizontalizadas de construção da imagem de grupos marginalizados socialmente, no âmbito específco da fotografa documental latino-americana, partindo da proposição da estética ch’ixi (de Silvia Cusicanqui), que sugere compreendermos a mescla de elementos diversos através de um processo que preserva suas diferenças e contradições. A estética ch’ixi tece uma crítica à noção de híbrido, que por sua vez, conserva uma ideia de fusão de elementos díspares, tendendo para o apagamento das particularidades de cada um desses elementos. Em seu texto, o autor discute o processo de elaboração e a visualidade do fotolivro Héroes del Brillo (2018), do fotógrafo uruguaio Federico Estol, que enfoca o cotidiano dos engraxates bolivianos, conhecidos como lustrabotas. Através de uma narrativa fccional e de um método colaborativo de produção das imagens que envolveu os retratados, o fotolivro situa-se como alternativa de abordagem a um modelo de representação fotográfca objetifcador e estereotipado dos sujeitos colocados diante da câmera. Ao esmiuçar o processo de feitura do trabalho, Caio Santos apresenta-nos um projeto que aponta um caminho possível para a fotografa documental, sob uma perspectiva experimental, dialógica e não colonial.
Na sequência, o texto de Josué Victor dos Santos Gomes analisa o curta-metragem Pontes Sobre abismos (2017), da artista visual Aline Motta. Na tentativa de desvendar suas próprias origens, Aline Motta aciona diferentes mídias (fotografas, imagens em movimento, documentos escritos) para construir uma narrativa sobre identidade e memória ainda não contada. No percurso, ela descobre que sua avó, uma mulher negra, não havia sido registrada por seu pai, um homem branco. Para o autor, a estratégia criativa da artista carioca, que precisa lidar com lacunas e apagamentos, revela as formas operativas do racismo e seus impactos sobre as identidades das pessoas negras, já que todo o processo de construção do flme é permeado pela falta ou imprecisão de informações e pela ambiguidade de querer celebrar uma ancestralidade que é motivo de orgulho, mas ao mesmo tempo, se vê atravessada pelo contexto da escravidão e seus desdobramentos de dimensões materiais, afetivas e simbólicas.
Em “Tecendo memórias: busca da identidade em Pontes Sobre Abismos (2017)”, Josué Victor dos Santos Gomes sugere que o curta-metragem utiliza uma estratégia multisemiótica que serve como alternativa à incapacidade dos arquivos públicos e privados de oferecerem às pessoas racializadas o direito de recuperarem suas memórias. Nesse sentido, enquanto se entende a raça como categoria que historicamente serviu para valorizar indivíduos brancos, deixando negros, indígenas e mestiços em um lugar de subalternidade, também seria possível entendê-la como lugar de onde partem gestos de subversão dessa lógica, pois é um marcador que aglutina diversos indivíduos desapropriados de seus corpos, territórios e saberes pelos processos colonizatórios. Pontes Sobre Abismos seria, portanto, um exemplo dessa possibilidade de escrita de narrativas outras, que parte da experiência de uma identidade racializada que lida com as consequências dos apagamentos, e que, justamente por essa condição, é capaz de confrontá-los, buscando formas de expressão que posicionam criticamente as diferenças, contradições e anseios dessa mesma identidade.
O artigo de Fernando Gonçalves, “Ferida colonial e a cura pelas imagens em Ayrson Heráclito” fecha o primeiro bloco de refexões sobre hibridismo e imagem, investigando obras de Ayrson Heráclito. O trabalho do artista, curador, pesquisador e professor baiano, que utiliza em sua prática imagens fxas, móveis, instalações e performances, é analisado através de obras presentes na exposição Yorùbáiano, montada no Museu de Arte do Rio-MAR (agosto/2021 a março/2022). O autor propõe que, na produção de Ayrson Heráclito, a imagem atua como dispositivo ritualístico que põe em questão o trauma colonial nas suas dimensões materiais, subjetivas e simbólicas, e se constitui como possibilidade de “cura” desse trauma. A imagem não seria aqui utilizada para uma mera contemplação, mas como forma de ativar as sensibilidades, práticas e elementos da cultura afro-brasileira. Por meio da materialidade das imagens e de objetos utilizados pelo artista se presentifca a memória do empreendimento colonial, e ao mesmo tempo, nas soluções poéticas e modos de apresentação das obras, encontramos a resposta que funcionaria como “cura”. A articulação entre imagens e objetos na obra de Heráclito caracterizaria uma forma de tornar vivas as culturas afro-diaspóricas, em signos imagéticos e materiais que fazem referência direta às religiões, culinárias, geografas, saberes e histórias resultantes do contato entre África e Brasil. Assim é que, por meio das análises de Sacudimentos (2015-2020), Bori (2009), O pintor e a paisagem (2011) e Transmutação da carne (1994-2000) Fernando Gonçalves compreende que as obras em questão confguram uma maneira poética e política de validar e afrmar modos de ser e epistemes alternativas à racionalidade ocidental eurocentrada.
Na segunda parte do livro, temos a sessão ”Imagem e hibridismo: tecnologias, política e gestos artísticos”, na qual os artigos estão mais direcionados ao debate sobre hibridismo nos campos do cinema e do audiovisual. Em “Projetemos: imagens de resistência em projeções mapeadas”, Fernanda Regina Rios Assis discute o uso de projeções em fachadas de prédios, muros e empenas, como alternativa de gesto
político-artístico, que no contexto específco da pandemia do coronavírus substitui manifestações de rua, como passeatas e protestos. O artigo investiga, a partir do estudo de caso do trabalho desenvolvido pelo grupo Projetemos - Rede Nacional de Projecionistas Livres, como o debate político e as atividades de mídiartivismo se articulam em tempos de pandemia, migrando das ruas para as redes sociais. A estratégia utilizada pelo grupo ultrapassa a efemeridade do momento da projeção, perpetuando-se na internet, através de espaços como o Instagram, Facebook, site e Twitter do grupo. A experiência do Projetemos utiliza a internet para disseminar o conteúdo projetado no espaço público, ampliando seu raio de ação, mas também estimula os usuários da rede a produzirem suas próprias mensagens e imagens de cunho político, em uma interessante proposta que compartilha o gesto criativo com seus receptores.
Em “Transfauna: os seres híbridos na flmografa de Brígida Baltar”, Fernanda Bastos discorre sobre os diversos personagens que habitam o universo poético de Brígida Baltar, como a mulher-caranguejo, a mulhe-árvore, o homem-amor-pássaro e o cavalo-cavaleiro. A presença, o comportamento e a confguração física desses personagens indicam alguns temas importantes da produção da artista: a metamorfose dos corpos, a criação de seres híbridos e de universos fantásticos, o potencial transformador da imaginação diante do real, e a própria transitoriedade das coisas e da vida. Com base na análise dos flmes Quando fui carpa e quase virei dragão (2004), Maria Farinha Ghost Crab (2004), Maria Farinha Ghost Crab II e III (2019), Fragmentos I e II (2019), O canto do pássaro rebelde (2012), Eles saem das histórias (2012-2019), a autora ressalta a natureza transitória, efêmera e mutável desses seres e classifca os trabalhos como “transfaunas”: transitando entre cinema, vídeo e arte contemporânea, situando-se entre a fábula e o devaneio, evocando a possibilidade de seres humanos e não-humanos. Fernanda Bastos, que trabalhou na remasterização e organização da obra fílmica de Brígida Baltar, refete frequentemente sobre os recur-
sos de montagem, a importância dos fgurinos, aspectos técnicos dos equipamentos de flmagem, ou mesmo sobre o uso do som como elemento dissonante, enfatizando como essas questões se relacionam com a noção de hibridismo e reforçam o tom onírico e às vezes fantasmático das obras.
O artigo que dá sequência a esta sessão e fnaliza o ebook, de Natasha Marzliak e Ricardo Lessa Filho, é “A fabulação e a imagem híbrida no documentário experimental Fala, mulher!”. Se a fábula era tema central na flmografa de Brígida Baltar, aqui o tema ganha uma infexão mais explicitamente política, na medida em que é o recurso das personagens do flme (mulheres negras e moradoras da periferia de São Paulo) para ganharem voz. O flme Fala, mulher! (2005), dirigido por Kika Nicoleta e Graciela Rodriguez, se apoia em hibridações entre cinema e vídeo, utilizando ainda criativamente a fotografa, o desenho e também a escrita. A narrativa não-linear, o emprego da câmera lenta e do congelamento de planos, a estética pontuada de efeitos de justaposição, multiplicação, o uso de colagens e imagens deformadas, são algumas das características que permitem um jogo que, inspirado na metodologia do cinema verdade e na poética do vídeo, denuncia a presença do dispositivo cinematográfco (contrariando a ilusão da transparência do meio) para romper o limite do real e atingir a fabulação. É nesse ponto que, segundo os autores, as quinze mulheres que se apresentam como centro do documentário tornam-se sujeitas, operando através de seus desejos e subjetividades, gestos e falas, formas de resistência que permitem a elas a reinvenção de si mesmas e a construção de discursos alternativos às representações de subalternidade.
Do original: Identité et frontière entre médiums: la représentation du mouvement en photographie et au cinéma.
Tradução de Catarina Andrade e Gustavo Táriba.
Desde seus surgimentos no mundo das imagens, devidamente celebrada em seu tempo, a cada vez, como uma revolução das técnicas, das formas e dos pensamentos da representação visual do mundo e até o fm do século XX, onde suas forças e suas especifcidades (identitárias) mais ou menos se desvaneceram, diluídas na emergência do “todo imagem” proporcionado pelo digital, a Fotografa e o Cinema foram consideradas, historicamente e essencialmente, como as duas artes maiores da modernidade, as duas grandes formas da imagem tecnológica moderna. Gostaria de examinar aqui como foi instituída a identidade relativa desses dois meios (pelo menos um de seu aspecto, central), e observar em particular como sua cartografa teórica (muitas vezes ontologizada) foi construída em termos de fronteiras sobre uma base simples, simplista até, de oposição constantemente reafrmada: a oposição entre a imobilidade da primeira diante da mobilidade da segunda.
Fotografa vs. Cinema. A imagem fxa contra a imagem em movimento. O instantâneo contra a verdadeira duração. O tempo-imobilizante contra o tempo-fuxo. Barthes contra Deleuze. Tudo foi feito, durante (pelo menos) um século, para colocar essas duas formas/matérias de representação uma contra a outra. A identidade de uma (o cinema) constituindo-se como excedente da identidade da outra (a fotografa). E vice-versa. Veremos que são, na realidade, duas concepções do tempo em imagens que são assim construídas, historicamente e esteticamente, nutrindo-se mutuamente dessa oposição empírica entre movimento e imobilidade. E veremos também, in fne, que é esse foco maniqueísta, esta fronteira identitária entre os dois meios, que se fragmenta no contemporâneo; nosso momento mostra que essa oposição fundadora não é apenas problemática, mas também aporética, e que formas intermediárias, muito diversas, não pararam de colocar essa divisão em crise ao longo da história. Sobretudo hoje, na era da imagem digital, a imobilidade e o movimento longe de serem exclusivos, são simplesmente modulações (contínuas)
de uma fguração do tempo em si mesmo (ou seja, uma forma de tempo visível apenas nas e pelas imagens). Isso ocorre de tal maneira, que, talvez “fotografa” e “cinema” não sejam mais hoje em dia as palavras adequadas para designar as práticas contemporâneas da imagem, pois estas últimas passam facilmente de uma função à outra (da imobilidade ao movimento), como uma modulação infnitamente variável entre as posições que em nada mais se opõem.
A imobilidade fotográfica: uma identidade “esculpida”
Comecemos pelo momento histórico da emergência da fotografa. Conhecemos, isso já foi comentado e teorizado mil vezes, o primeiro traço identitário da novidade fotográfca, ligado à sua gênese, ao seu processo constitutivo: uma imagem automática, “archeiropoiete” (feita sem a intervenção da mão humana), obtida por uma transferência maquínica, física e química, das aparições luminosas sobre um suporte fotossensível que as registra “tal como são”. É a maior diferença em relação à imagem pintada ou desenhada, feita à mão, inscrita laboriosamente e
progressivamente por uma intervenção humana, logo subjetiva, que produz um artefato interpretado. É o princípio da marca direta, da impressão luminosa feita de uma só vez, da “emanação do referente”1, do “isso-foi” barthesiano – que foi teorizado e desenvolvido nos anos 1980, pelo conceito peirciano de index2. De François Arago, no seu discurso fundador do 03 de julho de 1839 na Câmera dos deputados para apresentar a invenção de Nièpce e Daguerre, a Roland Barthes, um século mais tarde em A Câmara Clara (1980), e a todos os teóricos do index que lhe seguiram, esse princípio da transferência maquínica de aparências foi constantemente retomado e repetido, tornando-se, forçosamente, a expressão de uma primeira ontologia identitária do meio fotográfco. Não voltemos a isso, não é disso que quero falar aqui3.
Nós enfatizamos (um pouco) menos o segundo traço característico – logo também identitário – da imagem fotográfca: sua relação contínua com a ideia de imobilidade. Esse é estruturado em múltiplas fases, que fzeram evoluir, como veremos, a ideia de imobilidade sobre a de imobilização, em relação à visibilidade (do movimento) que foi progressivamente invertido. Mas sempre
1. “A foto é literalmente uma emanação do referente. A foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de elo umbilical ligando o corpo da coisa fotografada ao meu olhar.” Barthes, Roland. La Chambre claire. Paris: Gallimard, 1980.
2. Neste trecho em que Dubois estabelece uma ligação entre o advento da fotografa em 1839 e os escritos de Barthes (dos anos 1980), decidimos manter a data original da publicação em respeito à ênfase dada pelo autor à cronologia de teorizações referentes ao index, como entendimento sobre a natureza automática da fotografa. Contudo, nas citações diretas ao canônico livro de Barthes, utilizaremos como referência a edição brasileira, publicada em 2015, pela editora Nova Fronteira. [N. T.].
3. Para um olhar mais atualizado sobre essa questão, vamos nos remeter ao colóquio Où en sont les théories de la Photographie ? (Onde estão as teorias da Fotografa?) que aconteceu no Centro Pompidou, em maio de 2015, e ao penúltimo número da revista Études photographiques (n.34, Printemps, 2016), que retomou algumas intervenções com o título “Que dit la théorie de la photographie ?” (Que diz a teoria da fotografa?).
a fotografa e a imobilidade estiveram intimamente ligadas. Lembremos brevemente a trajetória dessa relação “fundamental”. Na origem, como sabemos, a imagem fotográfca, com seu tempo muito longo de exposição (vários minutos, até dezenas de minutos, para o daguerreótipo) conseguia registrar apenas as coisas devidamente imóveis. Tudo o que estivesse em movimento passava, escorregava, não deixava (ou deixava quase nenhum) traço na imagem (ao contrário, às vezes, um borrão de movimento, por exemplo). Todo mundo conhece o célebre daguerreótipo de Daguerre, Rue du Faubourg du Temple, 1839, no qual, em uma vista geral em plongée dessa rua parisiense, sempre bastante frequentada, nenhum passante, nenhum transporte aparece, com a exceção notável de uma vaga silhueta, em primeiro plano, de um personagem encerando os sapatos (na verdade, ele é o único que fcou tempo sufciente no mesmo lugar para ser fxado relativamente na imagem e deixar sua marca borrada). A partir de então, há uma recorrência sistemática nessas primeiras fotografas (em suma, antes de 1850) de todos os motivos imóveis: paisagens, arquitetura, interiores, objetos, natureza (porém, morta). O retrato (portrait) não era possível, a não ser na imobilidade forçada do sujeito (ou neste único gênero, muito especial: o retrato pós-morte – uma verdadeira natureza morta). O movimento era então ilusório, invisível. E tudo (toda a visibilidade) repousava sobre a imobilidade imposta dos sujeitos. A instrução de base para uma tomada de vista era, com uma força imperativa de necessidade: “Não mexa mais!”.
Posteriormente, as técnicas da tomada e principalmente a fotossensibilização dos suportes (a química fotográfca) evoluíram no sentido de uma maior velocidade (do betume da judéia de Nièpce ao iodeto de prata de Daguerre, depois ao colódio úmido e, a seguir, ao brometo de gelatina), os tempos de exposição foram gradualmente encurtados e evoluímos para exposições de menos de um minuto, depois de alguns segundos e, ainda, de menos de um segundo (por exemplo, com um outro célebre cli-
chê, de Charles Nègre, representando pela primeira vez em 1851 um grupo de limpadores de chaminés caminhando no cais do rio Saône em Lyon – a primeira captação de um movimento visível na imagem), para chegarmos, enfm, ao que foi chamada “tomada instantânea”. Essa lenta evolução na (nítida) compreensão de um movimento rápido corresponde ao que André Gunthert chamou de “a conquista do instantâneo”4, que só se constituiu, tecnicamente e completamente, na segunda metade, ou mesmo no último quarto, do século XIX, quase meio século após o nascimento desse meio. Foi necessário muito tempo para que pudéssemos fnalmente abandonar a relativa imobilidade dos sujeitos e fotografar de forma plena, clara, nítida, o movimento, ou seja, os deslocamentos, as corridas, a mobilidade dos corpos e dos objetos, em seus desdobramentos espaço-temporais.
Mas justamente, essa captura instantânea do movimento vai, paradoxalmente, congelá-lo em pose visual, em uma imagem parada, como um símbolo fxista dos movimentos do mundo.
Entre o “instante qualquer” e o “instante pregnante” (no sentido de Lessing5), a estética do
4. Gunthert, André. La Conquête de l’instantané: Archéologie de l’imaginaire photographique en France, 18411895, tese de doutorado em História da Arte, sob orientação de Louis Marin/Hubert Damisch, EHESS, 1999. Ver também, do mesmo autor, Photographie et temporalité: Histoire culturelle du temps de pose. Images re-vues: Histoire, anthropologie et théorie de l’art, n.1, 2008. Ver ainda, o catálogo da exposição La Révolution de la photographie instantanée (1880-1900), organizada por André Gunthert e Sylvie Aubenas, na Biblioteca Nacional da França, em Paris, em 1996.
5. Cf. Lessing, 1998. [N.T.].
instantâneo “congelado” vai rapidamente se impor e reinar sobre a fotografa a partir do fnal do século XIX e, especialmente, ao longo de toda a primeira metade do século XX, a ponto de se tornar quase uma espécie de nova identidade para o meio (“a fotografa é o instantâneo”).
Esta visão se impõe tanto nas “cenas da vida tomadas no momento vivido” (Jacques Henri Lartigue, por exemplo) como na (e pela) estética do “instante decisivo” defendida por Henri Cartier-Bresson, e certamente por todo o fotojornalismo (para cuja ideologia fornece a base instrumental). Finalmente, esse pensamento de um instante-tempo exemplar (e congelado), que devemos saber apreender como uma verdade formal do mundo ou do acontecimento, vai desenvolver e afrmar uma outra relação com a ideia de imobilidade fotográfca, não como no início, a imobilidade forçada do sujeito durante o longo tempo da tomada (o apagamento e a invisibilidade do movimento), mas a da imobilização fnal na imagem, exemplifcada, sobre-visibilizada pela imobilização do instante-de-movimento
6. Ver sobre a relação entre petrifcação e o congelamento do tempo: Dubois, Philippe. Histórias de sombra e mitologias de espelhos e O golpe do corte. In: O ato fotográfco e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993, p. 109-177. [N.T.].
na eternidade-da-representação. O instantâneo fotográfco imobiliza, solidifca o movimento na fxação da imagem. Torna-se uma escultura do tempo pelo instante captado na imagem imobilizante. É o efeito de petrifcação do instantâneo, seu “efeito-Medusa”, frequentemente referido, e que aproxima tanto a fotografa da ideia de escultura (a solidifcação visual “em um golpe/clique”6). Pois esta é a segunda dimensão da imobilidade fotográfca: sua duração imagética. O instante, o movimento, congela-se, claro, mas para sempre, na eternidade (relativa) da representação. E essa duração (imóvel) do instante, paradoxal, torna-se assim, flosofcamente, uma luta contra o tempo, isto é, contra a morte. É sem dúvida André Bazin, no seu célebre texto de 1945, precisamente em Ontologia da imagem fotográfca, quem melhor formula esta dimensão evocando o que ele denomina “o complexo da múmia”:
Na origem da pintura e da escultura, descobriria o “complexo” da múmia. A religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava a sobrevivência à perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar artifcialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida. (BAZIN, 1991, p.19)7
E podemos considerar que a posição de um Roland Barthes em 1980, em a Câmara Clara, marcará, por sua vez, uma espécie de culminação dessa postura flosófca sobre a eterna imobilização/imobilidade da fotografa. Para Barthes, que fala, recordemos, neste livro testamentário, de uma prática fotográfca ainda totalmente analógica (ele é um dos últimos grandes pensadores da imagem antes do surgimento da fotografa digital), a fotografa está marcada, desde o seu fundamento mesmo, pela potência mortal (a potência do luto)
7. Bazin, André. Ontologia da imagem fotográfca. In: O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 19.
que inevitavelmente envolve o princípio do “isso-foi” (BARTHES, 2015). O que vejo na imagem necessariamente esteve ali, há pouco ou muito tempo atrás, um dia na frente das lentes do fotógrafo. O objeto da foto é “transferido” para lá, e seu congelamento “tal como visto”, sua petrifcação, sua mumifcação, sua fossilização, sua eternização pela imagem, nos faz entender que essa coisa, com certeza “isso-foi”, mas também “isso não é mais”, desapareceu, para todo o sempre, diante da sua representação-fetiche, que ao mesmo tempo o coloca, inevitavelmente, junto dos ausentes – ou seja, da Morte, inscrita na e pela própria imagem. São várias as passagens em A Câmara Clara8 em que essa potência mortal da imobilização eternizada da foto é afrmada:
8. Barthes, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
O que funda a natureza da fotografa é a pose. [...] ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse instante, por mais breve que seja, no qual uma coisa real se encontrou imóvel diante do olho. Reporto a imobilidade da foto presente à tomada passada, e é essa interrupção que constitui a pose. [...] se a fotografa se torna então horrível, é porque ela certifca, se assim podemos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta. [...] ao deportar esse real para o passado (“isso-foi”), ela sugere que
ele já está morto. [...] Pois a imobilidade da foto é o resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo. [...]
Todos esses jovens fotógrafos que se movimentam no mundo, dedicando-se à captura da atualidade, não sabem que são agentes da Morte. É o modo como nosso tempo assume a Morte: sob o álibi denegador do perdidamente vivo [...] Se (a morte) não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez essa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida. [...] As sociedades antigas procuravam fazer com que a lembrança, substituto da vida, fosse eterna e que pelo menos a coisa que falasse da Morte fosse imortal: era o Monumento. Mas ao fazer fotografa, mortal, o testemunho geral e como que natural “daquilo que foi”, a sociedade moderna renunciou ao Monumento. [...]
Diante da foto da minha mãe criança eu me digo: ela vai morrer: estremeço, tal como psicótico de Winnicott, por uma catástrofe que já ocorreu9. Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografa é essa catástrofe.
(BARTHES, 2015, p. 68-81)
9. Os grifos nas citações são de Roland Barthes. [N. T.]
Vemos assim, no fnal desta primeira fase da nossa trajetória, que nos conduziu da busca pela imobilidade das origens (devido à invisibilidade do movimento na imagem) à imobilização notável do instantâneo e à sua mumifcação eternizante e mortal no “isso-foi”, vemos que a identidade do meio fotografa não deixou de se constituir, de uma forma ou de outra, mas com constância e obstinação ao longo das décadas, em torno desta ideia fundamental da imobilidade na e pela imagem. Este é o nosso ponto de partida.
O movimento cinematográfico ou o cinema “animista”: a identidade exposta
Passemos agora àquele outro momento histórico que constituiu o surgimento do Cinema tendo como pano de fundo a presença da Fotografa. Não vou falar muito aqui da passagem de um para o outro através das invenções técnicas. Por exemplo, do papel desempenhado a este respeito por uma fgura como Etienne-Jules Marey, no último quarto do século XIX, não evocarei a passagem da “cronofotografa sobre placa fxa” (a análise do movimento pela decomposição em imagens estáticas das diferentes fases sucessivas de um movimento de locomoção humana ou animal) para a “cronofotografa sobre película móvel” (ou “flmes cronofotográfcos”, que não eram projetados, mas cuja velocidade de rolagem manual oferecia uma visão em movimento – variável – da decomposição)10 .
10. Os “flmes” de Marey (chamados bandas cronofotográfcas) foram restaurados no início dos anos 2000 pela Cinemateca Francesa, pelo Arquivos do flme e pelo Laboratório Neyrac, e agora estão disponíveis em DVD (são mais de 400) em uma versão “de diferentes velocidades de rodagem”. Sobre esse ponto, ver meu artigo La question des régimes de vitesse des images. D’Etienne-Jules Marey à David Claerbout: au-delà de l’opposition entre photographie et cinéma (A questão dos regimes de velocidade de imagens de Etienne-Jules Marey a David Claerbout: para além da oposição entre fotografa e cinema), nos anais do colóquio de Roma 3, intitulado La photographie et les cultures visuelles du XXIème siècle. Le tournant iconique et l’Italie (A fotografa e as culturas visuais do século 21. A virada icônica e a Itália), organizado por Enrico Menduni, em dezembro de 2014.
Prefro evocar, para começar, essa técnica de projeção das primeiras vistas dos Lumières que consistia em colocar a primeira imagem (o primeiro fotograma) do flme no projetor (na época não havia nada que antecedesse/que desse início à imagem do flme/que marcasse o começo) enquanto o público se acomodava. E então, antes de começar a projeção, antes do primeiro giro da manivela, o espectador via uma imagem fxa na tela, uma fotografa projetada, que “estava lá”, claramente visível, imóvel, como se estivesse esperando, e que, em seguida, apenas em um segundo momento, de repente ganhava vida, desenvolvia-se no movimento, quando o projetor era colocado em movimento. Uma sensação de perplexidade, e mesmo de deslumbramento, sempre muito marcante, diante desse nascimento do movimento a partir da imobilidade. Sensação frequentemente enfatizada em comentários da época:
Os Lumières, pai e flho, de Lyon, convidaram ontem à noite a imprensa para a inauguração de um espetáculo verdadeiramente estranho e novo, cuja estreia foi reservada ao público parisiense. Imaginem uma tela, colocada no fundo de uma sala tão grande quanto se possa imaginar. Essa tela é visível para uma multidão. Na tela, aparece uma projeção fotográfca. Até agora nada de novo. Mas, de repente, a imagem, de tamanho natural ou reduzida de acordo com o tamanho da cena, se anima e ganha vida. É uma porta de ofcina que se abre e deixa sair uma enxurrada de trabalhadores com bicicletas, cachorros correndo, carros; tudo isso se agita e enxameia. É a própria vida, é o movimento tomado no instante. A fotografa deixou de fxar a imobilidade. Ele perpetua a imagem do movimento. A beleza da invenção reside na novidade e na engenhosidade do dispositivo. Quando esses aparelhos forem entregues ao público, quando
todos puderem fotografar os seres que lhes são queridos, não mais em sua forma imóvel, mas em seu movimento, em sua ação, em seus gestos familiares, com a palavra na ponta língua, então a morte deixará de ser absoluta11. (LA POSTE, 1895, tradução nossa)
Esse comentário admirável é literalmente esclarecedor sobre nossa questão. Ele mostra, como muitos outros da mesma época e desse mesmo tipo – por exemplo, a famosa exclamação “As folhas se mexem!”, lançada à visão do movimento dos arbustos de fundo do plano, agitados pelo vento no flme dos Lumière, A Refeição do Bebê (1895) – que o espectador de imagens fotográfcas não tinha consciência desse movimento das folhas do arbusto nas fotos. O cinema emergente literalmente lhe revela, faz saltar aos seus olhos, que a novidade do Cinema(tógrafo) é elaborada, desde a origem, no aparecimento mágico do movimento na fotografa. O movimento de um nega, derruba, ultrapassa, cancela a imobilidade do outro. A grande fronteira, a clivagem maior entre os dois meios acaba de ser criada, demarcada,
11. Cronista anônimo, La Poste, 30 de dezembro de 1895.
estabelecendo uma linha de demarcação que vai perdurar, e se mostrar como fundadora para os dois territórios. Para um, a imobilidade escultural do instante solidifcado na e pela imagem. Para o outro, o movimento, o fuxo, o escoamento, a vida. Para um, o instante apreendido e eternizado, para outro a “verdadeira duração” fenomenológica que nunca para de passar (o conceito de “verdadeira duração” foi forjado na mesma época por Henri Bergson, em perfeita sintonia com o pensamento do tempo cinematográfco)12. O cinema(tógrafo) funda sua identidade como meio para ir além da identidade fotográfca. O cronista anônimo o expressa muito bem: “A cena se anima e ganha vida”, “é a própria vida” (também lembramos que é exatamente a mesma fórmula que Jean Epstein pegará de Edgard Allan Poe em um êxito de A queda da casa de Usher para designar o efeito de “tableau vivant” do retrato flmado: “na verdade, é a própria vida!”). Diferentemente da fotogra12. Eis a famosa passagem em que Bergson defne a “verdadeira duração”: “Alguma vez pensamos na verdadeira duração? A aquisição direta é necessária. Não chegaremos à duração por um desvio: é necessário nos fxarmos nela desde o início. É isso que a inteligência muitas vezes se recusa a fazer, acostumada que é a pensar no movimento por intermédio do imóvel. Somente essa interioridade nos dá a consciência da verdadeira duração e, portanto, somente essa interioridade torna a duração uma realidade sempre no presente. Há consciência de movimento apenas no sentido presente de movimento se efetuando. O método analítico dos momentos de imobilidade, na medida em que traz o movimento de volta ao espaço percorrido, refere-se ao mesmo tempo ao movimento já efetuado, quer dizer, da ordem do passado – enquanto o movimento é por natureza da ordem do presente, um presente que dura, e no qual se deu e que se estende ao longo do tempo do exercício da consciência”. Bergson, Henri. Creative Evolution. Paris: PUF, 1911, p. 298.
fa que imobiliza/mortaliza toda a vida na imagem, no cinema não há natureza morta. Mesmo os quadros (ou objetos) aparecem como vivos13. Do ponto de vista da fguração do movimento e do pensamento do tempo, o cinema(tógrafo) é inventado identitariamente como uma espécie de negativo da fotografa, pela superação ontológica de sua concepção do tempo em imagem.
Aliás, é nessa aparição fantástica do movimento na e pela imagem, que nasce o grande mito animista do Cinema, mito que, de Jean Epstein a Edgar Morin, perdurará ao longo do século, como bem pressentiu o nosso cronista anônimo de 1895: “quando todos puderem fotografar os seres que lhes são queridos, não mais em sua forma imóvel, mas em seu movimento, em sua ação, em seus gestos familiares, com a palavra na ponta língua, então a morte deixará de ser absoluta”
(Op. cit.). Antecipação perfeita do famoso “complexo de múmias” evocado (anteriormente) por André Bazin a propósito da ontologia da fotografa, e que aqui se
13. Lembremos que nesses primórdios do cinema, o flme de animação fez a sua aparição imediata, em particular com todos aqueles pequenos flmes rodados “imagem por imagem” que colocavam em cena « a vida dos objetos », tomados por uma espécie de auto-locomoção delirante, como por exemplo, L’Auberge du bon repos (Georges Méliès,1903), The Haunted Hotel (John Stuart Blackton,1903), Le mobilier fdèle (Emile Colh,1910), El Hotel électrico (1905) e Déménagement magnétique (1908), ambos de Segundo de Chomon.
encontra quase invertido em seus fundamentos metafísicos. O cinema é a própria vida, porque o seu movimento anima a imagem, tanto no sentido em que a põe em movimento (e ao mesmo tempo o faz aparecer) como onde lhe dá vida, isto é – isto é, onde lhe dá “um sopro”, “uma alma” (anima), tanto quanto um corpo. O cinema, é a vida porque o movimento é a alma do cinema. Jean Epstein terá inúmeras afrmações desse princípio “animista”:
Uma das maiores potências do cinema é o seu animismo. Na tela, não há natureza morta. Os objetos têm atitudes.
As árvores gesticulam. As montanhas, assim como este Etna, signifcam. Cada acessório se torna um personagem.
Os décors se fragmentam e cada uma das suas frações assume uma expressão particular. (EPSTEIN, 1936, p. 134)
O mesmo com muitos outros autores posteriores14: “É verdade que o cinema é o maior apóstolo do animismo” (BILINSKY, 1929, tradução nossa); “O animismo universal é um fato flmológico que não tem equivalente no teatro” (SOURIAU, 1947, tradução nossa); “O cinematógrafo Lumière reviveu, sem trazer à consciência, uma sensibilidade animista ou vitalista” (MORIN, 1956, tradução nossa).
14. Sobre as múltiplas e profundas relações que ligam o cinema ao pensamento animista, leremos com interesse os trabalhos em curso de Teresa Castro, em particular Penser le “cinéma animiste” avec Jean Epstein (Pensar o “cinema animista” com Jean Epstein). In: Thouvenel, Éric; Hamery, Roxane. (Orgs.). Jean Epstein: Actualities et posterités (2016), An Animistic History of the Camera: Filmic Forms and Machinic Subjectivity. In: Cavalotti, Diego; Giordano, Federico; Quaresima, Leonardo. (Orgs.). A History of Cinema Without Names (2016), e o livro coletivo Puissances du végétal et cinéma animiste (Poderes das plantas e cinema animista), organizado por Teresa Castro, Perig Pitrou e Marie Rebesch (2020).
A identidade dividia do cinema: a oposição entre dois pensamentos do tempo e do movimento (Lumière
vs. Marey)
Mas é preciso ver que essa ideia animista do cinema como movimento vital é, de fato, desde a origem, marcada por uma tensão entre duas posturas completamente opostas, entre o que virá a ser duas concepções antagônicas de movimento (e de tempo) em imagens: digamos, para avançarmos (é uma formulação fácil e personalista que utilizo apenas por conveniência), a concepção “Lumière” e a concepção “Marey”. É sobretudo uma divisão profunda da identidade temporal do meio em dois grandes aspectos teóricos e formais, que vai marcar o surgimento de uma fronteira no interior mesmo de uma identidade cinematográfca (que, portanto, não existe).
Se o cinema dá a ver o tempo em seu movimento e em sua própria duração, ainda é preciso saber como ele dá a ver. De maneira idêntica ou diferente (em relação à sua percepção natural)? Reproduzindo-o mimicamente (o movimento como o vemos) ou inventando-o de maneira diferente? É aqui que as duas posturas fazem a diferença.
Com efeito, as vistas Lumière são marcadas por uma ideia bastante simples, uma espécie de flosofa do cinema, que se baseia numa concepção fundamentalmente mimética, não apenas da imagem, mas também do próprio tempo cinematográfco.
Para Lumière, a verdade do cinema é simplesmente de dar a ver “o mundo como ele é”, ou seja, “como o vemos” (portanto, em movimento, ao contrário da fotografa), e de fazer dessa visão mimética um espetáculo. A verdade da imagem está, portanto, no ver como, na identidade relativa do real e da imagem, na medida em que esta instala, possivelmente, o espetacular a partir do ordinário. O mundo, que se move, é
descobrir coisas e experimentar sensações (aquelas ligadas aos efeitos perceptivos do movimento em particular: A Chegada do trem na estação (1895), por exemplo).
Além disso (e nunca devemos esquecer que os dois homens eram contemporâneos), a postura de Etienne-Jules Marey (especialmente em seus “flmes cronofotográfcos”) é muito diferente. Para ele, o cinema se concebe apenas segundo a visão mimética (“à la Lumière”), então ele não traz nada (além do que o que se vê). Seria “uma invenção sem futuro15”. A questão do espetáculo (tanto da imagem como da vida) não lhe diz respeito, ou não totalmente nem diretamente. Ele, o médico fsiologista, reivindica uma flosofa científca do cinema: a verdade das imagens não está no ver como, ela está no ver melhor, no ver para saber (mais). Ela reside na ideia de experimentar com a imagem uma visão inédita das coisas, particularmente pela invenção de um tempo novo, visível unicamente nas imagens. A verdade das imagens para Marey visa a
15. Frase atribuída a Louis Lumière, a respeito de sua descrença de que o cinema teria sucesso e continuidade. [N. T.]
dar a ver o mundo como ele é realmente, ou seja, para além do visível comum (o olho é muito limitado). A fnalidade do cinema é ver imagens para saber mais sobre o mundo, não para vê-lo de forma idêntica. O mundo é uma realidade complexa, que se deve analisar para compreendê-lo.
É a partir dessa postura analítica que Marey usa a imagem-movimento do cinematógrafo para decompor de outra forma o movimento da vida, para observá-lo cientifcamente, não espetacularmente. Observá-lo através da imagem em movimento, ou seja, não como com as suas cronofotografas em placa fxa (que remetem à imobilidade/imobilização da foto), mas com imagens-movimento (portanto, cinematográfcas), cujas aparências ele pode modular pela variação da velocidade. Observar o movimento pelo movimento, fazendo desflar as imagens em todos os tipos de velocidades diferentes, mais ou menos rapidamente ou mais ou menos lentamente, em diferentes graus de câmera lenta (ralenti) ou de aceleração (accéléré), para ver diferentemente as coisas, às vezes quase as imobilizando, mas reiniciando o mais rápido possível em modulações mínimas e infnitas de velocidade. A contribuição singular de Marey deve-se, fnalmente, a isto: à concepção de Lumière de um tempo mimético da imagem-movimento, que apenas reproduz o tempo do mundo, Marey opõe um tempo inventado pela própria imagem, um tempo produzido especifcamente pelas variações na velocidade do cinema, e que só existe nas transições moduladas de aparências que autorizam as câmeras lentas ou as acelerações, sempre variáveis. O que podemos ver do movimento nos flmes de Marey só é visível nas próprias imagens, não é visível (assim) à vista natural. Nesse sentido, ele inventa um novo mundo (uma nova aparência do mundo).
Esse pensamento “à la Marey” de um tempo próprio do cinema, com suas novas formas de representação, vai descobrir-se encarnado exatamente num campo parti-
16. La Croissance des végétaux é o título mais famoso desse pequeno gênero de ciência popular de flmes de plantas em aceleração. É um flme de Jean Comandon, de 1929. Há muitos outros entre 1898 e 1930: Studies of Plant Movement (Wilhelm Pfeffer,1900), Birth of a Flower (Percy Smyth,1910), Le Miracle des feurs (Max Reichmann, 1926), etc. Ver sobre este assunto o livro coletivo mencionado acima, Puissances du végétal et cinéma animiste (2020).
cular e natural, o do cinema (de popularização) científco, especialmente nos ditos “flmes de plantas”, que mostram em aceleração fenômenos como crescimento de vegetais16, germinação de sementes, desenvolvimento de raízes, caules e folhas, surgimento de fores e assim por diante. Esta pequena tradição maravilhou os olhos do público, como evidenciado, por exemplo, por esta passagem da escritora
Colette:
A tomada em aceleração registrou a germinação de um feijão, o nascimento de suas radículas de broca, o bocejo ganancioso de seus cotilédones de onde surgiu, arre-messando sua cabeça de serpente, o primeiro talo […] na revelação do movimento intencional e inteligente da planta, vi crianças se levantarem, imitarem a prodigiosa subida da planta que subiu em espiral, virou um obstáculo, sentiu seu guardião: “Ela
procura! Ela procura!” gritou um menino apaixonado. Ele sonhou com ela na mesma noite, e eu também.
(COLETTE, 1924, tradução nossa)
Encontramos, portanto, nesta clivagem Lumière/Marey, neste momento de origem do cinema, uma dupla flosofa da imagem-movimento que remete, na verdade, a uma identidade dividida do meio (a reprodução do mundo visível vs. a invenção de novos mundos). A identidade do cinema (pelo menos no que diz respeito a esta questão essencial da sua relação com o tempo) é, portanto, desde sua origem, instável, dividida, contraditória. Se o cinema parecia se construir ultrapassando a imobilidade fotográfca e afrmando o princípio do movimento na e pela imagem, ainda é preciso ver que esse princípio não é realmente apenas um, mas (no mínimo) dois. Ou, mais exatamente, vários. Porque esse movimento novo ou outro é uma continuidade em variação. É uma multi-identidade (temporal). Na verdade, é uma infnidade de possíveis, sempre fexíveis. O pensamento de movimento no cinema é ele próprio fragmentado, aberto, elástico, como veremos a seguir.
É a questão das possibilidades infnitas oferecidas pelo jogo das variações na velocidade da imagem-movimento. Não apenas essa da câmera lenta ou da aceleração que rapidamente se tornarão uma retórica na linguagem cinematográfca, mas aquela muito mais fuida e fexível, a da modulação contínua entre o movimento e a imobilidade. Na verdade, o que isso nos diz é que não há fronteira (opositiva) entre os dois, mas um jogo, uma porosidade entre dois polos, porque eles são da mesma natureza. Não há realmente uma imobilidade no cinema. A imobilidade é apenas uma forma particular de movimento (zero), não é sua negação.
A partir daí, desencadeia-se uma ideia de cinema, em última análise, muito modernista, que atravessa toda a sua história (para desenhar uma espécie de contra-história um tanto negligenciada), cujos pensadores ou cineastas-teóricos, de Jean Epstein a Jean-Louis Schefer, fzeram ecoar ao longo do tempo:
Reprodutor do movimento, o cinematógrafo permite as únicas experiências no tempo que já nos são acessíveis. O tempo é o material do cinema, que o torna visível. [...] O cinematógrafo, ao tratar o tempo em perspectiva, revela a noção dessa quarta dimensão da existência em sua variável luz de relação, mais verdadeira que a aparência banal. (EPSTEIN, 1930, p. 225) [...]
– Você costuma ir ao cinema?
– Muitas vezes entro no próprio tempo: o cinema é a única experiência na qual o tempo me é dado como percepção. Se o que me lembro de um flme é improvável, sujeito ao capricho incessante da minha imaginação, posso ter certeza de ir ao cinema por causa desse novo tempo que pude desfrutar. Eu costumo ir ao cinema. (SCHEFER, 1980, tradução nossa)
Se o movimento cinematográfco não se opõe simplesmente (como o seu outro) à imobilidade fotográfca, se ele próprio é múltiplo, operado por numerosas formas de
temporalidade particularmente específcas, e que a imobilidade é apenas uma entre elas, uma forma (de movimento) entre outras, então esse pensamento se abre bem para uma multi-identidade fervilhante do meio, que desfaz as categorias, que quebra as divisões, que põe em falência a lógica oposta das identidades e das fronteiras estabilizadas.
Todos os pensadores e realizadores da câmera lenta, da aceleração, do tempo inventado pelo cinema e das mudanças na velocidade da imagem-movimento, expressaram-no à sua maneira, em todas as épocas da história do cinema. Não foi apenas no campo das experiências temporais do cinema científco (como nos flmes de plantas mencionados acima).
Dziga Vertov por exemplo, no projeto, ao mesmo tempo experimental em sua forma e didaticamente construtivista, de O homem com a câmera (1929), traçou um retrato típico em três tempos, ou melhor, em três sequências sucessivas, bastante distintas no flme. Primeiramente, a famosa sequência que mostra a força literal da suspensão na imagem, a sequência dita da montagem, com a exposição da suspensão súbita da passagem de um cavalo
fxo enquanto está em plena corrida, imagem trazida de volta ao fotograma, depois para a colagem-montagem dos planos à mesa, depois recolocado na rota corte do movimento pela imobilidade. Em seguida, com a sequência posterior do flme das muitas imagens em câmera lenta de esportistas em plena ação (Ah! A beleza dos corpos se revelando no esforço!). Enfm, na última sequência, a do fnal acelerado, progressivo e vertiginoso, que retoma sinteticamente todo o tipo de imagens já vistas do flme, mas mostrando-as desta vez como projeção, na grande tela da sala, diante de um público fascinado e alegre, uma aceleração desenfreada, que é ao mesmo tempo uma aceleração da imagem e uma aceleração de montagem, que leva o espectador como os movimentos loucos da própria vida, como o frenesi urbano moderno em que todos estão mergulhados. Suspender a imagem, câmera lenta, aceleração. Assim, Vertov declinou literalmente das três principais formas de variações de velocidade, em um flme-ensaio que, em última análise, pretende ser uma espécie de metaflme aberto, tanto orgânico quanto construtivista, sobre “o que (pode) o cinema?”.
Ou ainda, outro grande exemplo, é o caso de Jean Epstein que soube formular, tanto em seus flmes como em seus textos, melhor do que outros e com uma força de convicção magnífca e contínua, todos os efeitos perceptivos das variações de velocidade, liberando-se de suas apostas flosófcas para uma multi-identidade aberta, quebrando todas as formas de fronteiras, de formas, da matéria e do pensamento cinematográfcos:
Sem dúvida a característica mais aparente da inteligência cinematográfca é o seu animismo. Desde as primeiras projeções em aceleração e câmera lenta (accéléré et ralenti), as barreiras que imaginávamos entre o inerte e o vivo foram varridas. Em sua execução, o cinematógrafo mostra que não há nada imóvel. Os cristais crescem, movem-se, multiplicam-se como células.
As plantas têm gestos animais [...] Onde devem situar-se agora as fronteiras entre os reinos da natureza? [...] Às vezes o flme nos dá uma percepção imediata do ser-montanha ou do ser-mar. É um sentimento como a evidência em que toda demonstração para, e onde não há nada a dizer. (EPSTEIN, 1935, p. 244) [...]
A aceleração e a câmera lenta revelam um mundo onde não há mais fronteiras entre os reinos da natureza. Tudo vive [...] E a planta que levanta seu caule, que vira suas folhas para a luz, que abre e fecha sua corola, que inclina seu estame no pistilo, não tem, no processo acelerado, exatamente a mesma qualidade de vida que este cavalo e seu cavaleiro que, em câmera lenta, pairam sobre o obstáculo e se inclinam um em direção
ao outro. E a podridão é um renascimento. (EPSTEIN, 1935a) [...]
Essa reviravolta na hierarquia das coisas é agravada pela reprodução cinematográfca de movimentos em câmera lenta ou acelerada. No cinema, os cavalos pairam sobre o obstáculo; as plantas gesticulam, os cristais se acasalam, se reproduzem, curam suas feridas; a lava rasteja, a água torna-se óleo, goma, breu de árvore; o homem adquire a densidade de uma nuvem, a consistência de um vapor; ele é um animal gasoso puro, de uma graça felina, de uma habilidade simiesca. Todos os sistemas compartimentados da natureza são desarticulados. Apenas um reino permanece: a vida. [...] Todo o universo é um animal imenso cujos elementos, pedras, fores, pássaros são órgãos exatamente coerentes em sua participação em uma única alma comum. Tantas classifcações rigorosas e superfciais, que se supõe à natureza, constituem apenas artifícios e ilusões. Sob suas miragens, o povo das formas se revela essencialmente homogêneo e estranhamente anárquico. (EPSTEIN, 1946, p. 257, tradução nossa)
E, enfm, antes de concluir pela situação contemporânea, terminarei essa jornada modernista, com o caso das mudanças de velocidade praticadas em altas doses por Jean-Luc Godard nos anos 1975-1980, primeiramente em seus ensaios em vídeo e, em seguida, especialmente em seu flme Salve-se quem puder (a vida). Como sabemos, o flme (que data de 1979, um período crucial, e, portanto, quase contemporâ-
neo de A Câmara Clara, de Barthes, e um pouco antes dos livros de Deleuze sobre a imagem-movimento (1983) e a imagem-tempo (1990)17 é composto, nas palavras de Godard, não com “personagens”, mas com “movimentos”. E, acima de tudo, ele compreende 18 momentos inesperados de variações de velocidade, ações lentas e irregulares (ralentis-saccadés), sequências de decomposição de movimento (na linha de Marey, a que Jean-Luc Godard se refere explicitamente), 18 momentos que repentinamente irrompem no flme, sem anunciar, sem justifcativa narrativa, temática ou plástica específca. Isso pode estar relacionado a movimentos anódinos dos corpos (a personagem de Nathalie Baye pedalando em uma estrada do interior, carros ou transeuntes na cidade, jogadores de futebol amadores) ou movimentos mais importantes diegeticamente (Dutronc que se joga em Nathalie Baye sobre a mesa da cozinha e declara “nós gostaríamos de nos tocar, mas só conseguimos nos batendo” ou, no fnal, quando Dutronc é estranhamente atropelado por um carro ao atravessar a rua de costas, em uma
17. As referências citadas neste texto são das edições brasileiras, dos livros de Gilles Deleuze, Cinema 1 - A imagem movimento e Cinema 2 - A imagem-tempo, publicados respectivamente em 1983 e 1990, pela editora Brasiliense. [N. T.]
releitura excêntrica do fnal de Acossado (1960): “Não estou morto porque não vi a minha vida passar diante dos meus olhos”).
A que correspondem esses singulares e numerosos momentos de variações de velocidade? Godard mesmo se expressou sobre a questão a partir de suas experiências de vídeo anteriores, realizadas um pouco antes,
Fazer movimentos em câmera lenta, mudanças de ritmo, decomposições, usando as técnicas combinadas do cinema e da televisão [...] Assim que paramos uma imagem em um movimento que tem vinte e cinco delas, percebemos que um plano que flmamos, dependendo de como o interrompemos, de repente, há bilhões de possibilidades. Todas as permutações possíveis entre essas vinte e cinco imagens representam bilhões de possibilidades. Concluí que quando fazemos mudanças de ritmo, quando analisamos movimentos de uma mulher, movimentos tão simples como comprar uma baguete de pão, por exemplo, percebemos que há um monte de mundos diferentes dentro do movimento da mulher, corpúsculos, galáxias, a cada vez diferentes, e passamos de uma a outra com séries de explosões; já nos homens as desacelerações são muito menos interessantes pois há sempre, em última análise, uma mesma diretriz [...] Em France tour détour, eu tinha descoberto isso como uma simples intuição, sem ir mais longe, pois era preciso conversar sobre isso com os colegas, para que eles me trouxessem sua experi-
ência, cientifcamente. Então, de um experimento de laboratório em La Marey, fz um romance, o flme Salve-se quem puder (a vida) [...]. (GODARD, 1980, tradução nossa)18
Vemos assim que, de Marey a Epstein, de Vertov a Godard, e a tantos outros que eu poderia ter convocado (de Peckinpah a Coppola, de Scorsese a De Palma etc.), o jogo das manipulações temporais do movimento nas e pelas imagens, nunca deixou de trabalhar para um contra pensamento da potência mimética do cinema. Esta dita identidade (temporal) do meio, instaurada pelo cinema dos Lumières, não se sustenta como uma solução flosófca única e global à concepção territorial de cinema defnida pela ideia de reproduzir o movimento (tal como o vemos). As variações de velocidade demonstram uma contra potência fundamental, um pensamento do cinema, não como transparência do tempo, mas como consciência do tempo, de um tempo próprio ao cinema, um tempo consistente, palpável, tátil, um tempo-matéria, um ser-tempo da imagem. Esta é uma outra concepção do meio, que não é identitário no sentido de que não se constrói na afrmação de uma fronteira (a oposição movimento vs. imobilidade, cinema vs. fotografa), mas, pelo contrário, na recusa de qualquer ruptura estruturante, sobre uma matéria imaterial, instável, futuante, mutável que vem desfazer a primeira, maniqueísta, e instalar uma flosofa aberta, fexível, modulável, do tempo como variação contínua, no qual a imobilidade não é mais “o outro”, o oposto ou o negativo do movimento, mas uma dessas formas mesmo.
18. Entrevista publicada originalmente em julho de 1980. Retomada em Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. 1950-1984, Vol. 1. Paris: Cahiers du Cinéma, 1998.
A diluição das fronteiras, o fim das identidades, o desaparecimento das categorias: o tempo elástico do “todo imagem” contemporâneo
Gostaria de terminar com uma abertura fnal (ou melhor, com um simples questionamento) sobre o estado atual desta problemática nas práticas contemporâneas da imagem, ou seja, para além da oposição tradicional entre fotografa e cinema. Particularmente, a partir da chegada das tecnologias digitais, que eliminaram a divisão fundadora entre imobilidade e movimento. Isso me parece ter mais ou menos sido mantido (como uma fronteira estabelecendo a identidade dos meios) até os anos 1980, digamos até os livros de Barthes para a fotografa19 e Deleuze para o cinema, esses dois autores incorporaram cada um, sintomaticamente, o ponto de parada do pensamento da imagem-parada (da morte) de um lado e na imagem-movimento do outro. Mas o que acontece depois, ou para além? O que vai se tornar, hoje, a fotografa e o cinema, como entidades e como identidades? O que é, nas práticas contemporâneas (“pós-fotográfcas” e “pós-cinema”), o tempo inventado das imagens e das modulações contínuas de velocidade? A verdadeira duração do cinema de transparência ainda é uma norma (contra a qual se opor)? A retórica codifcada dos efeitos cinematográfcos (a câmera lenta, a aceleração, a imagem congelada) ain-
19. Diversas questões ontológicas da fotografa mencionadas neste texto por Philippe Dubois foram discutidas pelo autor em um artigo de revisão das teorias do meio, sendo uma interessante leitura complementar. Assim, sugerimos ver Dubois, Philippe. Da imagem-traço à imagem-fcção: O movimento das teorias da fotografa de 1980 aos nossos dias. Discursos fotográfcos, Londrina, v. 13, n. 22, p. 3151, jan/jul, 2017. [N. T.]
da constitui um sistema de pensamento possível, sustentável, para pensar as variações de velocidade das imagens atuais (onde passamos para outra coisa, e para quê)? As manipulações temporais são sempre desvios singulares, formas experimentais, exceções localizadas? Ou tornaram-se mais sistemáticas, até generalizadas, uma verdadeira matéria, contínua e orgânica, das formas temporais, dentro das quais nos movemos em plena liberdade-facilidade, onde não há (ou não há mais) fronteira, território, identidade? Muitos cineastas da “virada digital” (digital turn), Wong Kar-Wai por exemplo, ou Alexander Sokourov, ou Gus Van Sant, não teriam investido plenamente o pensamento epsteiniano de um tempo “elástico”, integralmente modulável no flme?
Diante de quase todos os flmes do cineasta asiático (Cinzas do passado, Amores expressos, Anjos caídos, Amor à for da pele, 2046 etc.), estamos mergulhados, imersos, neste tempo elástico, futuante, instável, que já não oferece quaisquer
orientações, que é um tempo sem referência, sui generis em cada flme. As imagens de movimentos em Amores expressos (1994), por exemplo (a flmagem foi feita muito rapidamente em poucas semanas com uma pequena câmera carregada no ombro), são vertiginosas, estonteantes, trazidas em um ritmo brusco incontrolável, feito de acelerações repentinas, de solavancos e de escorregões, de saltos e de sobressaltos, de traços abstratos e de rastros luminosos. As de Anjos caídos (1995) são, por outro lado, instáveis por sua relativa lentidão, futuante, hierática, enigmática. Por suas vibrações ambíguas, elas combinam muitas vezes, no mesmo plano (fascinantes para o espectador), a câmera lenta (para os atores em primeiro plano) com a aceleração (para os fgurantes que passam no plano de fundo) – é o caso na cena magnífca do jukebox, por exemplo. Em Amor à for da pele (2000), e também em 2046 - Os segredos do amor (2004), é ainda mais sofsticado, com a apatia encantadora que leva o espectador a um tempo-labirinto indecifrável, onde nada é óbvio: as diferentes velocidades não cessam de encadear-se nas mesmas sequências, nos mesmos planos, até nos mesmos movimentos do ator, sem que o espectador seja capaz de estruturar temporalmente as formas que ele descobre, etc. O tempo e o movimento tornaram-se integralmente uma matéria maleável nesses flmes. Nem podemos mais distinguir uma câmera lenta, uma aceleração ou uma suspensão na imagem, tudo futua, completamente, e o tempo todo. É uma modulação contínua e orgânica de velocidades específcas das imagens.
E encontramos a mesma coisa em alguns dos flmes de Sokourov, por exemplo, na hipnótica (e insuportável) sequência de abertura de Spiritual voices (1995), (um –aparente – plano fxo único de quarenta minutos!), que parece mostrar apenas uma paisagem de inverno nevado, onde nada acontece (exceto o próprio tempo), e onde nos perguntamos, com a extensão do tempo que se estende, o que estamos olhando no fnal? Que evento perceptivo anima essa duração? E onde concluímos que, fnal-
mente, apenas olhamos o tempo. Puro. Por ele mesmo. Sui generis. Mas esse tempo não é um, como no cinema moderno, aquele dos planos longos e intermináveis de Chantal Akerman ou os de Straub-Huillet. Não é um “bloco de tempo (duração)”. É um tempo que é na verdade vários tempos, “montados sem costuras”. É um tempo modulado de forma invisível, sem que pudéssemos ver nele uma velocidade particular, estabilizada, única. Velocidade normal? Câmera lenta? Aceleração? Suspensão? Impossível dizer. É um pouco de todas as velocidades juntas. É apenas o tempo “elástico”, organicamente, um tempo encarnado, constantemente modulado (sem que saibamos fazer distinções interiores), e que nos é “dado como percepção”, segundo a fórmula de Epstein e Schefer.
Diante desses flmes, dessas experiências sensíveis, quase táteis, do tempo em imagens, podemos pensar, ainda, (porque se alimentam reciprocamente, em um diálogo que é transfronteiriço, para além de categorias “arcaicas” como a que separa o cinema da arte contemporânea) em todas essas experiências de artistas dos últimos anos, que também se tornaram sistemáticas na manipulação da matéria-tempo das imagens e misturam absolutamente as identidades do flme, da foto, do vídeo e do digital. Estou pensando nas obras de David Claerbout, Sam Taylor Wood, Katia Maciel, Douglas Gordon, Thierry Kuntzel, Harmut Lerch e Claus Holtz, Martin Arnold, Jacques Perconte, Ange Leccia, Ben Russel, de Rosa Barba, Francisco Tropa, Jan Cornelis, Malena Szlam, etc.20
20. Leremos com interesse nesse sentido, entre outros, o livro-catálogo da exposição Time Machine. Seing and Experimenting Time (realizada em Parma, no Palazzo del Governatore, de 11 de janeiro a 3 de maio de 2020), idealizada e organizada por Antonio Somaini e Michele Guerra, em colaboração com Eline Grignard e Marie Rebecchi.
Todas essas experiências do tempo elástico das imagens, no fundo, prolongam o que Jean Epstein já havia previsto e demonstram que as divisões identitárias sobre as quais se construíram as velhas categorias da “fotografa” e do “cinema” não se mantêm mais nos dias de hoje. O que quer dizer hoje uma imagem “imóvel”, “em movimento”, “suspensa”, “em câmera lenta”, “acelerada”, “invertida” etc.? Nos nossos computadores, tablets e celulares, temos softwares que brincam continuamente com o tempo e o movimento, com toda simplicidade e facilidade, como uma prova quase banal ou em todo o caso normal. A noção de uma velocidade de referência está perdida, obsoleta, inútil: a imagem e sua(s) velocidade(s) intrínseca(s), ela é totalmente modelável, que só dá conta dela própria. Observe o morphing, o stop motion, o time-lapse, o loop, o efeito bumerangue, o gif, o cinemagraph, o fixel etc. Todas essas formas (ou dispositivos) inventam um tempo de imagem interior, sem modelo referencial, criado de todas as partes, um tempo que pode ser chamado de “elástico” pois ele não é mais regido por um modelo de identidade e fronteira (imobilidade vs. movimento). Um tempo que muda continuamente de velocidade. Já não há oposição, divisão, fronteira, mas um fuxo perpétuo em modulação contínua. Já não há mais aqui o tempo da fotografa e ali o tempo do cinema (mas apenas o tempo-imagem, global, transfronteiriço). Fotografa vs Cinema, esses dois termos, com a sua antiga identidade de meio, perderam o sentido, ou seja, a sua linha divisória. Estamos na era generalizada do tempo elástico e autônomo das imagens.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfca. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 19-26.
BILINSKY, Boris. Le costume. In: L’Art cinématographique. Paris: Felix Alcan, 1929.
CARTIER-BRESSON, Henri. O imaginário segundo a natureza. Barcelona: Gustavo Gili, 2004.
CASTRO, Teresa. Penser le “cinéma animiste” avec Jean Epstein. In: THOUVENEL, Éric; HAMERY, Roxane. (Orgs.). Jean Epstein: Actualité et postérités. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2016, p. 247-260.
_______________. An Animistic History of the Camera: Filmic Forms and Machinic Subjectivity. In: CAVALOTTI, Diego; GIORDANO, Federico; QUARESIMA, Leonardo. (Eds.). A History of Cinema Without Names. Mimesis International, 2016, p. 247-255.
CASTRO, Teresa; PITROU, Perig; REBECCHI, Marie. (Orgs.). Puissance du végétal et cinéma animiste: La vitalité révélée par la technique. Paris: Le Presses du réel, 2020.
COLETTE. Cinéma: Magie des flms d’enseignement [1924]. In: Colette et le cinéma. Paris: Fayard, 2004.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
______. Cinema 1 – A Imagem movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
DUBOIS, Philippe. Da imagem-traço à imagem-fcção: O movimento das teorias da fotografa de 1980 aos nossos dias. Discursos fotográfcos, Londrina, v. 13, n. 22, p. 31-51, jan/jul, 2017.
___________. La question des régimes de vitesse des images. De Etienne-Jules Marey à David Claerbout: au-delà de l’opposition entre photographie et cinéma. In: Menduni, Enrico; Marmo, Lorenzo; Ravesi, Giacomo. (Orgs.). Fotografa E Culture Visuali Del Xxi Secolo. Roma: Università degli Studi Roma, 2018. Disponível em: https://vdoc.pub/documents/fotografa-e-culture-visuali-del-xxi-secolo-76kbr6evl680. Acesso em: 22 fev. 2022.
___________. O ato fotográfco e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993.
EPSTEIN, Jean. Cinéa ciné pour tous, 1930.
_____________. Inter-Ciné, ago/set, 1935.
____________. Le Cinématographe vu de l’Etna vol. 1. 1926.
_____________. Photogénie de l’impondérable. Paris: Corymbe, 1935a.
GODARD, Jean-Luc. Propos rompus [1980]. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. 1950-1984, Vol. 1. Paris: Cahiers du Cinéma, 1998.
GUNTHERT, André. La Conquête de l’instantané: Archéologie de l’imaginaire photographique en France, 1841-1895. 1999. Tese (Doutorado em História da Arte)École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, 1999. Disponível em: https://tel.archives-ouvertes.fr/halshs-00004607/en/. Acesso em: 21 fev. 2022.
_______________. Photographie et temporalité. Histoire culturelle du temps de pose. In: Images Re-vues: Histoire, anthropologie et théorie de l’art, n. 1, 2008. Disponível em: https://journals.openedition.org/imagesrevues/743#quotation. Acesso em: 22 fev. 2022.
LA POSTE. 30 de dezembro de 1895.
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou das fronteiras da Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
MORIN, Edgar. Le Cinéma ou l’homme imaginaire: Essai d’anthropologie. Paris: Minuit, 1956.
ÉTUDES photographiques, n. 34, Printemps 2016.
SCHEFER, Jean-Louis. L’homme ordinaire du cinéma. Paris: Gallimard, 1980.
SOURIAU, Étienne. Revue Internationale de Filmologie, Vol. 1, n. 1, 1947.
Imagens de vulneráveis podem resultar no que Butler (2015) nomeia de “violências éticas”, isto é, formas de reconhecimento subordinadas a uma transparência invasiva. Ao invés de darem a devida liberdade para que o retratado exerça suas próprias aspirações e paixões diante da câmera, documentaristas forçam o outro a permanecer coerente a uma identidade dada, que restringe sua expressão a enquadramentos simplistas enquanto reproduzem ou omitem olhares colonizadores. Para Silvia Rivera Cusicanqui (2010), a própria ideia de hibridez, sobretudo aplicada em representações de indígenas latinos, pode ser uma violência ética: “sua função é substituir às populações indígenas como sujeitos da história, converter suas lutas e demandas em ingredientes de uma engenharia cultural e estatal capaz de submetê-las a uma vontade neutralizadora” (p.62). Para a autora boliviana, a noção do híbrido na América Latina é inerentemente associada à ideia de mestiçagem, a uma mesclagem de etnias, culturas e saberes que apagaria as diferenças, homogeneizando o todo e, portanto, favorecendo uma identidade frente a outra. Ou seja, o mestiço para Cusicanqui descreve uma mistura que valoriza a branquitude enquanto apaga a indignidade, ao mesmo tempo que esconde o passado de violência colonial que culminou na miscigenação contemporânea.
Em oposição ao híbrido, Cusicanqui propõe o conceito aimará de ch’ixi (pronúncia txerri), que se refere literalmente ao cinza marmorizado. Mais que uma cor resultante da diluição do branco no preto, ch’ixi é o cinza formado a partir de uma infnidade de pontos negros e brancos que, mesmo se unindo na percepção, ainda permanecem puros e separados. Em oposição ao híbrido ou ao mestiço, o ch’ixi é uma justaposição eclética de identidades, como o indígena e o branco ou o moderno e o primitivo, que convivem entre si, mas preservam suas multiplicidades e contradições.
Este texto propõe desenvolver o ch’ixi e explorar alternativas a lógicas coloniais a partir do fotolivro Héroes del Brillo. De autoria do fotógrafo uruguaio Federico Estol, o trabalho se diferencia por ser engendrado, seguindo um compromisso ético e político com a humanização efetiva do outro e, com isso, se afasta de uma estética híbrida em prol da ch’ixi. Estol retrata a vida dos engraxates de La Paz, jovens trabalhadores de rua da Bolívia que vestem máscaras balaclavas durante as horas de ofício. Afigidos por intenso estigma, escondem o rosto em vergonha para se resguardar da perseguição pública. Devido a esse anonimato singular, Estol se atentou em não cometer violências éticas que, com ou sem intenção, produzem retratos que reforçam estereótipos. Para isso, Héroes del Brillo se afastou de um realismo jornalístico, interessado meramente em capturar cenas de suas vidas, e abraçou uma proposta mais teatral e fccional, rompendo com paradigmas representativos e se materializando em uma narrativa visual e fantasiosa em que indignos conquistam dignidade.
Através de um workshop de desenho, dezenas de bolivianos e um uruguaio compuseram um storyboard que serviria como guia para as sessões fotográfcas. Desta forma, os engraxates não eram apenas modelos, posando sob as ordens de seu retratista, mas atores que participavam no processo de criação desde sua concepção. Marcado por uma ética não colonial e uma forte experimentação estética, o trabalho resultou em imagens não híbridas, mas ch’ixi. A obra pode ser lida tanto como um ensaio de fotografa documental, quanto uma história em quadrinhos, mas sem se identifcar integralmente com nenhum dos dois. Ora narrando o cotidiano dos engraxates, ora inventando uma urbanidade a ser ocupada, Héroes del Brillo perpassa múltiplos materiais, técnicas, gêneros e subjetividades.
O resultado é um ensaio encenado, mas ainda documental, interessado, não na realidade que vivem no dia a dia, e sim nas fantasias que os mobilizam a cada dia.
Os Lustrabotas
Em La Paz, a capital ofcial da Bolívia, quanto mais alto se está, menos se tem. Como a cidade é construída em um vale profundo, rodeado por montes e montanhas localizadas sobre a Cordilheira dos Andes; seu relevo desdiz a fgura de linguagem: subir espacialmente é descer socialmente e vice-versa. Os mais ricos em geral vivem em chalés e apartamentos de luxo na Zona Sul, a 3.200 metros acima do nível do mar. A cerca de 3.600 metros, há a região central, em que se misturam a boemia e os bairros populares, assim como mercados ancestrais, os escritórios governamentais e a principal universidade do país. Já no pico, a 4.000 metros, começa El Alto, antiga periferia hoje convertida em um município autônomo, onde reina uma paisagem de tijolos nus, inicialmente moradia de migrantes rurais e antigos camponeses e mineiros que viriam a se converter em comerciantes (ARBONA e KOHL, 2004).
Neste ecossistema de baixíssima pressão atmosférica, a estratifcação social não é só visível pela arquitetura, mas também sentida no corpo: quanto maior a altitude, menor a concentração de oxigênio no ar, o que faz com que seja literalmente mais difícil respirar quando se é pobre. É em El Alto que vivem os engraxates da cidade.
Lá residem com suas famílias, estudam e exercem quaisquer outras atividades, enquanto a capital é reservada unicamente para trabalhar (SCARNECCHIA, 2008). Pelas manhãs, descem com seus instrumentos - uma caixeta de madeira, escova, pano e graxa - e chegando em La Paz fcam sentados no chão das calçadas ou praças, aguardando o próximo cliente. Às vezes, gritam “Lustro joven!” para algum senhor de terno que passa à frente, dando brilho a seus calçados em troca de algumas moedas e, no fm do dia, retornam “ao topo” com seus rendimentos. Os locais os chamam de
lustrabotas e, no ano de 2017, eram pelo menos 3.500 (ZAPATANA, 2017), um regimento composto majoritariamente por homens de etnia aimará e jovens de até 25 anos de idade, incluindo um número considerável de crianças. Como tantos outros trabalhadores de rua da América Latina, são condenados a uma intensa precariedade socioeconômica, mas se distinguem pelo estranho costume de esconder suas faces com máscaras balaclavas (Fig.1).
“Por quê?” perguntam todos prontamente, sem obter um retorno satisfatório. Jornalistas, turistas ou pesquisadores os indagam frequentemente, curiosos por esse uniforme singular, um fenômeno aparentemente único, não só no continente latino, mas em todo o globo. Muitos dos entrevistados se indispõem a dar uma resposta e, quando dão, não é raro se contradizerem. Uma explicação comum é que se trata de uma mera precaução para resguardar sua saúde. Essa justifcativa, no entanto, é insatisfatória: em geral, ninguém sabe defnir com muita clareza contra o que a máscara protege, alguns afrmam que é contra a toxicidade dos diferentes produtos químicos que usam em seu trabalho; outros já culpam elementos danosos do próprio ambiente urbano, como frio, sol e poeira das ruas. Considerando que La Paz é a capi-
Fig.1. Fotografa de Lustrabotas nas ruas de La Paz, por Andrew Perkins (2017) Fonte: Flickr.com.
tal com maior altitude do mundo, pode até parecer uma desculpa plausível se não verifcada.
Para Antonella Scarnecchia (2008, 2013), devemos desconfar dessas explicações. As máscaras são exclusivas aos engraxates, enquanto outras profssões que também andam pela rua não a usam apesar de estarem expostas ao mesmo ambiente que eles. Scarnecchia também observou que o fenômeno só ocorre na região metropolitana pacenha. Outras cidades bolivianas, mesmo estando em uma altitude maior - e, portanto, tendo um ambiente ainda mais inóspito - não possuem engraxates mascarados, o que a leva a acreditar que há um aspecto político e cultural nessa prática que não pode ser ignorado.
A partir do exame de documentos de associações municipais, Scarnecchia verifcou que o mascaramento coletivo nem sempre foi como hoje. Segundo ela, houve sim uma época em que engraxates se tapavam como um cuidado com a saúde, porém, não vestiam balaclavas: “a princípio usavam apenas uma bandana para cobrir a boca e o nariz, protegendo contra a poeira das ruas acumulada sobre os sapatos, junto com um boné ou chapéu para atenuar a exposição a muitas horas sob o sol,
que pode ser muito danoso nessa altitude” (SCARNECCHIA, 2008, p. 101). Isso mudou no fnal da década de 80. Desde então, o curto pedaço de pano foi substituído por um gorro, normalmente negro, que oculta toda a cabeça, deixando apenas os olhos a vista. Se inicialmente, se mascaravam para proteger seus corpos contra o clima da metrópole andina, depois de algum tempo, a máscara serviu para esconder a identidade de quem trabalhava na rua. A hostilidade deixou de ser ambiental e passou a ser social.
O que teria mudado? O documento História da Alpeve (Asociación de Lustra calzados de la Pérez Velasco), citado pela autora, culpa o “maltrato psicológico por parte da sociedade, na forma de discriminação e insultos, rebaixando e vexando lustrar calçados como se fosse algo desonroso”. Vários relatos contemporâneos identifcam a categoria ao uso de drogas, ao alcoolismo e à criminalidade. Não é difícil encontrar um pedestre em La Paz que acuse engraxates de se mascararem para esconder uma tez marcada pelo uso de entorpecentes. Esse
discurso tenta negar o estigma social - a ideia que os engraxates seriam perseguidos pela sua atividade - imaginando um estigma físico em um rosto que permanece oculto.
Independentemente de qual estigma seja fantasiado e qual seja real, o rosto de um lustrabota não é, para todos os fns, um rosto. Segundo o flósofo Emmanuel Lévinas, o rosto funciona como uma “abertura para outro, uma forma de diálogo em que um não possui o outro, nem tampouco se reconhece nele” (VIEIRA, COELHO, MARQUES, 2016, p. 52). Para Lévinas (2007: 1982), o rosto nos coloca frente a um outro que nos interpela como um sujeito próprio, irredutível a categorias prévias. Porém, em La Paz, o rosto do engraxate é simplesmente a reiteração de um estereótipo marginalizante, independente de sua singularidade. Ele não é uma forma de se aproximar a uma alteridade estranha, é apenas um meio de confrmar um juízo já concebido.
Não importa quem seja, o lustrador é visto e tratado como um pária, um viciado sem virtude. Os mais jovens, normalmente estudantes, denunciam receber chacota por parte de seus colegas na escola, enquanto os adultos, que costumam ver o trabalho como apenas um bico temporário até conseguirem um emprego melhor, temem não serem contratados caso seus empregadores tomem conhecimento de que já foram engraxates. Se ser identifcado como engraxate signifca ser condenado à degradação moral, então, para eles, o melhor é nem ser identifcado. Por isso se disfarçam. Além das balaclavas, é comum entre eles o uso de pseudônimos durante o serviço, assim como uma segunda muda de roupas, tudo para resguardar suas vidas privadas da perseguição pública.
Um olhar ético, ch’ixie não
representativo
Crítica a etnografías convencionais, Cusicanqui (2015) elaborou uma metodologia própria de pesquisa que desse conta de apreender o pensamento próprio do indígena andino. Para ela, as ciências sociais são tradicionalmente frmadas em uma oposição entre o sujeito pesquisador, que observa e analisa à distância, e o objeto de pesquisa, as sociedades estudadas, vistas como atores passivos na construção do conhecimento. Em oposição à antropologia visual, tida como presa a perspectivas eurocêntricas, racionalistas e verticais, Cusicanqui propõe uma “sociologia da imagem” que utiliza diferentes recursos visuais, desde fotografas a desenhos rudimentares, para reconhecer múltiplas realidades em seus respectivos contextos singulares. Em suas palavras:
Do ponto de vista do visual, a sociologia da imagem é então muito distinta da antropologia visual, tanto que nesta se aplica um olhar exterior a xs “outrxs” e naquela o/a observador/a olha a si mesmx no entorno social em que habitualmente se desenvolve. Na antropologia visual necessitamos familiarizarmos com a cultura, com a língua e com o território das sociedades outras, diferentes da sociedade eurocêntrica e urbana de onde provêm xs pesquisadorxs. Pelo contrário, a sociologia da imagem supõe uma desfamiliarização, um distanciamento com o já conhecido, com a imediatez da rotina e do hábito. A antropologia visual se funda na observação participante, onde o/a pesquisador/a participa com o fm de observar. A sociologia da imagem, por outro lado, observa aquilo que já de fato parti-
cipa; a participação não é um instrumento a serviço da observação mas sim seu pressuposto, ainda se faz necessário problematizá-la em seu colonialismo/elitismo inconsciente. (CUSICANQUI, 2015, p. 2122)21
Apesar da autora estar se referindo especifcamente a trabalhos das ciências sociais, seus comentários também são aplicáveis à prática jornalística e documental. No fotolivro Héroes del Brillo, Federico Estol é simpático aos lustrabotas, mas inevitavelmente estranho ao seu mundo. Por isso, ao contrário de coletar apressadamente a história desses jovens marginalizados e, desta forma, arriscar cometer uma violência ética, o fotógrafo toma seu próprio tempo para se introduzir e conhecer o universo pacenho, uma aproximação que durou semanas e que foi mediada pela ONG Hormigón Armado.
Visando combater o preconceito e auxiliar na inserção social destes jovens, a ONG oferece apoio escolar, jurídico, à saúde, realiza ofcinas semanais, organiza tours turísticos e pu-
21. Tradução nossa.
blica um jornal homônimo. Em entrevista, o diretor e fundador do projeto, Jaime Villalobos, revela que, apesar de ser inspirado em outras organizações de auxílio a moradores de rua, como o Big Issue de Londres, o diferencial do Hormigón Armado está justamente na atenção a dimensão simbólica da discriminação e da desigualdade.
Eles oferecem aos engraxates selecionados22 a oportunidade de vender um jornal bimensal, redigido parcialmente por eles próprios. A publicação possui três objetivos principais: (1) primeiro, oferecer uma forma de auxílio fnanceiro aos benefciários, que investem o dinheiro arrecadado normalmente em comida, roupa e/ou material escolar. Em 2018, o jornal contou com uma tiragem de 5.500 exemplares a cada dois meses. O projeto também estima que cada edição gere cerca de US$3.000 de suporte econômico direto. (2) O segundo objetivo é educar os benefciários em vários temas a partir de ofcinas semanais. Em troca do direito de vender o jornal, se exige que participem de pequenos cursos ministrados por voluntários ou parceiros tanto bolivianos quanto estrangeiros. Os encontros abordam direitos humanos, segurança, drogas, sexualidade, entre outras temáticas de relevância para a juventude de rua e trabalhadora. Normalmente os textos
22. Infelizmente, o projeto só tem recursos para prestar auxílio a um número limitado de benefciários. Por isso, eles fazem “uma seleção cuidadosa”, dando prioridade para mulheres, especialmente mães. No ano de 2018, ele abrangeu 60 engraxates e suas famílias imediatas, somando quase duzentos benefciários diretos.
do jornal são produzidos individualmente ou em grupo durante essas ofcinas. (3) Por último, tanto as ofcinas quanto o jornal buscam, nas palavras de Villalobos, “a construção de autoestima”.
Estol aproveitou ao máximo o espaço e tempo já estruturado das ofcinas para dialogar abertamente com seus retratados. Através de um workshop de desenho e buscando inspiração nos quadrinhos jornalísticos de Joe Sacco e ArtSpiegelman, dezenas de bolivianos e um uruguaio compuseram um storyboard que serviria como guia para as sessões fotográfcas (Fig. 2). Desta forma, os engraxates não eram apenas modelos, posando sob as ordens de seu retratista, mas atores que participavam no processo de criação desde sua concepção. Além disso, o produto fnal não seria uma sequência de fotografas emolduradas e pregadas nas paredes de um museu, mas uma edição especial do jornal Hormigón Armado. Cada um dos participantes recebeu várias cópias impressas do fotolivro que poderiam guardar para si, presentear familiares e colegas ou até mesmo vender na rua (Fig. 3 e Fig. 4). Consequentemente, além do trabalho subjetivo, o projeto proporcionou um aporte que também é material e fnanceiro.
Fig.2. Exemplo de como um Storyboard foi adaptado para se tornar uma fotografa. Fonte: federicoestol.com.
Fig. 3 e Fig. 4. Lustrabotas vendem fotolivro Héroes del Brillo nas ruas de La Paz. Frame do Trailer do Projeto. Fonte: vimeo.com
O resultado não é apenas um trabalho gráfco de forte relevância social, mas uma obra artística engendrada desde sua idealização até sua distribuição seguindo um compromisso ético e político com a humanização efetiva do outro. Este processo contempla também uma forte experimentação estética, que, similar à sociologia da imagem de Cusicanqui, rompe com paradigmas representativos. Em uma entrevista, Estol (2018) sugere que, caso seguisse à risca a ambição realista que orienta a fotografa documental, ele não exporia a realidade em si, mas apenas construiria um retrato de como essa realidade é hegemonicamente percebida, o que, no caso dos engraxates de La Paz, culmina apenas em reforços de estereótipos. Héroes del Brillo, portanto, não se propõe a mostrar os engraxates da maneira como são (vistos), mas sim na maneira como querem vir a ser percebidos. Na prática, isso signifcou se afastar de um empenho meramente documental, dedicado, por exemplo, em capturar cenas ou eventos da vida desses sujeitos, em prol de abraçar uma proposta mais teatral e fccional, materializando através da fotografa uma história fantasiosa onde indignos conquistam dignidade.
Fotografar desde um ponto de vista documental tradicional um coletivo em que eles não mostram a cara sob nenhum contexto e utilizando uma balaclava, por mais que se recorra a estratégias, seguramente terminaria enfatizando a discriminação sofrida socialmente. Talvez o resultado para o mundo da fotografa teria funcionado, mas eticamente terminaria prejudicando o coletivo. Por outro lado, a fcção me dá a liberdade de pôr os valores em jogo de uma forma participativa e deliberando entre todos os elementos que formam as imagens. O jogo de converter em heróis os marginalizados só pode ser feito com a fcção, presenteia orgulho e geralmente nesses tempos tem mais
capacidade de transformação da realidade que a fotografa documental em um sentido estrito. Eu me considero dentro da categoria de narrativa visual (visual storytelling), um narrador de histórias visuais que concebe a realidade e a fantasia dentro de um mesmo canal, igual a um repentista fazendo rimas ao redor do fogo. (ESTOL, 2018)23
Esse esforço ético por parte de Estol culmina em uma narrativa visual que conquista efeitos na fotografa similares ao que o realismo mágico ou maravilhoso produz na literatura. Tal qual nesta tradição própria da pós-colonialidade (BHABHA, 1990), o real se vê constantemente invadido pelo fantástico, culminando em um mundo em que o ordinário e o extraordinário convivem de tal maneira que são quase indistinguíveis. Não se trata de uma tessitura dos acontecimentos escapista, em que a realidade é acriticamente abandonada para se mergulhar em de-
23. Tradução nossa.
vaneios. Héroes del Brillo justapõe espaços concretos com utopias, o físico com o possível, a memória com o sonho… Em síntese, trata-se de uma tradução gráfca que abrange mais do que o cimento e o asfalto, mas a cidade enquanto um local psicológico, defnido tanto pela geografa espacial quanto pela circulação difusa e caótica de múltiplas subjetividades.
Nesse esforço, outros suportes, além da própria fotografa, são utilizados, como colagens, gravuras e desenhos. Em uma página dupla (Fig. 5), a panorâmica de La Paz representa a dimensão “material” da cidade, mas compete com esboços de outras cidades, feitos em diferentes estilos e cores - um sutil indício de que não se trata de uma simples oposição entre real e imaginário: dentro do ambiente psicológico existem múltiplas fcções. Em destaque na composição, há um engraxate que admira a paisagem reconhecendo nela todas as suas múltiplas facetas.
Esta justaposição eclética corresponde ao conceito andino ch’ixi, entendido como um
Fig. 5. Páginas 15 e 16 do fotolivro Héroes del Brillo. Fonte: federicoestol.com.
contexto “abigarrado”, manchado e mosqueado em que convivem diferentes, que se confundem na percepção, mas sem se misturar. De acordo com Cusicanqui (2015, p. 295):
(Ch’ixi) É um modo de pensar, de falar e de perceber que se sustenta no múltiplo e no contraditório, não como um estado transitório que deve ser superado (como na dialética), mas como uma força explosiva e contenciosa, que potencializa nossa capacidade de pensamento e ação. Se opõe, portanto, às ideias de sincretismo, hibridez e a dialética da síntese, que sempre andam em busca do uno, da superação das contradições através de um terceiro elemento, harmonioso e completo em si mesmo24 .
Héroes del Brillo também pode ser lido tanto como um trabalho de fotografa documental quanto como uma história em quadrinhos, sem se identifcar integralmente com nenhum. O fotolivro ora narra o trabalho cotidiano dos engraxates ora inventa uma urbanidade paralela para eles ocuparem. Tudo isto enquanto perpassa por múltiplos materiais, técnicas e gêneros, às vezes simultaneamente presentes em uma mesma imagem.
Explorando El Alto com os lustrabotas
Os lustrabotas transitam por territórios dominados por classes e grupos rivais. São quem diariamente saem, vão e voltam de El Alto para La Paz e vice-versa, nunca pertencendo propriamente a cidade nenhuma. Se isso em parte mobiliza sua estigmatização, Héroes del Brillo mostra que também há aí uma potência: a categoria é capaz
24. Tradução nossa.
de explorar e percorrer diferentes dimensões da cidade ignoradas pelo restante da sociedade.
Esse caráter nômade é evidente na maneira como o ensaio os retrata em perpétuo movimento. Enquanto Brillo entrevista os engraxates estáticos, sentados sob um banquinho no meio de uma praça ou calçada, Estol não os deixa fcar parados. Se em dado momento, estão olhando da esquerda para direita, acompanhando o sentido normal de passar de páginas, em outro instante, já correm na direção oposta (Fig. 6) ou simplesmente descem para fora do quadro (Fig. 7).
Fig. 6 e Fig. 7. Respectivamente, páginas 23 e 24 e páginas 11 e 12 do fotolivro Héroes del Brillo Fonte: federicoestol.com.
O fotolivro faz óbvias referências às narrativas de super-herói e, seguindo os mesmos tropos, também tem seu próprio vilão. Esse ser monstruoso não tem máscara nem rosto, sua cabeça é feita de tiras de pano alaranjadas ou marrons e parece personifcar a poluição urbana. Emitindo uma fumaça amarelada com sua mão direita, a criatura suja e danifca os calçados dos pedestres. Afortunadamente, os lustrabotas possuem uma habilidade própria para contrapô-lo: o poder de dar brilho, manifesto como uma luz refetida que escapa de suas mãos (Fig. 8). Apesar de ganhar contornos sobrenaturais, o ensaio fotográfco ainda é, antes de qualquer coisa, sobre o ofício de engraxate. Não se trata, portanto, de apagar a realidade da categoria em favor de alguma idealização abstrata, mas sim de mostrar o cotidiano desses profssionais sob uma nova perspectiva.
Por décadas, a cobertura internacional escolheu retratar El Alto e a Bolívia através de narrativas de desespero e pobreza. Nesse sentido, o caso dos lustrabotas
foi recorrentemente trabalhado pela imprensa estrangeira como um exemplo de atraso e subdesenvolvimento (SANTOS e MARQUES, 2018). Para ser justo, apesar de passar por um longo período de prosperidade tanto social quanto econômica, a Bolívia ainda é marcada pela turbulência política e por uma população pauperizada, mas se fxar apenas nesses aspectos nega a agência de sua população, não contribuindo para combater de fato a precariedade que assola o país. Esta caracterização mantém a própria El Alto como uma “cidade largamente desconhecida ou mal compreendida por quem não habita ali, mesmo entre bolivianos” (LAZAR, 2008, p. 3).A partir dos anos 2000, o município passou a encarnar “o símbolo de uma Bolívia rebelde, popular e auto organizada, em que se manifesta mais do que em qualquer outro lugar o renascimento de lutas indígenas” (POUPEAU, 2010, p. 427). Hoje El Alto não pode ser mais descrito como apenas um “subúrbio miserável”, se tornando um dos principais eixos do desenvolvimento boliviano25.
25. El Alto é a segunda cidade industrial do país, com mais de 5000 estabelecimentos, dos quais já geraram 270 milhões de dólares em produtos manufaturados, exportados principalmente aos Estados Unidos. [...] O fato de que se produz anualmente mil empresas é prova do dinamismo da cidade” (POUPEAU, 2010, p. 11).
Fig. 8 e Fig. 9. Respectivamente, páginas 25 e 26 e páginas 13 e 14 do fotolivro Héroes del Brillo.
Fonte: federicoestol.com.
Nas viagens interurbanas dos engraxates, El Alto foresce ao fundo. Ao invés de destacar somente as velhas constelações monocromáticas de tijolo batido, Estol exibe os engraxates passando pelos chamados Cholets26 (Fig. 9), edifícios “esteticamente polêmicos” marcados por fachadas chamativas e adornos inspirados pelas culturas indígenas que defnem a “arquitetura neoandina” ou “andetectura” (DALY, 2019). Servindo ao mesmo tempo de residências para os novos ricos altenhos, casa de eventos para festas e galeria comercial, esses prédios referenciam uma estética futurista de franquias hollywoodianas, mas também rememoram padrões geométricos provenientes das tradições aimará. Desta forma, Cholets são um exemplo de uma combinação ch’ixi na arquitetura, em que conceitos “modernos” e “primitivos” coexistem sem necessariamente se fundir.
26. A denominação Cholet mescla a palavra de origem suíça “chalé” com “chola” ou “cholo”, um nome pejorativo que em geral se refere ao indígena que deixou sua comunidade indígena e roupa tradicional para assimilar-se a cultura mestiça “crioula”.(DALY, 2019).
As construções em si já marcam uma “busca por algo ‘fora do mundo’ que se vê frequentemente em novelas da fcção científca” (DALY, 2019, p. 64) e reforçam a surrealidade pulp das fotografas de Estol.
Depois de um confronto, os lustrabotas se unem e derrotam o maculador de sapatos. Vitoriosos, são celebrados pela população como heróis (Fig. 10). A imagem atesta que seu desejo coletivo nunca foi exatamente deixar de ser engraxates ou abandonar o mascaramento, mas sim conquistar reconhecimento. Apesar da forma e do tom, Estol não mostra nada mais que os lustradores seguindo seu trabalho diário de trazer brilho aos calçados de seus clientes. A diferença com a “realidade” é que, na sua fantasia, seu ofício lhes concede honra, ao invés de humilhação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fig. 10. Páginas 40 e 41 do fotolivro Héroes del Brillo. Fonte: federicoestol.com.
Depois da aventura, um dos engraxates heróis, do alto das montanhas, observa a cidade que atua como guardião. Com a missão cumprida, está pronto para voltar ao mundo “real”. De costas para a câmera, retira a máscara (Fig. 11). A balaclava não se torna obsoleta, seu uso é apenas suspenso, podendo retornar caso necessário. Ela é apenas posta de lado para voltar a habitar o universo ordinário dos demais cidadãos. Nesse sentido, a máscara não é um marcador do estigma da categoria,
mas sim uma relíquia mágica, que transfere esses jovens a uma La Paz e um El Alto alternativos, reimaginados como o palco de uma jornada épica.
Heróes del Brillo é uma obra de visível valor estético, que abraçou a experimentação artística para promover uma fabulação que reforça a dignidade de um coletivo marginalizado. A autoestima é construída através do processo de trabalho usado, pelas imagens criadas e também pelo seu produto fnal, o fotolivro revendido pelos engraxates. Tudo expõe a preocupação, do início ao fm, em manter um olhar ético e um compromisso social com os sujeitos que ambiciona retratar.
Fig. 11. Páginas 51 e 52 do fotolivro Héroes del Brillo. Fonte: federicoestol.com.
REFERÊNCIAS
ARBONA, Juan M.; KOHL, Benjamin. La Paz–El Alto. Cities, [S.L.], v. 21, n. 3, p. 255265, jun. 2004. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.cities.2004.02.004.
BHABHA, Homi K. Introduction: narrating the nation. In: BHABHA, Homi K. (Org.). Nation and Narration. Routledge: London, 1990.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CUSICANQUI, Silvia R. Sociología de la Imagen: Miradas ch´ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta limón, 2015.
______________. Ch’ixinakax utxiwa: una refexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.
DALY, Tara. La Andetectura de Freddy Mamani: Entre lo espectacular y lo epistémico. In: BRICEÑO, Ximena; CORONADO, Jorge. (Eds.). Visiones de los Andes: Ensayos críticos sobre el concepto de paisaje y región. La Paz: Editorial Plural, 2019. p. 47-77.
LAZAR, Sian. El alto, rebel city: self and citizenship in andean bolivia. Durham: Duke University Press, 2008.
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infnito. Edições 70: Lisboa, 2007 [1982].
POUPEAU, Franck. El Alto: una fcción política. Bulletin de l’Institut français d’études andines, Vol. 39, núm.2, p. 427-449, 2010. Disponível em: https://www. redalyc.org/articulo.oa?id=126/12618862009. Acesso em: 08 Fev. 2021.
SANTOS, Caio; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. Máscara, profanação e trabalho indignifcante: a fotografa como subjetivação dos engraxates de La Paz. Revista Ícone, Recife, v. 16, n. 2, p.254-271, nov. 2018. Disponível em: https://periodicos. ufpe.br/revistas/icone/article/view/237985 . Acesso em: 30 jun. 2019.
SCARNECCHIA, Antonella. Identidad y cultura: la máscara en América Latina - El caso de Bolivia. 2008. 126 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Posgrado en Estudios Latinoamericanos, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad Nacional Autónoma de México, México D. F., 2008.
SCARNECCHIA, Antonella; CAVAGNOUD, Robin. Los chicos lustra calzados de La Paz: el uso del pasamontañas como forma de máscara y símbolo de identidad. Bulletin de L’institut Français D’études Andines, Lima, v. 3, n. 42, p. 491-503, dez. 2013.
VIEIRA, Frederico; COELHO, Tamires; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. O rosto na imagem, imagem sem rosto: apontamentos para pensar outramente a relação entre estética e política. In: XXV ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 15., 2016, Goiania. Anais XXV Compós: Goiânia/GO. Goiânia: Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, 2016. p. 1 - 22. Disponível em: http://www.compos.org. br/biblioteca/marquestemplatecomposautoria_3289.pdf. Acesso em: 30 ago. 2018.
__________________________________________. A vulnerabilidade e o rosto em imagens de sujeitos empobrecidos: notas para pensar outramente a relação entre estética e política. Parágrafo: V. 5, nº 1, 2017.
WANDERLEY, Fernanda. A Bolívia entre a mudança e a inércia: regime de emprego e bem-estar social nos últimos vinte anos. In: DOMINGUES, José M. … [et al.] (Org.) A Bolívia no espelho do mundo. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009. pp. 161 - 180.
ZAPATANA, Verónica. En La Paz se duplica la cifra de los niños lustracalzados. Página Siete. La Paz, 28 abr. 2017. Disponível em: https://www.paginasiete.bo/sociedad/2017/4/28/duplica-cifra-ninos-lustracalzados-135881.html. Acesso em: 09 jun. 2020.
Montar uma árvore genealógica é o gesto de recuperar as pessoas que foram responsáveis por originar uma linhagem familiar. Essa genealogia muitas das vezes é enquadrada afetivamente com um sentimento de orgulho e pertencimento, pois, através dessa recuperação, seria parcialmente possível que o sujeito que a observa possa mirar a sua história familiar e as trajetórias que possibilitaram sua habitação no presente.
Entretanto, há casos em que recuperar esse longo histórico familiar é uma tarefa de grande difculdade, principalmente no que diz respeito à disponibilidade de documentações que comprovem as relações de parentesco. O acesso aos cartórios, aos equipamentos de fotografa e as possibilidades de conservação de documentos se relacionam com a condição socioeconômica das famílias, uma vez que, em uma sociedade em que as opressões de classe, raça e gênero mediam o capital fnanceiro, o acesso à educação e as condições de sobrevivência, pode-se imaginar que o apagamento sistemático de algumas his-
tórias familiares seja raridade. Outro fator de difculdade tem relação com o abandono paterno, que no Brasil historicamente retira das documentações o nome de um descendente direto da criança nascida.
Há também no gesto de traçar a linhagem familiar uma ambiguidade, tendo em vista que reconhecer as relações de parentesco nem sempre é motivo de orgulho, mas também pode provocar descobertas inusitadas ou negativas. É sobre as difculdades e acontecimentos delicados que podem ser encontrados na busca da história familiar que o curta Pontes Sobre Abismos27 (2017) aparenta narrar. Dirigido pela artista visual Aline Motta, o curta mostra sua busca em conhecer suas heranças familiares após descobrir que sua avó, uma mulher negra, nunca foi registrada pelo seu pai, um homem branco.
Pontes Sobre Abismos (2017) é a primeira parte de uma trilogia28 em que Aline propõe, por meio de viagens em diferentes cidades do Brasil e países do continente africano e de Portugal, flmar a sua tentativa de construir uma história sobre a origem de sua família materna. Além disso, a artista fala sobre sua identidade enquanto uma mulher negra/mestiça que, de certa forma, é herdeira do legado deixado pelo tráfco de pessoas negras escravizadas.
28. A Trilogia é composta pela sequência de videoinstalações Pontes Sobre Abismos, Se O Mar Tivesse Varandas e (Outros) Fundamentos. Confra fotos da Trilogia aqui: http://www.alinemotta.com/Trilogia-Video-Trilogyvideoinstalacao-video-installation.
Em seu website, a diretora informa que Pontes Sobre Abismos foi construído a partir de flmagens nas zonas rurais do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Portugal e Serra Leoa, além de utilizar imagens que foram encontradas em arquivos públicos e privados desses locais. O curta integra uma videoinstalação editada para ser vista em três canais de projeção em paredes. No formato de divulgação online, os canais tiveram suas dimensões reduzidas para que as três telas pudessem caber no usual 1920 x 1080p.
Partindo de uma breve apresentação do curta, desenvolveremos refexões e análises acerca das formações da identidade afro-latina no Brasil. Iremos discorrer acerca das relações raciais e das colonialidades que constituem o pano de fundo das experiências que nós, pessoas negras mestiças, vivenciamos ao tentar construir árvores genealógicas. Através de Pontes Sobre Abismos (2017), acreditamos que possíveis lampejos e conexões podem tornar legível a habitação ambígua em que estamos inseridos, tendo em vista que, ao evocarmos a ancestralidade, somos obrigados a lidar com os confitos raciais que envolvem nossas descendências.
Para a investigação, teremos como base teórica e metodológica a concepção do texto verbovisual proposta por Gonzalo Abril (2012). O autor compreende que o texto é qualquer unidade de comunicação, multisemiótica ou não, sustentada por uma prática discursiva e inserida em uma rede de conexões com outros textos. Leal (2018), partindo das contribuições fundantes de Gonzalo Abril, afrma que essas conexões podem ser vistas tanto na forma entre macro/micro dentro de um mesmo contexto de produção, por exemplo, cinema/flme, flmes/fcção, flme/cena. Mas também pode ser apontada na ordem comparativa entre signo a signo em contextos diferentes (frame/frame, texto/foto, som/imagem). Nesta direção, olharemos para o curta Pontes Sobre Abismos através da perspectiva do texto audioverbovisual, que reúne
elementos sonoros, verbais e visuais para construir relações de sentido e propor um universo narrativo, uma visão sobre o mundo em que habitamos.
Na perspectiva de Abril (2012), a experiência visual é dividida em três dimensões: a mirada (olhar), a visualidade e a imagem. De acordo com Leal e Mendonça (2018), a experiência visual opera em um jogo de visibilidades e invisibilidades. Estes são orientados por fatores materiais percebidos pelo sensível, pelos fatores culturais e sociais. Ao comentarem essa proposição de Abril (2012), os autores afrmam que:
[...] a visualidade não é o mesmo que a visão. O teórico argumenta que devemos tratar a visualidade como uma “visão socializada”, ou seja, a relação visual entre o sujeito e o mundo mediada por um conjunto de discursos, de signifcantes, de desejos e de relações sociais [...] De acordo com este pensamento, se relacionam de
maneira inseparável os domínios da visualidade, da imagem e da mirada. A imagem, nesta dimensão, está relacionada aos imaginários e o olhar ao ato de ver como enunciação: sujeitos, espaços e tempos do discurso. (LEAL e MENDONÇA, 2018, p.110)
Desse modo, buscaremos salientar os elementos audioverbovisuais do curta que nos permitem compreender as visualidades, olhares e imagens, além dos elementos que denotam os tempos e espaços ancestrais propostos por Aline Motta. Buscaremos entender a forma como o flme lança seu olhar sobre o tempo-espaço, maneja elementos sensíveis para construir suas visualidades e constrói sua relação com os imaginários.
Localizações teóricas
A raça, enquanto uma categoria de hierarquização e valoração de corpos e culturas, estabeleceu a forma predatória
como as relações sociais entre os povos europeus, indígenas e os povos africanos foram mediadas. Através dos movimentos de navegação e conquista do espaço que viria a se chamar América Latina, os povos ibéricos iniciaram o processo do extermínio e imposição cultural sob as civilizações indígenas, justifcando-se pela noção de superioridade atribuída à percepção do homem branco como o pilar do desenvolvimento humano.
Tendo como base justifcativas iguais ou próximas, a escravização e importação das civilizações africanas posteriormente soma-se à essa conjuntura de eliminação do ser não branco nas colônias. Conforme propõe Quijano (2005), a constituição da raça enquanto ferramenta de dominação e exploração são as bases da colonialidade do poder, forma como as políticas corporais, institucionais e econômicas se instauraram nas colônias e passam, ao longo do tempo, a serem colocadas como o padrão seguido mundialmente.
A partir das refexões de Quijano (2005), podemos afrmar que o eurocentrismo/racismo toma lugar como plataforma estética, epistêmica e biológica hierarquizante pelos seguintes motivos: 1) a separação entre corpo, alma e razão como constituinte da humanidade e do reconhecimento do sujeito promovida pelo Renascimento, Iluminismo e as revoluções burguesas; 2) a distorção histórica que coloca a origem do ser humano “evoluído” como advinda das tradições helênicas, seguindo um sentido evolucionista que parte do “ser natural” até a categoria “humana” dada aos povos europeus.
Quijano (2005) defende que a auto atribuição do ser europeu como sinônimo de humanidade, a partir de uma lógica biológica (racial), foi construída para ignorar a
história da distribuição e usos do poder, dando permissividade e anuência para que as atrocidades coloniais continuassem a serem efetivadas.
Diante do processo histórico de construção da Europa como o centro de desenvolvimento racional, universal e incontestável, o ethos europeu sustentou uma série de mitos e concepções que promovem o deslocamento de si do tempo e do espaço compartilhado, tal como a modernidade e suas demandas pelo desenvolvimento. Além disso, esse movimento violentou saberes, tempos e modos de existência, visto que, “o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2005, p. 12).
Rita Segato (2013) nos lembra que a raça não deve ser pensada apenas como o julgamento de valor atribuído à cor da pele, mas também como “à posição do derrotado na história colonial: o racismo é epistêmico, no sentido de que as epistemes dos conquistados e colonizados são negativamente discriminadas” (SEGATO, 2013, p. 27)29. Para a
29. Tradução nossa.
autora, raça também se constitui como uma categoria identitária e é utilizada como elemento político de unifcação e separação, dado que ela denota parte do senso de pertencimento do sujeito ao estado-nação ou espaço em que habita. Segundo Segato (2007), há uma herança colonial dos modos de conceber o espaço, pois, a presença de identidades o transforma em um território em que a presença do outro se faz enquanto uma fgura externa. A autora afrma em sua obra que o “território é espaço apropriado, traçado, percorrido, delimitado. É uma área sob o controle de um sujeito individual ou coletivo marcado pela intensidade de sua presença e ambos indissociáveis das categorias de dominação e poder” (SEGATO, 2007, p. 72)30.
Nesta direção, as diferenças e semelhanças raciais que uma população possui são uma força política utilizada para o perflamento e distribuição da permissão/negação do direito à ocupação do espaço. Bem como são utilizadas para homogeneizar a história e a identidade de uma nação, objetivando que as formas de distribuição do poder permaneçam benefciando àqueles que não são considerados “outros’’ - os que não compõem uma alteridade histórica. Neste caso, nos países pós-coloniais, como o Brasil, as políticas de território baseadas na racialização se organizam para manter e conceder privilégios aos herdeiros da elite branca colonial e as novas elites capitalistas. Ao mesmo tempo em que essa formação territorial inclui o contingente outrifcado de negros, indígenas, pobres e demais dissidências políticas, ela lhes garante a permanência em um estado de subalternidade.
30. Tradução nossa.
Tal como lembram Segato (2007) e Lélia Gonzalez (2020), o Brasil possui em sua história política a atuação do racismo velado, na qual suas agências são escondidas sobre a pretensa unifcação da identidade nacional pelas fguras da miscigenação e da democracia racial. Ao afrmar que a população é uma mistura do tripé de raças branca, africana/negra e indígena, o estado brasileiro mostra-se um exemplo da mobilização da raça enquanto uma categoria de apagamento das desigualdades históricas deixadas pela colonização.
Construiu-se, por meio de produções culturais e pelas políticas eugênicas de importação de mão de obra imigrante, um projeto que corta as ligações ancestrais com a população indígena e africana. Estas ações foram orientadas por um ideal de branqueamento que, conforme lembra Gonzalez (2020) “reproduz e perpetua a crença de que as classifcações e valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais” (GONZALEZ, 2020, p. 168). O projeto de miscigenação pautado pela noção de homogeneidade racial “[...] era a fgura que garantia esta opacidade da memória” (SEGATO, 2007, p. 25)31, e assim demonstra como a categoria identitária racial pode ser mobilizada para operar esquecimentos. Em outra perspectiva, a raça é vista como um elemento de unifcação política que reúne os marcados em torno da desarticulação das estratégias coloniais de apaziguamento dos confitos históricos. Como lembra Segato (2007), a raça pode se transformar em um marcador que congrega multidões que compartilham da desapropriação do corpo, do território e de seus saberes ao longo da história. Ela, torna-se, portanto, um berço da identidade. 31. Tradução nossa.
O estado de não pertencimento traz à tona a oportunidade de reconstruir os modos de existência, de habitação em si e no mundo. Tal como repensar o lugar da miscigenação dentro da história e seus usos como elemento de apagamento das violências cometidas pelo Estado e agentes civis. Ou seja, dá a possibilidade de delinear os confitos existentes no seio de nossa sociedade a fm de retirá-la da forma colonial que enclausura nossas imaginações políticas.
Em vista disso:
[...] a raça, como tal e sem predicados fxos em termos de cultura, pode se tornar referência para a ruptura de uma mestiçagem politicamente anódina e também em vias de construção.
Isto assim, porque a raça, como signo, é um indício da possibilidade de uma memória que pode orientar ao resgate de saberes antigos, de soluções esquecidas, em um mundo em que nem a economia e nem a justiça são viáveis. (SEGATO, 2007, p. 25)
32. Apesar do artigo ter como seu foco a dimensão da raça e da mestiçagem, temos a intenção de deixar evidente que as colonialidades do poder, saber e ser subscrevem as demais localizações da vida social, como as expressões de gênero, sexualidade, as conformidades do corpo e as visões de mundo. Reconhecemos a urgência do debate e prática de descolonização nestas esferas.
Tendo em mente o contexto turvo e imbuído de disputas de poder que envolve a constituição da América Latina, uma nova forma de se pensar a identidade, no que diz respeito à racialidade (mas não só)32 , se faz necessária. É preciso uma maneira afada e contra colonial de lidar com as heranças genéticas, históricas e culturais da africanidade, indianidade e da “europidade”. Por mais que essas matrizes tenham sido povoadas em nosso imaginário, ora como caixas identitárias separadas, ora com uma grande sopa de misturas culturais, realçar as diferenças, contrastes e contradições que nos compõem enquanto sujeitos coletivos/individuais encaminha-se como uma das soluções contra a série de apagamentos aqui discutidos.
Nesta direção, o conceito da “nova mestiça” de Gloria Anzaldúa (2005) nos parece interessante para observarmos a situação em que nós, latino-americanos, nos encontramos em relação à história de nossas identidades. Através de uma teoria autobiográfca que parte de suas inquietações como uma mulher mestiça
de origens indígenas, mexicanas, espanholas e estadunidenses, a autora refete sobre as histórias das injustiças na constituição do México e suas fronteiras com o Texas e a Califórnia.
Anzaldúa (2005) analisa como a conquista do território pelas expedições espanholas iniciou um processo violento de subjugação das culturas ameríndias, por meio de guerras e da subalternização da fgura da mulher pela violência, exploração laboral e estupro. Seu olhar também se volta para as camadas de opressão inauguradas pela formação da fronteira com os EUA, nos processos de imigração e disputa entre 1820 e 1836. Ao fm, parte do território mexicano, que hoje compreende o estado do Texas, foi dominado pelos imigrantes estadunidenses na criação da extinta República do Texas. Esse movimento econômico e bélico instaurou diversos processos opressivos na distribuição de terras, regimes de trabalho abusivos, mas também na discriminação da cultura do povo chicano, parte da população mexicana que foi obrigada a se “tornar estadunidense” após a fusão da República do Texas aos EUA em 1845. Cria-
da no que Anzaldúa denomina de “borderland”, uma fgura de espaço habitada em que a fronteira possui a força superior à noção de margem, a autora analisa que a constituição de sua identidade e ancestralidade está assentada sobre histórias de violência que conectam tempos que vão desde o período pré-colonial até a estruturação do imperialismo estadunidense. A mestiça, oprimida interseccionalmente, vive na ambiguidade e confito de ter em sua tripla origem emaranhada, de modo que: “dentro da cultura chicana, crenças arraigadas da cultura branca atacam crenças arraigadas da cultura mexicana, e ambas atacam crenças arraigadas da cultura indígena“ (ANZALDÚA, 2005, p. 705). Dessa maneira, a mestiça sofre uma série de deslocamentos e silenciamentos pela sua condição de idioma, seu sotaque, sua cor, sua expressão de gênero, seus gostos e pela sua história familiar.
Através da proposta da “nova mestiça”, Anzaldúa (2005) defende uma postura epistêmica e política perante as contradições da mestiçagem. Sua busca é por fazer que a ferida colonial sangre para que novas possibilidades de habitar as fronteiras identitárias, espaciais, temporais, raciais, de gênero e sexualidade possam emergir. Para a autora, a nova mestiça trabalha na ordem de fazer um inventário com esforço de separar quais são suas heranças que advêm dos indígenas, dos brancos, espanhóis, mexicanos e estadunidenses. Ela busca entender o que lhe foi imposto e o que lhe foi dado. É possível, dessa forma, desenvolver uma “tolerância às ambiguidades” (ANZALDÚA, 2005), pois, a nova mestiça “não apenas sustenta contradições como também transforma a ambivalência em uma outra coisa” (ANZALDÚA, 2005, p. 706).
Por certo, através dessa peneiragem do que há de colonial em nosso presente, em nosso passado e no futuro, nos munimos politicamente para enfrentar os projetos que buscam perpetuar tal herança. Tomamos emprestado o pensamento de Gloria Anzaldúa (2005) para repensarmos a relação que possuímos no Brasil, uma nação
construída à base de extermínios dos povos indígenas, africanos, afrobrasileiros, mas que conservou institucionalmente a cultura, história e genes portugueses e europeus. O que há de herdado nas mestiças e mestiços do Brasil? Nosso lugar ambíguo e nossa desgraça compartilhada nos unifca ou nos separa enquanto grupo político de uma nação?
Enfrentar o tripé das três raças fundadoras sob a ótica das autoras aqui acionadas nos convoca a observar o curta de Aline Motta com um olhar pragmático, buscando compreender de que maneira esse produto comunicacional questiona ou complementa nossas teorizações. E como, a partir do atravessamento de seu mundo narrativo, nós, enquanto seres, podemos habitar de outra maneira nossa própria identidade?
Descrevendo as invocações de Pontes
Sobre Abismos
No início do curta, somos introduzidos à linguagem conceitual que o constitui: a presença de pessoas negras e brancas tecidas em um lençol quase translúcido. Essas imagens impressas em preto e branco estão penduradas em um varal e balan-
Fig. 1. Frame inicial do curta Pontes Sobre Abismos
çam embaixo de um céu nublado. Vemos o rosto de duas mulheres negras estampados nos lençóis, enquanto Aline descreve a imagem como se também estivesse na posição de espectadora. Ela narra: “Eu vejo uma mãe e uma flha. Eu vejo uma Avó e uma bisavó.
Elas estão unidas pela cabeça. São negras, são da minha família. Eu descendo delas. Elas não estão mais vivas, mas eu posso evocar suas imagens, vento e bruma.”
Aline, ao explicar seu gesto de reviver as imagens de seus familiares, é acompanhada por gritos, cantos, palmas e o soar de tambores ritmados de forma rápida. A luz das imagens anuncia o horário de um possível amanhecer ou anoitecer. A câmera acompanha o balançar das fotografas penduradas e deixa ver que ao lado e ao fundo há casas. O clima cinza do possível quintal é interrompido ao fm da narração de Aline. As três telas passam a mostrar pequenas ondas em uma superfície aquática.
A sequência seguinte transforma as ondas calmas anteriores em um rio de águas claras e povoadas pelo forte verde de plantas que vivem em seu interior. O corte seco revela aos poucos as mãos de meninos negros que estendem sobre as águas imagens de Mariana Francisca da Conceição, bisavó de Aline, Doralice, sua avó e sua mãe. Também podemos ver fragmentos de documentos escritos à mão que parecem ser cartas, certidões de nascimento e legendas de álbuns de fotografa. As imagens de tecido se tornam fuidas e seguem o fuxo da água. O brilho causado pelo cristalino das águas quebra o preto e branco dos lençóis e fazem reviver as imagens das mulheres negras. Inicia-se, dessa forma, a evocação/invocação de suas existências, o que prediz os gestos futuros realizados pela diretora no curta.
As águas e sons do rio aos poucos se transmutam em barulhos de ondas fortes de um mar que toma conta de duas das três telas. Vemos uma certidão de nascimento, que parece ser de Aline, impressa em lençol e pendurada em um pedaço de árvore fncado na areia da praia. Um close evidencia a designação de cor branca no registro
Fig. 2. Frame ilustrativo da segunda sequência do curta Pontes Sobre Abismos
Fig. 3. Frame da certidão de nascimento e fotos de Aline
da criança. Ao lado, vemos uma foto de uma criança negra em preto e branco sorrindo enquanto a impressão balança com o vento da praia.
Fig. 4. Imagens impressas de Enzo, bisavô branco de Aline
Os cortes que criam closes e distanciamentos nos três canais são secos e raras vezes utilizam de transição mesclada. Da praia, as imagens são levadas a um terreno de uma região montanhosa. A tela da esquerda mostra a imagem de um homem branco e barbudo impresso em um tipo de pontilhismo grosso. Aos poucos, as demais telas vasculham o quintal e os restos de uma casa abandonada de arquitetura simples. Dentro se encontra dependurada outra imagem deste senhor. Na porta, que é flmada na perspectiva de quem está dentro e de quem está fora, se encontra um lençol com a imagem do senhor ligada pela cabeça ao de um homem branco mais jovem. No quintal e no interior de outra casa, a imagem de uma das mulheres negras que estampam a cena inicial é colocada na cerca, em uma árvore que cresce dentro das ruínas do imóvel e sendo estendida por um homem negro que é flmado na contraluz de uma varanda. Nesse momento, Aline conta ao espectador a memória que constitui o argumento do curta:
Um dia minha avó me disse que ia me contar um segredo. Ela disse: eu nunca conheci meu pai, ele nunca me reconheceu como flha. O nome do meu pai é Enzo. Enzo Pereira de Souza. Enzo era o flho do patrão. Filho do patrão na casa de sua mãe, onde minha bisavó Mariana trabalhava. Mariana engravidou de Enzo e foi mandada embora.
Anos se passaram. Eu demorei muito tempo procurando por Enzo, até que encontrei seu nome nos jornais. Ele aparece muitas vezes na coluna social, era muito popular. Naquele dia, uma outra família nasceu. A outra metade do DNA da minha avó.
Enquanto narra sua busca pelos registros dos feitos de seu bisavô em jornais, as imagens que acompanham a narração se dividem nas três telas. Cada uma com imagens impressas sendo estendidas sobre lugares diferentes. Se aproximando da afrmação em que diz ter encontrado a outra parte do DNA de sua avó, as imagens aos poucos vão se preenchendo com uma casa pequena construída de pedra e trazem consigo um aspecto de construção medieval europeia, estrangeira às construções anteriormente apresentadas. A vegetação rasteira e de verde escuro também nos deslocam das demais apresentadas no curta até então.
Nas sequências a seguir, Aline lê a ata de registro do nascimento de sua avó feito pelo seu tio, Francisco Veríssimo dos Santos, em 13 de julho de 1911. Doralice é registrada como parda. Francisco, por não saber ler, registra a sobrinha por intermédio de um escrivão, como destaca Aline no trecho “para constar que está lido com testemunhas assinam: José Ferreira Garcia à roubo do declarante. Por não saber escrever, eu Francisco Canaveses, escrevente, o escrevi.” Enquanto lê os termos, colagens e recortes de jornais em que Enzo foi citado são manifestados nas três telas e sofrem rabiscos vermelhos.
Pessoas encarnadas aparecem no curta ao fm da narração da certidão de nascimento de Doralice. Uma mulher negra de turbante é flmada no canal central segurando um porta-retrato ao lado de um dos lençóis que contém impresso uma mulher. Há
Fig. 5. Instalação das imagens em ruínas aparentemente localizadas em Portugal
uma grande semelhança entre as duas. Em seguida, imagens de portas, igrejas, cemitérios e uma procissão noturna são mescladas com o som de um canto lento com eco, vozes rezando Ave Maria e batuques rápidos de um tambor. Ao fm da reza, o tambor permanece e o desenho de um leopardo correndo toma conta das três telas. Enquanto o leopardo corre, Aline narra a história da amizade do fogo com o leopardo, cena que encerra o curta:
Todos os dias o leopardo visitava o fogo. Curiosa sobre a identidade do fogo, a mulher leoparda pediu para que o leopardo levasse o fogo até a sua casa. O fogo respondeu o convite do leopardo e disse: eu ando sobre folhas secas. O leopardo então fez uma trilha de folhas secas até a sua casa. O fogo o acompanhou até a casa e quando chegou lá a consumiu inteira. A mulher leoparda vendo o fogo queimar tudo perguntou: é esse seu amigo? Foi assim que o leopardo ganhou suas pintas.
Nossas suspeitas, análises e possíveis conclusões
Partindo das considerações teórico-metodológicas na perspectiva do texto verbovisual de Abril (2012), vemos que a estratégia narrativa de Aline usa de outros elementos midiáticos, como certidões, jornais e fotos para costurar seu curta. A diretora mobiliza os materiais de cunho arquivístico para construir uma visualidade que estabelece relações temporais memorialísticas. Seu ato de descrever as fotos penduradas convoca os sujeitos do discurso para o enunciado. Isso pode ser visto na fgura da mãe e da avó, e nesta direção, também conjuga a dimensão temporal da ancestralidade por meio da descendência direta.
Na dimensão do olhar, a foto de sua avó e sua mãe constrói uma angulação de mirada familiar e afetuosa, que aponta para uma lembrança que quer ser regis-
trada. Uma dimensão do imaginário parece reiterar a condição de descendência por meio da conjugação das telas em que é mostrada a certidão de Aline sendo designada como branca. Visto que, na sequência seguinte, as fotos de seus supostos antepassados brancos começam a ser trazidas para as ruínas da casa. Isso provoca, através de leitura narrativa de trás para frente, o imaginário do processo de embranquecimento e mestiçagem. Ao longo da narrativa, essa percepção do imaginário da miscigenação ganha mais força e visualidade a partir da convocação do relato de Doralice sobre o abandono paterno.
Partindo do relato de Doralice, a narrativa convoca, através do elemento verbal encarnado na voz da diretora, a personifcação das personagens brancas. Ao menos uma é nomeada como Enzo. Neste momento, a dimensão do olhar/mirada alçada sobre os retratos dos homens brancos pode ser entendida como documental, pois há na fala de Aline a intenção de busca pela fgura de Enzo. Sendo assim, exis-
te uma tonifcação imagética que deseja comprovar a existência dos antepassados fugitivos pela documentação. As memórias que tentaram ser esquecidas com o abandono de Enzo são confrontadas pela sua própria imagem.
A dimensão de um imaginário colonial, do pós-escravidão e o contexto de desigualdade social é trazida pela citação do lugar de trabalho de sua bisavó, Mariana. Isso está presente na sua relação de demissão pela fgura da patroa, na condição de sujeito flho do patrão de Enzo e pela falta de acesso à educação do tio, que registra sua sobrinha por intermédio de outrem.
Em relação à dimensão da espacialidade, as visualidades manejadas pelo curta trazem a presença do verde, dos tons terrosos, da água e de um azul que remetem à natureza. Essas visualidades parecem estar apontando para uma ação de brotar, crescer, de expor raízes das árvores que saem da terra, dos brotos do leito do rio. Há, nesse sentido, uma situação de grande aproximação entre imaginário e visua-
lidade, no que diz respeito à fgura da ancestralidade exposta na árvore genealógica e na condição de raízes como o local de onde se nasce, mas também como a parte da planta que toma conta das ruínas, invade buracos e abala alicerces.
Ao nosso ver, a temporalidade da ancestralidade que é evocada no curta é espiralar. Ao mesmo tempo em que a descendência se faz um caminho para a construção da ancestralidade, ou seja, o caminho para as heranças de matrizes éticas que formulam potencialidades identitárias, olha-se para o passado para poder se estruturar enquanto um ser possuidor de história e de bases civilizatórias no presente. O que leva às ressignifcações do futuro, e ao despertar de novas possibilidades de existência.
O flme de Aline apresenta uma mirada para a ancestralidade em que a romantização ou a idealização de uma sabedoria ou conteúdo precioso não ocorre. O encontro exclusivo com histórias positivas com as quais se pode inspirar a construção de uma identidade não parece ser uma realidade possível para Aline e para muitos de nós mestiços. A descendência é fragmento que turva e torna ambígua a busca por um ancestre livre de contradições. É preciso lidar com as dores e os traumas dos antepassados que estão distantes do sentimento de orgulho para dar lugar à consciência e identidade palpável, que consiga sobreviver ao limbo entre o preto e o branco. O “não ser” do pardo, dessa forma, adquire materialidade para constituir a si próprio.
Há no flme uma briga com o modus operandi de documentação e compactação das existências na fgura do arquivo feita pela historiografa tradicional, bem como as formas de recuperação da memória. Existe um confito em quem pode ocupar o tempo, ser lembrado através de fotos, documentos, jornais, registros institucionais que são excludentes, simplifcadores e que deixam apagados detalhes que precisam
ser contados. Isso salta aos olhos quando o registro de Doralice é construído com a ausência do nome do pai, com sua cor sendo defnida e com seu tio sendo escrito por uma terceira pessoa, visto que ele não sabe ler. Há uma série de terceirizações, apagamentos e distanciamentos que retiram a agência da existência de Mariana e Doralice dos arquivos.
Ao mesmo tempo, há uma dependência da presença documental para que Aline consiga percorrer e trazer à tona os acontecimentos passados que envolvem seus descendentes, mas a diretora cria outros modos de utilizá-los: ela os convoca para os espaços. Não basta ter acesso ao arquivo, é preciso que ele seja espacializado para que se torne um corpo, uma memória passível de reformulação e transgressão perante o caráter estabilizante provocado pelo arquivo.
Pontes Sobre Abismos convoca novos modos de leitura e apropriação dos textos verbovisuais de cunho arquivístico ao transformá-los em tecidos, lençóis que
absorvem água e são lavados. São trazidos novos enquadramentos, pois, ao mesmo tempo em que a diretora depende dessa armadilha da história, ou seja, a busca das materialidades dos arquivos, não basta apenas encontrar os documentos, é preciso fazê-los perder seu uso sociodiscursivo tradicional. Quando estes são levados à água, ao mar, aos rios, aos matos, às ruínas, aos andaimes e outras superfícies, eles são complementados. Esses documentos frios são dotados com vivacidades, novas cargas de sentidos para dar conta de lidar com a inabilidade do arquivo em possibilitar para as pessoas negras a experiência de ancestralidade. O arquivo faz parte, mas é incompleto.
O gesto de imprimir as imagens e levá-las até às ruínas convoca o corpo enquanto condição de acesso ao passado e ao ancestre, mesmo que seja por meio da conjuração da imagem. A diretora não vai aos lugares de forma arqueológica para buscar vestígios. É preciso que esses espaços se entrelacem com os corpos imagéticos. Ou seja, ao atribuir um sujeito ao espaço, para que ele possa ser conjugado em uma ordem de sentido dentro da experiência política e estética proposta, o curta de Aline constrói um espaço que escapa a limitações do território propostas por Segato (2007). O corpo e a imagem do corpo são tidos como espaços, lugares de construção de si. Para que sua identidade seja construída no curta, há uma co-dependência entre o espaço como um campo físico e o espaço que se projeta através da incorporação.
O que o flme parece enunciar, no que diz respeito a busca da identidade, é a mudança da frase “quem eu sou” para um trânsito interminável “de quem eu fui” e “quem eu posso ser”. Não é a busca por se defnir mestiça, mas sim o encontro dos nós e acontecimentos que permitem ocupar a mestiçagem enquanto uma categoria política que denota danos, mas que também permite ao sujeito reivindicar uma série de
dívidas, espaços e tempos retirados pela opressão racial. A leoparda trazida ao fnal do curta pelo conto narrado, aqui pode ganhar o nome de “nova mestiça” (Anzaldúa, 2005), pois, ao enfrentar o fogo investigando seu passado, as queimaduras lhe doam cicatrizes em forma de pintas, mas é a partir delas que sua sobrevivência será potencializada com a habilidade da camufagem.
Os tambores, as velas e a presença da religiosidade trazem um ar ritualístico que é reiterado pela ação de pendurar as imagens para flmar. É um rito que se completa quando as imagens são flmadas. Um ebó, no candomblé e em algumas religiões de matriz afrobrasileira, é o costume, ritual e prática ética que se realiza com a intenção de equilibrar as energias vitais, liberar o axé, realizar uma limpeza através do preparo de uma comida votiva ou um sacrifício. O que vemos no curta Pontes Sobre Abismos é um ebó imagético, no que tange à noção de ebó enquanto manejo e fuxo de energias que se transformam, trafegam entre o bem e o mal, ou deixam
o estado de imóvel que fecha os caminhos para se tornar o fuido que permite a passagem do novo.
Contar as histórias de nossas ancestralidades, mobilizar esse esforço estético e poético é um ritual que sopra a poeira que estava acumulada em cima desse ser no tempo. Limpa esse sujeito coletivo que a experiência de racialidade e da mestiçagem nos engloba. Abrem-se os caminhos para que possamos atravessar as pontes e os abismos de ser negro e mestiço. Libertam-se novas visões e existências da história de Aline Motta, de sua mãe, sua avó Doralice e sua bisavó, Mariana Francisca Conceição.
Em suma, acreditamos que o curta Pontes Sobre Abismos (2017) exerce sobre o mundo uma função política: a de se apresentar como um objeto desestabilizador das temporalidades acerca da mestiçagem. Sem dúvida a narrativa construída por Aline Motta questiona os usos do conceito de mestiçagem como uma forma de apagar a história da opressão racial existente no
Brasil. Esse ato comunicativo nos convida a repensar nossas existências enquanto negros, mas, também enquanto brancos, indígenas, amarelos, pardos, pretos e demais categorias identitárias raciais. Sobretudo por chamar a atenção para a possível presença de passados obstruídos pela lógica do arquivo. Se há no flme de Aline a travessia de uma ponte, cremos que o destino que ela nos leva é até a inquietude e a coragem de revisitarmos nossas identidades sem o medo de nos perder, mas com a certeza de que há algo para além da sensação de deriva.
REFERÊNCIAS
ABRIL, Gonzalo. Tres Dimensiones del Texto e de la Cultura Visual. Revista Científca de Información y Comunicación, Sevilla, v. 9, n. 1, p. 15-35, dez. 2012.
ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza / Rumo a uma nova consciência. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 13, p. 704-719, set. 2005. Tradução de Ana Cecilia Acioli Lima.
GONZALEZ, Lelia. Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. São Paulo: Zahar, 2020.
LEAL, Bruno Souza; MENDONÇA, Carlos Camargos. Ver a elas: mulheres trans e dimensões políticas da cultura visual. In: LEAL, Bruno; CARVALHO, Carlos Alberto; ALZAMORA, Geane (Orgs.). Textualidades Midiáticas. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG, 2018. p. 103-112.
QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
SEGATO, Rita. Aníbal Quijano y la perspectiva de la colonialid del poder. In: SEGATO, Rita. La crítica de la colinialidad en ocho ensayos: y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013, p. 35-67.
___________. La Nación y sus Otros: raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
Conscientes de que é preciso expor e conjurar injustiças e opressões históricas para libertar a imaginação e a subjetividade das formas de representação que reforçam o trauma colonial (FANON, 2008), muitxs artistas na atualidade produzem imagens que conectam diferentes meios e linguagens para discutir as feridas resultantes de séculos de violência, exclusão e apagamento de certos corpos, saberes e modos de vida.
Não é por acaso que essxs artistas se apropriam hoje de documentos históricos, imagens midiáticas e da arte, discursos e experiências pessoais. Em Memórias da Plantação, Grada Kilomba (2019) defende que o reconhecimento dos eventos traumáticos pode ajudar a reelaborar os traumas coloniais porque expõe feridas e as lógicas de controle da colonialidade de poder33 (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2017). Por meio dessa apropriação e reelaboração, essxs artistas produzem releituras do passado e do presente para exorcizar os efeitos da violência e do esquecimento e gerar outros imaginários sobre corpos e modos de vida constantemente em risco. Ayrson Heráclito é um deles.
Ogan no Candomblé, artista visual, curador, professor e pesquisador baiano, Heráclito discute há mais de 30 anos a memória das heranças culturais e espirituais afro-brasileiras e das violências coloniais, passadas e presentes. Transitando en33. Para esses autores, a colonialidade de poder consiste em um amplo e complexo projeto de dominação constituído a partir da modernidade europeia e seu projeto colonialista, mas que persiste hoje sob outras formas de controle que se articulam em torno de quatro domínios inter-relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, do conhecimento e da subjetividade. Este projeto se manifesta através de uma grande rede de práticas e discursos que se organizam, formalizam e disseminam a partir de lógicas enunciativas e de representação que operam dentro de uma racionalidade redutora e universalizante, e de um modelo econômico predatório e excludente.
tre fotografa, vídeo, performance e instalação, seus trabalhos vêm sendo cada vez mais reconhecidos nacional e internacionalmente no meio da arte contemporânea por usar a imagem como forma de curar feridas históricas.
Uma via possível para estabelecer uma discussão sobre o papel desempenhado por suas imagens nesse contexto é a compreensão de que o trauma colonial resulta de violências sistêmicas (QUIJANO, 2005) que operam simultaneamente nos níveis material, simbólico e subjetivo. Com isso, talvez seja possível pensar que em seus trabalhos a imagem funciona como um dispositivo ritualístico que articula e atravessa os distintos níveis ou dimensões do trauma, através de distintos meios e linguagens, com o propósito de conjurá-lo.
Partindo do conceito de produção de presença em Gumbrecht (2010) e das possibilidades de um giro decolonial34 que permita entender e afrmar a diversidade histórica e estrutural das visualidades em contextos não-eurocentrados (LEON, 2019), pretendo discutir como a imagem parece adquirir nos trabalhos de Heráclito essa capacidade de cura através do jogo feito com elementos da cultura negra e entre imagem fxa, imagem em movimento e objetualidade. Parte deste “giro” passa por considerar nas análises as condições enunciativas das imagens, ou seja, seus contextos conceituais e simbólicos de produção e por discutí-las também a partir da materialidade de seus dispositivos e estratégias de exposição.
34. Movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico à lógica da modernidade/ colonialidade.
Como veremos, em muitos de seus trabalhos, é nítido o atravessamento e o uso combinado da fotoperformance, de stills fotográfcos nos vídeos e de registros de ações em diálogo com objetos instalados, usados para criar paisagens híbridas de tempo e espaço, que evocam a duração e a persistência do corpo, da memória e da própria imagem enquanto gestos políticos. Com base em uma análise de alguns dos trabalhos presentes em sua mais recente exposição Yorùbáiano35, no Museu de Arte do Rio, buscarei evidenciar como a força dessas imagens repousa precisamente numa comunicação que se dá a partir da materialidade das imagens e nas relações que o artista estabelece entre mídias, linguagens, objetos para acessar as distintas camadas que constituem as memórias do trauma e o avivamento das culturas afro-diaspóricas como parte de suas estratégias de cura simbólica, psíquica e subjetiva.
Um artista, sua arte e seus rituais
Baiano de Macaúbas, Ayrson Heráclito formou-se em Educação Artística pela Universidade Católica de Salvador em 1989, onde começou a trabalhar com performance36, muito inspirado pela arte ani-mística de Joseph Beuys. Em 1998, concluiu o mestrado em Artes Visuais na UFBA, em 2016, o doutorado em Comunicação na PUC-SP e atualmente é professor de Artes Visuais na Universidade Federal do Recôncavo da
35. https://museudeartedorio.org.br/programacao/yorubaiano-de-ayrson-heraclito/ 36. A performance é uma expressão artística surgida nos anos 1970 em que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação que se apropria de objetos, situações e lugares – quase sempre naturalizados e socialmente aceitos – para dar-lhes outros usos e signifcações. Cf. GONÇALVES, F. Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação (2004). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ logos/article/view/14676/11144. Acesso em: 17 de jan. 2022.
Bahia. Suas obras e pesquisas tratam da relação entre o corpo e a história e o lugar do sagrado na atualidade, objetos de investigação poética e política que aborda no contexto da arte baiana e suas relações com o universo afro-diaspórico.
Mesmo ativo nas cenas baiana e paulista nos anos 1980 e 1990, o reconhecimento nacional e internacional veio principalmente nos anos 2000, com participações e premiações em bienais africanas e exposições na Europa, onde passou a ser conhecido como um dos principais artistas da diáspora nas américas. Heráclito foi também um dos quatro artistas que representaram o Brasil na 57ª Bienal de Veneza, em 2017, com a obra Sacudimentos, que será discutida aqui.
Suas instalações, performances, fotografas e vídeos usam elementos das culturas nordestina e afro-brasileira, sobretudo alimentos como dendê, charque, açúcar, peixe, entre outros, mas também o sangue, a saliva, o sêmen. Como observa Santos (2017), esses materiais estão carregados de signifcados de uma cultura negra que o artista vai acionar para construir uma poética que propicia conexões entre passado e presente, entre África e Bahia, entre a capital baiana e o sertão nordestino. É assim que, em seus trabalhos:
O também chamado “óleo da palma” em continente africano é para o artista uma metáfora dos fuidos corporais, do sangue escravo derramado após os diversos suplícios aplicados à “carne negra”. Dessa maneira, Ayrson Heráclito desenvolve técnicas e procedimentos artísticos que dialogam com a história colonial da Bahia, principalmente com a poética de Gregório de Matos. O artista imprime em suas instalações e performances uma especifcidade brasileira, baiana, soteropolitana. (SANTOS, 2017, s/p).
Essa especifcidade que emerge de vários “entres” está presente de forma clara no título de sua mais
recente exposição individual, Yorùbáiano, no Museu de Arte do Rio, de agosto de 2021 a março de 2022. Reunindo pela primeira vez no Brasil trabalhos produzidos e expostos separadamente ao longo de mais de 30 anos de carreira, a exposição opera exatamente a partir das diversas relações entre as culturas yorubá e a baiana, como afrma o curador Marcelo Campos, no site da exposição:
Ayrson Heráclito representa a grande reinvenção poética e política desse Brasil yorubano, vindo de uma Bahia nagô que incorporou em seu cotidiano os oúnje, as comidas, os temperos, o iyò, o sal, e, sobretudo, o epo, azeite de dendê, que, segundo o artista, compõe nossa impossível mistura no Atlântico, onde azeite (epo) e água salgada (omi iyò) se separam. O dendê, então, se liquidifca em componentes corporais, como a saliva, o sêmen, o sangue. E, ainda hoje, os deuses e as deusas yorubanos são recorrentemente temperados em ritos de maruim. (CAMPOS, 2021)
Além de pesquisador, curador e artista, Heráclito é também praticante do Candomblé em um terreiro em Salvador. Não por acaso, o artista afrma que suas obras são uma forma de ebó, oferendas rituais. É que ao nutrir-se das qualidades materiais e simbólicas de saberes ancestrais, seus trabalhos se tornam capazes de recontar a história e reler criticamente nosso passado colonial. Mas, como artista, não é apenas a religião em si o que lhe interessa, mas também a ideia do sagrado e da experiência mística nelas contidas e que para ele são formas de recuperar e de acessar outras formas de entendimento da vida e do mundo, sensibilidades e formas de conhecimentos não-modernos, não-ocidentais. São essas sensibilidades e conhecimentos que o artista nos oferece através de suas estratégias enunciativas.
Ebós feitos com imagens
Um dos trabalhos da exposição que aborda tais conhecimentos e os modos como Heráclito combina diferentes referências e linguagens é Bori. Trata-se de uma série composta por doze retratos fotográfcos produzidos em 2009 que mostram homens e mulheres com diferentes tipos de alimentos cuidadosamente dispostos ao redor de suas cabeças. O trabalho é inspirado na prática de alimentar a “cabeça”, que representa o orixá ori, princípio individual que nos rege, em cerimônias de religiões de matriz africana. Bori é o ritual de “oferenda (bó) à cabeça (ori)” de comida aos orixás como forma de proteção e harmonização pessoal. As imagens que vemos na exposição, instaladas formando um círculo (Fig.1), resultam de doze performances-rituais realizadas em 2009, evocativas de doze orixás, conduzidas pelo artista. Ou seja, as performances confguram-se no trabalho como ato duplamente ritual, na medida em que o gesto material e simbólico de alimentar os oris codifcam tanto uma cerimônia religiosa quanto a passagem e a transformação dos alimentos e corpos em obra.
O que vemos na exposição, portanto, são, em parte, registros dessas performances-rituais37, em que uma pessoa se deita no chão e tem sua cabeça cercada por um alimento característico de um determinado orixá. Digo em parte porque as imagens não têm aí apenas o caráter do registro de um “isto foi”. Como observam Ferreira e Camargo sobre o uso da imagem fxa nos trabalhos do artista, “ao criar ações no campo da fotografa performativa, Heráclito reconfgura o estatuto desse dispositivo que, em geral, é caracterizado pela realização de uma ação específca “para” a câmera, desfgurando a função representacional da fotografa – seu sistema ca-
37. Imagens das performances estão disponíveis no site do artista: http://ayrsonheraclitoart.blogspot.com/
Fig. 1. Bori. Foto-instalação. Foto do autor.
nônico pautado pela mímesis (FERREIRA e CAMARGO, 2016, p. 3124). Em Heráclito, as imagens encarnam conceitos, histórias e experiências e são elas próprias formas rituais e performáticas, podendo ser consideradas como sujeitos-objetos mediadores que semiotizam e ressignifcam diversos elementos da cultura afro-diaspórica e do trauma colonial.
Em Bori, as imagens são entidades que constroem um outro tipo de presença, um outro espaço-tempo, uma outra fsicalidade através de um gesto de encenação por meio de imagens. Por isso, considero-as como foto-performances38. São imagens que, no contexto dos trabalhos de Heráclito, performam a possibilidade de tornar dizíveis e visíveis outras epistemes, outros modos de ver, de imaginar e de viver baseados em outros repertórios, em outras relações com a vida, para além das que conhecemos nas tradições da racionalidade ocidental eurocentrada. Essas imagens performam a afrmação dos saberes e modos de vida afro-diaspóricos fora dos lugares em que são
38. O termo foto-performance surgiu nos anos 70, no contexto da arte conceitual, quando as performances eram primordialmente eventos de caráter efêmero, ao vivo, sem registro em foto ou vídeo. Com o tempo, os artistas começaram a produzir registros que entendiam não ser parte da performance, apenas sua reprodução. Aos poucos, porém, muitos artistas foram incorporando os registros como parte dos próprios trabalhos de performance, como forma de discutir a questão da representação, do tempo e da presença. Sendo um artista e um estudioso ligado desde o início à prática da arte da performance, Ayrson Heráclito, provavelmente não é alheio a essas discussões.
normalmente acolhidos e vivenciados, ou seja, performam a possibilidade de sua própria existência e reconhecimento como saberes igualmente legítimos e complexos. Trata-se, portanto, de um gesto poético e político de produção de valor de saberes ancestrais por meio de uma performance mediada por imagens. Chama igualmente a atenção no trabalho o gesto de instalar e assentar39 as imagens elevadas parcialmente em relação ao chão na forma de um círculo40, formando uma espécie de coroa de oris. Tal procedimento é também um gesto que importa, na medida em que encena e presentifca em um mesmo fuxo o princípio ritual do Bori, de conexão entre o físico e o ultrafísico, que não é reconhecido pelo pensamento lógico-racional ocidental. Importa também porque, ao dar a ver como em outras tradições culturais não há separação entre corpo e espírito, homem e natureza, “alimentar a cabeça” constitui uma forma de romper com as dicotomias modernas de natureza e cultura, do humano e do não-humano41.
Yorùbáiano é repleta desses jogos, imagens e objetos instalados, que conectados e imbricados, formam uma grande narrativa-ritual. Um exemplo desses jogos e do uso combinado de imagens é O pintor e a paisagem (2011), vídeo-instalação em três canais, formando um tríptico com imagens híbridas (fxas e em movimento) em um tom avermelhado (Fig. 2).
39. Nas umbandas e nos candomblés do Brasil, o termo assentamento refere-se ao ato de criar por meio de objetos ritualísticos uma base estruturada para dar força aos trabalhos espirituais em um terreiro. Utilizo aqui assentamento juntamente com o termo instalação, forma expressiva na arte contemporânea, para marcar a ideia de que, em Bori, performance e imagens estruturam e enraízam a presença do sagrado como fgura poética e epistemológica.
40. Em outras exposições estas mesmas imagens foram dispostas de uma forma mais convencional, enfleirados como quadros numa extensa parede. Isso só reitera a potência da escolha do artista de criar uma “obra dentro da obra” através do dispositivo da instalação.
41. Além do trabalho em si mesmo, a própria indissociação entre o Heráclito artista, religioso e acadêmico aponta para a possibilidade do rompimento dessas separações.
Ao som de um berimbau, são mostradas, em cada canal, vistas aéreas e de ruas de Salvador às quais são justapostas, em transições evanescentes, imagens em movimento de óleo de dendê sendo vertido sobre uma superfície. A transição das fotos de lugares turísticos, históricos e sagrados, justapostas às imagens em movimento, cria uma dinâmica visual que mostra claramente a relação imbricada entre a geografa de Salvador, sua história colonial e as formas de resistência, simbolizadas pelo dendê e pelo som do berimbau. O tom sanguíneo aplicado às cenas remete também à violência dessa relação complexa. Assim como em Bori, o gesto de instalação/assentamento das imagens nesta obra – na forma da justaposição das imagens fxas e em movimento num mesmo quadro – pode também ser considerado como uma ação que ritualiza a tensão entre passado e presente, violência e resistência, trauma e cura. É assim que o pintor (Heráclito) cria a representação visual de um espaço geopolítico (paisagem) com a qual evoca a feitura desse tecido sem costura que é a cultura soteropolitana na relação com seu passado colonial.
Mas, se por um lado, o uso de alimentos e das mídias combinadas em seus trabalhos pode ser entendido no contexto de suas investigações sobre o corpo, a memória e
Fig. 2. O pintor e a paisagem (2011). Foto do autor.
a cultura da diáspora no Brasil, por outro, deve ser entendido também a partir de suas investigações poéticas e conceituais, fortemente inspiradas pelo trabalho de Joseph Beuys e sua noção de methexis (WALTERS, 2012). Oposta à mimese da arte clássica, a methexis signifcava para Beuys uma forma de expressão concreta e vinculada mais ao espiritual que ao racional e que permitiria estabelecer associações não-lineares e não-causais, percepções mais ampliadas, permitindo a ressignifcação daquilo que é articulado. Trata-se de uma forma de expressão próxima talvez daquilo que Deleuze e Guattari (1992) chamaram de fabulação, trabalho com as formas expressivas que dota de qualidades particulares algo que é visto, vivido ou narrado, potencializando sua capacidade de afetar nossa percepção e apreensão do real.
Neste sentido, a escolha desses materiais e procedimentos em seus trabalhos vem de um desejo de tensionar e de produzir transformações:
Sempre foi de meu interesse trabalhar com materiais “intermediários”, ou seja, materiais que promovessem uma associação direta com determinada temática e, ao mesmo tempo, provocassem uma ampliação de diversas outras interpretações. Constatei que alguns materiais poderiam ser interpretados de forma hegemônica por diversos grupos sociais locais como, por exemplo, os materiais utilizados nos rituais e na culinária afro-baiana. O azeite de dendê é um deles […]. (HERÁCLITO, 1997, p. 39)
Certamente, o uso desses materiais “intermediários” e carregados de tais signifcados cumpre uma importante função. Como suas imagens, eles também são mediadores. Com eles, o artista desenvolve procedimentos que vão permitir reavivar traumas mas também afrmar saberes, visões e modos de vida e dar-lhes lugar em um mundo
que os silencia, invisibiliza e destrói. É por meio da methexis beuysiana, desse deslocamento das coisas pela mediação de sua presença, que ele constrói suas obras-oferenda. O que está em jogo em suas performances, fotografas, vídeos e instalações, portanto, não é a presença auto-evidente dos elementos num tempo-espaço, mas o jogo feito com eles. Construir tais jogos constitui propriamente um gesto ritual e performático com o qual o artista ativa o trauma colonial para conjurá-lo.
Em seus trabalhos, há, assim, uma ativação ritual do corpo, dos alimentos e dos objetos pelas imagens, que estão lá não como sua representação visual mimética, mas como uma representação methéxica. Em Heráclito, corpo, alimento e objetos são ao mesmo tempo coisas e signos cuja articulação produzem “presença”, no sentido dado ao termo por Hans Ulrich Gumbrecht (2010). Para Gumbrecht, a produção de presença não implica simplesmente colocar algo em um espaço-tempo, mas realizar um trabalho com a linguagem que implica a não atribuição a priori do sentido, e sim, por
meio da experiência vivida e sentida com as coisas do mundo e por meio da afetação do corpo. Como vimos em Bori, corpo e alimento se tornam eles próprios elementos performáticos que presentifcam e mediam, através das imagens, saberes, experiências, memórias e imaginários. Mas, tais presenças e mediações não estão lá apenas para serem contempladas, e sim, para avivar e tornar sensível uma potência de vida, de luta e de criação, que chamarei aqui de “cura”.
Por meio desses procedimentos, cuja fsicalidade nos afeta e atravessa através da materialidade de dois dispositivos imagéticos, a poética ritual de Heráclito constrói a presença de um passado traumático, mas também as possibilidades para conjurá-lo. Esse entendimento me parece fundamental para discutir seus processos de produção de imagens e a função que estas terão em suas estratégias enunciativas, estéticas e políticas. É também fundamental para entendermos o lugar que a questão da “cura” vai ocupar em seus trabalhos.
Elaborando o trauma e forjando a “cura”
Assim como Joseph Beuys, Ayrson Heráclito acredita na arte como uma forma de cura, social e subjetiva. No caso do artista baiano, trata-se de “exorcizar os fantasmas da sociedade colonial que ainda nos assombram”, como ele afrma em entrevista ao site artebrasileiros.com (HERÁCLITO, 2018). Mas em que consistiria essa “cura”? Como ela se daria em seus trabalhos? Qual o papel das imagens nesse processo?
Antes de mais nada, seria preciso considerar que “cura” neste contexto não signifca solução ou apaziguamento, e sim, uma forma crítica de reler nossa história, de criar outras partilhas do sensível (de reposicionar corpos, saberes e poderes no campo social), de afrmar a outridade (a diferença que o outro é) e acolher modos de vida e visões de mundo que não têm cabido nos modelos materiais, simbólicos e epistêmicos da modernidade e do capitalismo neoliberal.
Em Heráclito, a “cura” se dá muitas vezes por estratégias de elaboração do trauma que ocorrem pela exposição e pela conjuração das violências do passado colonial. Como temos visto, tais estratégias passam necessariamente pelo corpo, pela performance e pela imagem. Pelo corpo, porque, no âmbito da colonialidade de poder, é o primeiro objeto de uma dominação material e simbólica e talvez o último a se libertar. Pela performance, pois é uma prática poética, estética e política capaz de ritualizar recodifcações e transmutações das matérias signifcantes. Pela imagem, porque é uma substância material, semiótica e cognitiva que, em performance, permite hackear, ressignifcar e potencializar práticas, discursos e imaginários42. O que Heráclito faz em seus trabalhos é mobilizar corpo, performance e imagem para expor criticamente as feridas de um passado ainda presente e afrmar as potências de vida contidas em saberes e visões de mundo que foram violentadas.
Um trabalho que evidencia esse aspecto de exposição e de elaboração da violência do trauma através da memória da dor física sobre o corpo negro é o projeto Transmutação da carne (1994-2000). A obra é formada por vídeos, fotos e objetos instalados que trazem o corpo como lugar de memória. Como em Bori, tudo começa com uma performance-ritual. A ação, que originalmente durou seis horas, consistia em marcar a ferro em brasa pedaços de carne de charque que compunham a vestimenta que recobria o torso dos performers. Em determinados momentos, os performers também caminhavam por sobre uma base de ferro com brasas incandescentes embaixo, com botas feitas do mesmo material.
42. Para uma maior discussão sobre a arte da performance como forma de comunicação, ver: GONÇALVES, F. Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação (2004). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/ view/14676/11144. Acesso em 17 de jan. 2022.
Na exposição vemos registros fotográfcos e em vídeo da performance e um conjunto cuidadosamente organizado com fotos individuais dos performers (como performers, vestindo a roupa de charque) e cartas de agradecimento emolduradas de instituições que receberam a doação da carne de charque usada na performance (Fig. 3). Vemos também alguns dos objetos nela usados, como os espetos de ferro usados para marcar em brasa, uma bacia de ferro com pedaços de carvão, as botas e a base de ferro por onde caminharam os performers (Fig. 4).
Fig. 3. Registro em foto da performance, cartas e fotos dos performers. Foto do autor.
Fig. 4. Vista parcial de imagens e objetos do projeto Transmutação da carne na exposição. Foto do autor.
Mas, como em Bori, objetos e imagens não são meramente ilustrativos da performance. São mediadores que nos colocam na cena do trauma, instigando-nos a testemunhá-lo e, de certa forma, a implicar-nos também em sua Stimmung. O termo em alemão usado por Gumbrecht em suas teorias das materialidades e da produção de presença pode ser traduzido palidamente como “atmosfera” e “ambiência”. Mas
assim como a presença não é a evidência imediata de algo no mundo, a Stimmung é mais que simplesmente uma “presença sentida”, é a condensação de uma substância que só pode ser percebida por uma mediação estética. A ideia da Stimmung, portanto, remete mais a um trabalho com a linguagem do que a algo que resulta desse trabalho.
Em Transmutação da carne, a Stimmung da violência traumática posta em cena deve ser entendida principalmente como a articulação de elementos e eventos não relacionados a priori e que ganham legibilidade – para usarmos um termo benjaminiano – por meio desses processos de mediação e de condensação. Penso aqui, por aproximação, também nas noções de afectos e perceptos de Deleuze e Guattari (1992), “blocos de sensações” (como a força de um tom vermelho-sangue ou a aspereza chiada do som da queima da carne de charque) que seriam tornados perceptíveis por certos usos da matéria em um trabalho de arte. A organização das imagens e dos objetos em Transmutação da carne realizam esse trabalho de mediação que produz em nós um efeito estético (perceptivo) que nos instala no “clima” do trauma exatamente por suas estratégias de combinação e de montagem.
É pelo áudio e pela imagem em movimento, por exemplo, que o cheiro e o ruído da carne sendo queimada são fortemente evocados. É pela imagem fxa que somos levados a ver mais detidamente o gesto violento e a reação dos performers. É pela imagem dos performers posando para a câmera que nos damos conta da natureza calculada desse gesto. É, fnalmente, pelas cartas de agradecimento emolduradas e colocadas ao lado das fotos, como imagem, que nos é dado a ver a ação de transmutação da carne e do sofrimento em potência de vida.
Transmutação da carne não traz a hibridização das imagens em um mesmo suporte, como em O pintor e a paisagem. Mas, para o artista, o que importam não são tanto os suportes, mas as estratégias que permitem materializar uma potência. Por isso mesmo, cabe observar que os diferentes tipos de imagem e de objetos que compõem a montagem do trabalho na exposição são organizados de forma a criar um conjunto complexo e híbrido, onde imagens e objetos, apesar da diferença de natureza, compartilham de uma mesma condição enunciativa e estética. É que neste conjunto imagens funcionam como objetos que ganham concretude por meio de seus modos de exibição e objetos funcionam como imagens que reiteram a memória do trauma.
A materialidade das imagens e dos objetos fazem parte, portanto, de uma mesma estratégia de produção de presença. No caso, presença da memória dos maus tratos e do genocídio do povo africano escravizado, trazida à tona para ser exposta e conjurada como gesto de terror e de poder. Assim, acionar e tornar presente a memória da experiência da dor infigida aos corpos com o gesto performático da marcação em ferro e brasa é reiterada, a seu modo, pela exibição dos objetos usados na ação e que são instalados/assentados junto às imagens.
Em todo caso, é por meio de uma imagem expandida e corporifcada – na forma foto, vídeo ou objeto instalado – que o artista tenta elaborar o trauma, expondo feridas e recusando seu apagamento. É por meio dessas estratégias que as imagens expandidas em Heráclito performam a “cura” como gesto crítico e de revisão histórica e afrmam a potência de vida e de luta de heranças e tradições ancestrais negadas e silenciadas.
Esta percepção do papel e da operação das imagens em Heráclito são fundamentais para o que Christian Leon vai considerar como uma tarefa inadiável no âmbito
dos estudos visuais latino-americanos, que é “gerar condições intelectuais para que sua enunciação tenha lugar, permitindo a enunciação da visualidade-outra e a visualização de uma enunciação-outra” (LEON, 2019, p. 63). Leon (2016) nos fala da necessidade de nos livrarmos de teorias e modos de análise construídas sob parâmetros da razão eurocêntrica a fm de permitir uma abertura a estéticas-outras, a culturas visuais-outras e a tecnologias de imagens-outras.
Nessa linha de questionamento, é a própria ideia de imagem que precisa ser ampliada. Nos damos conta, fnalmente, de que a noção clássica de imagem como representação mimética de um “isso é” ou de um “isso foi” é enraizada profundamente numa visão moderno-ocidental forjada nas tecnologias de visão racionais e totalizantes da câmera escura e a da perspectiva renascentista. Percebemos também o quanto tais tecnologias são expressões de um regime escópico que, na verdade, tornou-se hegemônico e foi considerado como o único e universal à força da expansão global de um sistema que Joaquin Barriendos (2008) chamou de “colonialidade do ver”43. Basta pensarmos nas formas ocidentais de representação visuais pré-renascentistas ou nas formas orientais, africanas, indígenas, para percebermos que as visualidades são sempre heterogêneas e situadas. Nesse sentido, Quijano (2000) nos lembra que a imagem tem sido um mecanismo fundamental da ocidentalização do mundo e faz parte de um projeto que sustenta uma perspectiva eurocêntrica do conhecimento. Na contramão deste movimento, Heráclito se propõe a ritualizá-la e a encantá-la. Fazendo isso, as transforma em possibilidades de desocidentalizar nosso olhar.
43. Para Barriendas, a colonialidade do ver é entendida como “uma articulação geopolítica entre o olhar e o que se olha”. Ela lança uma suposta transparência a todas as complexas relações de poder implicadas nos atos de ver e de representar o outro no interior de uma cultura visual etnocêntrica.
Analisar as obras de Heráclito a partir de seus dispositivos e agenciamentos visuais nos permite levantar e discutir essas questões. Quando busco descrever seu pensamento imagético e suas estratégias estou exatamente propondo pensar como ele cria espaços de enunciação e visualidades que pertencem a outros regimes de visão e de representação (não-ocidentais, não-eurocentrados). A indissociação entre representação e presença, entre narrativa e experiência, entre arte e vida, entre visível e invisível criam em seus trabalhos visualidades situadas44 que remetem, por sua vez, a culturas visuais e saberes situados. Essas visualidades parecem ser parte da “cura” prodigalizada pelo artista para as feridas em nossos corpos, memórias e imaginários colonizados. Nelas, a ritualização de corpos, narrativas, objetos e imagens produzem deslocamentos que contribuem para “descolonizar” nossos modos de ver e de imaginar. Não se trata aí de apagar o trauma, mas de pelo menos, como propõe o artista, afastar de nós o fantasma do colonizador.
44. Proponho o termo “visualidade situada” inspirado na noção de “conhecimento situado” em Donna Haraway (HARAWAY, 2009), que tem relação e comprometimento direto com a experiência de um lugar, de um grupo, de um povo – da qual emerge – ainda que atravessada por outros vetores.
Sacudindo a História
Entre 2015 e 2020, Heráclito cria a vídeo-instalação Sacudimentos, um de seus mais recentes e importantes trabalhos. Com ele, foi um dos cinco artistas que representaram o Brasil na 57ª Bienal de Veneza, em 2017. Como Bori, Transmutação da carne e outros trabalhos presentes em Yorùbáiano, Sacudimentos começou com uma performance. Ou melhor, duas:
É uma obra que fz uma parte na Bahia e outra no Senegal. Em 2015, realizei dois rituais, um na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, e outra na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal. O sacudimento é uma espécie de exorcismo que eu faço nesses dois grandes monumentos arquitetônicos, localizados nas duas margens do Atlântico ligadas ao tráfco de escravos e à própria colonização. Eu queria voltar fsicamente e poeticamente a esse passado colonial e à própria história do escravismo para refetir sobre as condições sociais do nosso presente. (HERÁCLITO, 2018)
A performance é inspirada no ritual do sacudimento, realizado por pessoas ligadas às religiões de matrizes africanas. É uma prática espiritual para limpar energeticamente um lugar e afugentar os espíritos dos mortos, os chamados eguns, dos ambientes domésticos, que tendem a permanecer entre os vivos, trazendo infortúnios.
Ao fazer esses rituais, o artista se perguntava que energias precisava retirar daqueles dois lugares. Logo percebeu que era a energia da morte que ainda rondava aqueles espaços, gerada pela história da colonização. Sua ideia então foi “sacudir essa história” e “exorcizar esse fantasma do colonizador”.
O que vemos na exposição é a projeção simultânea de dois flmes, referentes às duas performances. Os flmes são projetados um de frente para o outro, ocupando inteiramente duas paredes opostas, representando as duas margens atlânticas que separam os dois monumentos, entre Brasil e África. Com a disposição desses espaços pela instalação, cria-se também um espaço entre as projeções, representando a distância geográfca entre os dois lugares, onde é situado o espectador. Posicionados nesse espaço “entre”, percebemos que a curta distância física entre as projeções evidencia quão próximas são as histórias desses lugares. Juntamente com as imagens, é também com esses gestos de produção de distância e de proximidade que o artista evoca e torna presente, física e simbolicamente, em um mesmo espaço-tempo, a memória do tráfego transatlântico de escravizados.
Cada flme mostra imagens de preparação das ervas sagradas usadas no ritual. Na sequência, vemos um quadro fotográfco com o artista e dois performers, todos vestidos de branco e segurando um amarrado de folhas em ambas as mãos. Em cada flme, os três posam para a câmera em frente aos edifícios que serão “sacudidos”.
Heráclito está no centro da imagem, ladeado simetricamente pelos performers (Fig. 5). O still dura alguns segundos.
Fig. 5. Frame de Sacudimento (Casa dos Escravos, Senegal). Foto do autor.
Heráclito se retira da cena e adentra o prédio, seguido logo após pelos performers, que saem ao mesmo tempo. A cena coreografada se repete em ambos os flmes.
Corte para cenas de interiores dos edifícios e suas paredes antigas de pedra e para a ação de sacudimento. Empunhando o amarrado das folhas, os três iniciam de forma ritmada e regular o mesmo gesto de varrer as paredes de cima para baixo. Ao fnal de cada movimento, os performers batem os amarrados de folhas um contra o outro, limpando-os, e reiniciam a limpeza das paredes. As sequências duram alguns minutos. Pouco a pouco, todas as paredes vão sendo limpas. Lenta e pacientemente. No tempo da história.
Do ponto de vista de seu dispositivo, vemos em Sacudimentos também procedimentos observados em outros trabalhos, como o jogo combinado de imagens fxas e em movimento. Mas diferentemente de O Pintor e a paisagem, a imagem fxa é produzida dentro da imagem em movimento, como uma espécie de quadro vivo. Um arresto que indica a natureza performática e política do gesto ritual da limpeza desses locais e sua história. Ao posar olhando diretamente para a câmera, os performers afrmam a consciência desse gesto, reiterado posteriormente pelas repetições regulares dos sacudimentos. Todo ritual tem um método. O mesmo se dá com o dispositivo do trabalho, nas performances e na vídeo-instalação. Como em Transmutação da carne, o áudio original das performances é captado e reproduzido nos flmes. Com isso, a cada gesto de sacudimento ouvimos também a áspera sonoridade do atrito das folhas contra a arquitetura. É que o atrito limpa, como já entendera Walter Benjamin. Ciente de que hoje, talvez mais do que nunca, é preciso esfregar a História a contrapelo, Heráclito sacode frme e pacientemente nosso presente. Os gestos ritualizados de suas imagens revolvem o trauma para expor as feridas a fm de curá-las. Mas se o passado ainda fere e dói, é preciso ao menos poder afugentar seus fantasmas sacudindo a História.
Ao assistir o flme da performance realizada na Bahia, na Casa da Torre, tive um lampejo, com o qual termino este texto. A Casa da Torre já foi considerada o maior latifúndio do mundo e pertenceu à família do administrador colonial português Garcia d’Ávila. Nesse momento, não pude deixar de lembrar que, no Rio de Janeiro, Garcia d’Ávila é o nome de uma importante rua no nobre bairro de Ipanema, na zona sul da cidade. Afnal, numa sociedade estruturalmente racista como a brasileira, nada mais justo do que homenagear com tamanha distinção o maior latifundiário português dono de negros escravizados da história do país. Mas, se seu fantasma ainda surfa nas praias do Rio de Janeiro, na Bahia, pelo menos durante a performance de Heráclito, ele foi exorcizado.
REFERÊNCIAS
FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2008.
GONÇALVES, Fernando. Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação (2004). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/ article/view/14676/11144. Acesso em: 17 de jan. 2022.
GOMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7–41, 2009. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773. Acesso em: 14 Ago. 2021.
HERÁCLITO, Ayrson. Ayrson Heráclito, um artista exorcista. [Entrevista cedida a] Mariana Tessitore. ARTE!Brasileiros, São Paulo, 27 jun. 2018. Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/sub-home2/ayrson-heraclito-um-artista-exorcista/. Acesso em: 11 dez. 2021.
LEON, Christian. Imagem, mídias e telecolonialidade: rumo a uma crítica decolonial dos estudos visuais. Epistemologias do Sul. 3, n. 1, p. 58-73, 2019.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. RBCS, Vol. 32, n. 94, jun, 2017.
SANTOS, José Mário Peixoto (ZMário). Ayrson Heráclito: Performances, Espaços e Ações. Revista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan, 2017. Disponível em: https://performatus.com.br/estudos/ayrson-heraclito/. Acesso em: 8 dez. 2021.
VICINI, Magda. Dimensões comunicacionais no conceito de escultura social de Joseph Beuys como possibilidade de tradução criativa. ARS 11 (22) • Jul-Dec 2013.
WALTERS, Victoria. Joseph Beuys and the Celtic Wor(l)d: a Language of Healing. Berlin: Lit Verlag, 2012.
O cenário pandêmico causado pela COVID-19 (Sars-Cov-2) impôs a necessidade do distanciamento social e exigiu mudanças signifcativas no cotidiano de milhões de brasileiros a partir do mês de março de 2020. Além dos impactos nas relações, interações e nas experiências estéticas (GUMBRECHT, 2006), a ocupação dos espaços público-privados, seja de maneira funcional ou simbólica, também foi alterada. A pandemia decorrente do coronavírus, além de exigir medidas de distanciamento, isolamento e de quarentena, causou diversos obstáculos para a realização de manifestações de rua. Com o acesso limitado às vias públicas, os protestos no espaço urbano, que antes reuniam grande número de pessoas num mesmo local, foram realizados nas casas e apartamentos, nas janelas e sacadas.
Da caminhada coletiva para as palmas e panelaços em varandas, dos cartazes das manifestações de rua para as projeções em fachadas: as expressões de repúdio às declarações negacionistas do presidente e à desinformação, assim como as
demonstrações em apoio aos profssionais da saúde e ao SUS (Sistema Único de Saúde), quando realizadas no espaço privado, mas levadas para as janelas, ganharam nova circularidade para o exercício da liberdade de expressão, tornando-se, também, parte de espaço público.
Alguns movimentos e coletivos artísticos e/ou midiativistas tornaram-se protagonistas na apropriação dos aparatos e técnicas para realizar comunicação, conscientização, protesto e mobilização no ambiente digital. Entre eles, destaca-se o “Projetemos” - Rede Nacional de Projecionistas Livres que, desde março de 2020, realizou projeções visuais e criou atuação colaborativa em várias regiões do país, impactando milhares de pessoas nas redes sociais, principalmente no Instagram pelo perfl @projetemos45 .
Diante dos recentes acontecimentos e seus impactos, somos despertados para a refexão de mais um aspecto do poder de atuação em uma “cultura de convergência”, pois, “a web tem se tornado um local de participação do consumidor, que inclui muitas maneiras não autorizadas e não previstas de relação com o conteúdo de mídia” (JENKINS, 2006, p. 183). As paisagens das cidades ganham projeções mapeadas por vídeo mapping (GARCIA, 2012) e as telas dos smartphones garantem presença e maior permanência na efemeridade. Logo, verifcamos que imagens circulam de forma potencializada no digital. Portanto, este ambiente, que também é formado por espetáculos e simulacros (BAUDRILLARD, 1991; DEBORD, 2005), nos convida para uma análise sobre os caminhos das resistências no tempo presente. Considerando que as estruturas de plausibilidade (BERGER, 1985) que ancoram os indivíduos em uma
45. Até 30 de setembro de 2021, o perfl do Projetemos, no Instagram, havia compartilhado 2.805 publicações e possuía 78 mil seguidores.
realidade coletiva comum foram abaladas durante este período de nossa história recente, observamos o “Projetemos” em um momento onde são diversas as estratégias utilizadas por cidadãos, movimentos sociais, coletivos midiativistas e artivistas para expressar aquilo que acreditam, buscando mudanças para a realidade social. Outrossim, objetiva-se refetir sobre a resistência em uma cultura híbrida com constante luta, também metafórica, contra os poderes hegemônicos (CANCLINI, 2008). Por isso, observamos as imagens que agem/reagem em um cenário de fuxos46: um espaço formado por “imagens e poder” e “imagens de potência” (SZANIECKI, 2007, p. 15), onde não há neutralidade da tecnologia (FEENBERG, 1991).
Observando ferramentas ofertadas na internet para existir coparticipação dos usuários em rede, encaramos novas possibilidades na atividade cultural e nas formas de interação entre os cidadãos. As imagens, portanto, também passam a exercer papéis essenciais em planos sociais e políticos, atuando “como meio de
46. Segundo Castells (1999, p. 437) o espaço de fuxo se refere à maneira como as práticas sociais de tempo compartilhado se organizam materialmente por meio de fuxos formados por sequências intencionais, repetitivas e programáveis de troca e interação entre sujeitos distantes fsicamente. Essas trocas acontecem nas estruturas econômicas, políticas e simbólicas da sociedade.
formação de um consenso difuso sobre a própria construção dos fatos e a defnição de valores” (LANDOWSKI, 2004, p. 32). Este momento nos remete à refexão de Miguel Chaia (2007) sobre o artivismo contemporâneo, por haver um elo entre a política que “delimita o âmbito de ação que parte do individual, passa pelo coletivo e alcança insuspeitados espaços no qual se localiza o outro”, isto é, ao promover o deslocamento para o espaço público, o artivismo deixa o “espaço fechado e branco para o espaço cinza das ruas ou para o espaço virtual da Internet.” (CHAIA, 2007, p.11). O fenômeno, também, nos desperta para uma refexão levantada por Luciana Moherdaui (2021), que em período anterior ao ano de 2020, já indagava sobre a capacidade de reconfguração das projeções efêmeras ou temporárias nas cidades, pelo uso de artefatos, como os smartphones, que permitem “reproduzir interfaces em superfícies externas” (MOHERDAUI, 2020, p. 188).
Projetemos e as telas
Em 2020, os protestos realizados nas janelas ocorreram tão logo começaram as medidas de distanciamento social, sendo o dia 21 de março o início das ações do “Projetemos”. Criado pelos VJs47 (vídeo jockeys) Mozart Santos e Felipe Spencer, e a cientista social Bruna Rosa, o projeto atua conforme a ideia apresentada em sua “bio” na rede social: “se organizar direitinho, todo mundo projeta”. O convite para a ação, realizado por seus organizadores para as primeiras manifestações do coletivo, aconteceu nas redes sociais em publicação realizada no início de março de 2020 com o texto: “Você está sendo convidado a participar do #projetemos” (UOL, 2021).
Este foi também o período em que os panelaços aconteciam em várias cidades e 47. Os VJs, ou vídeo jockeys, são “profssionais vinculados ao caráter criativo e executivo das projeções de imagem.” (GARCIA, 2013, p.10).
seus registros eram espalhados nas redes. A rede de projecionistas passou, então, a utilizar as telas disponíveis pela arquitetura urbana para realizar projeções com equipamentos mais acessíveis. Isto é, com o uso de um computador ou smartphone, um projetor e acesso à internet, as projeções contam com imagens fgurativas e textuais, conteúdos criados por profssionais da comunicação, jornalismo e design, além de outras áreas. Além dos materiais produzidos pelos colaboradores da rede “Projetemos”, já foram exibidas imagens de outros grupos, como o Design Ativista48 .
No vídeo realizado por Nathalia Cariatti e Luciano Azevedo para o Canal do YouTube da TRIP TV49 (2021), os idealizadores do “Projetemos” explicam que a rede parte de uma ideia de “gritar nas paredes o que a gente não consegue gritar na orelha das pessoas.” (SPENCER, 2021). Na produção, destaca-se que no momento inicial da pandemia o movimento foi voltado a criar uma rede que oferecesse afeto e informação, conectando pessoas em diferentes lugares do Brasil e do mundo.
Em entrevista concedida para a pesquisadora Verónica Capasso50 em julho de 2021, e publicada na Red de Estudios Visuales Latinoamericanos (2021), Felipe Spencer afrma que o
Projetemos é um protesto sobre os desmandos do governo atual e uma tentativa de educar a população para utilizar máscaras, la-
48. O Design Ativista (@designativista) foi criado em 2018 como uma resposta para a situação sociopolítica do Brasil e diante das eleições presidenciais. Desde então, o Instagram é uma das vitrines para as ações promovidas, confgurando-se como “uma rede de produção de respostas rápidas e qualifcadas, tanto em forma quanto em conteúdo” (MÍDIA NINJA, 2020). Seus colaboradores atuam em ações e projetos, conectando as ruas e as redes no uso do design comprometido com as mudanças sociais para o país. Conteúdo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=59BHhBY-sMk. Acesso em: 12 dez. 2021.
49. Vídeo “Projetores unidos contra a pandemia de coronavírus”. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=bYoKxcNwj6k. Acesso em: 15 dez. 2021.
50. Doutora em Ciências Sociais e investigadora no Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales (IdIHCS).
var as mãos, fcar em casa quando puder, um pouco de arte também e algumas notícias do que tá acontecendo no Brasil e no mundo. (SPENCER, 2021)
Para ele, o projeto “tenta iluminar as pessoas que nos observam na rua”, sendo o seu público formado pelos mais variados perfs, tanto nas ruas quanto nas redes, já que os materiais publicados nos perfs e página do “Projetemos”, principalmente no Instagram, tem potencial de espalhamento pelo uso da tag #projetemos, passando também a circular em outros espaços da internet, como nos portais de notícias.
A organização do “Projetemos” acontece pela troca de informações constantes por grupos de mensagem, como o WhatsApp, os materiais produzidos são direcionados para uma ‘pasta do dia’, disponibilizada em um drive. Nesse repositório online, os conteúdos produzidos podem ser baixados a partir de um link, para uso posterior por aqueles interessados em projetar os arquivos de imagens e mensagens (TRIP TV, 2021). Em seu site51, página do Facebook52 e perfs no Instagram e Twitter53, o “Projetemos” também disponibiliza um tutorial para que as pessoas aprendam a projetar e também possam realizar suas próprias intervenções. O site da rede também possui uma ferramenta para que as pessoas possam enviar e projetar suas mensagens, além do link para o canal do YouTube54 e o grupo de WhatsApp nomeado “Projetemers”.
Fig. 1. Impressão de tela do site do Projetemos em novembro de 2021. Fonte: www.projetemos.org
Além do “Projetemos”, outros grupos, coletivos e iniciativas também usam as projeções em suas ações, e utilizam o Instagram para divulgá-las, como a Rede Quarentena, o Cine Janela, o Projeção Consolação, entre outros. Outrossim, o projeto destaca-se entre os demais pela frequência das ações, volume de projeções em espaço urbano e por reunir mais de 150 projecionistas espalhados pelo país. Por conseguinte, suas publicações nas redes sociais foram mencionadas, compartilhadas e veiculadas em portais de notícias e outros espaços na internet e fora dela. Desde sua criação, com o uso da hashtag #projetemos, foram mais de quatro mil menções à iniciativa até o fnal de 2021. Do convite para que as pessoas projetassem de suas janelas, aos mais de 88,7 mil seguidores no Instagram55, o projeto conectou cidadãos de todo o país, que realizaram projeções em diferentes cidades do Brasil, assim como em outros países.
55. Dados referentes ao mês de dezembro de 2021.
As pesquisadoras Vanessa Lopes e Yara dos Santos Costa Passos (2021), indicam os diferentes momentos da cadeia produtiva do Projetemos, sendo o primeiro a ação para a realização da projeção e o segundo desencadeado pelo registro que se faz dessa projeção. Isto é, a partir de diferentes olhares a imagem ganha dimensão e engajamento (LOPES e PASSOS, 2021, p. 62).
Fig. 2. Impressão de tela do Instagram do Projetemos em novembro de 2021. Fonte: www.instagram.com/projetemos/
As ações e performances visuais realizadas por meio das projeções foram impulsionadas pelas redes digitais, que deram às exibições efêmeras novas telas, ampliando o tempo de exposição e permanência das mensagens, alcançando outras pessoas que também passaram a criar suas projeções ou apenas ajudaram a espalhar os conteúdos na web. Sobre a temporalidade no ambiente digital, Chaia (2007) destaca que os avanços tecnológicos que marcaram a década de 1990, possibilitaram novas experiências, uma vez que na internet “o espaço e o tempo se reduzem signifcativamente, propiciando as mais diferentes e inusitadas práticas.” (CHAIA, 2007, p.9).
Passos e Lopes (2021, p. 64), mencionam a “estética em transe” presente nas manifestações artísticas realizadas durante a pandemia, destacando “a guerrilha tática audiovisual” desenvolvida pela rede de projecionistas desde o início de 2020. Para elas, “a arte socialmente engajada pode oportunamente contribuir com a criação de respostas estéticas para a crise”. Ou seja, a partir do caráter inovativo do fazer artístico, durante a pandemia, o Projetemos, assim como outras iniciativas, “reagiu rapidamente ao desafo de ressignifcar a prática artística no espaço público” (LOPES e PASSOS, 2021, p. 59).
O cenário de pandemia, fez emergir a ampliação das projeções, trazendo à tona também as questões legais sobre o uso do espaço público, indicando a necessidade da revisão da legislação existente, como a Lei Cidade Limpa (Lei nº 14.223), sancionada no ano de 2006 na cidade de São Paulo. Somente em 2011, as projeções temporárias foram contempladas por uma resolução complementar (Resolução SMDU.CPPU/008/2011). Logo no
início da pandemia da COVID-19, no dia 21 março de 2020, em caráter excepcional, foi publicada a Resolução SMDU.AOC. CPPU/001/202056, permitindo a realização de “obras de arte de engenharia e demais construções e instalações, permanentes ou temporárias” (CPPU, 2020) sem autorização prévia da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana – CPPU. Verifca-se, portanto, a necessidade de uma adequação de termos referentes às técnicas e formatos, assim como às normas e mudanças contínuas nos usos que se fazem dos espaços das cidades.
A pesquisadora Luciana Moherdaui (2021) refete sobre as projeções no espaço urbano, observando as telas efêmeras e seus efeitos legais na atualidade. Sobre os acontecimentos de 2020, “com o intuito de dar início a um debate sobre sua atualidade, como evitar que as resoluções se sobreponham à lei” (MOHERDAUI, 2021, p. 128), realizou uma série de entrevistas com profssionais envolvidos nesta temática e discussão. Assim, apresenta soluções para a questão, tanto na proposta
56. A resolução SMDU.AOC. CPPU/001/2020 trata da comunicação visual no espaço público diante do enfrentamento da pandemia, com ações de orientação, esclarecimento e tratamento da COVID-19.
partilhada por Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e a economista Ana Lobato, sobre uma revisão da legislação atual “incluindo regras gerais de orientação e léxico”, quanto na proposta do advogado Ronaldo Lemos, que indica a necessidade da criação de uma “Lei Geral de Cultura Digital que contemple o impacto das Tecnologias de Informação e da Comunicação (TICs) no espaço urbano, com regras e gerais e vocabulário não obsoleto” (MOHERDAUI, 2021, p. 129). A autora ainda destaca os impactos da Lei Cidade Limpa sobre o artigo 5º da Constituição e o princípio da liberdade de expressão, indicando a importância de se refetir sobre o controle do espaço urbano pelo poder público (p. 129), assim como aponta que a “efetivação desses mecanismos depende de ampla articulação política, envolvendo tanto a situação quanto a oposição.” (MOHERDAUI, 2021, p. 132).
Cartazes projetados
Barbara Szaniecki (2007), a partir de uma refexão sobre os cartazes políticos, realiza um exercício de compreensão sobre estética e a política da multidão. Em Estética da Multidão, a pesquisadora busca entender as questões ligadas à representação do poder e as possíveis expressões de resistência existentes a partir da manifestação estética. Ao observar um processo contínuo de confitos entre os poderes transcendentes, a potência dos corpos e das lutas ao longo da história, focaliza sua investigação nos cartazes produzidos em maio de 1968 e os realizados na contemporaneidade: os virtuais, os que possuem o papel como suporte e aqueles que tem o corpo humano como sua base. Szaniecki indica que os cartazes de Maio de 68 já apresentavam aspectos importantes ligados à política, destacando as potências e lutas articuladas nas manifestações de rua. Sobre a produção mais recente, analisa os cartazes produzidos no período da Guerra do Iraque em 2003, e as manifestações globais, destacando a crise existente entre poder e potência, assinalando que “O cartaz político instrumental é subvertido e transformado pela multidão em expres-
são de potência” (SZANIECKI, 2007, p. 99).
Para a autora:
O cartaz político da contemporaneidade - na internet e nas manifestações globais - pode ser entendido como um produto concreto da cooperação social emancipada do comando (o comum no campo do trabalho), uma manifestação oposta à representação do consenso imposto por contrato (comum no campo político) e, por último, uma expressão carnal de antipoder (o comum no campo ontológico).
(SZANIECKI, 2007, p. 112)
Szaniecki (2007) salienta o caráter cooperativo nas formas criadas pela multidão no ambiente digital, uma produção “extensa, múltipla e criativa, que difcilmente pode ser reduzida a uma determinação capitalista”, assim, “a expressão da potência democrática da multidão pode ser efetivamente encontrada na internet” (p. 114). Encarando que as imagens projeta-
das atuam como cartazes virtualizados57, verifca-se que “uma ideia, um conceito que, em contexto de midiatização, se desprende ainda mais do papel” (NEVES, 2020, p. 8). Tais ‘cartazes’ tornam-se signos circulantes a partir do momento em que circulam em postagens de redes sociais, como no Instagram.
57. Em “Cartaz midiatizado como signo circulante”, Manoella Neves (2020) refete sobre manifestações ocorridas no Brasil, desde os atos de junho de 2013 aos acontecimentos de 2015 e 2016, com as manifestações pré-impeachment da presidenta Dilma e favoráveis às investigações da operação Lava Jato.
Fig. 3. Impressão de tela do Instagram do Projetemos em novembro de 2021. Fonte: www.instagram.com/projetemos/
Visto que o “Projetemos” apresenta cartazes projetados, com imagens e mensagens que aliam a função comunicativa com a intenção artística (SZANIECKI, 2007, p. 10) traçamos uma conexão com a refexão da pesquisadora Lucy Lippard (1984) sobre o comprometimento no ativismo social e político nos diálogos e estratégias poéticas entre a produção artística e política. Para Lippard, “a arte ‘política’ tende a ser so-
cialmente preocupada, enquanto a arte ativista tende a ser socialmente envolvida” (LIPPARD, 1984, p. 349)58, embora estes artistas “políticos” e os “ativistas” geralmente sejam as mesmas pessoas.
Por compreender que a arte utilizada como reação à realidade apresentada atua como “anti-arte”, Chaia (2007) indica uma forma de sabotar o sistema capitalista, com o uso de uma atividade que atua “contra o objeto e seu sistema de distribuição, o mercado, passa a valer o processo e no seu interior a tática em busca tanto da confguração de uma linguagem quanto do resultado positivo da ação” (p. 10). Ou seja, o artivismo atenta para o “realismo político que busca o sucesso dos objetivos seja no microcosmo (quarteirão ou bairro), seja no macrocosmo (público ampliado, áreas internacionais ou Internet)”. Isto é, arte atuando em função sócio-política como instrumentalização “que vai desde a formação de consciência do outro, passando pela educação, até o fomento da mobilização”. (CHAIA, 2007, p. 9-10).
As dimensões do uso das projeções durante a pandemia são novas, mas o uso da técnica já está inserido em outras áreas e ações, como na publicidade, em performances artísticas e transmissões de eventos. Na publicação MAPPINGFESTO, o VJ Alexis Anastasiou (2017), um dos pioneiros no uso da projeção mapeada em intervenções artísticas no Brasil, refete sobre a história das projeções. Apresentando seus processos, desenvolvimento de soluções e experiências realizadas no país, afrma que até 2005 havia certo isolamento dos produtores brasileiros e, com a internet e as redes sociais, houve uma mudança neste cenário. Para Anastasiou, existe grande potencialidade para o uso das media facades no espaço público, e nos próximos anos, 58. Tradução nossa.
estas transformarão aspectos arquitetônicos e urbanísticos, assim como ocorre em outras expressões, pois:
Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, as pessoas têm fome de ocupar os espaços públicos, transformar a cidade e de realizar sua estética, sua arte e suas demandas políticas. Suas vontades, seus desejos de participação e seus anseios estéticos não cabem mais dentro dos reduzidos e limitados espaços políticos e artísticos disponíveis. As novas gerações de artistas e ativistas procuram caminhos como pichação, grafte, festas de rua, iniciativas de place-making e intervenções com mega-projeções. (ANASTASIOU, 2017, p. 182)
Na introdução desta publicação, Giselle Beiguelman (2017), também apresenta uma ‘(re)visão urbana’, indicando que:
A projeção mapeada em construções da cidade rompe esse parâmetro do foco restrito na imagem, dispositivo ocular que o cinema consolidou. Estamos agora colocados num espaço amplo e movimentado, com vários eventos em curso, dentre eles uma projeção de imagens. Estamos entre as coisas, no meio da multidão. É dali que assistimos às projeções e somos assistidos por elas. (BEIGUELMAN, 2017, p. 25)
O momento atual, portanto, nos desperta para uma refexão sobre a ação cidadã em questões sociais e políticas voltadas à resistência e transformação da sociedade de maneira participativa, colaborativa e com a apropriação dos artefatos, ferra-
mentas e estratégias disponíveis, frmando o caráter inclusivo e conectado entre as manifestações realizadas nos espaços públicos e digitais, criando imagens e movimentos de resistência.
Considerações finais
No momento de maiores restrições de circulação durante a pandemia, período anterior à vacinação em massa, vislumbramos manifestações realizadas das janelas dos apartamentos e casas, registradas principalmente nas grandes cidades, como os panelaços decorrentes da indignação sobre o enfrentamento da crise tomado pelo Governo Federal, os “aplausaços” em reconhecimento e agradecimento aos profssionais da saúde que atuam no enfrentamento da pandemia, bem como as projeções mapeadas em diversas superfícies, como muros, empenas e fachadas de prédios, com imagens e mensagens exibidas como forma de expressão e intervenção político-artística nos espaços urbanos. O “Projetemos”, portanto, atua por
meio de uma organização ativa e participativa, como ocorre inserida no Midiativismo59, com o comprometimento de cada indivíduo, e no Design Ativismo, em que há interesse, ação coletiva e colaborativa na produção, apropriação, compartilhamento e divulgação de mensagens, ideias e imagens que podem ser tanto fgurativas quanto textuais. A iniciativa, buscando ser uma rede de informação e afeto, frma seu papel político e sua dimensão artística, demonstrando as potencialidades dos usos de tecnologias por diferentes atores, para diferentes causas. As projeções criam outras vias para a circularidade das imagens, pois novas perspectivas de manifestação surgiram durante o distanciamento social. Novos encontros com a resistência acontecem quando as performances realizadas em diferentes regiões são registradas e compartilhadas pelo grupo.
59. Em sua proposta conceitual para defnir o midiativismo, os pesquisadores Antônio Augusto Braighi e Marco Túlio Câmara, apontam que “O midiativismo é o que se faz dele, desde que não se perca de vista o propósito de mudança social, o efetivo envolvimento e que se mantenha a transgressão solidária como norte.” (BRAIGHI e CÂMARA, 2018, p. 39).
REFERÊNCIAS
ANASTASIOU, Alexis. Mappingfesto: Projection Mapping Manifesto. São Paulo: Visualfarm, 2017.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
BRAIGHI, Antônio Augusto; CÂMARA, Marco Túlio. O que é Midiativismo? Uma proposta conceitual. In: BRAIGHI, Antônio Augusto; LESSA, Cláudio; CÂMARA, Marco Túlio. Interfaces do Midiativismo: do conceito à prática. (no prelo). CEFET-MG: Belo Horizonte, 2018.
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2008.
CAPASSO, Verónica. Protestar, resistir e iluminar con demandas el espacio público. Red de Estudios Visuales Latinoamericanos (ReVLaT). Julho de 2021. Disponível em: https://www.revlat.com/single-post/protestar-resistir-e-iluminar-con-demandas-el-espacio-p%C3%BAblico. Acesso em: 28 dez. 2021.
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura V. 1O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAIA, Miguel. Artivismo – Política e Arte Hoje. Aurora, v. 1, p. 09-11, 2007.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. 1ª ed. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.
ENCONTRÃO Design Ativista 2020 | Abertura Ofcial. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (1:02:20 min). Publicado pelo canal Mídia NINJA. Disponível em: http://www.youtube.com/ watch?v=iwPj0qgvfIs. Acesso em: 12 mar. 2021.
FEENBERG, Andrew. CriticaI Theory of Technology. New York: Oxford University Press, 1991.
GARCIA, Wanderson. Através das fachadas: projeção mapeada em arquitetura e seus possíveis desdobramentos espaciais. 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-9E4F73. Acesso em: 13 ago.2021
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pequenas crises: experiência estética nos mundos cotidianos. In: Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2006.
LANDOWSKI, Eric. Flagrantes, delitos e retratos. Galáxia, n. 8, p. 31-69, out/2004. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1392/870 Acesso em: 16 ago. 2021.
LIPPARD, Lucy R. Trojan Horses: Activist Art and Power. In: WALLIS, Brian (Ed.). Art after Modernism: Rethinking representation. Boston: Godine, 1984, p. 341-358.
LOPES, Vanessa; PASSOS, Yara Santos Costa. Estética em transe: manifestações artísticas em tempos de pandemia. Outras fronteiras, v. 9, p. 50-67, 2021.
MOHERDAUI, Luciana. As inéditas projeções de março de 2020: uma análise sobre urgência em refetir sobre os efeitos legais da massifcação das telas efêmeras no espaço urbano. In: LUVIZOTTO, Caroline; ASSI, Cláudia. (Orgs.). Mídia, cidadania e inclusão. 1 ed. Aveiro: RIA Editorial, 2021, v. 1, p. 118-135.
_________. Telas urbanas: do néon às projeções efêmeras. Galáxia v. 45, p. 179193, 2020.
NEVES, Manoella. Cartaz midiatizado como signo circulante. In: 43º CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO - INTERCOM, 2020, Salvador. Anais… São Paulo - SP: INTERCOM, XLIII., 2020, 15 p. Disponível em: http://portalintercom.org.br/ anais/nacional2020. Acesso em: 04 jun. 2021.
PROJETORES unidos contra a pandemia de coronavírus. Publicado pelo Canal TRIP TV. 1 vídeo (3 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bYoKxcNwj6k. Acesso em: 15 dez. 2021
SZANIECKI, Barbara. Estética da Multidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
UOL. Como fazer projeções nas fachadas de prédios. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/17/como-faze r-um-projetor-caseiro-para-usar-em-seus-protestos-politicos.htm. Acesso em: 25 de ago. 2021.
“Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios” Clarice Lispector, Água-viva
A flmografa da artista brasileira Brígida Baltar, conhecida pela série de Coletas da neblina e por suas experiências com os tijolos, inclui uma linhagem de seres híbridos que habitam pequenas fábulas60.
Seus corpos partem do humano rumo à integração com o ambiente, por meio de posturas, como no díptico fotográfco Sou árvore partes I e II (1997), e nos vídeos Casa de Abelha (2002) e Sendo lagartixa, sendo mariposa (2005/2019), registros das ações desenvolvidas em sua casa-ateliê; ou por meio de palavras, como em Quando fui carpa e quase virei dragão (2004), no qual ela devaneia contemplando os próprios pés em perspectiva sobre um lago no Japão; ou ainda, de gestos, como os da mulher-caranguejo, de Maria Farinha Ghost Crab (2004), que cava vigorosamente buracos de sonho na areia da praia, enquanto ouve sons fantasmagóricos em fones de ouvido com formato de concha; e, fnalmente, por meio dos fgurinos elaborados da cantora-amor-pássaro e de seu séquito: o cavalo-cavaleiro, a mulher-árvore, o homem-amor-pássaro, mulher-mico-leão-dourado e o rei da mata, n’O canto do pássaro rebelde (2012).
Mas a invenção de corpos improváveis, híbridos de formas humanas e animais vem de longe, desde os divinos Anúbis e Ganesha, do mítico Minotauro, dos lendários cen-
60. O presente texto é parte de um capítulo da tese “Por uma montagem da sensação: os vídeos de Brígida Baltar”, desenvolvida a partir da refexão sobre o processo de remasterização e organização da obra fílmica da artista, do qual participei como editora audiovisual, em 2018-2019.
tauros, lobisomens, iaras etc. Tais corpos – híbridos, concomitantes, subsequentes, temporários – habitam a imaginação de poetas de diferentes artes.
No poema cosmogônico e etiológico Metamorfoses, de 8 d. C., Ovídio tem como “propósito falar das metamorfoses dos seres em novos corpos” operadas pelos deuses desde as “origens do mundo até os meus dias”. Sendo a transformação, sempre, o ponto alto dos episódios, que investigam as causas a partir de sua forma fnal. (OVÍDIO, 2017, p. 8)
Embora não mencione o clássico grego, Emanuele Coccia, no seu livro Metamorfoses, reverbera a ideia central de Ovídio:
O ânimo me leva a narrar as formas mudadas em novos corpos.
Deuses (pois vós também as mudastes) bafejai meu [intento] e desde a primeira origem do mundo conduzi até meus tempos um canto contínuo. (OVÍDIO, 2017, p. 12)
Coccia propõe que consideremos que todas as vidas derivam de uma: a primeira; e que pensemos em uma variação mais horizontalizada das espécies em contraponto à ideia de uma evolução hierarquizada como a darwiniana. De acordo com o flósofo italiano, cada espécie seria “a metamorfose de todas aquelas que vieram antes dela”. E embora tenhamos nos multiplicado em “formas e maneiras de existir”, seguimos compartilhando a mesma vida: “a metamorfose é, a um só tempo, a força que permite a todos os seres vivos espalharem-se simultânea e sucessivamente por várias formas e o sopro que permite às formas conectarem-se entre si, passarem de uma pra outra”. (COCCIA, 2020, p. 15, 13 e 20, respectivamente).
Já, a pensadora portuguesa, Teresa Castro, em consonância com Coccia, chama atenção para a impossibilidade de separar “as coisas do mundo” como faz o pensamento cartesiano, e ratifca seu posicionamento argumentando que nem indivíduos nós podemos dizer que somos, na medida em que cada corpo é o invólucro de um complexo microbioma. E afrma a imaginação como único caminho possível para que a humanidade escape da catástrofe que vem engendrando.
E é esse o caminho trilhado por Baltar, não apenas como saída, mas como um modo de vida, que mistura casa-corpos-natureza:
Isso foi acontecendo aos poucos; meus trabalhos iniciais são mais realistas, existenciais, têm uma crueza na forma de lidar com a existência, como as ações na casa, cortar paredes, fazer esculturas com tijolos. Eu adoro observar em que medida que o projeto A coleta da neblina se torna uma passagem para a fcção. É uma ação que, inclusive, começou de uma maneira muito natural, em um sítio que eu frequentava em Saquarema. Eu inicialmente usava roupas comuns e, com o tempo, o trabalho foi se modifcando, comecei a inventar vidros, ferramentas e roupas específcas para coletar este improvável. (REZENDE e MACIEL, 2013, p. 109)
São devires que se realizam na experimentação de posturas e movimentos do corpo, inicialmente e de forma mais sutil e no corpo da artista, em Casa de Abelha (2002), Quando fui carpa e quase virei dragão (2004), Sendo lagartixa, sendo mariposa (2005/2019); e depois, com uma atuação mais vigorosa, nos corpos de amigas, atrizes e atores profssionais, e da cantora lírica, em O canto do pássaro rebelde (2012) e Maria Farinha Ghost Crab (2004).
Fiz um vídeo para a Bienal, em que o mel desce pelas escadas, brotando do corpo, da casa. É a partir daí que o trabalho vai fcando cada vez mais ligado à fábula, entrando no mundo das metamorfoses. Maria Farinha Ghost Crab é sobre a personifcação do caranguejo fantasma. Convidei a atriz Lorena da Silva para ser esse personagem, o caranguejo de areia. Filmamos na Ilha Grande em 16mm. Ela corria, se escondia, cavava, enterrava a cabeça, em ritmo veloz.
A Maria Farinha tem essa agitação, e ela usava fones de ouvido em formato de conchas. (BALTAR, 2012, p. 23)
Baltar refere-se a esse grupo de obras elaboradas a partir de seres extraordinários como fábulas, pois recorre à humanização de animais. Mas, de acordo com Bachelard, para fabular é preciso deixar de lado a percepção e dar lugar à admiração do mundo, da lembrança, do devaneio e conectar-se à “criança permanente”, ou seja, ao lado lúdico frequentemente presente na obra da artista. (BACHELARD, 1988, p. 113).
“Transcinemas”, segundo Katia Maciel, são obras de arte situadas na fronteira entre arte contemporânea e o cinema, peças que apresentam imagens ou situações que nos transportam ao imaginário cinematográfco. Assim, podemos pensar nesses trabalhos como transfaunas, pois para eles convergem várias fronteiras: entre o cinema e o vídeo, entre o cinema e a arte contemporânea, entre a fábula e o devaneio, entre o humano e o mais que humano.
Talvez o fgurino seja o elemento mais determinante na construção dos personagens fabulosos e até das fábulas em si. Ele ganha a cena aos poucos, desde o vestido reto da coletora de neblina até às sofsticadas indumentárias da cantora pássaro e
de seu séquito, que pela primeira vez incluem máscaras. Durante o ciclo das Coletas, Baltar começa a criar fgurinos com toques oníricos para suas personagens coletoras, e nesse contexto nasce Casa de Abelha, em que a peça de fgurino pele-favo, nas fotografas, une o corpo da artista às estruturas de madeira de sua casa. De acordo com Coccia, a roupa transforma-nos:
Nem os animais e nem os deuses possuem roupas. A roupa é um elemento propriamente humano. Biologicamente, uma boa defnição do humano seria a de vivente capaz de vestir-se (zoôn endumata echon). O homem é o animal que aprendeu a se vestir. [...] Uma roupa é, antes de tudo, um corpo. Em qualquer roupa fazemos experiência de um corpo que não coincide com nosso corpo anatômico. Vestir-se signifca, assim, completar nosso corpo, acrescentar-lhe uma consistência ulterior feita dos objetos e mate-
riais mais disparatados possíveis cujo único objetivo é o de nos fazer aparecer. (COCCIA, 2010, p. 79-82)
É de forma casual, que os sapatos e meias que usava durante um passeio no Japão, levaram a artista e criar o vídeo de que trataremos a seguir.
Quando fui carpa e quase virei dragão
Quando fui carpa e quase virei dragão (2004) consiste em um plano-sequência de 2 min de duração, com enquadramento
Fig. 1. Frame extraído do vídeo Quando fui carpa e quase virei dragão
subjetivo, no qual Baltar observa os próprios pés sobre um lago cheio de carpas. A partir da imagem, ela devaneia sobre uma dupla metamorfose, que mistura a impressão vivida à mitologia japonesa sobre o peixe:
quando parei pra descansar na beira daquele lago, comecei a reparar no desenho das carpas que os refexos da luz me permitiam ver perfeitamente. Eu também percebia os peixes entre meus pés surgindo e desaparecendo, e isso foi me dando uma sensação particular, como se meus pés se movessem lentamente e agora submersos, nadassem contra a correnteza. Eu já sentia a força imensa das águas me puxando para trás. Fui tentando prosseguir devagar. Já bem alto, no lugar da fonte, passei a me sentir diferente e parecer mesmo outra coisa. Agora eu deslizava tranquila e veloz em águas tão quentes que logo chegariam a ferver. Quando fui carpa e quase virei dragão. (BALTAR apud RONNA, 2021, p. 318.)
No Japão, a carpa é símbolo de força e perseverança, pois ela nada contra a correnteza dos rios para procriar nas nascentes. Tamanha é a força necessária na realização da tarefa, que se acredita que os peixes que chegam à nascente transformam-se em dragões.
É tudo mesmo fábula, fcção. E começou, porque naquela tarde, eu usava meias bordadas e juntamente com a sandália, meu pé parecia se confundir com a própria forma e tonalidade dos peixes. O que eu mais gosto neste vídeo, é que eu simplesmente não faço nada. A imagem é minha contemplação continuadamente. É o texto que produz a ação. (BALTAR, 2010, p. 40)
A declaração evidencia o papel importantíssimo do texto que ressignifca a imagem: “É o texto que produz a ação”, e mais do que isso, produz sensação. Os textos criados pela artista estão frequentemente ligados à questão sensorial e física.
Quando fui carpa e quase virei dragão foi editado prontamente pela artista, na chegada ao Brasil. Brígida escolhe o melhor trecho, reduz levemente a velocidade do movimento, sem desnaturalizá-lo, e aplica sua poesia sobre a imagem. Em 2019, durante o processo de organização da videografa da artista, trocamos a imagem original pela redigitalizada, reduzimos o tamanho da letra, tornando-a mais discreta, mais sutil. E incluímos a frase-título sobre a imagem no fnal do vídeo; no original, ela aparecia apenas como um título-fechamento, na cartela fnal junto aos créditos. No vídeo, experimentamos três dimensões da montagem: a interna, relativa ao enquadramento, em plongé, no qual os pés futuando sobre a água ganham a mesma proporção dos peixes; a vertical, que combina imagem e texto
no mesmo momento; e a horizontal, que distribui os eventos narrados na duração, ritmados pelo surgimento e desaparecimento dos versos escritos.
Em Quando fui carpa e quase virei dragão, tudo é fuxo. Além de todos os elementos da imagem estarem em movimento, segundo a narrativa, durante uma pausa “para descansar”, portanto haverá continuação no caminho; seus pés, primeiro, “movem-se lentamente”, depois nadam “contra a correnteza”, ela persiste no movimento até “deslizar tranquila e veloz”; as metamorfoses também não se fxam, pois quando sente-se carpa, já está a ponto de virar o dragão que não chega a ser, pois o devaneio se interrompe e ela volta a ser humana. Esse vídeo sintetiza algumas das questões que atravessam a obra de Baltar. Além do devaneio, ele aborda a necessidade de contemplação proposta em outros trabalhos, como Em uma árvore, em uma tarde, Coletas, Sem escuridão; ele também contém poesia escrita e implica seu próprio corpo, que “agora é fantasia”. (BALTAR apud RONNA, 2021, p. 397)
Maria Farinha Ghost Crab
A ideia de Maria Farinha Ghost Crab (2004) surge em uma viagem com amigos à Ilha Grande, no litoral Fluminense, em que Baltar tem a oportunidade de observar o comportamento do crustáceo branco, quase transparente, abundante na região. Pesquisando mais sobre o assunto, ela encontra esse animal de nome feminino, que mimetiza-se à areia.
É verdade que o caranguejo vive na praia, mas defnitivamente este tipo, a maria-farinha, é de areia, come areia, cava tocas e faz montes de areia. Ele foge mesmo do mar e isso foi o que para mim, criou a narrativa: uma maria-farinha energética que sonha com o mar e tudo o que ele representa com relação ao movimento, à aventura, ao mistério, à profundidade. E isto é só uma pequena estrutura no flme, porque ele é, afnal, um flme de imagem, com uma linguagem emocional. O que eu realmente adoro é ter descoberto que
Fig. 2. Frame extraído do flme Maria Farinha Ghost Crab
maria-farinha é o caranguejo-fantasma, por sua personalidade introspectiva - ele foge e se esconde na toca. (BALTAR, 2004, p. 45)
A partir do animal, Baltar inventa sua mulher-caranguejo com fones-de ouvido em forma de concha, que cava buracos na praia, nos quais enfa a cabeça e sonha. Mas, arisca, logo foge da câmera que a observa, em busca de um novo buraco.
Uma atriz, agora, Lorena da Silva, interpreta e personifca o animal e age com um certo desespero e agitação, cavando tocas, procurando esconderijos e fugindo das marés. Acho que a cata do “ausente” que Lisette se refere no texto61 é mesmo a força desta narrativa. Maria Farinha procura algo. Sua ação é buscar. E aí, pode ser tudo: algo dentro de si, algo fora de si. (BALTAR, 2010, p. 42)
O conjunto Maria Farinha Ghost Crab é composto de cinco flmes em 16mm – Maria Farinha Ghost Crab (2004), Maria Farinha Ghost Crab II e III (2019), Fragmentos I e II (2019) –, três esculturas fones-concha e desenhos em nanquim colorido. Dessa vez participei também da flmagem como assistente e maria-farinha, alternativa.
A equipe era reduzida e formada por amigos. Gostaríamos de destacar a fotografa de Seppo Renvall, artista sueco, com uma câmera Bolex62 antiga, sem motor. Esse tipo de câmera marcou época no cinema experimental e nos flmes de artista, im-
61. Ela refere-se ao texto O processo de fabulação, de Lisette Lagnado, publicado no catálogo da exposição e no livro Paisagem secreta.
62. Fabricadas na Suíça entre 1925 e 1981.
primindo assim características de sua visualidade nesse campo, ou seja, o tipo de imagem produzido por aquelas lentes, aquele tipo de empunhadura, etc, torna-se uma estética fílmica.
No flme, a combinação da granulação da película com a variação de velocidade da câmera manual somada à luz contrastada do sol forte dos trópicos – ainda refetido pela areia – e aos movimentos de câmera, conferem uma certa estranheza aos movimentos dos corpos e, ao flme, um clima, ao mesmo tempo, misterioso e lúdico. A câmera persegue o caranguejo com uma curiosidade quase infantil. Editamos o primeiro flme logo que voltamos da viagem, depois de passar pela revelação e telecinagem dos negativos. Em seus 1 min e 49 s de duração, a Maria Farinha de Lorena da Silva cava, corre e ouve sons misteriosos constantemente, até parar para olhar dentro de um buraco, onde vê-se navegando na proa de um barco rumo ao horizonte, depois levanta a cabeça e foge de novo.
Na primeira versão, o percurso se repetia cinco vezes, mas o que era visto dentro do buraco variava. Baltar expôs uma vez, achou cansativo e simplifcou, conservando apenas um percurso com a primeira variação.
A trilha sonora dissonante é fundamental para o suspense buscado pela artista:
Junto com Felipe Canedo procuramos uma música fantasmática, estranha, a partir da captura de sons metálicos de uma harpa, que foi a base para o som da Maria Farinha. Então o flme, que se passa na praia, na Ilha Grande, tem uma sonoridade que destoa da paisagem tropical, ensolarada. (BALTAR, 2017, p. 29)
Em 2019, retomamos o material bruto limpo, escaneado63 e redigitalizado, e editamos mais quatro peças. Duas delas com Lorena da Silva: Fragmentos I e II, com 32 e 27 segundos, respectivamente. No primeiro, a mulher-caranguejo, de costas para a câmera, espera, na beira d’água, o barco que se aproxima64; no segundo, enterrada até a altura do peito, ela cobre, freneticamente, o corpo que resta exposto.
Editamos outras duas peças flmadas com o que sobrou de negativo e de tempo do flme principal. Imagens que fcaram arquivadas por quinze anos. Em cena, agora, duas marias-farinhas – Daniela Amorim e eu. Em Maria Farinha Ghost Crab II – de 1 min e 49s –, as mulheres-caranguejo descansam nas margens de um rio vermelho; no III – de 5 min e 15s –, elas cavam, fogem, olham no buraco e ouvem sons misteriosos, mas o espectador não participa do mundo delas, não compartilha do que ouvem, nem da visão do interior do buraco.
Fig. 3 e Fig. 4. Frames extraídos dos flmes Maria Farinha Ghost Crab II e III respectivamente
63. O processo de telecinagem, que transferia a imagem da película para a fta de vídeo por meio de um software, foi substituído pelo escaneamento digital da película, que atualmente alcança 4K de defnição.
64. Essa cena que era uma das variações vistas no buraco na versão descartada.
A edição de todos os flmes se baseia em cortes secos. No flme principal, eles trabalham para gerar continuidade, simulando um plano-sequência maior do que o flmado. Quando Maria Farinha olha para dentro do buraco, cortamos para a vinheta redonda em que localizamos seu devaneio: o mar. Vale lembrar que Baltar exibe o flme projetado, com isso a margem preta praticamente desaparece, deixando em evidência a imagem-redonda, na qual utilizamos o recurso de inverter a velocidade para criar um falso looping, que repete, alternadamente, o mesmo trecho, ora normal, ora em reverse.
Nos flmes I e II, constrói-se na edição uma narrativa mínima, a partir do comportamento das personagens, apresentando situações de seu cotidiano: a escavação de buracos dentro dos quais pode sonhar e/ou a pausa para descansar na beira do rio. Já no flme III, Baltar propôs que usássemos todo o material flmado, deixando-o quase bruto, com os planos repetindo-se em diferentes tomadas. Aparamos pequenas sobras, como saídas falsas, e com isso, o flme ganhou um ar documental, como se cada espectador fosse o primeiro a ver aquele material de observação da transfauna, como um(a) editor(a).
A ausência de som nos dois flmes contribui para esse tom sutilmente documental, porque seca o clima de mistério, deixando a observação pura.
Em todos os flmes conservamos as imagens de luz produzidas pelo disparo da câmera – os fash-frames –, o que, contraditoriamente, contribui tanto para o tom onírico do flme I, como para o documental, mais cru, do III. Isso revela uma potencialidade da edição, pois conforme o contexto, um detalhe pequeno, como esses frames luminosos, pode trazer sensações diferentes ao espectador.
O fgurino é sutil, mas crucial, na caracterização das mulheres-caranguejo. Elas usam vestidos fantasmáticos em tons pastéis de amarelo, para Lorena, e de rosa, para Daniela e Fernanda, e os fones de concha, que como a pele-favo, são ao mesmo tempo esculturas e objetos de cena. No conjunto das óperas, o fgurino e a maquiagem tornam-se ainda mais elaborados.
O canto do pássaro rebelde
A videoinstalação O canto do pássaro rebelde (2012) faz parte da exposição O amor do pássaro rebelde (2012), e retoma diversas questões da arte de Baltar, mas nesse artigo, nos concentraremos nos seres que habitam a fábula de forte caráter onírico, que mistura e/ou sintetiza personagens e características, hibridizando a cantora real, a inventada, o canto, o amor, a fora e a fauna vizinhas. Na instalação, Baltar apresenta simultaneamente três versões de Habanera, do primeiro ato da ópera Carmen (1873-74), de Georges Bizet. Uma ária que descreve o amor como um animal arisco e caprichoso.
Fig. 5. Frame extraído do vídeo O canto do pássaro rebelde - foresta
A primeira inspiração da personagem é Gabriela Besanzoni, a cantora lírica para quem o Conde Henrique Lage construiu o palacete onde, atualmente, funciona a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Besanzoni se retirou dos palcos após casar-se com o Conde, mas seguiu apresentando-se em casa para seus convidados em grandes saraus, sendo Habanera uma de suas árias preferidas.
Assim sendo, com uma interpretação poética da ópera de Bizet, Baltar sintetiza em uma personagem cantora e canto. Carla Odorizzi, mezzo-soprano do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, encarna a cantora-pássaro-amor, que canta em meio às árvores tendo como espectadores seres híbridos, que não se limitam ao território determinado à plateia, ocupando o palco em uma das versões da obra.
Na primeira versão, de 3min e 06s de duração, a câmera passeia pela foresta, revelando a presença dos seres híbridos: a mulher-árvore, o homem-cavalo e o homem-pássaro-amor, depois o rei da mata, a mulher-mico-leão, até chegar à cantora-pássaro-amor. Cortinas vermelhas de veludo recortam o quadro, o palco e a paisagem. Na segunda versão, com 2min e 46s, a câmera recua em uma trilha até à boca de cena passando pelo cavalo-cavaleiro, pela mulher-árvore, pelo homem-pássaro e pelo rei, até enquadrar a cantora e o violoncelista que a acompanha, e a mulher-mico meio escondida atrás da cortina. Dessa vez, além da cortina, um tablado de madeira delimita a cena teatral. O movimento da câmera, que anda para trás, acrescenta estranheza à fabula. Por último, na versão mais curta e com câmera fxa, de 1min e 49s, a Gabriella da fcção canta, a cappella, sozinha no palco.
A apresentação conjunta das três versões deixa o público em dúvida se os seres estão realmente ao redor da cantora ou se ela os inventa enquanto canta solitária em meio às árvores. Os fgurinos desenhados por Baltar e executados pelo amigo e
parceiro, Rui Cortez, são ricos de elementos e signifcados. Os seres híbridos são personifcados por Domingos de Alcântara, como cavalo-cavaleiro, habitante da Cavalariças, espaço em que se deu a exposição, com máscara, capa e crina pretas; Ellen Miranda é a mulher árvore, mimetizada à mata com seu vestido de veludo verde e cabelos que embaralham-se às outras folhagens; Marcus Wagner, o homem-pássaro-amor, tem rabo de renda e máscara de baile; Glaucy Fragoso é a mulher mico-leão-dourado, com armação de saia e gola teatral; e a cantora-amor-pássaro, cujas penas trasbordam pelas mangas e pela gola, usa um penteado-ninho. Bernardo Zabalaga, o rei da mata e o violoncelista que acompanha a cantora não são híbridos, mas fantasmáticos e misteriosos. Os vídeos são gravados em planos-sequência, em que a montagem se dá pela distribuição dos personagens no espaço-tempo do plano, então à edição resta o gesto primordial de seleção, além de aparar a “pontas” das tomadas, cuja duração, pressão e/ou pulso são determinados pela extensão da ária.
Eles saem das histórias
Sentido anti-horário:
Fig. 6, Fig. 7 e Fig. 8. Frames extraídos do vídeo Eles saem das histórias
Durante as gravações de O canto do pássaro rebelde foram feitas, além da cena principal, várias tomadas extras dos seres híbridos sem a protagonista, que não foram utilizadas por ocasião da exposição. Mas durante a revisitação do acervo da artista, não poderíamos ignorar imagens tão potentes. E havia ainda fotografas na mesma situação.
A ideia inicial era criar dois flmes, um com o vídeo e outro com as fotografas. Começamos por elas. Tentamos colar uma na outra, borrando as divisões, de modo a
criar um espaço contínuo, e movê-las para a esquerda criando um travelling eletrônico, mas por um desses mistérios da tecnologia – ou, talvez, apenas por causa das muitas linhas verticais dos troncos das árvores – o movimento não se sustentava, a imagem batia. Baltar resolveu então manter imagens fxas e combiná-las com as em movimento.
O resultado é uma peça, de 3min e 58s, com tons oníricos ainda mais fortes, engendrados pelas transições em fades in e out. Primeiro vemos treze fotografas dos seres fantasmáticos da foresta, que acendem e apagam como numa projeção de slides. Depois de 52s, passamos às imagens em movimento. A mudança do fxo para o fuxo causa um estranhamento, como se as imagens começassem a se mexer de forma inesperada, o que acrescenta uma camada ao clima de sonho. Além disso, os fades tornam-se mais lentos, como o piscar de olhos de quem adormece tentando manter-se acordado.
A sequência não segue lógica narrativa, nem regra cinematográfca, então os personagens ocupam posições inverossímeis e incompossíveis. Tomemos como exemplo a articulação dos dois últimos planos do flme: a mulher-árvore está sentada em um balanço no fundo do quadro, à direita, na frente dela, está a mulher-mico-leão escondendo-se atrás de uma árvore, ambas encaram a câmera e, portanto, o espectador; temos um fade out e quando a imagem reacende, a mulher-árvore aparece parada, sozinha, à esquerda do quadro em primeiro plano, alheia à nossa presença e à da câmera. Ainda que a edição indique um intervalo entre as imagens, sua mudança de posição, o desaparecimento da mulher-mico-leão e a mudança de clima entre as cenas que se sucedem reforçam essa sensação de adormecer e acordar dentro do mesmo sonho.
Mais uma vez a montagem volta-se mais ao encadeamento sensorial do que ao racional. E o que abre esse caminho para a montagem é justamente a inverossimilhança dos corpos em cena. De minha parte, tive difculdade de realizar o flme e de aceitar tanta liberdade, contrariando o encadeamento esperado ou habitual, e só cheguei a compreendê-lo melhor recentemente, sob o ponto de vista de pesquisadora.
Em Eles saem das histórias, o hibridismo extrapola os personagens, alcançando a forma, que mescla imagens fxas e em movimento. E está presente também na tecnologia digital, que é híbrida, uma vez que funde tecnicamente a imagem estática e a que se move – cinema, vídeo e fotografa –, agora registradas no mesmo suporte, permitindo que a decisão entre fotografar ou gravar/flmar seja tomada pelo operador da máquina, no ato da captação ou no processo de edição, sem que haja diferença qualitativa ou visual no resultado.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
________. A Poética do espaço. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, s/d.
________. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab. 2004. Catálogo
________. O que é preciso para voar. 2011. Catálogo
________. Alguns vídeos - entrevistas, depoimentos e catálogo. In: Um ponto e outro, n. 7. Museu Victor Meirelles, 2010. Disponível em: https://museuvictormeirelles.museus.gov.br/wp-content/uploads/2017/07/revista-numero-07-brigida-baltar-2.pdf. Acesso em: 14 set. 2021.
________. Acredito que um artista está vitalmente comprometido com seu trabalho, por isso vive em estado da arte – entrevista. Arte & Ensaios, v. 19, n. 33, dez. 2017.
________.
Brígida Baltar: flmes. Rio de Janeiro: 2019. Catálogo. Disponível em: https://issuu.com/fase_10/docs/catalogo_brigidabaltar_flmes/12?ff. Acesso em: 14 fev. 2021.
BIZET, Georges. Carmen. São Paulo: Editora Moderna, 2011.
CASTRO, Teresa. Ser líquen - conversa entre Teresa Castro e Liliana Coutinho. Disponível em: https://youtu.be/UUJVxvZJzns . Acesso em: 30 set. 2021.
________. The mediated plant. E-fux Journal, n. 102, 2019. Disponível em: https://www.e-fux.com/journal/102/283819/the-mediated-plant/ . Acesso em: 30 set. 2021.
CICERO, Antonio. Sobre poesia contemporânea. In: SARAIVA, Alberto (Org.). Poesia visual 2. Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2015.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
________. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
ESPAÇO AGORA/CAPACETE. Brígida Baltar: orvalho e maresia. 2001. (Catálogo)
GONÇALVES, Osmar (Org.). Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.
LAGNADO, Lisette. Fabular é preciso. In: BALTAR, Brígida. Passagem secreta. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2010.
LISPECTOR, Clarice. Água-viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1994.
MACIEL, Katia. Transcinemas e a estética da interrupção. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (Orgs.). Limiares da Imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
MACIEL, Katia (Org.). Cinema Sim: Narrativas e Projeções: Ensaios e Refexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. (Catálogo)
________. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
________. A ideia de cinema na arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Circuito, 2020.
REZENDE, Renato; MACIEL, Katia. Poesia e videoarte. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2012.
RONNA, Giorgio (Org). Brígida Baltar: flmes. Rio de Janeiro: VArte, 2021.
Fala, Mulher! (2005) apresenta o universo de quinze mulheres que vivem em comunidades da periferia de São Paulo. Exauridas pelo cotidiano vivido e pelo trabalho, elas são, por outro lado, dançarinas e rainhas do Carnaval e incorporam orixás nas celebrações religiosas do candomblé. Na conexão entre imagens de depoimentos e de acontecimentos carnavalescos e religiosos, Kika Nicolela e Graciela Rodriguez desejaram, por meio da câmera, descobrir e mostrar as fabulações nas relações entre os mundos e subjetividades em que essas mulheres habitam. Este flme leva em consideração o papel da mulher negra e periférica, levantando questões importantes como interseccionalidade, territorialidade, reconhecimento, resistência, sublevação e emancipação das violências sofridas.
Fala, Mulher! foi produzido no momento da democratização das tecnologias digitais, processo que está associado à escalada das práticas híbridas no campo das imagens em movimento, reverberando em inúmeros trabalhos nomeados como cinema de artista e expostos em museus, galerias de arte e festivais de cinema. Seus aspectos estéticos aliam procedimentos do vídeo e da videoarte, a exemplo do seu aspecto direto e a não-linearidade narrativa, com caracterizantes do cinema moderno na flmagem e montagem, como o uso de faux-raccords e de saturação de imagens-afecção, que desestabilizam o reconhecimento da dimensão espaço-temporal e causam afetividade no espectador.
Fig. 1. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
Nesta simbiose, há modifcações dos elementos caracterizantes das imagens, como do espaço, do tempo e da narrativa, através do uso de câmera lenta, congelamento, justaposição, multiplicação, colagens e deformações imagéticas. Fala, Mulher! possui, ainda, referências visuais do desenho, da fotografa e da escrita. Suas origens estão no cinema verdade de Dziga Vertov e no cinema moderno (principalmente a nouvelle vague, na França, e o cinema novo e marginal, no Brasil), pela captação do fuxo do real no aqui e agora, e pela câmera que, por seu gesto, protagoniza na duração do plano-sequência, que também são procedimentos do vídeo.
Inspirado pela estratégia do cinema-verdade, o flme abordou os encontros com as mulheres de forma a buscar o despojamento, o acaso e a troca intersubjetiva. Dessa forma, não foram planejadas entrevistas formais com perguntas fechadas e pesquisa prévia. É como disse Godard a respeito do flme Eu, um Negro (1961), de Jean Rouch, “se fer au hasard, c’est écouter des voix” (“confar no acaso, é escutar vozes”) (1959, p. 22). O campo expandido midiático de Fala, Mulher! projeta formas de resistência às narrativas historiográfcas e hegemônicas que representam as mulheres negras e periféricas como fadadas à subalternidade. As imagens hibridizadas e a fabulação desvelam intervalos, fssuras no espaço e no tempo, fgurando sujeitos antes mutilados, mas que agora se levantam porque falam e se auto-representam na interseção de outros tempos e espaços possíveis. São reimaginados, mesmo quando “meros fgurantes” (DIDI-HUBERMAN, 2017) ou “sem nomes da história” (BENJAMIN, 2011). Com motivação midiática relacional e que fomenta as singularidades em potência nas relações com o real, Fala, Mulher! é pós-cinema promotor de desconstrução estética e ética, sendo um gesto político composto por práticas que envolvem as conexões da mídia com a imagem, a memória e o imaginário dissensual, num pro-
cesso de emancipação e transformação do sensível. O cinema, segundo Edgar Morin, “nos dá a ver o processo de penetração do homem no mundo e o inseparável processo de penetração do mundo no homem” (1977, p. 9), num ponto preciso, num plano de charneira dialética que atua como operador de conversão destes dois polos: o mundo e sua humanidade. Ora, esse plano não é outro senão a imagem propriamente dita, que “não é apenas a placa giratória entre o real e o imaginário, (mas ainda) o ato constitutivo radical e simultâneo do real e do imaginário” (MORIN apud DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 19).
Procura-se relacionar o extrapolamento do real nas imagens e a construção das fabulações deste flme em sua dimensão política a partir dos textos de Deleuze (1983, 1990) sobre cinema, principalmente quando evoca os documentários de cinema-verdade e o cinema de Pasolini; das críticas sobre a possibilidade da imagem construir um jogo de intervalos que escapa à uma hierarquia e que sugere a fabulação, presentes nos textos de Ran-
cière (1988, 2005, 2009, 2018); e do pensamento de Didi-Huberman (2012, 2017, 2018) sobre as imagens de insurgência e sublevação de um coletivo emancipado. No que se refere ao processo de cruzamento das imagens em movimento no campo da arte, que implicam em alterações espaço-temporais, narrativas e de percepção, são revistas as críticas dos movimentos improváveis das atuais hibridações midiáticas e seus efeitos no cinema, de Philippe Dubois (2004), e dos pós-cinemas e do documentário híbrido, de Arlindo Machado (1993, 1997, 2003, 2011).
Hibridação estética
O dispositivo do cinema clássico carrega um processo moroso e linear: a priori, deve haver uma história a ser contada, com narrativa pré-estabelecida por meio de um roteiro e um planejamento de flmagem. Os aparatos técnicos de como fazer e expor cinema, no cubo preto, se houver distribuição, não coadunava com o desejo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez. Para romper com a cartilha cinematográfca e pensar em outras estratégias de flmagem e edição, buscaram o despojamento do vídeo por ser um equipamento de mais fácil manuseio. Assim, tocam o cinema de documentário mas o hibridizam com práticas do vídeo, do fotoflme, do desenho e da escrita.
Fig.2. Frame do flme. Acervo de Kika
Nicolela e Graciela Rodriguez
Kika Nicolela e Graciela Rodriguez não buscam colher depoimentos que iriam validar uma hipótese a qual se legitimaria no documentário; contrariamente, tencionam lançar-se à incerteza das falas. Infuenciadas pelo cinema de Eduardo Coutinho, sobretudo pelo campo expandido do documentário, que rompe com os jogos de oposições entre a fcção e a realidade, e entre o sujeito criador do flme e o objeto de investigação, Fala, Mulher! se afasta da natureza do documentário, que é trazer uma “verdade”. O documentário é visto como um dispositivo que se abre à fabulação e ao relacional, este último pelo encontro dos envolvidos com as artistas e os procedimentos do flme. Este dispositivo relacional não produz o real mas é uma ativação dele já que o real só existe no flme, pois ele comporta “mundos que não se constituem como desdobramentos em profundidade do que já conhecemos, mas que são ampliações em extensão de possibilidades de cruzamentos de subjetividades e potências de invenção.” (MIGLIORIN, 2005, p. 94). São deixadas de lado as formas enquadradas e subalternizadas de percepção de si, do outro e do mundo, dando a ver a consciência de onde realmente pertencem. No olhar (com a câmera) sobre o outro que se auto-representa em um território coletivo (a periferia de São Paulo, suas ruas, moradias, salões de ensaio de Carnaval, lugares religiosos), e pelo conteúdo das imagens na montagem (à luz dos procedimentos de Eisenstein e Vertov), este flme coloca em evidência os trânsitos entre a memória, a imaginação, os sonhos, a fcção e a realidade, embrenhando-se nos papéis sociais e nos confitos gerados pelos estereótipos culturais, marcando uma espécie de documentário sociológico. Fala, Mulher! está inserido numa motivação ética que deseja promover alteridade, produzindo formas de heterogeneidade, diferença e apresentando os microcosmos de um mundo possível. É uma forma de fazer cinema “que reage às contingências de sua história e se transforma em conformidade com os novos desafos que lhe lança a sociedade.” (MACHADO, 1997, p. 514). Para apresentar a vida com extratos do
real e elementos fccionais, agencia corpos, códigos e signos de uma cultura subalternizada. É arte que “não transcende as preocupações do cotidiano: ela nos põe diante da realidade através de uma relação singular com o mundo, através de uma fcção.” (BOURRIAUD, 2009, p. 81). Neste intervalo entre a “realidade” e a fcção (ou, poderia-se dizer, entre a fabulação e a fcção), produz imagens de refexão nas experiências de mundo que desvelam. É o pensamento que acontece nas (e pelas) imagens.
O documentário começa a ganhar interesse quando se mostra capaz de construir uma visão ampla, densa e complexa de um objeto de refexão, quando ele se transforma em ensaio, em refexão sobre o mundo, em experiência e sistema de pensamento, assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo.
(MACHADO, 2003, p. 68)
Os procedimentos do vídeo podem desvelar subjetivações e outras paisagens.
Os primeiros artistas a trabalharem com este dispositivo analógico criavam imagens simples, muitas vezes sem mudança de plano, vendo e fazendo ver aquilo que não se vê, nem na pressa da realidade cotidiana, nem quando se precisa seguir um roteiro. Nota-se que, desde o aparecimento das primeiras porta-packs, nos anos 1960, o vídeo possibilitou a captação de imagens que o aparato técnico do cinema não permitia devido a seu grande porte e complexidade de operações. Além disso, o vídeo está numa região fronteiriça. Não possui uma linguagem própria, determinística, o que poderia reduzir sua potência criativa. Ele nunca se estabeleceu em um lugar, como o cinema. Despido de um estatuto, os artistas que primeiramente dele se apropriaram, em grande parte o faziam para criticar a comunicação televisiva. É oportuna, portanto, a posição de Françoise Parfait ao dizer que o vídeo sempre esteve em uma posição
“entre”: “entre a imagem e a ausência de imagem, entre o analógico e o digital, en-
tre o cinema e ele mesmo, entre objeto e processo, entre visível e invisível, entre o ao vivo e o pré-gravado, entre o móvel e o imóvel, entre o fora e o dentro, entre o acima e o abaixo, entre a vigília e o sono.” (2015, p. 20). O vídeo é um meio intermediário entre o cinema, a pintura e a televisão (DUBOIS, 2004); um operador de passagens entre as imagens (BELLOUR, 1997).
Arlindo Machado escreveu que “o discurso videográfco é impuro por natureza, ele reprocessa formas de expressão colocada em circulação por outros ciclos, atribuindo-lhes novos valores” (1993, p. 8) e “opera numa fronteira de intersecção de linguagens, donde a obsolescência de qualquer pretensão de pureza ou de homogeneidade.” (Ibid, p. 8). Não possuindo um lugar determinado, o vídeo transforma e é transformado, sendo, assim, obra aberta cuja trajetória se infnitiza nas práticas de arte. Ao tocar a linguagem do cinema, provocou mudanças tanto na indústria cinematográfca como nas experimentações do cinema independente.
A câmera na mão de Fala, Mulher! performa à luz do caráter direto do vídeo e provoca interferências nas imagens como tremores acidentais da câmera. Explora superfícies, linhas, planos, texturas, volumes, implicando um tensionamento do visível/ sensível. Em dissonância à representação, a profundidade de campo é substituída pela imagem plana do vídeo. Entre o cinema e o vídeo, o “dar a ver” o outro acontece num movimento de opacidade, que escapa à transparência, subjetivando o olhar do espectador, a exemplo do abuso do close-up, que aproxima o espectador numa condição de afeto, desvelando o que há atrás das imagens (o que não está visível de maneira óbvia); da hipermobilidade da câmera performática que percorre os corpos como se fzesse parte deles, produzindo deslocamentos de velocidade. É como o cine-olho (Kino-Glaz), conceito de Vertov, que entende que a câmera é capaz de captar imagens que o olho humano não é capaz de captar.
Nós caímos e nos levantamos ao ritmo de movimentos, lentos e acelerados, correndo longe de nós, próximos a nós, em círculo, em linha, em elipse, à direita e à esquerda, com os sinais de mais e de menos, os movimentos se curvam, se endireitam, se dividem, se fracionam, se multiplicam por si próprios, cruzando silenciosamente o espaço. (VERTOV, 1983, p. 251)
Fig.3. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
Além disso, a câmera mostra sua autonomia quando deixa de acompanhar o principal sujeito flmado para olhar para outros lugares, como se tivesse vida própria. É um corpo maquínico, sensível, materializando uma motivação ética que permeia a intimidade, como no uso do movimento do zoom, que é um procedimento que distancia a videoarte da televisão, pois oferece uma condição de contiguidade no desejo de aproximar-se do que/quem é flmado:
O zoom é o movimento “sujo” da televisão, um “falso” movimento. O signo de sua fobia da retenção e de sua cegueira por hipertrofa da visibilidade. Segundo Serge Daney, o zoom é um simulacro do olhar. Mas quem fala em olhar fala em alguém que olha. E como a televisão não é ninguém, o zoom perde a cada dia seu “sentido” primeiro. Ele se torna o vestígio de uma pulsão caída em desuso: o olhar […]. O zoom se tornou defnitivamente um modo de tocar as coisas e de acabar com as distâncias. (DUBOIS, 2004, p. 191)
A câmera de Fala, Mulher! produz, como disse Pasolini, uma imagem “subjetiva indireta livre” (DELEUZE, 1983, p. 89), pois “[…] não oferece apenas a visão do personagem e do seu mundo, ela impõe uma outra visão na qual a primeira se transforma e se refete.” (Ibid., p. 89). Esse tipo de imagem aconteceria a partir de procedimentos estéticos que “atestam a existência dessa consciência refexionante ou desse cogito propriamente cinematográfco” (Ibid., p. 89), tais como:
o “enquadramento insistente”, “obsedante”, que faz com que a câmera espere que o personagem entre no quadro, faça ou diga alguma coisa, e depois saia, enquanto ela continua enquadrando o espaço que voltou a fcar vazio, “deixando novamente o quadro
entregue a sua pura e absoluta signifcação de quadro”; ”a alternância de objetivas diferentes sobre uma mesma imagem” e “o uso excessivo da zoom”, que duplicam a percepção com uma consciência estética independente [...] (Ibid., p. 89)
Na montagem, há descontinuidade narrativa marcada pelos faux-raccords, e os cortes alternam os planos médios, fechados e em super detalhe. Entre a imagem-ação e a imagem-afecção, e entre os depoimentos das mulheres e os gestos de manifestação: as imagens que evidenciam os braços para o alto, os corpos que dançam, giram, num acontecimento de liberdade, sublevação e emancipação. Como no cinema moderno, essa alternância de planos aproximados, somado aos cortes que não oferecem planos contínuos, desestabiliza o olhar nas dimensões espaço-temporais, em oposição ao esquema sensório-motor do cinema clássico, pautado na montagem com encadeamento dos planos aberto, médio e fechado, e na continuidade (os raccords), que são procedimentos que atualizam a história a ser contada. Aqui, as imagens posteriores não atualizam as anteriores: os planos são autônomos uns aos outros e remetem a um devir. Há, ainda, alterações de luz, cor (saturação), textura e velocidade, justaposições de imagens e palavras, e um ritmo de montagem intelectual (de extrato geométrico). Por exemplo, a câmera lenta é “uma experiência absoluta do olhar vivido como um acontecimento.” (DUBOIS, 2004, p. 301); a sobreimpressão (sobreposição) de imagens constrói camadas imagéticas “de modo a produzir um duplo efeito visual” (Ibid., p. 78). Essas camadas de imagens têm textura vazada pela modifcação de luminosidade, transparência e colorização, provocando uma situação dupla de textura/corpulência e translucidez:
[…] cada imagem sobreposta é como uma superfície translúcida através da qual podemos perceber outra imagem, como em um pa-
limpsesto. Por outro lado, efeito de espessura estratifcada, de sedimentação por camadas sucessivas, como num folheado de imagens. Recobrir e ver através. Questão de multiplicação da visão. (DUBOIS, 2004, p. 78)
Trata-se de práticas construtivistas infuenciadas pelos pioneiros Eisenstein e Vertov que, para desconstruir o caráter fccional do cinema e injetar a dimensão autoral no flme, utilizaram essas estratégias para construir o movimento da vida cotidiana - na representação, não da realidade, mas da realidade na interpretação, tornando visível o que é invisível:
Fig.5. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
“Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, vos mostro o mundo do como só eu posso vê-lo” (VERTOV, 1983, p. 255). Com outras motivações éticas, essas práticas foram renovadas no cinema moderno e experimental e na videoarte a partir da década de 1960.
Esses procedimentos de flmagem e montagem, que inscrevem a iconografa do vídeo e do cinema moderno e experimental, “nos dá a impressão de estar diante de um universo de imagens e não diante de uma realidade preexistente, efeito de opacidade signifcante […].” (MACHADO, 1994, p. 127). Como no cinema experimental da década de 1920, onde a hipermobilidade, a multiplicação e a velocidade […] visa produzir efeitos, quase sinestésicos, de desestabilização da visão, ultrapassamento do corpo e dissolução da identidade do sujeito. Não é mais o corpo estável e unitário, soberano e pensante que ordena e ancora os deslocamentos do ponto de vista; é um “outro corpo”, estilhaça-
Fig.5. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
do, multiplicado, em permanente reviravolta; um corpo encantado, liberto, aéreo, atravessado por forças. (DUBOIS, 2004, p.189).
Com isso, modifca-se a percepção na recepção, que rompe com a primazia do olhar e aciona a sensorialidade e o pensamento. O sistema de signos de Fala, Mulher! não corrobora com o prolongamento sensório-motor do cinema clássico, produzindo “imagens-lembrança, imagens-sonho, imagens-mundo” (DELEUZE, 1985, p. 88) e retirando o espectador da alienação para forçá-lo a pensar. Segundo Georges Didi-Huberman (2021), a imagem pode ser uma cripta que abre seu fundo e que nos atrai até ele, conquanto estejamos abertos para perceber sua história ou seu enigma. Contrariamente à proposição do confito narrativo do cinema clássico, deseja-se o reconhecimento do outro; uma ruptura com a sintaxe dominante para produzir conhecimento. Para a conceituação do cinema como pensamento, Deleuze em A Imagem-Tempo (1990), entende que este dispositivo gera, a partir do cinema moderno de pós-Segunda Guerra, refexões sobre a imaginação, a memória, o tempo e o rompimento com as verdades eternas construídas pelo mundo racional. O ato criativo como pensamento (que pressupõe rompimento com essencialismos com o objetivo do devir minoritário) é uma “transformação molecular dos afetos que permite uma abertura a novas percepções” (MARQUES et al, 2018, p. 101).
Insurgência do corpo e experiência estética
Os corpos que falam e produzem gestos de insurgência de Fala, Mulher! são corpos em pulsão, sem órgãos, dionisíacos, rompendo com a ideia do corpo-organismo passivo subjugado às estruturas hierárquicas de poder, que o molda e o reduz à sua utilidade. O corpo em sociedade está imerso na rotina de atividades produtivas de
forma a ser não mais um corpo em sua plenitude, mas uma camada dele, um organismo cujos órgãos estão organizados para que o corpo sirva de instrumento efcaz nas estruturas de um sistema de poder das quais faz parte e nas quais se relaciona com os outros organismos. É o corpo dócil, “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1987, p. 163) pois “o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (Ibid, p. 163). É um corpo que “se manipula, se modela, se treina, que obedece […]” (Ibid., p. 163). Segundo Deleuze e Guattari, “o organismo não é corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer, um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair trabalho útil” (2012, p. 24).
Já o primeiro tipo de corpo sem órgãos (CsO), que é o pleno do revolucionário, rompe com a organização produtiva onde está inserido e se abre a novas possibilidades de experimentação da vida. Deixa de ser ferramenta de produção da máquina de poder para formar uma totalidade-corpo munido de sensações intensivas e de pensamento e, assim, produtor de potências de transformação: “pleno de alegria, êxtase, dança” (Ibid., p. 13). Os gestos de insurgência que compõem Fala, Mulher!, que aparecem quando falam, dançam no Carnaval e rodopiam nos rituais do Candomblé, promovem um desvio — um corte na estrutura hegemônica, portanto, são gestos de dissenso por excelência — de temporalidades, modifcando assim o fuxo de seus dias, como se neste ato residisse uma “outra maneira de habitar o tempo, uma outra maneira de sustentar um corpo e um espírito em movimento”. (RANCIÈRE, 2018, p. 34)
O regime da visibilidade de Fala, Mulher! enaltece este corpo-coletivo emancipado, politizado, que, alegremente, deseja conquistar o espaço público, garantindo seu direito ao uso da cidade e às práticas religiosas. A câmera, que também é um corpo, pois “a câmera o vê, e vê seu mundo, de um outro ponto de vista, que pensa, refete e transforma o ponto de vista do personagem” (DELEUZE, 1983, p. 89), e as estratégias de montagem evidenciam esta condição e podem, na recepção, reverberar em tomada de consciência.
Rancière (1988) procura diferenciar as formas de construção de sentido que a política da fabulação exerce nos exercícios das construções fccionais do “como se” e do “seu agenciamento político nas descrições de objetos e ações” destes trabalhadores (MARQUES et al, 2018, p. 98). Ou seja, o método elegido pelo flósofo francês para ler os arquivos e cartas escritos pelos operários é defnido pelo próprio autor, seja como narrativa ou produção literária,
Fig.6. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
no intuito de dar a escutar o outro e lançar esses documentos à uma expressão fabuladora potente, onde é possível vislumbrar estes sujeitos como seres atuantes, que resistem à marginalização.
É possível identifcar um “como se” envolvido no “é o modo como as coisas são”. [...] Esse é o modo como extraio minhas pequenas narrativas da fábrica da história social, onde elas tinham o status de expressões de uma certa “cultura dos trabalhadores” a fm de fazer com que apareçam como proferimentos sobre como ocorrem mudanças na partilha do sensível. Histórias sobre “estar lá” e as razões para se “estar lá”. (RANCIÈRE, 2009, p. 280-281)
Ângela Cristina Salgueiro Marques, Ana Karina de Carvalho Oliveira e Jean-Luc Moriceau (2018) escrevem que Rancière, a partir dos gestos dos operários transfgurados em invenções que fazem uso de múltiplos objetos materiais e formas de linguagem, abole o discurso dominante que os retêm para operar o dissenso. Para os autores,
Essa operação dissensual e política sobre objetos materiais os mais diversos (imagens, textos, depoimentos, utensílios cotidianos, etc.) questiona uma leitura consensual que constantemente torna tais objetos invisíveis e indisponíveis ao pensamento. Dito de outro modo, a poética do conhecimento surge no gesto daqueles que desejam se reapropriar de uma linguagem antes comum, mas que foi encampada por outros e tornada inacessível. Ela permite que as palavras sejam postas em circulação, extraindo-as de seu lugar designado. (MARQUES et al, 2018, p. 98)
Fala, Mulher! apresenta o dissenso e o político das falas e gestos por meio das imagens da câmera, que tem autonomia e é consciente, e da montagem, que oferece consciência. Sobre o cinema político no terceiro mundo, Deleuze diz que, a exemplo dos flmes de Glauber Rocha, ele dá a ver as minorias, as quais estão diante de uma dupla colonização de sua cultura, que são: as histórias vindas de fora e os próprios mitos construídos em consonância com o colonizador. O flme, então, apresentou, em sua invenção, um “ato de fala”, de resistência, “que não seria um retorno ao mito, mas uma produção de enunciados coletivos capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade, a invenção de um povo.” (DELEUZE, 1990, p. 264). Precisamente, é apresentada a emancipação de mulheres negras e periféricas, que são “originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva” (CARNEIRO, 2011, s/p), consequência de “uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão.” (Ibid., s/p)
Fig.7. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
Fabulação
Fala, Mulher! é um documentário híbrido nas relações da estética com a narrativa. Segundo Arlindo Machado, esse tipo de fazer “é documentário até certo ponto, mas muitas vezes, sem que nos demos conta, já caímos do domínio da fabulação. Ou vice-versa. Ele fca a meio caminho entre o documento e a imaginação.” (MACHADO, 2011, p. 10). Kika Nicolela e Graciela Rodriguez imaginaram produzir uma política da fabulação nas imagens por meio da auto-representação dos sujeitos, rompendo o véu dos aparatos que soterravam suas subjetividades, vozes e desejos.
Como constatou Jacques Rancière (1988) ao falar do gesto de resistência e fabulação dos proletários franceses, Fala, Mulher! possui uma dupla poética da imagem: os testemunhos visuais (ao invés dos testemunhos legíveis de uma história escrita aludidos por Rancière) e os puros blocos de visibilidade, advindos dos procedimentos da imagem em movimento. Logo nos primeiros minutos, as mulheres apresentam o Carnaval como uma maneira de fabular a existência. No início, Cida, cozinheira e cabeleireira, fala sobre a reinvenção do cotidiano que a festa carnavalesca é capaz de produzir em seu corpo. Por um problema de saúde, havia enfermeiras a seguindo durante o desfle mas, em um determinado momento, ela as dispensa para dançar mais livremente. É como se naquele acontecimento houvesse uma suspensão do tempo ordinário, produzido no encontro com os outros que partilham o sambódromo, constituindo, assim, uma possibilidade de ruptura a qualquer impedimento de seus atos através da reinvenção, da fabulação de si, a saber: o fabular de seu corpo é também um fabular do desejo intrínseco de rebelar-se contra as demandas que a impedem de exercer sua liberação enquanto ser festivo, político, de resistência. Como se, a todo custo, o Carnaval, aos olhos de Cida e das outras mulheres, pudesse ser compreendido como um encontro não apenas da fabulação (dos corpos, dos de-
sejos), mas também de uma potência da sublevação capaz de contrapor às castrações que as mulheres negras e periféricas são obrigadas a atravessar em sua vida cotidiana. Destarte, entre o individual e o coletivo, Fala, Mulher! parece ter conseguido extrair cuidadosamente as concepções carnavalescas tal qual pensadas por Bakhtin, como propõe C. Soerensen:
A linguagem é profunda e comprovadamente concreta e sensível pelo ajuntamento de gentes, o contato físico dos corpos, os quais são providos de sentidos. O sentimento individual é de fazer parte da coletividade, ser membro do grande corpo popular. A unidade coletiva constitui-se pela dissolução das identidades individuais. O corpo individual deixa, até certo ponto, de ser ele mesmo e se une aos demais ao travestir-se por meio de fantasia e máscara – exigência a todos os corpos individuais para formar um único corpo. Apesar da troca e do pre-
tenso abandono individual o povo sente as suas unidade e comunidade concretas, sensíveis, materiais e corporais.
(SOERENSEN, 2011, p. 319)65
Para Bakhtin, a carnavalização não é apenas um esquema externo e imóvel que se sobreporia ao conteúdo todo acabado, mas, inversamente, ela seria uma forma fexível pela qual encontra-se o novo. Portanto, para este autor, esta manifestação cultural é o lugar privilegiado da inversão, onde os seres periféricos se apropriam dos eixos simbólicos para sublevar-se, encontrando as alteridades, as margens (da história, dos corpos) excluídas, e que de outra maneira jamais seriam percebidas. (BAKHTIN, 1999; SOERENSEN, 2011).
Poderíamos aproximar a ideia de carnavalização bakhtiniana daquilo que, em uma entrevista a Davide Panagia (2000), Rancière denominou como “poética do conhecimento”: uma es-
Fig.8. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
65. Grifo nosso.
pécie de operação do dissenso que desvia palavras, objetos e, inclusive, corpos, dos quadros de interpretação que lhes são habituais e os desloca para o polo das inventividades das diversas formas de linguagem, de performance, de manifestação (MARQUES et al, 2018). Um dos momentos que essa “poética do conhecimento” emerge em Fala, Mulher! é no depoimento da flha de Cida, Lisandra, que diz compreender o Carnaval não apenas como uma grande festa popular, mas sobretudo como cultura (que compreende conhecimento e poder) desta comunidade. Este entendimento se inscreve na interpretação dessas mulheres cujo corpo que, ao invés de tido como primitivo, sexualizado, domesticado, silenciado, demarca resistência: uma transgressão de gênero, classe e etnia, antes enquadrados pela matriz moderna colonial de poder, que comporta categorias cruzadas de diferenciação para produzir camadas sociais que, por meio da hierarquia, submetem as mulheres negras e pobres à diferentes formas de subordinação.
O Carnaval e as celebrações religiosas do Candomblé são espaços de encontro onde seus cotidianos subalternizados são alçados à uma liberação dos corpos, confgurando-se assim como modos fabuladores por excelência. Carnaval e Candomblé como incorporações psicossomáticas que as fazem atravessar a repetição dos dias como seres periféricos para alcançar no gesto de dissenso que esses eventos constituem, uma dignidade para os seus corpos. As “poéticas do conhecimento” dessas mulheres, que falam e se levantam, criam fssuras na arquitetura interseccional da opressão da matriz colonial moderna, pois inscrevem o empoderamento do seu corpo (individual e coletivo) – que é conhecimento – no mundo:
Quando uma mulher negra balança seu adjá (instrumento sagrado) dentro de um barracão de Candomblé, para além de movimentar o corpo, ela transmite ao orixá uma ordem, um comando, uma co-
municação entre o plano material e sagrado para os cultuadores dessas divindades. Essa comunicação não dita com palavras, mas sim com o gesto de balançar o adjá, conta sobre um lugar de saber e de poder, e reafrma o vínculo sagrado entre o presente passado e o presente futuro, na materialização pelo gesto no presente. (SILVA, 2021, p. 4)
Sublevação e desterritorialização: a arte da multiplicidade
O agenciamento de Fala, Mulher! confgura uma outra maneira de partilhar o sensível, pois traz “maneiras de fazer que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2005, p. 17). No dissenso ético-estético, constrói relações de afeto, corroborando com as ideias de fruição, liberdade e prática do encontro, do relacional inter-humano e da emancipação coletiva. O desejo é de abolição do consenso do preconceito
Fig.9. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
racial e de classe e da subjugação das mulheres na sociedade, que é machista, racista e opressora, numa luta interseccional. As falas e os gestos das mulheres são concebidos como traços genealógicos de sublevação de suas ancestralidades, como que se no presente em que são flmadas, um suporte partilhado entre suas histórias e antepassados emergisse à luz. Sobre isso, diz Didi-Huberman:
Sublevar-se é fcar de pé com outros contra uma forma de poder, é ser vistos e escutados em condições nas quais rebelar-se, ser visto e escutado, (quando) não está permitido, e não apenas pelo valor simbólico de aparecer em público quando se está proibido. Alguém se insubordina com certa energia ou força, com uma intenção física e visceral que não é apenas a própria, senão compartilhada, com uma determinação transitiva para superar uma condição comum suportadadurantemuitotempo. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 22)66
Fig.10. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
66. Grifo nosso.
Na sublevação é produzida uma desterritorialização, mesmo quando tudo ao redor ainda possa estar envenenado de alienações, dobrado pela dor, pela injustiça, pelas arquiteturas sociais dominantes que subjugam e excluem. Quando as mulheres de Fala, Mulher! fabulam, articulam a sublevação e a desterritorialização, reconstruindo a cartografa dos eventos. Deleuze e Guattari (1997) propõem o conceito de desterritorialização como operação que não somente permite o vislumbre do mecanismo das práticas flosófcas e sociais, mas como a reconstrução dos eventos e dos espaços em um projeto político de libertação dos desejos, dos corpos, da criação artística e da produção da subjetividade. (NATÁLIO, 2013; HAESBERT e BRUCE, 2002).
Portanto, onde Deleuze e Guattari compreendem a desterritorialização como “a criação de uma nova terra, isto é, cada vez que conecta as linhas de fuga, que as leva à potência de uma linha vital abstrata ou traça um plano de consis-
tência” (1997, p. 226), Didi-Huberman se indaga: “Porque as imagens bebem tantas vezes de nossas recordações para dar forma a nossos desejos de emancipação?” (2018, p. 19). Ou seja, onde as linhas de fuga (gestos de resistência, de sublevação) são conectadas, apreende-se que os desejos de emancipação (seja através das revoltas populares ou das manifestações do Carnaval e do Candomblé) estão vinculados às recordações. Assim, não existe sublevação e desterritorialização que não estejam trespassadas por uma constelação genealógica: tudo o que se desterritorializa e se subleva é a marca inevitável, no presente, das potências psíquicas e remanescentes da história dos povos.
Fig.11. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
Fala, Mulher! é arte de multiplicidade, que compreende a própria vida e suas singularidades, desvelando realidades e devires no espaço-tempo livre do acontecimento imagético. Seu modo de realização é rizomático: têm planos de composição midiática atravessado pelo elemento fabulador, “que constitui planos (zonas de intensidade contínua)” (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 8), não remetendo à um sujeito (é uma hecceidade, uma individuação sem sujeito), à uma essencialidade ou à uma verdade, sendo um dispositivo composto por vetores “[…] que constituem territórios e degraus de desterritorialização” (Ibid., p. 8), campos de força de enunciados e gestos, espaços heterotópicos que escapam à dominação e evidenciam o levante de um coletivo.
Fig.12. Frame do flme. Acervo de Kika Nicolela e Graciela Rodriguez
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2011. Disponível em: https://www. patriciamagno.com.br/wp-content/uploads/2021/04/CARNEIRO-2013-Enegrecer-o-feminismo.pdf. Acesso em: 21 fev. 2022.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
______. Cinema 1 – A Imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
______; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 5. São Paulo: Editora 34, 1997.
______. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia V. 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
______. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2, Vol. 3. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, [S. l.], p. 206–219, 2012.
______. Sublevaciones. Cidade do México: MUAC/UNAM, 2018.
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
GODARD, Jean-Luc. L’Afrique vous parle de la fn et des moyens. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 94, p. 19-22, abr 1959, .
HAESBERT, Rogério; BRUCE, Glauco. A Desterritorialização na Obra de Deleuze e Guattari. GEOgraphia, v. 4, n. 7, 2002.
MACHADO, Arlindo. O vídeo e sua linguagem. Revista USP, n. 16, p. 6-17, 1993.
______. O diálogo entre Cinema e Vídeo. Revista USP, n. 19, p. 123-135, 1994.
______. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
______. O Filme-Ensaio. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – BH/ MG – 2 a 6 Set 2003.
______. Novos Territórios do Documentário. Doc On-line, n. 11, p. 5-24, dez 2011.
MARQUES, Angela Cristina Salgueiro; OLIVEIRA, Ana Karina de Carvalho; MORICEAU, Jean-Luc. A política da escrita e a performatividade da palavra do homem ordinário no método da igualdade de Jacques Rancière. Questões Transversais, v. 6, n. 12, p. 91-103, 2018.
MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. In: Narrativas midiáticas contemporâneas. Livro da XIV Compós/2005. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 82-94.
MORIN, Edgar. Le Cinéma ou l’homme imaginaire: Essai d’anthropologie sociologique. Paris: Minuit, 1977.
NATÁLIO, Carlos. Territorialização/desterritorialização: movimentos cinematográfcos. In Atas do II Encontro Anual da AIM, editado por Tiago Baptista e Adriana Martins, 199-211. Lisboa: AIM, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários: Arquivos do sonho operário. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
______. The method of equality: An answer to some questions. In: G. ROCKHILL; P. WATTS (Ed.), Jacques Rancière: History, politics, aesthetics. Durham: Duke University Press, p. 273-288, 2009.
______. Le temps modernes. Paris: La Fabrique, 2018.
PANAGIA, Davide. Dissenting words: A conversation with Jacques Rancière. Diacritics, 30 (2), p. 113-126, 2000.
PARFAIT, Françoise. História, memória e desaparecimento: o vídeo entre arquivo e cálculo. Revista Poiésis, n. 26, p. 113-143, dez 2015.
SILVA, Jaqueline Conceição da. Feminismo Negro: Corpo Escrita, Experiência e Performance. Revista de Pesquisa Interdisciplinas (RPI), v. 6, 2021. Disponível em: https://cfp.revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/pesquisainterdisciplinar/article/view/1729/714. Acesso em: 15 mai. 2022.
SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Travessias, n. 1, v. 5, p. 318-331, 2011.
VERTOV, Dziga. Variação do Manifesto. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Ludimilla Carvalho
Produtora cultural, pesquisadora e professora. Atua em projetos para televisão, cinema, artes visuais e pesquisa desde 2004, tendo atuado em funções de assessora de imprensa, roteirista, editora de texto, diretora e produtora de programas televisivos, educadora e fotógrafa. Nos últimos anos vem trabalhando principalmente nas áreas de direção de produção, produção executiva, elaboração e desenvolvimento de projetos independentes e institucionais envolvendo cinema e artes visuais. Graduada, mestre e doutora em Comunicação pela UFPE, foi bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES), na Universidade do Porto. É ainda especialista em Fotografa e Imagem (SORECH/PE). É autora dos livros O trabalhador na fotografa documental (2018) e Desarranjos maquínicos: ruído, tecnologia, imagem (2021). Suas pesquisas envolvem temas como: fotografa experimental contemporânea, hibridismo, ruído e erro, que estão discutidos em sua tese Experimentalismos e ruídos na fotografa contemporânea (2020) e em artigos publicados em periódicos e catálogos, no Brasil e no exterior. E-mail: ludimillacw@gmail.com.
Nina Velasco e Cruz
É professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco. Possui mestrado e doutorado em Estética e Tecnologias da Imagem, pela UFRJ. Nos últimos anos, seus projetos de pesquisa centram-se na questão da temporalidade das imagens técnicas, tendo publicado diversos artigos a esse respeito. Entre 2019, obteve bolsa CAPES de Professor Visitante Sênior na Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3. E-mail: ninavelascoc@gmail.com.
Caio Dayrell Santos
Comunicólogo e jornalista graduado pela UFMG com período sanduíche na Universidad Autónoma del Estado de México, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, doutorando em Comunicação Social pela UFMG e Bolsista de Doutorado no Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (IDDC-INCT). Compõe o MARGEM - Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça da UFMG, em que pesquisa sobre performances e imaginários políticos. E-mail: cdsantos99@hotmail.com.
Fernanda Bastos
É doutoranda da UFRJ e editora de audiovisual desde 1999, tendo editado os mais diversos produtos como programas de TV, comerciais, clipes e flmes – incluindo curta e longa metragens, bem como flmes de artistas – em diversas produtoras no Rio de Janeiro. Entre 2018 e 2019, trabalhou na recuperação, organização e edição da videografa de Brígida Baltar, que agora é tema de sua tese: Por uma montagem da sensação: os flmes de Brígida Baltar, no PPGCOM da UFRJ. E-mail: fernandabastos1@gmail.com.
Fernanda Regina Rios Assis
Fernanda Regina Rios Assis: Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE/UTFPR) e mestre em Estudos de Linguagens (PPGEL/ UTFPR). Especialista em Comunicação e Cultura, e graduada em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Positivo. Compõe o Grupo de Pesquisa Desdobramentos Simbólicos do Espaço Urbano em Narrativas Audiovisuais (GRUDES/ PPGCOM - UTP/CNPq). E-mail: fra1612@gmail.com.
Fernando Gonçalves
É professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ e artista visual. É Doutor em Comunicação pela UFRJ, com Pós-doutorado em Sociologia do Cotidiano pela Universidade Paris V. É bolsista de produtividade nível 2 do CNPq e coordenador do grupo de pesquisa TRAMA/CNPq. Foi coordenador do GT de Estudos de Cinema, Fotografa e Audiovisual da Compós entre 2018 e 2019. É autor de Políticas e estéticas da representação na fotografa contemporânea (2020). E-mail: goncalvesfernandon@gmail.com.
Josué Victor dos Santos Gomes
É mestrando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em Jornalismo pela UFMG. Atualmente, integra o Insurgente: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Redes Textuais e Relações de Poder/Saber e Grupo de Pesquisa Coragem, pertencentes ao PPGCOM/UFMG. Tem interesse de pesquisa em Afrofuturismo, Narrativas Audiovisuais, Cinema Negro, Cinema Brasileiro e Filosofas Negras. E-mail: josuevictordossantos@gmail.com.
Natasha Marzliak
É professora adjunta em Teoria, História e Estética da Arte da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Possui Doutorado, Mestrado e Graduação/Licenciatura em Artes pela UNICAMP, com sanduíche doutoral em Cinema e Audiovisual na Université Panthéon-Sorbonne - Paris I. Editora associada da Art Style | Art & Culture International Magazine. Atua nas áreas de Estética, História da Arte, Cultura Visual e Artes Visuais, com ênfase nos cruzamentos da arte contemporânea com o cinema, o vídeo e as novas tecnologias. Sua pesquisa explora as relações entre a arte (estética) a política (ética), abordando o pós-anarquismo, o pós-feminismo e as teorias descoloniais. E-mail: marzliak@ufam.edu.br.
Ricardo Lessa Filho
Realiza estágio de Pós-Doutorado (bolsa CNPq) pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFMG. Doutor em Comunicação/Cinema pela UFPE, com Doutorado Sanduíche em Cinema e Audiovisual na Universitat de València. Membro do REPERCRI (Grupo de Investigación Representación Contemporánea de los Perpetradores, Universitat de València) e do RIEV (Rede Interdisciplinar de Estudos Sobre Violências, UFPB/UFSC). É curador do Festival do Cinema Brasileiro de Penedo (Alagoas). E-mail: ricardolessaflho@hotmail.com.
Philippe Dubois
É professor da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e membro do centro de investigação LIRA (Laboratoire International de Recherches en Arts). Especialista em estética do cinema, da fotografa e do vídeo, é autor de O ato fotográfco e outros ensaios (1994) e de Cinema, vídeo, Godard (2004). Realizou inúmeras estadias de ensino e de pesquisa no Brasil, sobretudo como professor convidado na Universidade Federal do Ceará, entre 2012 e 2018. E-mail: phduboisup3@yahoo.fr.