Imagem e arte: poéticas e políticas do sentir latino-americano

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Ludimilla Carvalho Wanderlei (organizadora)
Ludimilla Carvalho Wanderlei (organizadora)

4 IMAGEM E ARTE

Seminário Imagem e Arte: poéticas e políticas do sentir latino-americano | 30 e 31 de outubro de 2024 | Universidade Federal do Rio de Janeiro

Realização

Grupo FIP - Fotografia, Imagem e Pensamento (ECO-UFRJ)

Produção

Antonio Fatorelli, Joyce Abbade, Ludimilla Carvalho Wanderlei

Pareceristas

Antonio Fatorelli, Fernando Gonçalves, Leandro Pimentel, Ludimilla Carvalho Wanderlei

Fotografia

Amanda Monasterio e Joyce Abbade

Apoio

Faperj e CFCH-UFRJ

Parceria

UERJ e Paralaxe LAB

Organização e revisão

Ludimilla Carvalho Wanderlei

Projeto gráfico e diagramação

Marcela L’Amour

Textos

Allyson Pains/Alpasi, Ana Clara Mattoso, Caroline Maldaner Jacobi, Daniela Nigri, Dirceu Maués, Edu Monteiro, Fernanda Bastos, Gisett Lara, Guilherme Barbosa Ferreira, João Carlos Teixeira, Lucas Murari, Paula Huven, Pedro Augusto Souza Bezerra de Melo, Pedro Urano, Rafael Malhado, Virna Santolia, Wilton Garcia

Este material é gratuito, e sua venda proibida. O conteúdo pode ser reproduzido e divulgado, total ou parcialmente, desde que citada a fonte. As autoras e os autores dos textos são responsáveis exclusivamente pela licença para uso das imagens nesta obra, portanto, sua utilização por terceiros é proibida.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

I m a g

p o l í t i c a s d o s e n t i r l a t i n o - a m e r i c a n o / o r g a n i z a ç ã o e r e v i s ã o L u d i m i l l a C a r v a l h o

W a n d e r l e i . - - R i o d e J a n e i r o : E d . d o s A u t o r e s ,

2 0 2 5

P D F

V á r i o s a u t o r e s

V á r i o s c o l a b o r a d o r e s

I S B N 9 7 8 - 6 5 - 0 1 - 6 0 4 5 1 - 0

1 F o t o g r a f i a 2 F o t o g r a f i a - E q u i p a m e n t o s e

a c e s s ó r i o s 3 . F o t o g r a f i a - T é c n i c a s 4 . F o t og r a f i a -

T é c n i c a s d i g i t a i s I W a n d e r l e i , L u d i m i l l a C a r v a l h o

2 5 - 2 8 8 7 0 3

C D D - 7 7 9

Índices para catálogo sistemático:

1 . F o t o g r a f i a s : A p r e c i a ç ã o 7 7 9

A l i n e G r a z i e l e B e n i t e z - B i b l i o t e c á r i a - C R B - 1 / 3 1 2 9

SUMÁRIO

Nota introdutória

Apresentação | Ludimilla Carvalho Wanderlei

1. Habitar cinemas outros

Arquivo da paisagem perdida: Altares e Pirámide erosionada | Pedro Augusto Souza Bezerra de Melo

Cosmotécnicas no cinema brasileiro: análise de Aqui onde tudo acaba (2023) | Lucas Murari

O pássaro que olha - cinema em terras fronteiriças latinoamericanas | Ana Clara Mattoso

Um tempo em migração: desaparições ruidosas no filme Cidade Pássaro | Daniela Negri

Na terra de José Ninguém com Rosângela Rennó: (des)/(re) construção | Fernanda Bastos

2. Situar o sensível, repensar as imagens

Entre seres, mundos, imagens: o invisível na experiência sensível | Paula Huven

Os moitas de Rio Bonito de Cima | Pedro Urano

Florestania | Edu Monteiro

3. Modernidades em questão

São Paulo na década de 1940: Paisagens instáveis, por Francisco Rebolo | João Carlos Teixeira

Em Brasília - Últimos lançamentos da moda têxtil para a primavera e verão 1959/60 | Virna Santolia

4. Dispositivo fotografia: tensionamentos a partir do Sul Global

A fotografia à luz da teoria de Gilbert Simondon | Dirceu Maués

Fotografia como atenção e ficção: paisagens e existências | Caroline Maldaner Jacobi

Reciclar o arquivo: vínculos entre fotomontagem e performance | Gisett Lara

5. Metodologias e práticas da arte em perspectivas situadas

Arte, Comunicação e Sustentabilidade: estudos contemporâneos | Wilton Garcia

Quando a matéria bruta brilha: luz negra como método de leitura de trabalhos artísticos | Guilherme Barbosa Ferreira

Clivagens estéticas no show Belezas São Coisas Acesas Por Dentro | Allyson Pains/Alpasi

¿Qué es el cuerpo robot?: poéticas dos corpos em Paula Gaetano Adi | Rafael Malhado

Esta publicação é fruto do seminário Imagem e Arte: poéticas e políticas do sentir latino-americano, realizado nos dias 30 e 31 de outubro de 2024, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como atividade do grupo Fotografia, Imagem e Pensamento (FIP), vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ), teve apoio da Faperj e Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH-UFRJ), e parceria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Paralaxe Lab - Laboratório experimental em fotografia da UFRJ (também localizado na ECO-UFRJ).

O seminário é uma iniciativa que integra o plano de trabalho da pesquisa Fotografia experimental contemporânea: crítica técnica, estética e política à Modernidade ocidental, desenvolvida em nível de pós-doutorado pela investigadora Ludimilla Carvalho Wanderlei, junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, sob supervisão do professor Antonio Pacca Fatorelli, com financiamento do convênio CNPq/Faperj. Assim como o evento, a publicação é também atividade da referida pesquisa.

Aproveitamos para agradecer a todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para este trabalho, principalmente familiares, amigos e colegas de trabalho, autores e autoras dos textos. Um agradecimento especial à Faperj, cujo financiamento possibilitou a concretização do seminário, e posteriormente, deste e-book.

Apresentação

Ludimilla Carvalho Wanderlei1

Esta publicação amplia os debates ocorridos no seminário Imagem e Arte: poéticas e políticas do sentir latino-americano, contribuindo para discussões recentes (porém não exatamente novas) sobre as particularidades das epistemologias, modos de existência e organização social, experiências sensíveis, relações políticas, estéticas, práticas culturais e espirituais, gestados nos países latino-americanos, tendo em vista seu passado colonial e aderência forçada ao projeto moderno ocidental. Nesses países e em outros espaços localizados na fronteira da modernidade surgem reflexões contundentes e necessárias, que buscam não somente reposicionar vozes de personagens subalternizados, mas também legitimá-los como sujeitos históricos, o que significa, necessariamente, esforçar-se para desmantelar um projeto de dominação secular em uma de suas fortalezas mais bem estruturadas: a produção de conhecimento. Nesse sentido, é nossa intenção que este trabalho some-se a outras pesquisas, gestos criativos, e esforços de partilha de saber, proporcionando a circulação de ideias e fortalecendo o alcance das epistemologias do Sul.

O e-book é composto por 16 artigos e 1 ensaio visual que aprofundam questões debatidas no seminário com propostas de trabalhos que dialogam com estudos de diferentes áreas como Comunicação, Artes, História, Filosofia, Sociologia, Antropologia, entre outras. Entre revisões de teorias ou temas canônicos, proposições de novas abordagens analíticas, ou estudos de caso, o evento proporcionou um saudável intercâmbio de conhecimentos, enriquecendo as reflexões sobre temas relevantes, o que se desdobra agora nos textos apresentados.

O conteúdo está divido em seções que estabelecem uma costura entre temáticas, abordagens e questões conceituais. Na primeira seção do livro, Habitar cinemas outros, os artigos demonstram uma interessante coincidência de preocupações mobilizadas nas obras analisadas, apresentando diferentes maneiras de exercitar um pensamento crítico às bases conceituais da modernidade ocidental, em suas reverberações na cultura, no imaginário, na história, e em particular nas esferas do cinema e da comunicação. O conjunto de textos enfoca os cinemas experimental e expandido, este último também chamado “cinema de museu” - na concepção de que o efeito das relações criadas pelo dispositivo cinematográfico como forma institucionalizada são evocados (e transformados) no espaço da arte.

1.Doutora e mestre em Comunicação (UFPE), especialista em Fotografia e Imagem (SORECH-PE). Realizou pesquisa de pós-doutorado em Comunicação na UFRJ, com bolsa do convênio CNPq/Faperj (2023-2025). Autora de livros, artigos e ensaios sobre fotografia contemporânea. É produtora cultural, pesquisadora e professora. Currículo lattes: http:// lattes.cnpq.br/2779652527283250

Começamos pelo texto de Pedro Melo que se debruça sobre dois filmes do coletivo mexicano Los Ingravidos: Altares e Pirámide erosionada, ambos de 2019. Alinhados ao programa do cinema experimental, os trabalhos reconfiguram a forma cinema em uma perspectiva situada, problematizando a história colonial do México em suas violências e apagamentos materiais, simbólicos e sensíveis. O autor defende que ao articular elementos da mitologia dos povos mesoamericanos e da cultura popular, a poética do grupo mobiliza uma crítica aos processos de hegemonia cultural, vinculados ao colonialismo. Ele discute a abordagem da paisagem nos filmes, como uma espécie de arquivo vivo, dinâmico, que se modifica ao longo do tempo através da interação das práticas de agentes humanos e não humanos. Assim, as produções experimentais de Los ingravidos podem ser vistas como atos de resisência às padronizações e modos de representação e percepção do cinema convencional em sua estética da transparência, assentados no reposiconamento de aspectos da cultura mexicana pré-hispânica.

Ainda no campo do cinema experimental, o artigo de Lucas Murari localiza a discussão no território da produção brasileira. A partir das contribuições da arqueologia da mídia e de outros teóricos contemporâneos que vêm pensando de maneira relacional o binômio ser humano-natureza, o autor lembra que os dispositivos tecnológicos possuem em sua conformação elementos minerais, vegetais e químicos, embaralhando assim, as fronteiras entre natureza e cultura. Tomando como referência a noção de cosmotécnica (Hui, 2020), que pressupõe a relação entre formas técnicas e o cosmos, Lucas articula uma reflexão sobre o uso contemporâneo das materialidades analógicas no campo do audiovisual como tática de resistência à hegemonia dos sistemas digitais, sem contudo indentificar uma postura saudosista ou nostálgica dos realizadores contemporâneos. Em sua análise utiliza como objeto de estudo o curta-metragem Aqui onde tudo acaba (Cláudia Cárdenas e Juce Filho, 2023), no qual a materialidade do filme é composta pela articulação entre intervenção humana e agentes naturais, em um processo que se vale tanto das especificidades da tecnologia quanto de saberes tradicionais indígenas. Assim, o uso da mídia analógica se mostra como uma forma de acionar temporalidades não lineares e de afirmação de uma postura relacional entre seres humanos e a Terra, presentes através de intervenções dos realizadores sobre a película e da ação de processos naturais sobre ela.

O artigo de Ana Clara Mattoso olha para o cinema latino-americano como uma prática que expressa dilemas e particularidades de vivências fronteiriças, no sentido proposto por Anzaldúa (1987), para quem a fronteira não é somente um limite geográfico, mas um espaço de confronto e imbricamento cultural, um território de disputas onde a colonialdade do poder está marcada nas dimensões

física, social, histórica e sensível. Segundo Ana Clara, há filmes na cinematografia latino-americana que enfrentam narrativas hegemônicas, desenvolvendo para isso regimes estéticos particulares, categorizados pela autora como contra-anestéticos (Buck-Morss, 1996).

A argumentação é feita com base em duas produções recentes, EAMI (2022), da paraguaia Paz Encina, e É noite na América (2022), da brasileira Ana Vaz. Em ambos os filmes, a problemática da crise climática está presente, e segundo a autora do texto, a estética potencializa sensibilidades preteridas pela modernidade, oferecendo ferramentas para o enfretamento do Antropoceno e também da linguagem cinematográfica como preconizada pelo modelo da representação realista, igualmente relacionado à epistemologia ocidental moderna.

Uma experiência fronteiriça, simbolica e geograficamente falando, está no centro do artigo de Daniela Nigri, sobre o filme Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020). A noção deleuziana de imagem-tempo é evocada, pois, segundo a autora, questões como transitoriedade, ausência, deslocamento e identidade são trabalhadas através de uma dimensão temporal específica, decorrente da situação de migração de um nigeriano que viaja ao Brasil à procura de seu irmão. Esse tempo é sentido em situações ópticas e sonoras particulares, de não-linearidade, ambiguidade, descentralização, cacofonia de sons urbanos e idiomas. Se conforme Deleuze, a imagem-tempo não está subordinada ao encadeamento de ações que estruturam uma narrativa com base no movimento, ela dá a ver um tempo complexo, em que se acumulam memórias, lembranças, vivências mais sentidas, do que percebidas. Dessa feita, Daniela entende que o filme constrói um tempo em que passado, futuro e presente estão constantemente se atravessando, afastando-se de uma gramática da narrativa clássica. O papel do som também é destacado no artigo, pois sons diegéticos e não diegéticos são empregados, ora apresentando a cidade de São Paulo (onde acontece a história) como um mosaico de ambientes e pessoas (nem sempre em comunicação), ora sugerindo estados mentais do personagem principal. A autora utiliza também o conceito de ruído para discutir não apenas o trabalho sonoro, mas as escolhas da montagem, concluindo que sons e imagens são utilizados de maneira a problematizar a experiência migratória como algo paradoxal e descentrado.

Fechando a primeira seção, temos o artigo de Fernanda Bastos sobre a videoinstalação da artista brasileira Rosângela Rennó, Terra do José Ninguém (2021). O trabalho é composto por foto-filmes construídos com material educativo dos anos 1980, imagens documentais apropriadas do coletivo Mídia Ninja e de um outro projeto de Rennó, #rioutópico. Valendo-se da impureza do vídeo, e explorando seu papel central no território das entre-imagens, o artigo

explora a abordagem de Rennó sobre temas como o excesso de informação, o trabalho, a concentração fundiária, a causa indígena, o problema da moradia, desigualdade social, entre outras questões que são trabalhadas misturando épocas distintas através de procedimentos de colagem, fusão, recursos gráficos, som. Fernanda defende que, a videoinstalação por meio de suas estratégias de montagem, aponta ao espectador que os problemas do Brasil de ontem, permanecem vivos na atualidade, como promessas de um progresso que nunca se concretiza plenamente, ficando o José Ninguém desnorteado. O trabalho toca ainda questões caras à comunicação, como atenção, estímulos, percepção, tempo, e, logicamente, o papel das imagens e suas tecnologias nas formas de apreensão da realidade histórica.

Na próxima seção, Situar o sensível, repensar as imagens, referências variadas, que vão da fotografia ao cinema, e passam por manifestações da cultura popular, são analisadas trazendo à tona modos de relação outros entre os seres vivos, e de que maneira as imagens concretizam experiências de convívio e interação. No primeiro texto, de Paula Huven, a autora traz referências cinematográficas, literárias e fotográficas que estimulam o contato com um mundo invisível. Compreendendo as imagens como mediadoras desse contato, o texto se apoia em autores como Coccia, Latour e na cosmologia Yanomami para elaborar sobre a experiência sensível em obras que demonstram ser impossível dissociar o sujeito dotado de olhar do mundo para o qual olha, já que na abordagem proposta, tudo o que vive no mundo tem subjetividade. A argumentação é operada com base na concepção yanomami dos seres-imagem, que não se distinguem pela semelhança com algo que representam. Essa proposição está em oposição ao ser das imagens que corresponde à ideia tradicional de uma imagem que está no lugar de algo, em substituição a outra coisa. Esse par de termos opera contradições entre essência e aparência, interioridade e exterioridade, representante e representação, que encontramos nesta visão de mundo relacional e interdependente de um lado, e na visão de mundo ocidental (dualista, exclusivista) de outro.

Também voltado a considerar as relações entre seres vivos, o artigo de Pedro Urano fala sobre a tradição carnavalesca que acontece no Vale do Macáe, no Rio de Janeiro, no povoado de Rio Bonito de Cima. Na festa conhecida como carnaval dos moitas, os brincantes usam fantasias confeccionadas com plantas. Conceituando essas vestimentas como assemblages interespecíficos (Tsing, 2019), o autor identifica na prática um modo de relacionamento mais horizontalizado entre os seres humanos e a floresta, destacando-se o cuidado na seleção das espécies a cada ano, para a elaboração de uma fantasia sempre diferente. Esse detalhe implica, além de um

saber técnico para a manufatura da vestimenta, conhecimento da flora e do comportamento de outras espécies que habitam as matas, como insetos e fungos, por exemplo. O autor ressalta ainda, o uso dessas assemblages de uma maneira performática, quando, durante a noite, os brincantes mostram suas criações, preservando no entanto, certo ar de mistério, já que usam máscaras. Segundo Pedro, as fantasias do carnaval do moita indicam o reconhecimento de alianças entre seres vivos, marcando o afastamento de uma visão de mundo que separa o sujeito do entorno, e que produziu, em representações coloniais, figurações da floresta como lugar de extração e exploração.

O ensaio de Edu Monteiro finaliza a segunda parte do livro. Após participar do seminário como artista convidado, com a palestra “Corpo-imagem”, Edu produziu este texto, sobre um projeto ainda inédito. Dando continuidade a um trabalho anterior que o fez se aproximar mais do universo das plantas, Edu performa para a câmera fotográfica sua convivência com diferentes espécies. No processo criativo em que nos apresenta o ensaio Florestania, ele relembra artistas como Anna Atkins, Fox Talbot e Karl Blossfeldt, sinalizando que a aproximação entre imagem e plantas possui uma tradição, na qual o seu trabalho vem agora se integrar. Suas fotografias, realizadas com técnicas que vão do digital aos processos alternativos, são frutos de suas pesquisas sobre cerca de 60 espécies, cuidadas por ele em seu quintal. No relato de sua experiência sentimos que o convívio com as plantas pressupõe uma relação com o tempo marcada pela observação, espera e paciência. Tempos de adubar, regar, podar, plantar, deixar crescer, deixar morrer... que fogem aos ditames do relógio, aproximando-se também de um fazer fotográfico mais lento, afetivo e processual.

Na seção Modernidades em questão, iniciamos com o artigo de João Carlos Teixeira que discute duas pinturas de Francisco Rebolo: Praça Clóvis (1944) e Paisagem do Morumbi (1942). Essas duas obras são vistas pelo autor do texto como esforços de encapsulamento temporal de ambientes que estavam na iminência de serem absorvidos pelo espírito de transformação da cidade de São Paulo, nos anos 1940. A remodelagem de áreas centrais da cidade, a desiguldade social e o surgimento da elite cafeicultora, despontam como sintomas do surto de modernidade no Brasil da primeira década do século XX, que são confrontados nos quadros mencionados. Praça Clóvis contrasta com o processo de verticalização que caracterizará a modernização da capital paulistana, como um exercício de poder e controle sobre a natureza. Já em Paisagem do Morumbi, a lembrança de um bairro rural entra em conflito com as mudanças engendradas pelo capital. Argumentando sobre a recusa do pintor a certo modelo de progresso, João Carlos traz para o debate, além da análise de elementos formais das obras, teóricos

como Milton Santos e Beatriz Sarlo, para discutir as relações entre os espaços, o capital e a subjetividade.

Voltando-se ao liame entre fotografia e publicidade, o artigo de Virna Lucia Santolia da Silva especula sobre os signos da modernidade presentes em um publieditorial, fotografado por Otto Stupakoff, e publicado na Revista Manchete em 1959. Conforme a autora, além de um conjunto de fotografias realizadas para vender produtos, o publieditorial Em Brasília: Últimos Lançamentos da Moda Têxtil para a Primavera-Verão 1959/60 revela aspectos socioculturais da época, como uma visão estereotipada e machista das mulheres, a estratificação social e o desejo de progresso simbolizado na arquitetura de Brasília.

Dispositivo fotografia: tensionamentos a partir do Sul Global, a terceira seção do e-book, traz maneiras de repensar os usos e concepções da fotografia. O primeiro texto, de autoria de Dirceu Maués, utiliza o pensamento de Gilbert Simondon, seus conceitos de individuação, objeto técnico e invenção, para reposicionar um intenso e bem conhecido debate sobre a identidade da fotografia. Ele defende que, a partir das contribuições simondonianas, podemos pensar que o dispositivo fotográfico experimenta constantemente variações que contribuem para sua individuação, que há uma relação iventiva entre sujeito e o objeto técnico “fotografia”, e ainda, que a imagem fotográfica assume uma posição de destaque em circuitos de comunicação no âmbito social. Assim, esses conceitos permitiriam examinar a fotografia, articulando simultaneamente as dimensões técnica, ontológica, social, e não separadamente, como diversas historiografias do meio fizeram, elaborando por vezes teses essencialistas. Este texto, assim como outros desta coletânea, aposta em uma abordagem que desafia as separações entre sujeito e objeto, matizadoras da filosofia tradicional.

Caroline Jacobi parte do conceito de paisagem, que apesar de já baseado numa distância entre quem olha e aquilo que é olhado (Cauquelin, 2007), para ela pode ser reimaginado com base na prática da atenção dedicada aos vários seres que habitam o mundo. A autora observará então, projetos artísticos que utilizam a fotografia para situar, na fronteira entre os modos documental e ficcional, narrativas, gestos e modos de vida que colocam lado a lado humanos e não humanos, fabulando mundos ecológicos, múltiplos e decoloniais. Em sintonia com teorias mais recentes sobre o caráter instável e experimental do fotográfico, Caroline avalia trabalhos de Bonikta, Davi de Jesus Nascimento, e de Bárbara Lissa e Marina Vaz (o duo Paisagens móveis). Seus projetos são menos afeitos a um regime da analogia que busca o verossímil, estando mais próximos à criação de mundos possíveis, imaginados, que ganham vida por meio da imagem.

Fechando esta sessão ancorada em discussões que envolvem a fotografia, o artigo de Gisett Lara trata de apropriação, intervenção, arquivo, memória, gênero e política. Utilizando fotomontagem e performance, a autora recicla imagens de mulheres, tomadas por um fotógrafo chileno, entre os anos 1970-85 (lembremos que em 1973 passa a vigorar no país o regime ditatorial com a derrubada do governo de Salvador Allende). Gisett revisita criticamente traumas coletivos e individuais, ao mesmo tempo em que recria formas de existência para as mulheres fora de estereótipos plasmados nas fotos originais, na série Direito a estar presente (2010). A ressignificação do arquivo e sua potência para a escrita de narrativas outras, não-oficiais e afetivas, reaparece na série Habitar a imagem (2023), em que a autora enfatiza o papel da materialidade e da poética compartilhada, já que este trabalho mais recente contou com a participação de sua filha. Seu texto atesta a inseparabilidade dos atos criativos das questões políticas, sociais, da importância da memória, e da verdadeira disputa que envolve a construção do discurso histórico (e consequentemente de histórias potenciais) com forte emprego do artefato fotográfico.

A última parte do livro contempla quatro artigos, na seção Metodologias e práticas da arte em perspectivas situadas, começando com o texto de Wilton Garcia. Nele, o autor aborda a diversidade latino-americana como potência de abertura para a criação artística compartilhada, invertendo lógicas de poder, traça paralelos entre elementos identificados em obras de artistas do México e Brasil, e os retrabalha com poéticas que alinham arte, comunicação e sustentabilidade. Nessas obras, realizadas coletivamente, lança mão de materiais descartados, que causariam, por exemplo, poluição (tecido, papel, plástico).

Dando sequência às interrogações sobre metodologias conectadas a um pensamento descolonizador, o trabalho de Guilherme Ferreira sugere que dois textos da filósofa Denise Ferreira da Silva (Em estado bruto e Luz negra, publicados respectivamente em 2019 e 2016) sejam vistos como alternativa crítica aos pressupostos filosóficos cartesiano e kantiano, tradicionalmente empregados nos debates sobre estética, figurando assim como deslocamentos aos fundamentos do pensamento moderno. Segundo o autor, as proposições de Denise Ferreira da Silva podem fornecer bases de análise a modos do sensível historicamente deslegitimados.

Os dois artigos que fecham o livro, são análises de práticas artísticas dissidentes, no campo da música e das artes visuais. O trabalho de Allyson Pains/Alpasi, interroga sobre as articulações de elementos sonoros e visuais no espetáculo de Filipe Catto (Belezas São Coisas Acesas Por Dentro), cujo repertório é composto de músicas de Gal Costa. Segundo o autor, Filipe Catto atualiza e redefine no -

ções de gênero, tempo e espaço em seu show, tendo como elementos centrais seu corpo (trans) e sua performance. Para essa discussão, Alpasi se apóia na definição de corpo-tela, de Leda Maria Martins, considerando que enquanto reposiciona um aprendizado, saber ou tradição (as músicas e memória de Gal) no ato performático, Catto acrescenta-lhes novas camadas de significado e subjetividade em integração com o público, que também participa na construção do espetáculo.

Por fim, o texto de autoria de Rafael Malhado dedica-se a três obras da artista argentina Paula Gaetano Adi, situadas na intersecção entre arte, ciência e tecnologia. Inteligência artificial, feminismo, Tecnociência Pós-colonial e Pós-humanismo são alguns dos temas encontrados em sua produção. Ao analisar os trabalhos Anima, Mestizo Robotics e Robocalyptic Manifesto (todos de 2024), o autor indica como eixo central de inquietação da artista a questão do corpo localizado entre o humano e o não-humano no mundo contemporâneo, e o agenciamento das tecnologias nessa problemática. Para ele, quando Paula Gaetano Adi cria suas obras de estruturas híbridas, compõe através delas um imaginário de corpos-robôs, manifestando um olhar não-hegemônico e não eurocentrado sobre as tecnologias e a inteligência artificial.

Referências

Azoulay, Ariella. História potencial: desaprender o imperialismo. 2024

Bellour, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. 1997

Bernardino-Costa, Joaze; Grosfoguel, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra . 2016

Haraway, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial . 1995

Parente, André. A forma cinema: variações e rupturas. 2017

Quijano, Aníbal. Colonialidad do poder, cultura, e conhecimento na América Latina . 1998

Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Paula. Epistemologias do sul . 2009

Wanderlei, Ludimilla. Desarranjos maquínicos: ruído, tecnologia, imagem. 2021

Xavier, Ismail. Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 1977

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Arquivo da paisagem perdida: Altares e Pirámide erosionada

Archive of the Lost Landscape: Altars and Eroded Pyramid

Resumo: O artigo analisa Pirámide Erosionada e Altares (Los Ingravidos, 2019) como obras complementares que articulam paisagem e arquivo, explorando violências materiais e simbólicas no México. Através de uma arqueologia insurgente do visível, os filmes apresentam a paisagem como palimpsesto de memórias apagadas. A análise investiga como a dupla fílmica opera como constelação modular e propõe um arquivo insurgente mediante uma poética contra-hegemônica.

Palavras-chave: Paisagem; Cinema experimental; Arquivo.

1. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email:pedro.asbmelo@ ufrj.br. Currículo lattes: http://lattes. cnpq.br/3506402969985280.

Introdução

Não seria surpreendente que dois filmes do mesmo ano, realizados pelo mesmo coletivo cinematográfico, compartilhassem características e qualidades semelhantes. No entanto, considerando a intensa produção do coletivo Los Ingravidos — que, em 2019, lançou 42 filmes (segundo lista do website da distribuidora Lightcone, responsável pela representação do grupo) —, vale destacar um par em específico. A relação íntima entre essas duas obras promove uma complementaridade de sentidos, contribuindo para uma melhor compreensão da proposta artística do coletivo.

Neste texto, destacam-se duas obras que aproximam a paisagem e o arquivo como questões sensíveis. Ambas foram realizadas de forma analógica, por meio de filmagens externas em ambientes rurais: Pirámide Erosionada (2019) investiga a paisagem em um esforço quase arqueológico, como quem busca vestígios de uma montanha desaparecida, enquanto Altares (2019) apresenta uma paisagem povoada por artefatos simbólicos. Saturados tons cítricos de verde-amarelo demonstram que as obras compartilham a mesma materialidade fílmica e orientação estética.

Los Ingravidos realiza filmes engajados em lidar criticamente com a história do México, ganhando destaque por abordar formas de violência material e simbólica em seu contexto regional, com repercussões em debates globais. Sua obra demonstra interesse notável por temas como colonialismo, violência de gênero, narcoliberalismo e crimes políticos. Além disso, os filmes dialogam com a história do cinema ao explorar a possibilidade de criar diferentes métodos de percepção e cognição alinhados às teorias de vanguarda do início do século XX. Rachel Schefer (2022) destaca a participação do grupo em uma genealogia cinematográfica dupla: primeiro, a genealogia dos coletivos cinematográficos; segundo, a genealogia do cinema político e experimental.

O coletivo rompe a sintaxe cultural corporativa por meio de uma estética experimental que articula mitologia mesoamericana, cultura popular, paisagens naturais, registros de protestos e abstração rítmica. Vale destacar ainda o caráter coletivo e anônimo do grupo, cuja composição permanece desconhecida — tanto em número quanto na identidade de seus membros —, com exceção de Davani Varillas, que atua como porta-voz em entrevistas e festivais. Los Ingravidos rejeita o protagonismo autoral como estratégia de resistência à lógica neoliberal do mercado cultural. Seu anonimato é, além de uma escolha estética ou conceitual, uma medida de proteção para os integrantes (Russo, 2024), especialmente em um contexto de violência política no México, onde a liberdade de expressão enfrenta históricas ameaças. Em um país marcado pelo monopólio midiático de con-

glomerados como a Televisa, o coletivo mantém uma crítica contundente ao papel da televisão nas últimas quatro décadas, destacando seu impacto na colonização ideológica, na imposição linguística e religiosa, e na padronização de modos de vida. Em suas palavras

A televisão teve um impacto na produção da subjetividade nacional tão profundo quanto o cinema da Era de Ouro mexicana — tanto na formação de imagens da nação quanto na configuração dialética de sua identidade. Nesse sentido, ela operou como vetor de disseminação e sustentação de uma ideologia e economia específicas: o neoliberalismo. É, antes de tudo, uma imposição. (Escobar López, 2020)

Interessados em criar formas de resistência aos mecanismos persistentes da extração colonial, os membros do coletivo recorrem a aspectos da superstição — como transe, clarividência, feitiço, sugestão, presságio e possessão — para contrapor a violência do choque causado pela invasão europeia das Américas. Essa postura se materializa em subverter a gramática audiovisual corporativa que, em sua compreensão, atua tanto na dominação cultural quanto na uniformização dos modos de percepção e cognição.

A articulação em dupla não é inédita e o serialismo cinematográfico do grupo já foi apontado por Errazu (2018, p.124) e Russo (2024, p.272), comentando que suas obras são como componentes de um todo que se relacionam de forma modular “configurando uma espécie de constelação mutável”. Os filmes serão contextualizados com noções de paisagem e arquivo material e cultural. A análise das duas obras busca evidenciar complementariedades entre elas, contribuindo para posicionar a poética do coletivo no campo dos estudos cinematográficos.

1 - A Paisagem enquanto arquivo vivo

Em seu texto seminal Temporality of a Landscape (1993), o antropólogo Tim Ingold desenvolve uma crítica fundamentada às abordagens disciplinares convencionais sobre a paisagem. Apontando para uma “oposição estéril”, de um lado, situa-se a perspectiva culturalista, que compreende a paisagem como uma ordenação simbólica e cognitiva do espaço; de outro, a visão naturalista, que a reduz a um pano de fundo neutro e exterior às atividades humanas. Ingold argumenta que ambas as perspectivas compartilham uma visão essencialmente estática e, portanto, deveriam ser superadas em favor de sua proposição de uma “perspectiva do habitar”.

O desenvolvimento do neologismo “tarefagem” (taskscape) representa a operacionalização teórica desta perspectiva. O conceito refere-se ao conjunto de ações e interações que, ao se desdobrarem temporalmente, constituem e transformam continuamente

a paisagem. A tarefagem capta a imbricação fundamental entre atividades práticas, significados simbólicos e processos ecológicos. A paisagem é compreendida como uma inscrição temporal, onde se acumulam e se sobrepõem camadas de intervenções humanas e processos naturais, “a paisagem é constituída como um registro duradouro - e testemunho de - das vidas e obras de gerações passadas que habitaram nela” (Ingold, 1993, p. 152).

A partir da compreensão de que a paisagem não se limita à dimensão física de um espaço, mas também se configura como um arquivo dinâmico das interações entre humanos e não humanos ao longo do tempo, Ingold propõe um ponto de convergência entre as perspectivas da antropologia e da arqueologia, considerando o tempo e a paisagem. As formas de vida humana e a paisagem são aproximadas por seus ciclos de vida. Além disso, a perspectiva do habitar se alinha à do arqueólogo no sentido de que “tanto para o arqueólogo quanto para o habitante nativo, a paisagem conta — ou melhor, é — uma história” (Ingold, 1993, p. 152).

A analogia da paisagem como arquivo constitui uma ferramenta conceitual que estabelece paralelos significativos. Assim como um arquivo organiza, armazena e revela informações ao longo do tempo, a paisagem desempenha função semelhante, mas no contexto das intervenções humanas, dos processos naturais e das memórias acumuladas. Tal como um arquivo estrutura documentos de períodos históricos, a paisagem conserva vestígios materiais — fósseis, edificações, marcas de erosão e outros elementos — que podem ser interpretados como registros passíveis de decifração, documentos genuínos de outras épocas. Seja nas ruínas de antigas cidades, nos sulcos criados pelos rios ou nos rastros deixados por civilizações extintas, a paisagem, com sua materialidade e simbolismo, continua a nos narrar histórias.

A paisagem e o arquivo, contudo, estão inseridos em um sistema de poder e dominação que influencia o que será preservado ou desfeito ao longo do tempo. Essa perspectiva mostra-se especialmente relevante para a reconstrução de histórias apagadas e a recuperação de narrativas suprimidas pelo colonialismo. Reconhecer a paisagem como um registro dinâmico implica entendê-la como um espaço em constante transformação, moldado pela interseção entre memórias, processos naturais e ações humanas.

2 - A pirâmide

Pirámide Erosionada (2019) documenta um assentamento pré-hispânico na região de La Cañada, México, e lida com o desafio de apresentar uma montanha que desapareceu. A breve sinopse do

filme, ‘A pirâmide costumava ser uma montanha’, sugere uma referência histórica significativa: durante o século XIX e início do século XX, descobertas de pirâmides mesoamericanas frequentemente levaram à reinterpretação de montanhas como estruturas construídas por civilizações antigas. Exemplos notáveis incluem a Pirâmide do Sol em Teotihuacán e a Grande Pirâmide de Cholula, escavada em 1910. Abordando o desaparecimento de uma montanha, o filme trata das violências material e simbólica como formas de afirmação do poder colonial.

O território é apresentado de maneira fragmentada, com imagens que pulsam numa ritmicidade que dialoga com a trilha sonora improvisada de jazz de bateria do percussionista Gustavo Nandayapa. São lampejos das diferentes texturas da paisagem, criando um turbilhão de imagens em flicker. Vistas proximais oferecem vislumbres de formas rapidamente reconhecíveis, como plantas, pedras, flores, troncos e terra, alternadas com imagens desfocadas que dessingularizam os motivos, transformando-os em fluxos de cores que tendem à abstração. Em determinados momentos, a relativa estabilidade do quadro é mantida enquanto os elementos de atenção principal são revezados, criando breves sequências em que séries de pedras são apresentadas em um tipo rudimentar de anima-

1: Pirámide Erosionada (2019). Fonte: https://www.corrient.es/ ingravidos-astudillo-eng

Figura

ção stop-motion. No plano baixo, a câmera percorre a grama e as plantações de milho (figura 1), posicionando-se rente ao solo para captar, em detalhe, a textura da areia e das rochas.

Realizado em 16mm utilizando uma Bolex, todo o filme foi montado na própria câmera, resultando em uma obra que destaca a materialidade do meio cinematográfico. Em entrevista à pesquisadora Almudena Escobar López, o Coletivo comenta:

É uma pirâmide que perdeu sua verticalidade porque foi absorvida pela natureza; então, aqui o registro entra em uma espécie de transe. É uma paisagem entre dois mundos, uma paisagem hipnótica; é também um olhar ou ponto de vista das pedras, dos minerais, do musgo, da água, do rio, dos diferentes elementos que foram absorvendo a pirâmide, apagando e dissolvendo suas formas definidas e dando-lhe outro tipo de vida, outro ritmo psíquico, produzindo assim uma horizontalização da pirâmide, e no final nos permitindo perceber como a pirâmide costumava ser uma montanha. (Escobar López, 2020, p.5)

Ao abordar o apagamento de um assentamento pré-hispânico, Pirámide Erosionada tensiona as noções de arquivo e patrimônio. Em vez de privilegiar os aspectos arqueológicos e forenses da ruína, as imagens oferecem uma compreensão animista da paisagem e sugerem um entendimento alternativo do que um arquivo pode representar. Conforme aponta Almudena Escobar López, “ao conectar o forense e o empírico com o espiritual, o xamânico e o poético, o coletivo propõe um novo conceito de arquivo fora da epistemologia ocidental” (2023, p. 271).

Essa perspectiva questiona a concepção tradicional do arquivo como um sistema neutro de organização do conhecimento, aproximando-se das críticas formuladas por Jacques Derrida em Mal de Arquivo (1995). O autor demonstra que o arquivo está intrinsecamente ligado a estruturas de poder e destaca que “não há poder político sem controle do arquivo, senão da memória. A democratização efetiva mede-se sempre por esse critério: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação” (Derrida, 1995, p. 15).

3 - O altar

Considerada sob o prisma das práticas culturais inscritas no território, a paisagem incorpora múltiplas camadas de significado, funcionando como um espaço onde memória, identidade e história se cruzam. No México, o vulcão Popocatépetl não é apenas um acidente geográfico, mas também um personagem mitológico cuja narrativa amorosa com Iztaccíhuatl desempenha um papel central na construção de identidades locais. Paisagens assim funcionam como verdadeiros arquivos topográficos, preservando inscrições

não escritas — desde geoglifos até clareiras rituais. Montanhas, rios e florestas, para além de sua fisicalidade, tornam-se repositórios de memória coletiva, carregados de significados que orientam práticas sociais e rituais ao longo do tempo.

Altares (2019) inicia-se com uma imagem na qual uma escultura de cabeça está posicionada sobre uma pedra. O motivo aparece de forma intermitente, alternando com breves intervalos de tela preta que segmentam a cena, e exibido por diferentes ângulos: à distância, em plano fechado e próximo, diagonalmente e lateralmente. Também é registrado de cima, revelando seu posicionamento entre pedras, galhos e plantas, e de baixo, encoberto por folhas e vegetação, camuflado no espaço.

Tonalpohualli e Xiuhpohualli, dois calendários complementares, estão entre as referências presentes, juntamente com pequenas esculturas da mitologia mesoamericana e outros artefatos arqueológicos de dimensões variadas, espalhados pelo território. Esses elementos encontram-se semi-enterrados na areia, apoiados em montes de pedras ou dispostos entre galhos secos. Formas como rostos, pirâmides, animais e caveiras gravadas com padrões gráficos compõem o cenário. Divindades como Quetzalcoatl (figura 2), representada como uma serpente emplumada ou réptil voador, também povoam essa paisagem.

2: Quetzalcoatl em frame do filme Altares (2019). Fonte: https://ancestralidadytrance. space/day-1/

Figura

No centro de um círculo, agrupam-se elementos que conjugam o contemporâneo e o ancestral: pedras brutas, volumes envoltos em plástico bolha e artefatos tradicionais (figura 3). Destaca-se o calendário circular e pequenas esculturas, como a figura de uma mulher nua em posição sentada, com o olhar voltado para cima. Sua expressão exibe os dentes em um gesto que oscila entre êxtase e dor, enquanto os seios ficam expostos. Entre suas pernas, uma cabeça emerge em clara alusão ao parto – representação da deidade Tlazolteotl (figura 4), figura mesoamericana associada à fertilidade, à sexualidade e aos ciclos lunares.

A câmera captura a figura em plano médio, enquadrando o conjunto de volumes enquanto realiza movimentos precisos que revelam detalhes significativos: a expressão facial intensa, a representação gráfica do parto e a nudez ritualística. Essa abordagem cinematográfica fragmentada - que alterna entre visões gerais e close-ups - é repetida com outras peças semelhantes que vão gradualmente ocupando a composição geométrica circular e se distribuem pelo espaço (figura 5).

Figura 3: frames do filme Altares (2019).
Fonte: captura de tela

Fonte: https://ancestralidadytrance. space/day-1/

Figura 4: Tlazolteotl em frame do filme Altares (2019).
Figura 5: frames do filme Altares (2019). Fonte: captura de tela

Por volta da metade do filme, os objetos de cerâmica aparecem brevemente em uma praça, onde pessoas se reúnem ao seu redor, dançando, tocando instrumentos e assistindo. Nesse contexto, os objetos assumem um papel de conexão social, atuando como catalisadores de uma experiência coletiva que celebra a identidade cultural. Posteriormente, eles reaparecem no espaço natural, desta vez organizados em relativa proximidade, criando uma composição harmoniosa que remete à disposição de objetos em um altar ritualístico (figura 6). Ao serem dispostos dessa forma, evocam um contexto de sacralidade e contemplação, destacando a capacidade dos objetos de transcender sua materialidade para se tornarem parte de narrativas culturais mais amplas. Essa transição visual e simbólica dialoga com as reflexões de Guerrero Aguillar (1998, p. 15):

O altar, que é fundamentalmente a festa dos frutos que brotam da terra [...] segundo a cosmogonia indígena, considerava-se que eles recuperavam as almas dos mortos para estarem com seus entes queridos. [...] No altar se inclui o que o falecido gostava: sua fotografia e outros itens pessoais como óculos, livros ou instrumentos de trabalho.

Essa tradição, profundamente enraizada nas práticas mesoamericanas, como os altares astecas do Templo Mayor dedicados a Tláloc e Huitzilopochtli, reflete a cosmovisão indígena sobre vida, morte e eterno retorno. A disposição dos elementos em um altar segue uma lógica ritualística, em que cada item possui uma função específica. Nesse sentido, os objetos de cerâmica, ao aparecerem tanto no espaço urbano quanto no natural, estabelecem uma conexão visual e simbólica entre as práticas contemporâneas e as tradições ancestrais, reafirmando a memória coletiva como central na construção cultural.

A fragmentação característica do filme torna-se mais sutil com a incorporação de transições em fade, que suavizam os cortes ritmados de duração equivalente. Esse recurso cria a impressão de um pulso visual intervalado, semelhante ao piscar de olhos, acompanhado por um som sincopado, cuja cadência se assemelha a batimentos cardíacos. Nos vinte segundos finais, observa-se uma aceleração progressiva do ritmo, marcada por cortes curtos e frenéticos que culminam em imagens que gradualmente passam à ilegibilidade. A transparência dá lugar à opacidade — um efeito decorrente da superexposição e do velamento intencional da película. As imagens verde-amareladas, características do processo cruzado de revelação (filme cromogênico E-6 revelado como negativo colorido C-41), são progressivamente inundadas por tons vermelhos, até sua sublimação final, em sincronia com a trilha sonora.

Posicionar artefatos sacros e objetos votivos, como placas com inscrições e modelagens em argila, em um espaço natural sugere um significado dividido em dois níveis. O primeiro nível remete a uma leitura cosmomitológica do território e da paisagem. Por meio de uma operação aditiva, a disposição do signo sagrado (o objeto), em justaposição ao espaço (a paisagem), gera um efeito que funde os dois signos, reforçando a ideia de que o sagrado está intrinsecamente ligado à natureza. Já o segundo nível, decorrente de uma operação subtrativa, propõe uma interpretação em que a presença dos objetos evoca, paradoxalmente, a sua ausência.

Considerando o contexto colonial, que frequentemente permeia outros trabalhos do coletivo, a disposição dos objetos arqueológicos — especialmente quando acompanhados de volumes embalados em plástico-bolha pela paisagem — pode ser interpretada como uma crítica implícita aos acervos de museus universais, instituições que exibem a opulência resultante da violência imperialista enquanto tentam apaziguar um passado conflituoso por meio de um discurso multiculturalista.

O tema do extrativismo, particularmente no que se refere ao mecanismo de conversão ou esvaziamento de sentido, é uma

Figura 6: Objetos cerâmicos em cena de Altares (2019).
Fonte: Captura de tela

preocupação recorrente na filmografia do coletivo. Um dos pilares históricos do colonialismo, o extrativismo articula a exploração de territórios e populações inteiras para sustentar as economias da metrópole. A força de trabalho indígena e escravizada desempenhou um papel central nesse processo de extração, perpetuando desigualdades que reverberam nos sistemas econômicos atuais.

De forma mais ampla, o extrativismo simboliza a capacidade de reorganizar formas e vidas, transformando-as em reservas de capital. Nesse contexto, todas as formas — vivas, inanimadas ou simbólicas — podem ser desprovidas de seus valores intrínsecos e reduzidas a meros recursos manejáveis. Como explica Fornoff (2023, p. 47), o extrativismo, além de caracterizar um modelo particular, colonial e neocolonial, de produção destrutiva de excedente, também nos alerta para sua lógica subjacente e instrumentalista. Trata-se de um sistema que retira da natureza não humana todo valor intrínseco ou relacional e toda importância cultural ou espiritual, atribuindo-lhe apenas o valor de troca que a define como recurso explorável.

Outras estratégias visuais e políticas são mobilizadas para abordar as consequências do extrativismo. Em Numbers (2020), as pinturas de retratos aristocráticos da coleção do Museo del Prado revelam “o rosto do extrativismo, da pilhagem da Mesoamérica, bem como do ecocídio realizado através da mineração e do trabalho escravo, que destruíram ecossistemas e o modo de vida dos povos” (Los Ingravidos, 2020, p.3). Essa crítica é intensificada pela repetição sonora do ano de 1492, marco da chegada de Colombo à América. Conversión (2021), por sua vez, combina um vídeo institucional do Museo de América, em Madrid, com um testemunho cristão em língua espanhola, tensionando o conceito de conversão ao explorar suas dimensões de violência espiritual, cultural e epistemológica. Outros trabalhos como Dresden Codex (2019), Transmisión/Archivo de Indias (2014) e Turismo (2021) - incluem a crítica ao turismo de ruínas, exemplificado pela transformação de locais sagrados em parques temáticos esvaziados de seu conteúdo espiritual, a arquitetura e museificação da morte, e o roubo de objetos históricos. Essas práticas materializam os processos de transformação cultural impetrados pela colonialidade.

O museu desempenha uma dupla função paradoxal: ao mesmo tempo que protege e preserva os objetos das culturas que classifica, ao reinterpretá-los, apropria-se deles. Essa instituição não escapa a uma conotação forense, assemelhando-se a um necrotério que armazena restos culturais “nos espaços refrigerados e assépticos de vidro, aço e concreto”. (Los Ingravidos, 2020)

Essa crítica ressoa com a análise de Azoulay (2019) em Potential History: Unlearning Imperialism, livro em que a autora argumenta que as tecnologias de arquivo constituem a base teórica do Estado moderno, atuando na legitimação de histórias oficiais mediante o isolamento artificial entre presente e passado, história e política. Por outro lado, os possíveis reordenamentos do arquivo se realizam como práticas de “história potencial”, operações críticas que permitem reordenar os vestígios do passado a partir daquilo que foi sistematicamente silenciado, marginalizado ou apagado pela narrativa histórica dominante. A prática artística engendra um deslocamento ético-epistemológico capaz de gerar contra-narrativas que desafiam a ordem estabelecida dos discursos históricos.

Considerações finais

Os filmes Pirámide Erosionada (2019) e Altares (2019), do coletivo Los Ingravidos, instauram uma arqueologia insurgente do visível, em que a paisagem se converte simultaneamente em ruína e altar, desaparecimento e permanência. Se a montanha erodida evoca o apagamento colonial – o esfacelamento literal e simbólico das geografias ancestrais –, os altares reativam uma cosmologia em que a terra não é matéria inerte, mas entidade viva, portadora de memória e agência.

Aqui, a paisagem é um arquivo em disputa, onde a violência colonial e epistemológica opera tanto pela extração física da terra quanto pela imposição de novas formas de ver, conhecer e representar. Los Ingravidos tensiona essa violência ao criar um cinema que recusa a linearidade do relato histórico e a transparência documental, adotando a textura granular do 16mm, a montagem convulsiva e uma sintaxe audiovisual que implode as convenções do olhar colonial.

Assim, ao transformar montanhas desaparecidas em espectros e altares em constelações cosmológicas, o coletivo propõe um cinema que não apenas rememora, mas reconfigura o arquivo da paisagem, desestabilizando as ordens visuais do poder. Entre a dissolução e a aparição, entre a erosão e a sacralização, Pirámide Erosionada e Altares desdobram a paisagem como um palimpsesto, onde cada vestígio carrega a latência do que foi e a promessa do que ainda pode emergir.

Referências

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COLECTIVO LOS INGRÁVIDOS. Shamanic materialism: Autonomous forms of remembrance - Colectivo Los Ingrávidos in conversation with Almudena Escobar López. [Entrevista concedida a] Almudena Escobar López. 16 out. 2020 Disponível em: https:// www.vsw.org/wp/wp-content/uploads/2020/10/Colectivo-Los-Ingr%C3%A1vidos-in-Conversation-with-Almudena-Escobar-L%C3%B3pez-English-1.pdf. Acesso em: 2 abr. 2025.

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ERRAZU, Miguel. Barrar las imágenes, las palabras, los sonidos, las voces: sobre 2 de octubre / Lejos de Tlatelolco, de Los ingrávidos. Toma Uno, v. 6, n. 6, p. 121-140, 2018. Disponível em: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/toma1/article/view/20901/20501. Acesso em: 21 dez. 2024.

ESCOBAR LÓPEZ, Almudena. The Pyramid Used to be a Mountain. In STRATHAUS, Stefanie; HEDIGER , Vinzenz (Eds.). Accidental Archivism: Shaping Cinema’s Futures with Remnants of the Past. Lüneburg: Meson press, 2023, p.267-275. Disponível em: https://meson.press/wp-content/uploads/2023/05/978-3-95796-054-2_Accidental_Archivism.pdf. Acesso em: 21 dez. 2024.

FORNOFF, Carolyn E. Extractivism. In ANDERMANN, Jens; GIORGI, Gabriel; SARAMAGO, Victoria. (Orgs.). Handbook of Latin American Environmental Aesthetics. Berlin: De Gruyter, 2023, p. 45-67.

AGUILLAR , Antonio. Calaveras y Altares de Muertos, en la Tradición Popular Mexicana . Monterrey: Universidad Autónoma de Nuevo León, 1998.

INGOLD, Tim. T he temporality of the landscape. World Archaeology, v. 25, n. 2, p. 152-174, 1993.

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SCHEFER , Raquel. Perspectives dialectically intersected: the Mexican audiovisual collective Los Ingrávidos and its film Coyolxauhqui (2017). Jump Cut: A Review of Contemporary Media, n. 61, primavera de 2022. Disponível em: https://archive.org/details/jumpcut61/ mode/2up?view=theater. Acesso em: 10 abr. 2025.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Cosmotécnicas no cinema brasileiro: análise de Aqui onde tudo acaba (2023)

Cosmotechniques in Brazilian cinema: an analysis of Aqui onde tudo acaba (2023)

Resumo: Este artigo investiga práticas cinematográficas à luz da noção de cosmotécnica, analisando de que forma mídias articulam questões como tecnologia, ecologia e saberes tradicionais. Discute-se, assim, a materialidade fílmica como espaço de resistência na produção contemporânea, por meio de métodos de criação que desestabilizam as fronteiras convencionais entre natureza e cultura. O curta-metragem brasileiro Aqui onde tudo acaba (Cláudia Cárdenas e Juce Filho, 2023) será tomado como objeto de estudo nesta investigação.

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Filme experimental; Cosmotécnica.

1. PPGCOM/UFRJ. Email: lucasmurari@gmail.com. Currículo lattes: https://lattes.cnpq. br/8257832830854711.

Introdução

Para fazer uma pequena pergunta retórica que se desvia por Deleuze e Guattari: e se começássemos nossa escavação das tecnologias de mídia e da cultura digital não a partir do frequentemente citado artigo “Sociedade de Controle” de Deleuze, mas a partir dos textos conjuntos de Deleuze e Guattari sobre geologia? (Parikka, 2014, p. 21, tradução minha)

Iniciamos este estudo com uma provocação de Jussi Parikka, reflexão que retoma o capítulo “Geologia da Moral” de Mil Platôs , de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no qual propõem uma releitura da Genealogia da Moral de Friedrich Nietzsche. Parikka, no entanto, redireciona o conceito para o campo da Geologia das Mídias, explorando como as tecnologias da comunicação são constituídas por matérias-primas elementares. Essas tecnologias expressam contínuos entre natureza e cultura, relações que o autor (2015) define como “MediaNatures” (Mídias-Naturezas). Essa perspectiva integra uma metodologia mais ampla da Arqueologia das Mídias (Parikka, 2022), a qual desafia as narrativas hegemônicas do progresso tecnológico, apontando descontinuidades que fazem parte da história da imagem em movimento e desenterrando materialidades e/ou processos alternativos. Trata-se menos de uma genealogia no modelo arbóreo - que pressupõe linhagens hierárquicas - e mais de uma cartografia relacional, que investiga as conexões transversais entre diferentes formatos tecnológicos.

Nesse sentido, é importante ressaltar que a história das mídias entrelaça-se com a geologia do planeta: vegetais, minerais e elementos químicos são extraídos de seus estratos terrestres e reconfigurados em dispositivos maquínicos que fundamentam boa parte de nossa cultura técnica. Embora muitos artistas tenham abraçado o potencial criativo da tecnologia digital, a prática do filme analógico ainda persiste, mesmo frente à escassez de materiais e custos crescentes associados ao aparato fotoquímico.

A utilização da película continua a despertar interesses, por motivos diversos. Não se trata de um fetichismo tecnológico, mas da busca por um outro tipo de expressão. E também não se trata de uma disputa anulatória. Debates semelhantes ocorrem em múltiplas esferas artísticas. Nas artes plásticas, a título de exemplo, seria como dizer que um pintor não poderia mais pintar com tinta à base d’água e apenas à base de óleo. As mídias digitais não são melhores que as analógicas, mas são suportes com particularidades distintas. A técnica selecionada tem interferência direta na poética e na subjetividade do criador. Embora práticas como essas tenham sido fundamentais ao longo da história do cinema, contemporaneamente sua potencialidade é outra, na medida que a película é a exceção, e não mais a regra.

O uso contemporâneo do filme fotoquímico (Super 8, 16mm, 35mm) se encontra em uma posição de relativa liberdade, na qual a questão da experimentação da linguagem em múltiplos sentidos e a reinvenção constante envolvem olhar para trás para seguir em frente. Em contextos como na Europa e na América do Norte, a apropriação do maquinário desprezado pela indústria do filme analógico foi decisiva para formar laboratórios especializados, dessa vez autogestados pelos artistas. No Brasil, no entanto, o que tem vigorado até então é a prática do “Faça você mesmo”, o espírito de guerrilha que marca o estilo Do It Yourself (DIY).

O portal Filmlabs2 oferece um mapeamento abrangente de laboratórios cinematográficos em atividade ao redor do mundo, reunindo informações sobre suas respectivas histórias, localização e propostas. No Brasil, destacam-se quatro iniciativas: o Co.Lab (Colírio Laboratório), fundado em 2011 em Recife; o Lab.irinto.Lab (antigo Super OFF Lab), sediado na cidade de São Paulo desde 2017; o Megalab, do Rio de Janeiro, criado em 2019; e o Super Lab Solar, de Curitiba, que surgiu em 2020. Cada laboratório possui características próprias: enquanto alguns focam em processos artesanais de revelação e cópia, outros exploram técnicas como a cianotipia e a intervenção direta na película, entre outros procedimentos listados no portal. Essa diversidade reflete a vitalidade da cultura cinematográfica independente, que resiste firmemente à hegemonia do digital.

1 - Algumas reflexões em torno da cosmotécnica

Essa vertente ecológica da Arqueologia das Mídias, campo no qual Jussi Parikka se destaca como uma das principais referências, estabelece diálogos com autoras e autores contemporâneos alinhados à Virada Ontológica (Ontological Turn). Um exemplo fundamental é a obra da bióloga e filósofa Donna Haraway (2021) que em seu Manifesto das Espécies Companheiras , cunhou o conceito de “Naturezas-Culturas”, desconstruindo velhas dominações hierárquicas que marcaram a modernidade ocidental, propondo que a existência de qualquer espécie é radicalmente interdependente — constituída por suas relações multiespécies e por sua inserção em redes ambientais. O conceito ilustra o que está em jogo nas discussões atuais dessa virada “radical” do pensamento. Radical, aqui, utilizado em seu sentido etimológico, relativo à raiz, aos seus fundamentos básicos. Ao invés de uma ordem epistêmica monotípica e opositora, Haraway propõe um pluralismo ontológico e interconectado.

Ainda nesse contexto, a filósofa da ciência Isabelle Stengers opta pela noção de “cosmopolítica” como ampliação da ideia de “polí-

2.Disponível em https://www. filmlabs.org/all-labs/. Acesso em: 05 abr. 2025.

tica”, profundamente herdeira da tradição moderna – eurocêntrica e cartesiana – do pensamento. Nessa abordagem, em linhas gerais, a política é compreendida como uma prática específica dos seres humanos, os únicos dotados de logos. A ideia de cosmopolítica busca expandir a política com a inserção do cosmos, prefixo que faz referências a outras questões e outros seres. Nas palavras de Stengers (2007, p. 49, tradução minha), “o cosmos, tal como ele figura no termo cosmopolítica, designa o/a desconhecido/desconhecida [inconnue] construído por esses mundos múltiplos e divergentes, bem como as articulações das quais eles podem eventualmente ser capazes”.

O teórico chinês Yuk Hui, por sua vez, se vale do neologismo de cosmotécnica, como a “unificação do cosmos e da moral por meio das atividades técnicas, sejam elas da criação de produtos ou de obras de arte” (Hui, 2020, p. 39), buscando rearticular o tema da tecnologia em referência a essa pluralidade ontológica. O autor chama isso de tecnodiversidade, a ecologia política das máquinas:

Tradicionalmente, há uma tendência a pensar que a máquina e a ecologia se opõem uma à outra, já que as máquinas são artificiais e mecânicas, e a ecologia é natural e orgânica. Esse raciocínio pode ser chamado de um dualismo da crítica (e não uma crítica dualista), uma vez que sua abordagem tem como base a fixação de binários. (Hui, 2020, p. 100)

Essa reconceitualização de Hui se refere à relação entre máquina e organismo, humano e ambiente, tecnologia e natureza. A compreensão da ecologia nessa aproximação é feita em sentido amplo, a partir da interação de uma comunidade formada por seres vivos e ambientes, mas também pela troca de informações, energia e matéria. “uma comunidade humana é muito mais do que a soma dos agentes humanos que a constituem; ela também inclui o ambiente e outros seres não humanos” (Hui, 2020, p. 105).

O hibridismo entre o ambiente natural e sistemas técnicos tem se tornado um paradigma da contemporaneidade e auxilia na superação de dualismos enraizados na ontologia e nas epistemologias tradicionais, como é o caso de natureza e cultura, corpo e mente, humano e não humano. A história do audiovisual e a teoria das mídias vêm ressaltando que múltiplos procedimentos têm sido empregados nesse gesto de estabelecer um vínculo sensível com outras formas de vida. Uma das qualidades dessas obras é a criação de novas maneiras de ver, ouvir, sentir e perceber a heterogeneidade cosmológica. É o caso, por exemplo, de inventar dispositivos de observação, de colocar flores na película cinematográfica, de enterrar o filme analógico debaixo da terra, de deixar a câmera ser afetada por forças naturais, de envolver o corpo que filma em uma relação simbiótica com o

ambiente, de reconstituir ecossistemas durante a projeção, entre outros recursos.

Tanto os instrumentos analógicos como a cultura digital são dependentes de energias e materiais, ou seja, fenômenos elementares, de modo que as tecnologias e a Terra se mostram assim interdependentes. Esse dado afeta toda a cadeia de produção, distribuição e exibição do universo midiático. Nesse sentido, é importante se ater ao impacto das condições extrativistas na base material das tecnologias da comunicação, assim como buscar alternativas ecosustentáveis. Como bem definiu o artista e teórico Pip Chodorov (2014, p. 36, tradução minha): “não estamos em uma economia do cinema, mas em uma ecologia do cinema, uma rede, cineastas ajudando uns aos outros, fora do sistema. Além disso, não trabalhamos com imagens, mas com materiais orgânicos e físicos da terra: sais, pratas, minerais”. Entendida no seu sentido cosmotécnico, essa afirmação explicita modos de produção artesanais, distantes do circuito majoritário da indústria cultural do audiovisual.

2 - Aqui onde tudo acaba (2023)

O cinema brasileiro é permeado por experimentações que dialogam com técnicas cosmológicas. Alguns artistas contemporâneos têm adotado processos artesanais e/ou analógicos como matéria-prima de suas poéticas, explorando a materialidade do filme como elemento central da criação. O termo poética, aqui, foi requerido no sentido dado por Aristóteles (2011), ou seja, o estudo dos princípios que lidam com a construção ( poiesis) da obra e seus efeitos estéticos, tomando como fundamento a relação entre a disposição dos elementos e suas respectivas funções. Essa abordagem frequentemente incorpora saberes tradicionais e/ou ecológicos.

O Duo Strangloscope, sediado em Florianópolis – Santa Catarina, é hoje um dos coletivos de cinema experimental mais ativos do Brasil. É formado por Cláudia Cárdenas e Rafael Schlichting que vêm trabalhando juntos desde 2002. Também atuam como curadores de festivais de cinema e realizam performances de cinema expandido (expanded cinema). O termo Strangloscope que dá nome ao coletivo é inspirado no ensaio homônimo do conterrâneo Rogério Sganzerla, uma aliteração da expressão “strange angle scope”, cuja versão em português poderia ser traduzida como: do ângulo estranho.

A filmografia do duo é extensa e vem sendo executada em todas as bitolas e em formato digital. Um dos aspectos estilísticos pre -

sente em suas obras é a ênfase em um tipo de imagem plástica. Filmes como Spinoff (2014), Nothing to Adjust #1 (2014), antikapitalistischen (2015), Metamorfose de Narciso ou Uma cebola na cabeça (2016) e Movimento (2018) foram registrados em Super-8; Honra ao Mérito (2017), em 16mm; Child World, em 35mm. Por mais que a investigação estética beire a abstração, propõem um cinema antenado às crises socioambientais.

O curta-metragem Aqui onde tudo acaba (2023), assinado por Cláudia Cardenas e Juce Filho, destaca-se como uma das obras mais emblemáticas dessa abordagem cosmotécnica. O filme estabelece um diálogo com a cultura Laklãnõ/Xokleng, povo originário do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. O que torna esta obra singular é seu processo de realização: uma simbiose entre técnicas analógicas e saberes tradicionais, incluindo a manipulação direta da película (com intervenções de riscos, desenhos e pinturas), filmagens em 16mm realizadas pelos próprios indígenas, captação sonora coletiva e revelação botânica - um exercício de partilha de conhecimentos em vários aspectos. Juce Filho é um cineasta indígena cuja produção audiovisual – documentários, reportagens jornalísticas e filmes – tem como foco a preservação e difusão da memória e cultura Xokleng.

Aqui onde tudo acaba opera em múltiplas dimensões ecológicas, em que a materialidade fílmica se constrói na intersecção entre intervenção humana e processos naturais. Essa estética também documenta os ritos e práticas culturais Laklãnõ/Xokleng, conferindo-lhes uma presença ativa no processo criativo. A dimensão vegetal ganha voz com Nandia Patté, creditada como “Orientadora Botânica” ao final do curta, que comenta sobre a força medicinal e simbólica de plantas como o araçá, o ipê e o cravo-da-índia. Mais do que um registro etnográfico, a obra constitui um espaço de encontro entre “Naturezas-Culturas”. A “geologia da mídia” aqui torna-se um território substancial, em que as camadas da película cinematográfica acumulam memórias da etnia indígena em questão. Por meio dessa abordagem colaborativa, o filme reinventa o próprio ato cinematográfico como prática de reciprocidade.

Considerações finais

Nas últimas décadas, artistas têm produzido formas sustentáveis de criar, organizar, transmitir e compartilhar suas obras. Essas iniciativas acabaram formando uma rede interconectada que cresceu à sombra da indústria do audiovisual. O diálogo entre a cultura tec-

no-midiática e as questões ecológicas transcende a simples representação da natureza nas obras. Essa relação oferece uma oportunidade de estabelecer conexões profundas com outros seres vivos e formas de existência. Nessa perspectiva, a cosmotécnica emerge como uma abordagem inovadora, caracterizada por ser um agenciamento multiespécie. Essa abordagem reconhece a interconexão dos viventes, valorizando assim o lugar de alteridade entre a humanidade e outros seres mundanos. A cosmotécnica, portanto, não se limita à esfera sociocultural, mas envolve um diálogo com outras formas de vida, sistemas ecológicos e entidades não humanas. O conceito é essencial para a renovação do pensamento contemporâneo, quebrando fronteiras e expandindo a compreensão do que é ser parte do mundo.

Em plena ascensão na era da cultura digital, é possível dizer que o cinema analógico também tem crescido com força na produção brasileira contemporânea. Alguns coletivos, artistas e cineastas vêm retomando certas práticas ligadas ao Super-8, 16mm e o 35mm. A pesquisa aliada à experimentação de linguagem constitui um eixo comum entre os/as “alquimistas”. Muitos destes já contam com equipamentos próprios de filmagem e revelação. As últimas etapas de realização dos filmes – montagem e finalização – têm sido feitas na maioria dos casos citados em formato digital, por meio de softwares de edição não linear. Isso não enfraquece o uso da película. Tais processos artesanais de criação geraram algumas das elaborações estéticas mais sofisticadas dos últimos anos.

Essa comunidade vive um momento de trocas e parcerias, em alguns casos uns trabalhando nos filmes dos outros. A colaboração e a constituição de coletivos são elementos recorrentes nesse tipo de prática artística. Outro dado é a preocupação dos realizadores que trabalham com o material analógico em passar para a frente o conhecimento e as técnicas adquiridas ao longo de suas carreiras. Propostas pedagógicas como essas são fundamentais para a formação de uma cena de cinema experimental, visto que o Brasil não possui essa tradição de maneira consolidada. Esse fato também demonstra como tem surgido novos nomes interessados em se aventurar pelo universo analógico, contrariando o senso comum de que se trata de mídias “mortas”.

A persistência do analógico, longe de representar um mero resgate nostálgico, revela-se como gesto político: uma forma de reivindicar outras temporalidades, outros modos de relação com a Terra e seus materiais, em contraposição à lógica quase hegemônica da cultura digital.

Referências

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Poéticas e políticas do sentir latino-americano

O pássaro que olha - cinema em terras fronteiriças latinoamericanas

The bird that watches - cinema in Latin American borderlands

Resumo: A partir da percepção de um determinado cinema contemporâneo produzido na América Latina, proponho-me a pensar como esses filmes contrariam o regime anestético moderno de produção de imagens hegemônicas. Partindo dos filmes EAMI, de Paz Encina e É noite na América , de Ana Vaz, ambos de 2022, desenvolvo o que chamo de sensorialidades contra-anestéticas, um conceito analítico que busca localizar as estratégias efetuadas por essas obras de modo a ativar uma espectatorialidade mais desperta.

Palavras-chave: Cinema contemporâneo; América Latina; Anestético.

1. PPGCOM - UFRJ. Email: anaclaramattoso@ufrj.br. Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/5590777147827656.

Introdução

Diante da produção de um determinado cinema contemporâneo realizado em terras fronteiriças da América Latina — para além do limite geográfico, a fronteira é aqui pensada como um lugar de indeterminação e travessia, um fazer território vivo e cultural (Anzaldúa, 1987) —, onde as bordas entre a suposta modernidade e os saberes tradicionais se roçam, assim como a chamada natureza-cultura (Haraway, 2016) se contorce, encaro essas imagens e me pergunto em que medida elas são capazes de sustentar tal desorganização. Terras fronteiriças situam-se, aqui, como zonas de choque, conflitos e aliança é, nesse sentido, uma categoria conceitual para pensar lugares liminares, de enfrentamento aos arranjos coloniais. Nelas, a dita civilização se entremeia aos povos da floresta e aos não humanos, enfatizando as encruzilhadas e fricções desses encontros.

Neste texto, me proponho a elaborar como certos filmes produzidos em terras fronteiriças disputam as narrativas hegemônicas em voga, agenciando um regime estético singular a cada território implicado. Para isso, irei me deter em duas obras específicas, os longa-metragens EAMI (2022), de Paz Encina, cineasta paraguaia, e É noite na América (2022), da realizadora brasileira Ana Vaz. No primeiro, acompanhamos Eami (Anel Picanerai), uma menina indígena Ayoreo-Totobiegosode, que vaga sozinha pelo Chaco Paraguaio após sua aldeia ter sido destruída pelos cañones (pessoas da civilização), à procura de entes queridos ou de quem quer que tenha sobrado. No idioma de seu povo, Eami significa “floresta”, mas também significa “mundo”. O mundo de Eami foi invadido e agora está sendo devastado. 2 Já no longa de Ana Vaz, um misto entre documentário e eco-terror, os personagens principais são os bichos do zoológico de Brasília, animais silvestres que, o tempo todo, esticam os limites delimitados de sua nova vivência em cativeiro. Eles encaram a câmera, passeiam, se arriscam em ruas e desafiam os ideais modernistas da cidade projetada.

Para além de endereçar as crises climáticas e sociais em suas temáticas e sujeitos, essas duas obras evocam, a partir de seus aspectos formais, conceituais, técnicos e metodológicos, experiências de espectatorialidade que corroboram com um tipo de torção do mundo. Portanto, interessa pensar quais são as estratégias experimentadas por esse cinema que, em si mesmas, desestabilizam um olhar por vezes conformado a um regime de visualidade homogeneizante e anestésico, ou, “anestético”, sob a chave de Susan Buck-Morss (1996), em que a experiência é defraudada, tornando-se escassa e precária.

2.Atualmente, o Chaco Paraguaio possui o índice de desmatamento mais rápido do mundo.

Ser defraudado da experiência tornou-se o estado geral, sendo o sistema sinestético dirigido a esquivar-se aos estímulos tecnológicos, de maneira a proteger tanto o corpo de acidentes como a psiquê do trauma do choque perceptual. Como resultado, o sistema inverte o seu papel. O seu objetivo é o de entorpecer o organismo, insensibilizar os sentidos, reprimir a memória: o sistema cognitivo da sinestética tornou-se, antes, um sistema de anestética. Nesta situação de “crise da percepção”, já não se trata de educar o ouvido rude para ouvir música, mas de lhe restituir a audição. Já não se trata de treinar os olhos para ver a beleza, mas de lhe restaurar a “perceptibilidade”. (Buck-Morss, 1996, p. 23- 24)

Minha aposta é de que, ao desestruturar tal sistema anestetisante, as imagens produzidas por esse cinema contemporâneo latino-americano, que poderíamos conceituar como um cinema especulativo de fronteiras (Wiedemann, 2023), provoquem uma abertura inerente a todo processo de quebra. E, com isso, sensibilidades antes alienadas possam se tornar mais despertas, mais aptas ao enfrentamento do colapso socioclimático que, hoje, reconhecemos como Antropoceno - a nova era geológica marcada pelas ações antrópicas nos territórios (Costa, 2022).

Com o intuito de navegar por essas questões de modo que não as percamos de vista, partiremos de duas compreensões: a primeira delas relaciona-se ao situar-se nesse mundo de colapsos a partir das ruínas, sendo estas menos como uma imagem de destruição, e mais como uma estratégia de ressaltar aquilo que permanece apesar de tudo, e ressurge em aparições que contrariam a linearidade do progresso; a segunda acredita que os filmes aqui analisados produzem sensorialidades contra-anestéticas - será, então, necessário aprofundar o pensamento de Susan Buck-Morss sobre o anestético, anexando-o a uma noção específica de contato sensorial com os filmes, sendo ela pautada no que Erly Vieira Jr (2020) teorizou como realismo sensório.

Informada por essas duas dimensões, gostaria de estendê-las às análises dos filmes de Encina e Vaz para também traçar conexões entre territórios diferentes da América Latina, assim como do próprio cinema. Apesar das diferenças, ambas as obras participam do mesmo exercício de borrar as fronteiras, seja de gênero cinematográfico, com o hibridismo entre ficção e documentário, ou entre os seres — humanos, mais que humanos, mitológicos, sobrenaturais —, e os territórios — os urbanos e aqueles ditos naturais.

Para além dessas aproximações, ainda há, nos dois filmes, a partir de suas escolhas, tanto de personagens e perspectivas quanto de enquadramentos e montagem, um desejo de fazer a própria imagem olhar de volta (Didi-Huberman, 2010). Este é um cinema que se endereça ao espectador por meio de recursos que se afas-

tam das narrativas clássicas ou modernas, invocando uma linguagem mais háptica e sensorial, no intuito de conceder ao filme o seu lugar de corpo, e, por que não, de território. Deste modo, analisaremos como Ana Vaz e Paz Encina acionam dispositivos de fratura, mas também de sensação, que estabelecem a construção de um novo imaginário sobre a cosmopolítica (Stengers, 2018) de diferentes mundos e diferentes seres que se constituem ora em aliança, ora em desavença.

1 - Em meio às ruínas, reinvenção

É possível ressuscitar vidas a partir das ruínas (Hartman, 2020, p. 16)? Essa é uma das perguntas que Saidiya Hartman evoca para se orientar frente às violências implicadas nos arquivos de diáspora. Diante da escassez, da precariedade, do apagamento e da ausência, Hartman ainda se pergunta sobre o poder criativo das histórias, e sobre sua capacidade de inventar um jeito de viver no mundo no rescaldo da catástrofe e da devastação (Ibidem.). Seriam as histórias um abrigo para os vivos fabularem um futuro alternativo (Ibid., p. 32)? Há, nessas questões, alguns disparadores que se conectam às discussões aqui iniciadas. Ruínas, devastação e fabular um futuro alternativo formam uma tríade importante para o método de fabulação crítica proposto pela autora, e dadas as diferenças entre os objetos - no caso de Hartman, os rastros sobretudo da escravidão (mas não só) e no nosso, do extrativismo da terra -, podemos aplicá-la para refletir acerca do que permanece reinventando-se em oposição às investidas de extermínio dos modos de vida nas fronteiras latino-americanas.

Os dois filmes sobre os quais este artigo se detém, EAMI e É noite na América , fazem emergir diferentes tipos de ruínas em suas narrativas. No primeiro, as da colonização no Chaco Paraguaio, que se atualizam sob a égide da modernidade-capitalista e da devastação ambiental. Já no segundo, as ruínas são as que atravessam a capital Brasília, símbolo do progresso brasileiro, impondo-se ao soterramento das memórias dos povos que ali viviam e dos seres mais que humanos que a civilização tentou segregar. Ruínas enquanto categoria deflagra o que persiste, o que resiste aos processos de apagamento, e o que também desorganiza a perspectiva moderna de evolução. Elas sobrepõem tempos, criam refúgios para as vidas que são perseguidas e violentadas por desviarem ao modelo hegemônico e, acima de tudo, edificam a potência do que não foi capturado pelo sistema anestésico. O que escapa são as brechas, os rastros que irrompem e escapam à destruição e ao desaparecimento (Didi-Huberman, 2011).

Esses rastros também podem se materializar no próprio corpo fílmico, em sua forma e escolhas cinematográficas. No cinema de fronteiras, especialmente nas duas obras aqui mencionadas, parece haver um desejo de convocar uma imagem-ruína, uma imagem que resiste e na qual uma possível agência pode ser mobilizada. Os modos com que isso se efetua formalmente são particulares a cada obra, mas há uma similaridade em EAMI e É noite na América que merece ser destacada: o uso de material de arquivo nas sequências finais dos dois filmes.

Figura 1: Frame de É noite na América, de Ana Vaz. Fonte: arquivo da autora

Para além de constatarem a história por trás dos fatos que costuram as narrativas híbridas entre ficção e documentário dos dois filmes, e de anunciarem os processos de destruição que as espreitam, essas imagens, ao fugirem do registro visual que cada uma das obras tinha aderido, circunscrevem um corte, uma ruptura na linearidade que até então estava sendo traçada. Conforme irrompem na tela, irrompem também a sobreposição temporal e a desorganização da estrutura semiótica. São, desse modo, imagens-ruína por sua característica desestabilizadora, mas também por serem residuais, rastros do passado que se contrapõem ao que está sendo transmitido no presente. Elas apontam para as lacunas, para o que não está ali e que precisa ser preenchido pelo exercício de escavação, de se fazer ver uma história oprimida pelo poder colonizante.

Se tomarmos a proposição de William John Thomas Mitchell sobre o que as imagens querem (2006) como um método, e a aplicarmos nessas imagens de arquivo como uma pergunta interessada nas lacunas, no que se conjura para além da literalidade ou da semiótica envolvida na própria imagem, acabaremos por esbarrar em sua performatividade. Isto é, estaremos escavando o que essas imagens de arquivo performam nas obras de Ana Vaz e Paz Encina, quais contradições elas revelam, e quais fraturas elas agenciam. Assim, as imagens-ruína podem, de certo modo, também ser consideradas como imagens dialéticas (Benjamin, 2018), uma vez que

Figura 2: Frame de EAMI, de Paz Encina.
Fonte: arquivo da autora

atualizam uma imagem do passado e a denotam de potenciais futuros pelo gesto do presente. 3

2 - Sensorialidades contra-anestéticas

Mas ruínas enquanto fraturas também relatam uma experiência afetada, machucada. A crise com a qual este texto se corresponde não é somente ecológica, social, política ou perceptiva, mas é também uma crise de imaginários. Se antes, no início da indústria cultural e, mais especificamente, da criação do cinema, já se apontava para a saturação do sistema perceptivo e sensório pela superexposição a estímulos, hoje, o avanço tecnológico e a estetização da política (Buck-Morss, 1996) intensificam a alienação dos espectadores a ponto de provocar o prazer estético com a própria destruição - como acontece nos filmes, séries, videogames e outras mídias que transformam a guerra e o colapso ambiental em objetos de espetacularização.

No cinema, uma das estratégias mais recorrentes de incorporação e naturalização do imaginário da violência é o uso da repetição, que anestesia os olhos ao choque. Mas esse recurso, quando tomado conscientemente e de forma comprometida com o desarranjo do regime anestético, também pode ser subvertido. Mas como isso se efetua? Como é possível ativar outros procedimentos, ou se apropriar daqueles já desgastados, de modo a desanestesiar o espectador? Como instaurar novas espectatorialidades entre os corpos da feitura fílmica, do próprio filme e do espectador?

Para habitar as ruínas e propor brechas de reinvenção, EAMI e É noite na América experimentam algumas dessas estratégias narrativas, estéticas e sensoriais, concatenando-as de modo a provocar fricções, fissuras nas expectativas do espectador acostumado aos sistemas mais pacificadores de criação de imagem. Sensorialidades contra-anestéticas enquanto categoria analítica seria, portanto, uma proposta conceitual de análise sobre esses processos. Antes de expandi-la, é preciso compreender o sentido de “estética” com o qual esta proposição dialoga. Susan Buck-Morss, para desenvolver seu pensamento sobre o anestético, primeiro desmonta a concepção moderna da estética enquanto um domínio artístico, devolvendo-a ao seu sentido original: a própria realidade corpórea, material. Em sua origem grega, aisthesis é definida como o que se torna perceptível através do tato, isto é, a estética nada mais é do que a experiência sensorial da percepção.

[A estética] é uma forma de cognição, alcançada via gosto, audição, visão, olfato - todo o aparato sensorial do corpo. Os terminais de todos os sentidos - nariz, olhos, ouvidos, boca, algumas das áreas mais

3.Agradeço às discussões fomentadas pela aula de Roberto Robalinho, no departamento de pós-graduação de Comunicação e Cultura da UFRJ, ao longo do curso iniciado no primeiro semestre de 2025.

sensíveis da pele - localizam-se na superfície do corpo, na fronteira que media o interior e o exterior. Este aparato físico-cognitivo, com os seus sensores não fungíveis e qualitativamente autônomos, é o “terreno frontal” da mente, encontrando o mundo pré linguisticamente, portanto, anteriormente não apenas à lógica como também à significação. É óbvio que todos os sentidos podem ser aculturados - é esta a razão para o interesse filosófico pela “estética” na era moderna. Mas não importando o quão estritamente os sentidos sejam treinados (enquanto sensibilidade moral, refinamento do “gosto”, sensibilidade a normas culturais de beleza), tudo isso se dá a posteriori. Os sentidos mantém um traço não civilizado e não civilizável, um núcleo de resistência à domesticação cultural. Isto é devido ao seu próprio propósito imediato ser o de servir às necessidades instintivas - de calor, alimentação, segurança, sociabilidade; em suma, estas permanecem parte do aparato biológico, indispensável a autopreservação tanto do indivíduo como do grupo social. (BuckMorss, 1996, p. 14)

Em sua análise do pensamento de Benjamin acerca da estetização da vida política promovida pelo fascismo, Buck-Morss dedica-se a pensar em formas de envergar este sistema. Isto é, de criar rachaduras em seu interior a partir daquilo mesmo que o cria. Se há um apaziguamento das massas por meio de estratégias de dessensibilização, cujo objetivo é tornar a guerra, a conquista e a destruição em cultos de prazer estético, difundidos pela indústria cultural, há de se instituir também um movimento contrário, mas não no sentido de negar esse processo. Torna-se então tarefa da arte desfazer tal alienação do aparato sensorial do corpo, restaurando o poder instintual dos sentidos corporais humanos em nome da autopreservação da humanidade, e isto não através do rechaço às novas tecnologias, mas pela passagem por elas (Ibid. p. 12). Por essa perspectiva, a tecnologia pode adquirir um potencial de meio, veículo de ativação do sensório pelo qual a experiência se revela. É também incorporando diferentes recursos tecnológicos, como a técnica da noite americana em É noite na América , ou o tratamento de cor em EAMI, que essas narrativas mobilizam uma outra forma de contágio entre espectador e obra. Quando esses procedimentos visam despertar a sensorialidade, eles se colocam em atrito com o mundo, provocando interações hápticas que permitem um tipo específico de imersão sensorial.

Neste ponto, a definição de Erly Vieira Jr sobre o realismo sensório pode ser convocada:

Uma experiência sensorial multilinear e dispersiva, não mais ligada a uma decantação/condensação ou, do contrário, a uma desconstrução/negação do fio narrativo, mas sim a uma lógica de diluição narrativa a partir do diálogo com os diversos e quase invisíveis espaços-tempos simultâneos que constituem a esfera cotidiana. (Vieira Jr., 2020, p. 17)

Diante do cinema escavação de Ana Vaz e Paz Encina, encontramos camadas de poeira sob as quais o nosso olhar precisa atravessar para se habituar a uma narrativa que não oferece respostas, mas que se contenta com o esboroamento do tempo, com o mistério terreno que é quase fantástico. Em termos de momentos cinematográficos, se a narrativa clássica de um primeiro cinema se pautava na crença do espectador na mise-en-scène, isto é, na imagem subordinada à ação cênica, e a narrativa moderna operava a descrença e a ruptura com os dogmas narrativos estabelecidos até então, o cinema contemporâneo mais atrelado ao fluxo e à imersão, instaura um espaço que se permite atravessar por afetos e sentidos (Vieira Jr., 2020). Nesse novo locus imagético de criação de mundos, é o campo sensorial que preenche as lacunas deixadas pelo cinema moderno sem que haja um retorno inocente às narrativas hegemônicas anestesiantes. Há, assim, um retorno à crença na potência da imagem, mas dessa vez, ela se dá pela sensação e apreensão de um mundo fraturado, aderente às brechas e imprevisível.

Se retornarmos a provocação de Mitchell e perguntarmos novamente às imagens dos dois filmes em questão o que elas querem, encontraremos, além do uso de material de arquivo, algumas outras estratégias narrativas, estéticas e sensoriais que se aproximam da proposta de uma sensorialidade contra-anestética. Entre elas, poderíamos citar:

a) O uso do primeiro plano e a fragmentação da imagem: nos dois filmes vemos em primeiro plano os seres que fogem, oprimidos pelas violências do sistema colonial - os bichos do zoológico em É noite na américa e os indígenas Ayoreo-Totobiegosode em EAMI . A fuga dialoga com a constituição de uma sobrevivência errante, mas que ensaia novas configurações (Touam Bona, 2020). Em movimento, não podem ser capturados. Há, ainda nesses planos, tanto em Ana Vaz quanto em Paz Encina, uma atenção especial aos olhos, como se quisessem sugerir, assim, uma imagem que olha de volta e que ativa em nós, espectadores, memórias sensoriais, nos indagando sobre nossas próprias caminhadas. O uso de planos aproximados, além de evocar texturas e um campo de intimidade, também se relaciona com uma estratégia narrativa não linear que, a partir de blocos, constrói uma experiência mais tátil de contato com aquele território. Ao mesmo tempo, os corpos dos captores aparecem quase sempre fragmentados, como se estivessem se esquivando da câmera ou apontassem para uma desidentificação, uma impossibilidade de serem rastreados;

Figura 3: Frame de É noite na América, deAna Vaz
Fonte: arquivo da autora
Figura 4: Frame de EAMI, de Paz Encina.
Fonte: arquivo da autora
Figura 5: Frame de É noite na América, de Ana Vaz. Fonte: arquivo da autora
Figura 6: Frame de EAMI, de Paz
Encina Fonte: arquivo da autora

b) Duração dos planos: seja em EAMI ou em É noite na América, os planos longos, em geral parados, assumem uma importância notável, permanecendo numa mesma imagem pelo tempo suficiente para conceder aquela imersão no universo fílmico. É também uma estratégia de fluxo, de perceber os mínimos movimentos em uma cena em que aparentemente pouco poderia mudar. É o que acontece na sequência inicial de EAMI, em que alguns ovos de pássaro permanecem quase 9 minutos em tela em um plano fixo, e a coloração da imagem vai se transformando para instaurar uma sensação de passagem de tempo, de eras. Um procedimento similar é efetuado na cena final de É noite..., em que assistimos à queda de uma cachoeira por longos minutos, até que a imagem seja apreendida por sua duração (Bergson, 1999), e não pelo choque dos cortes;

c) Som e trilha sonora: outro recurso trabalhado em ambos os filmes e que ativa uma sensorialidade háptica (Marks, 2000) no espectador é o desenho de som, seja na mixagem ou na trilha sonora, um certo sopro parece se anunciar, como se houvesse algum tipo de invocação fantasmática, a presença de algo ou alguém espreitando. Em EAMI isso corrobora para abordar o desaparecimento, a fuga dos seres que habitam o território dos Charcos. Desse modo, o som também constrói a ausência. Vemos, por exemplo, uma série de imagens de ninhos e ovos, mas praticamente nenhum pássaro, no entanto, ouvimos de modo quase onipresente, o canto desses animais. Em um momento do filme, Asoja, a entidade mulher-deusa-pássaro, que se transmuta em qualquer corpo, vegetal, animal ou imaterial, e, nesta vida, encarnou em Eami, a criança que guia a narrativa, anuncia: “Eles ficaram com os nossos últimos sons e imagens da floresta”. Já no filme de Ana Vaz, a trilha sonora assinada por Guilherme Vaz (1948-2018), pai da artista e que, parece querer anunciar um alerta também espectral, como se nos instigasse a despertar de um sono profundo, aproximando-se da ficção científica e dos filmes de suspense. Atravessados pela paisagem e pela música que revela o assombro, compartilhamos com os animais um estado agudo de vigília: o ataque parece iminente, o caçador se torna caça, o algoz se converte em vítima. Petrificamos;

d) Uso de cores: por fim, outra técnica utilizada pelos dois filmes aqui analisados é o uso de filtros de cor que ativam desvios ao registro de visualidade escolhido por cada realizadora. É noite na América , filmado em rolos de 16mm vencidos com a técnica de noite americana (que transforma a luz do dia em noturna), subverte o imaginário do faroeste estadunidense, gênero que incorporou esta técnica amplamente e cuja principal temática envolvia a invasão de terras indígenas nos territórios norte-americanos. Desse modo, Ana Vaz subverte um recurso do cinema de espeta-

cularização hollywoodiano, difundido sob o regime anestético, incorporando-o de modo a inverter o jogo de tensão. Em seu filme, são os seres perseguidos que parecem comungar uma revolução secreta. A cor azul também predomina em frames que oferecem um choque, uma entrada em um campo sensório diferente. Enquanto em EAMI, filmado num registro mais naturalista, apesar do trabalho sensível de tratamento de cor que transmite sensações sobre o território - ora mais cálido, ora mais frio -, os filtros entram em momentos-chave da narrativa, evocando passagens de tempo que escapam aos minutos transcorridos em tela. O predomínio da cor vermelha também pode ser associado a espaços uterinos e internos, como a cena dos ovos nos primeiros minutos do filme, ou mais sombrios, como acontece em outras sequências que ativam uma visualidade háptica.

Fonte:

Figura 7: Frame de EAMI, de Paz Encina.
arquivo da autora

Considerações finais

Percorrer as fronteiras de uma terra machucada exige um corpo poroso (Ribeiro, 2021) as ressonâncias, conflitos e contradições que dela emanam. Enquanto processos de criação fílmica, para além de constituir no plano da imagem e no registro audiovisual sensorialidades contra-anestéticas, de que outros modos um filme pode acionar esta caminhada mais sensível pelas ruínas em que habitamos? Existem metodologias, formas de se engajar com os territórios que permitam que o próprio filme também agencie um fazer territorial? E quanto à pergunta, “o que quer uma imagem?”, será que ela está sendo ouvida propriamente quando realizamos uma análise fílmica centrada na mesma linguagem que já conhecemos? Essas são perguntas que mobilizam aberturas e que produzem faísca, fazendo com que os filmes permaneçam despertos, roçando nossas sensações e nos deixando desconfortáveis. As fronteiras estão sendo atravessadas, mas elas, como já foi anunciado, são vivas, e devem continuar em movimento.

Figura 8: Frame de É noite na América, de Ana Vaz. Fonte: arquivo da autora

Referências

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55 Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Um tempo em migração: desaparições ruidosas no filme

Cidade Pássaro

A time in migration: noisy disappearances in the film Shine Your Eyes

Daniela Nigri1

Resumo: Este artigo trata da dimensão temporal e da forma como a imagem reconfigura o espaço em Cidade Pássaro (2020). Discute-se a noção de ruído em diálogo com uma “imagem-tempo” construída neste universo fílmico. Ambientado em São Paulo, o filme de Matias Mariani articula um debate sobre a experiência urbana de comunidades migrantes. Nele, o desaparecimento do nigeriano Ikenna no Brasil desencadeia um percurso narrativo não linear, acompanhado pela tentativa de seu irmão de encontrá-lo.

Palavras-chave: Cidade; Imagem-Tempo; Ruído.

1. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: danimnigri@gmail. com. Currículo lattes: http://lattes. cnpq.br/2210188892951644.

Introdução

Com poucos diálogos em português e ambientado principalmente na cidade de São Paulo, Cidade Pássaro é uma coprodução entre Brasil e França, dirigida por Matias Mariani. A obra estreou em 2020 e foi exibida em festivais no mesmo ano, como a Berlinale, o Havana Film Festival e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme parte da atribuição dada ao músico nigeriano Amadi, interpretado pelo ator O.C. Ukeje, de deixar sua terra natal para encontrar seu irmão mais velho, Ikenna, interpretado por Chukwudi Iwuji. Essa jornada se altera conforme o personagem experimenta a cidade recém-conhecida, que revela descobertas sobre o irmão – entre elas, o fato de seu trabalho como professor de matemática ser apenas uma das versões imaginárias sobre sua vida no Brasil. Para abordar a desaparição do irmão e a criação de novos vínculos interculturais, o filme se inscreve em um tempo complexo e utiliza ruídos no encadeamento das imagens.

Ao acompanhar trajetórias pessoais que escapam aos limites dos Estados-nação, o longa-metragem incorpora reminiscências da Nigéria a partir do Brasil. O filme estabelece de forma assertiva uma relação entre o país de emigração e o de imigração, como duas faces de uma mesma moeda. De maneira semelhante, Sayad (1998) enfatizou a importância de que os estudos migratórios não se limitem a uma única perspectiva, nem concentrem suas análises apenas após a chegada dos sujeitos a um território estrangeiro. O autor observou que a vida de quem migra se estrutura em paradoxos – entre eles, a incerteza sobre o tempo de permanência fora da terra natal. A condição de afastar-se fisicamente do país de origem e, simbolicamente, do país de recepção provoca uma sensação de “dupla ausência”. Pode haver um estado provisório que se deseja prolongar, ou um estado duradouro vivido com sentimento de transitoriedade. Tais contradições se delineiam no filme pelas trajetórias de Amadi e Ikenna, ambas inscritas em um tempo complexo. Entre a Nigéria e o Brasil, o filme produz sensações ópticas e sonoras que não tratam apenas do deslocamento entre países, mas também da dimensão temporal decorrente da migração. É possível pensar em uma “imagem-tempo” (Deleuze, 2005) formada a partir de elementos de ruídos sonoros e imagéticos. Os aspectos sonoros, que se estendem às composições musicais, são centrais para a atmosfera fílmica e criam uma textura que expressa o clima urbano e o sentimento de ruptura. Os vínculos construídos pelos personagens diante das contradições do país descoberto se manifestam na costura de planos – como terraços, viadutos, jóqueis, salões de beleza, centros de acolhimento, casas noturnas, galerias e ruas. A cidade de São Paulo se apresenta como um agente ativo em uma constelação de espaços vividos por migrantes, sobretudo do Sul Global.

1 - Dobras em um tempo não linear

Ora em avenidas transitadas por desconhecidos, alheios uns aos outros, ora em comércios de rua, o filme constrói uma São Paulo a ser descoberta pelo personagem que chega de um país africano. É notável que após sua chegada ao Brasil, Amadi se coloca em cenas erráticas pela cidade. Os planos que mostram o personagem afetado pelo inesperado contribuem para uma trama que não segue a temporalidade estritamente linear. Sem um avanço narrativo significativo, há um conjunto de cenas que provoca a contemplação. Cria-se uma sensação de tempo independente da ação e do movimento, que não se limita à sequência de eventos, mas compõe uma realidade autônoma.

Embora se observe o esforço de Amadi em procurar seu irmão, as diferentes cenas não se baseiam no resultado da busca, mas na experiência sensorial da procura. Nas sequências em que a deambulação substitui ações e reações mecânicas, é possível pensar na formação de uma “imagem-tempo” (Deleuze, 2005). Enquanto no cinema clássico, com narrativas lineares, predominavam a “imagem-movimento” e a “imagem-ação”, Deleuze (2005) observa que essa lógica se subverteu a partir da Segunda Guerra Mundial. A apresentação direta do tempo no cinema revela a falência dos sistemas sensório-motores, decorrente da descrença dos personagens na ação mecânica, e gera uma “imagem-tempo” em que o movimento emerge do tempo. Entre as características dessa mudança estão a opção por planos longos, o foco na subjetividade, a descentralização da trama e a ambiguidade temporal. Em Cidade Pássaro, há cenas que evidenciam o deslocamento da ação para a contemplação. O tempo singular se revela com uma estética da espera, que foge à linearidade e se conecta ao percurso de Amadi, tensionado por memórias de além-mar e pelas novas experiências.

Para Pelbart (1996), à medida que o tempo se torna autônomo e deixa de se submeter ao eixo do movimento, aos presentes em cena ou ao encadeamento sensório-motor, ele promove “movimentos aberrantes”. Um novo modelo se estrutura no cinema por meio do encadeamento original entre os planos, que, sem obedecer sequências lógicas, se articulam por uma ligação outra. Em Cidade Pássaro, há trechos em que a montagem por composição cria um tempo aberto, capaz de comunicar um passado e um futuro. O encadeamento dos planos abrange a dimensão simbólica do novo, as reminiscências da Nigéria e revela a complexidade de um tempo emancipado.

A base para pensar o tempo emancipado no cinema está no pensamento de Bergson (1999), que compreende o universo em permanente movimento. Nessa lógica, o tempo é um operador da

diferença, concebido a partir de passagens e intervalos, e não mais pela relação entre dois pontos no espaço. Para Bergson, a percepção da matéria – um conjunto de imagens que preexistem à consciência – mede o poder refletor do corpo e é condicionada pelo hábito. Para além das reações comuns do esquema sensório-motor, o corpo pode se deparar com situações que produzem uma experiência singular. Quando um sujeito lida com o desconhecido, aproxima-se da jornada migratória apresentada no filme, que envolve não apenas a língua, mas todo um sistema simbólico capaz de reinventar as reações para além do habitual.

O plano de abertura do filme se repete como uma intervenção narrativa, que se distancia dos encadeamentos lógicos. Esse primeiro plano, aberto e com câmera fixa, mostra uma paisagem com tons terrosos e uma vegetação que se movimenta (figura 1). Na Nigéria de 1988, duas crianças, Amadi e Ikenna, correm pelas ruas de terra batida em direção à câmera. Um espaço fechado e pouco iluminado é exibido na sequência seguinte, em um instante em que um fixa o olhar no outro e cria-se um elo. O momento é encapsulado sob o título em inglês Shine Your Eyes , que antecipa um estado de alerta ao que virá. Um novo plano é posto na sequência com a imagem no Brasil de 2019, onde São Paulo se revela através de um portão que se abre. Diferentes cortes emulam planos com pessoas em caminhos opostos, acompanhadas pela

Figura 1: Duas crianças correm em direção à câmera. Frame de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

pulsação de sons da metrópole, além de uma trilha musical. A chegada de Amadi ao Brasil, com instrumentos musicais em uma mão e a mala na outra, marca uma mudança na montagem, que, em vez de seguir uma lógica premeditada, se direciona à temporalidade dos personagens. No desenrolar narrativo, a cena inicial da Nigéria se repete em um sonho, com uma intervenção nos frames: a cor verde se torna rosa e o movimento retrocede. Essa alteração possibilita inscrever um tempo complexo na imagem (figura 2).

2 - Desaparecimentos ruidosos no som e na imagem

O trabalho sonoro do filme vai além da música, que, embora central, é utilizada em momentos específicos. Os ruídos da cidade acompanham as imagens da ausência de Ikenna e de uma cidade retratada com sons diegéticos, como carros, portões se abrindo e computadores. Os sons não diegéticos, como efeitos discordantes, enfatizam certo suspense. Mais além do realismo, o ruído intensifica o estado psicológico do personagem em sua imersão no ambiente urbano, e amplia a sua solidão. Chion (2008) utiliza o termo “audiovisão” para descrever casos como este, em que o som e imagem se transformam mutuamente, criando uma experiência inseparável.

Figura 2: Duas crianças correm. Frame de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

O formato da imagem em 4:3, próximo ao quadrado, reforça as linhas verticais e a arquitetura modernista de São Paulo. Embora o enquadramento da cena acima destaque os prédios e mantenha os corpos em contraluz, o diálogo contrasta com o que é delimitado pela câmera e convoca a imaginação diaspórica para o fora de quadro (figura 3). Nela, Amadi conversa com seu parente, residente no Brasil, sobre a desaparição de Ikenna. O parente relata que, após perder dinheiro, o matemático desejou construir um instrumento musical que apenas os Igbos entenderiam. Amadi então evoca memórias da infância, quando um sacerdote foi à sua casa jogar búzios e afirmou que Ikenna era seu antepassado, reencarnado nele. Uma simbiose entrelaça os irmãos, que leva um a se afastar do outro, e o filme segue na busca pela impossibilidade desta união.

A desaparição de Ikenna é ruidosa não apenas pelo trabalho sonoro junto às imagens, mas pelos rastros deixados por ele, evidenciados pelo encadeamento por vezes desconexo dos planos. Em momentos em que Amadi se depara com vestígios do irmão, faz-se o uso de uma montagem descontínua e experimental. A noção de ruído pode ser compreendida aqui para além do campo sonoro, e se refere à junção de imagens que não seguem uma lógica e não distinguem forma de conteúdo. “O ruído está na combinação de imagens ‘desconexas’, e no exercício de usar o filme para pensar sobre o cinema, ou seja, num gesto reflexivo. As imagens apontam para significados que estão além de seu caráter descritivo” (Wanderlei, 2021, p. 34). No filme, há sequências em que o ruído permite misturar temporalidades ao interligar imagens sem conexões evidentes. O resultado é uma sucessão de planos autônomos e cortes

Figura 3: Diálogo em prédio. Frame de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

irracionais. Essas passagens são apresentadas em sequências com lapsos de memória, esboços científicos e interferências da sonoridade urbana, que emulam a presença de Ikenna como um rastro.

São combinadas técnicas e linguagens para transmitir a desaparição, como quando Amadi descobre que Ikenna, em vez de ser professor de estatística, estava realmente interessado em física quântica e em cálculos para prever eventos do mundo. Um exemplo ocorre quando Amadi localiza um computador que acredita ter pertencido ao irmão, e encontra nele arquivos sobre termodinâmica. Os frames da tela do computador intercalam teorias, cálculos e notas musicais. A manipulação computacional flerta com a ficção científica ao combinar um visual futurista, tecnologias e mundos imaginários. Há uma estética que demonstra que os sistemas não são livres de ruídos, e uma voz em off enuncia números de forma desordenada, e cria uma atmosfera enigmática. O ruído aparece no filme como “aquilo que obstaculariza o funcionamento do sistema, mas que ao mesmo tempo também o torna possível” (Felinto, 2013, p. 69), sendo igualmente evocado como vetor de criação artística. Com sentidos em direções contrárias – desvio, falha e heterogeneidade – o ruído é parte da materialidade, um espaço de possibilidades a ser visto, ouvido e sentido. “É plural, complexo, uma espécie de devir originado internamente ao sistema ou aparato no qual se manifesta, o que nos leva de saída a afastar a noção de qualquer pureza (sonora ou não) que venha a ser maculada pelo ruído” (Wanderlei, 2021, p. 19).

Em outra sequência deste percurso, a câmera ensaia movimentos dentro de uma casa noturna, enquanto ouvimos o codinome de Ikenna ser mencionado, quando um homem comenta sobre ele ser obcecado pelo tempo. Essa revelação é um disparador para a manipulação de imagens com novas decodificações que, através de um sonho de Amadi, são incorporadas (figuras 4, 5, 6). É também nesse contexto que a cena do início do filme é remontada, com o mesmo trecho da corrida das crianças na Nigéria, mas em direção

Figuras 4, 5 e 6: Homem corre em um corredor; Corrida de cavalos; Dados. Frames de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

contrária. Como linhas de fuga, os meninos correm para trás, e a imagem se intercala com fórmulas, cavalos e dados (entre 41min28s e 41min46s).

Além de sequências que permitem novas interações simbólicas, a equipe do filme reúne diferentes nacionalidades, como os dois irmãos interpretados por atores nigerianos, a roteirista nigeriana Chika Anadu e o compositor dinamarquês Flemming Nordkrog. No que se refere à língua, o filme apresenta diálogos em português, inglês, igbo, húngaro e chinês. À diversidade linguística soma-se a escolha do diretor de trabalhar com a troca de idiomas não apenas conforme o diálogo entre atores de diferentes origens, mas também ao longo da narrativa, com o português se tornando mais frequente na segunda metade do filme.

3 - O recriar dos vínculos interculturais

Cidade Pássaro convoca o espectador a descobrir a cidade e se constitui enquanto contranarrativa ao recriar vínculos interculturais. O filme trava uma disputa ética e estética ao ampliar uma realidade migratória de comunidades que pretendem existir no espaço urbano como as demais. A Galeria Presidente, situada no centro da cidade, é destacada na narrativa como um espaço vivo e frequentado por migrantes de países como Nigéria, Senegal, Angola e República Democrática do Congo. Conhecida também como Galeria do Reggae, o espaço reúne diferentes ritmos musicais que permitem um vínculo entre os frequentadores. Embora também voltada para o consumo, com câmeras de vigilância, a galeria apresenta uma dinâmica com varandas e janelas que se aproxima da exterioridade (figura 6).

A comunicação entre comunidades migrantes ocorre nos limites da galeria. Lembramos que “se a comunicação é um processo de produção de sentido, a comunidade é o locus em que esse sentido é construído, transmitido, trocado, codificado e decodificado” (Elhajji, 2023, p. 180). A comunicação está no filme não apenas nas dimensões do falar e do fazer, mas também na construção de novos vínculos. O fato da galeria promover um novo elo no país estrangeiro remete à noção de philia enquanto predisposição à sociabilidade. Sodré (2014) ressalta que a tradução básica da palavra do antigo grego é amizade, amor, mas pode significar tanto vizinhança quanto partilha. O laço comunicativo da philia não se restringe à relação, mas à união dos opostos. No filme, essa união se alimenta da cultura e da memória do continente africano, sendo capaz de reinventar os laços de sociabilidade nos encontros na Galeria Presidente.

A cidade atua também como uma personagem no filme, evidenciada pelos planos que mostram suas construções de concreto, as galerias, a Ocupação 9 de Julho e os restaurantes diaspóricos. Quando a cidade assume o papel de “personagem”, sua presença vai além do cenário: ela se torna uma força ativa que afeta o tom, os eventos e o desenvolvimento dos personagens. A cidade deixa de ser um pano de fundo e ganha vida com características para intensificar conflitos ou oferecer refúgio. O caso específico da Galeria Presidente é apresentado como um lugar onde os seus frequentadores se sentem mais próximos de casa.

Outros filmes contemporâneos também partem de São Paulo para tratar da temática migratória. É o caso do longa-metragem Era o Hotel Cambridge (2016) de Eliane Caffé e dos curtas-metragens Por Trás da Pele (2018) de Cristian Cancino, Liberdade (2018) de Vinícius Silva e Pedro Nishi e Galeria Presidente (2016) de Amanda Gutiérrez Gomes. Este último, se passa no mesmo espaço de trabalho e convivência que mobiliza a experiência de Cidade Pássaro São filmes inclinados ao que poderia ser chamado cinema de imigração, nos quais “a questão da identidade é ao mesmo tempo individual, comunitária e transnacional” (Bamba, 2011, p. 178). Bamba (2011) trata do cinema de imigração ao discutir especificamente o caso do cinema feito por membros da terceira geração de migrantes da Argélia, Tunísia e Marrocos na França. Um cinema que não é nem magrebino, nem francês, nem africano, e que emerge dos deslocamentos pós-coloniais.

Figura 6: Galeria Presidente. Frame de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

Os dilemas e contradições desses filmes podem estar presentes na própria nacionalidade da produção. No caso de Cidade Pássaro, trata-se de uma coprodução entre o Brasil e a França, e a narrativa remonta trajetórias que não se encerram nesses países. Isso ocorre quando a busca de Amadi o leva a uma corrida de cavalos no Jockey, em uma zona elitizada da cidade, onde conhece um homem que apresenta uma outra biografia de Ikenna. Esse novo personagem vive com o pai húngaro, com quem não consegue mais dialogar. O homem menciona que o pai não o ensinou húngaro quando criança para que não fosse chamado de “gringo”, e a incompreensão é reinserida como um alicerce narrativo. Em cenas dessa casa, o pai fala sua língua materna enquanto Amadi ensaia notas no violão. A passagem reforça a opção por poucos diálogos em português e a sensação de deslocamento simbólico na cidade brasileira.

Já as memórias da Nigéria, também são recriadas no filme na Casa do Imigrante. Quando Amadi chega ao local, conhece outros homens que compartilham uma roda musical com guitarra e canto (figura 7). Apesar do rugido dos motores e da ressonância do concreto do viaduto, ambos permanecem e se comunicam com a música. Essa fusão de sons diegéticos, urbanos e musicais, intensifica os elementos que compartilham o mesmo espaço físico na narrativa. Os elementos extralinguísticos que vão além das palavras surgem a partir de um estado de (re)territorialização dos instrumentistas.

Figura 7: Encontros musicais. Frame de Cidade Pássaro (Matias Mariani, 2020).

Em seu percurso, Amadi atualiza memórias antigas sobre Ikenna, quando ambos brincavam na casa de seu bisavô, onde tinham talismãs. Marks (2000, p. 80) discute um cinema independente transnacional e argumenta que o mesmo pode ser considerado não como um simulacro, mas como um artefato material da migração transnacional 2. A autora propõe uma reflexão sobre a noção de aura para discutir como os objetos são capazes de codificar processos sociais. O caso da rememoração do talismã é apresentado no filme como um objeto intergeracional, por meio de reminiscências que reanimam a materialidade que atravessa continentes. Trata-se da memória que não se encerra em si, mas é evocada a partir da experiência no país estrangeiro, e permite a comunicação e a circulação de ideias.

O título do filme sugere o foco em uma cidade móvel, com a figura de um pássaro, e evoca uma viagem cinematográfica que se prolonga no tempo. Além da metáfora do voo, quando os dois irmãos finalmente se encontram após desaparições, uma música se destaca como a possibilidade de tensionar o vínculo entre eles. O trecho, evocado em outras passagens, conta com as seguintes palavras: “O pássaro Eneke disse, que, desde que os homens passaram a mirar sem errar, ele aprendeu a voar sem pousar”. A letra da canção é retirada do livro O Mundo se Despedaça , de Chinua Achebe, publicado em 1958, e trata do mundo nigeriano afetado pela colonização britânica.

Pensar as migrações a partir dessa perspectiva crítica possibilita entender como elas desafiam estruturas de poder herdadas do colonialismo, bem como discutir as exclusões que persistem nas sociedades de destino. No filme, o contraste entre os usos da cidade é evidenciado em cenas como a em que Amadi, do alto de um prédio, observa uma São Paulo vista de cima e afirma que a cidade é para brancos. Assim como esse diálogo, a experiência dos personagens diante do racismo nas instituições urbanas está diretamente relacionada à “colonialidade de poder”, que persiste como um rastro das relações coloniais e continua a influenciar as dinâmicas sociais, políticas e econômicas dos países que foram colonizados.

Embora a dominação política e econômica direta da colonização europeia tenha, talvez, terminado nas Américas no século XIX e, no século XX, na África e na Ásia, Quijano (1992) discute como essas relações foram ressignificadas. O conceito de colonialidade refere-se à manutenção de uma estrutura de dominação que independe das práticas extintas do colonialismo. Na América Latina e em outras regiões, a catástrofe demográfica foi acompanhada

2.Trecho original: “I go on to argue that cinema may be considered not a simulacrum but a material artifact of transnational migration. This argument involves a reconsideration of the notion of aura as a way to talk about how objects encode social processes”.

por processos persistentes de colonização cultural e do imaginário. O complexo da racionalidade e da modernidade impôs-se como paradigma eurocêntrico de conhecimento, sustentando a ideia de que “só a cultura europeia é racional, pode conter ‘sujeitos’” (Quijano, 1992, p. 6). Essa estrutura resulta em reducionismo teórico e na concepção de existir um macro sujeito histórico, relegando as demais culturas à condição de objetos de conhecimento ou dominação.

Em atrito direto com as cicatrizes coloniais da cidade, o personagem é afetado, mas também afeta as suas ruas. Escutamos, ao fim, a voz em off de Amadi explicar à sua mãe, que está em outro continente, a sua decisão por se prolongar no país: “é como se ao jogar os búzios durante o meu Igbo-Agu, um pássaro estivesse no céu, lá no alto. Com um olho ele observava o resultado do jogo, e com o outro vislumbrava bem longe uma cidade invisível do outro lado do oceano. E agora eu estou aqui’’. Embora não haja um motivo inicial para seguir esse caminho, as vias da cidade revelam uma rota não premeditada que faz surgir um novo ethos migrante no personagem.

Considerações finais

A escolha do encadeamento dos planos, assim como o caminhar pela cidade fora do esquema sensório-motor, permite que o movimento decorra do tempo, e não o contrário. Por meio de um movimento estético de deslocamento, a narrativa se situa entre países e também é tensionada pela simultaneidade de tempos múltiplos. A noção de “imagem-tempo” soma-se ao conceito de ruído – tanto sonoro quanto relacionado ao embaralhamento narrativo – como elementos estéticos que, no filme, abordam a experiência migratória entre países colonizados, como Brasil e Nigéria.

Quando a busca de Amadi pelo irmão se iguala à investigação estética do filme, a separação entre forma e conteúdo se dissolve. À medida que os rastros tecnológicos do irmão se tornam evidentes, o virtual se manifesta como potencialidade por meio dos ruídos, tanto sonoros quanto pela montagem experimental. Conforme o músico percorre o espaço recém-descoberto sem encontrar o que procurava, torna-se também um migrante. Neste mosaico fílmico, seis idiomas distintos são falados, e os espectadores se tornam estrangeiros ao se relacionarem com essas imagens.

O filme aborda paradoxalmente desejos comuns e, como disse o diretor em entrevista, realiza um processo espiralado para dentro da cidade. Mesmo quando Amadi não sabe como reagir, há uma agência em sua jornada, como a decisão de se prolongar no novo país. A partir de um tempo complexo, o filme também aponta para o futuro, e adota uma temporalidade própria ao incorporar os sentidos do personagem.

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e políticas do sentir latino-americano

Na terra de José Ninguém com Rosângela Rennó: (des)/(re) construção

In

Mr. Nobody’s land with Rosângela Rennó: (de)/(re) construction

Resumo: O presente artigo propõe analisar o papel da montagem audiovisual associada à montagem espacial na construção da videoinstalação Terra de José Ninguém, de Rosângela Rennó (2021), que trata de questões individuais e coletivas do Brasil contemporâneo. A obra é composta por quatro foto-filmes exibidos em dois pares em telas dispostas em eixos cruzados. Às imagens, soma-se o áudio emitido por cinco fontes sonoras distribuídas pelo ambiente expositivo, dissociadas da localização das telas.

Palavras-chave: Videoinstalação; Cinema expandido; Edição audiovisual.

1. UFRJ. Email: fernandabastos1@ gmail.com. Currículo lattes: http:// lattes.cnpq.br/2516206621872211.

O presente artigo propõe analisar o papel fundamental da montagem audiovisual associada à montagem espacial na construção da videoinstalação Terra de José Ninguém, de Rosângela Rennó, elaborada para a exposição retrospectiva da artista, Pequena ecologia da imagem, realizada na Pinacoteca de São Paulo, de outubro de 2021 a março de 2022.

Rosângela Rennó é uma artista brasileira, nascida em Minas Gerais, que vive no Rio de Janeiro. Sua obra questiona o destino e o uso das imagens, abordando temas como memória-esquecimento, saturação imagética na contemporaneidade e obsolescência de materiais fotográficos e de afetos. Ela trabalha intensamente com material descartado: fotografias, álbuns de fotografias, slides ou mesmo equipamentos, geralmente, garimpados em arquivos públicos e privados e em feiras de troca e de refugo. Rennó ressignifica algumas imagens e materiais, criando novas narrativas para imagens abandonadas ou novas imagens para histórias abandonadas.

Terra de José Ninguém é uma videoinstalação composta por quatro foto-filmes: A vida de José Ninguém, José Ninguém se pergunta , O grito da terra e A vida em construção

Os filmes são exibidos em pares, em telas dispostas frente a frente em eixos cruzados, somadas ao som emitido por cinco fontes distribuídas pelo ambiente, mas dissociadas da localização das telas. Então começamos com A vida de José Ninguém e José Ninguém se pergunta, que têm 26 min. de duração cada um, nas telas 1 e 2. Ao fim desses, começam O grito da terra e A vida em construção, nas telas 3 e 4. Os filmes 3 e 4 têm 6 min. de duração cada um. Quando terminam, voltam os dois primeiros e assim sucessivamente, em looping

Em 2016, a artista ganhou dez conjuntos de material audiovisual educativo utilizado nos colégios Salesianos, nos anos 1970/80, para catequese de jovens e adultos Durante a pandemia, arrumando o ateliê, reencontrou esse material e interessou-se especialmente por um intitulado: “O homem que não era homem”.

Os conjuntos trazem, pelo menos, dois roteiros diferentes. Um, de narrativa individual que, no caso de O homem que não era homem, conta a história de um indivíduo desmotivado que toma uma espécie de tônico chamado “personalina” e consegue se engajar no mercado de trabalho, atender a determinados padrões sociais. Torna-se bem-sucedido e feliz. O segundo roteiro, voltado para a coletividade, trata da luta da classe trabalhadora, rural e urbana, contra a desigualdade social que marcava o Brasil da época.

O homem que não era homem atraiu a atenção da artista porque, embora as imagens retratem um modo de vida característico do século XX, uma vez que o protagonista lê jornal impresso, tem um relógio despertador de ponteiros e um rádio na cabeceira da cama, os problemas que elas apontam seguem atuais, ou seja, algumas metas estabelecidas para o futuro da juventude dos anos 1980 não foram alcançadas. Segundo Rennó: “Nada mudou, embora pareça que tudo mudou. Mas também poderia ser... Tudo mudou, ainda que nada pareça mudado. 2

A partir dessa reflexão, ela cria os foto-filmes preservando a ideia das duas narrativas: a individual com A vida de José Ninguém e José Ninguém se pergunta, a partir dos roteiros O homem que não era homem e As grandes perguntas do homem; e a coletiva, com O grito da terra e A vida em construção, que são os títulos originais dos audiovisuais.

A vida de José Ninguém, apresenta as imagens do homem que alcança o sucesso, em ordem invertida e com elementos atualizados via colagem digital3: substituindo a revista que o personagem lê por um tablet , por exemplo.

Figura 1: Frames extraídos de A vida de José Ninguém referentes ao Homem que não era homem cedidos pela artista.

2.Frase do projeto original cedido para este artigo pela artista.

3.A colagem foi realizada por Isabel Escobar que é artista visual e editora.

2: Frames extraídos de A vida de José Ninguém cedidos pela artista.

Figura

O slide original aparece e, por meio de uma fusão lenta, se atualiza no modificado, enquanto Rennó narra as angústias do José Ninguém do século XXI, que, ao contrário de seu antepassado, tem uma vida estruturada, mas gradualmente se dilui no mar de informações, estímulos e demandas provenientes de todas as telas presentes na vida contemporânea. José Ninguém vai se perdendo em meio a seus muitos questionamentos, exibidos simultaneamente, numa tela vertical, no filme José Ninguém se pergunta, composto por imagens de 254 capas de livros, cujos títulos são perguntas. Elas se substituem por meio de efeitos eletrônicos característicos dos anos 1980, período da popularização do vídeo analógico, tais como: wipe, íris, virada de página entre outros.

Ao fim do primeiro par de filmes, outras duas telas, posicionadas de modo a formar um eixo perpendicular ao primeiro, acendem-se para tratar dos problemas sociais brasileiros em O grito da terra e A vida em construção. Em cada filme, Rosângela intercala 42 fotografias originais, do material dos Salesianos, a 42 fotografias atuais, majoritariamente, oriundas do arquivo do coletivo Mídia Ninja e do projeto #rioutópico 4 desenvolvido por ela, no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, entre 2016-18.

As fotografias atuais substituem as originais por meio de um tipo de fusão chamado multiply, no qual as duas imagens bem nítidas enquanto coexistem, de modo a reforçar o aspecto comparativo entre o Brasil antigo e o Brasil atual. Incorporando imageticamente a reflexão inicial: “nada mudou, embora pareça que tudo mudou. Mas também poderia ser... Tudo mudou, ainda que nada pareça mudado”, já que os temas abordados em O grito da terra dos anos 1980 são a concentração da posse da terra, os conflitos provocados pela disputa da terra, os problemas enfrentados pelos povos originários, a quantidade de pessoas sem-terra e/ou sem-teto.

4.Página do projeto #rioutopico: https://ims.com.br/exposicao/rioutopico/. Acesso em: 20 mar. 2025.

Figura 3: Frames extraídos de José Ninguém se pergunta cedidos pela artista.

O material educativo de A vida em construção procurava provocar nos jovens o despertar para uma vida mais plena e segura, com garantia de direitos sociais, cultura, fraternidade e igualdade de oportunidades para todos.

Figura 4: Frames extraídos de O grito da terra cedidos pela artista.

Figura 5: Frames extraídos de A vida em construção cedidos pela artista.

A trilha sonora da videoinstalação é composta pelo grupo O Grivo5 e acompanha os seis minutos de apresentação do eixo 2 da obra de Rennó, misturando de forma caleidoscópica trechos de músicas, ruídos e falas.

A montagem/edição tem um papel fundamental na construção de Terra de José Ninguém. No foto-filme 1, ela aparece primeiramente nas colagens eletrônicas que atualizam as imagens do dia-a-dia de José Ninguém, dentro do enquadramento de cada cena. E, principalmente, na narrativa invertida pela montagem, quando Rosângela, ao se deparar com a sequência de imagens original, 5.www.ogrivo.com

percebe que talvez o destino do protagonista não tenha se cumprido, e reorganiza as imagens de modo que o José Ninguém atual, inicialmente bem-sucedido, vê sua vida se desestruturar material e emocionalmente. No foto-filme 2, a utilização dos efeitos típicos dos anos 1980 gera uma certa vertigem temporal, por retomar uma estética muito característica do início da edição eletrônica, nas ilhas Betacm e U-matic. Os efeitos também sugerem diluição: a diluição de uma pergunta na outra, de uma imagem na outra, do observador nas imagens e do próprio José Ninguém, perdido entre tantas dúvidas e desejos.

Já no eixo 2, o tipo de fusão escolhido e sua duração fixam a imagem misturada por mais tempo do que mostra as originais separadas, indicando que nós estamos, o Brasil está, ainda, misturado naquele passado, preso a algumas questões da década de 1980. Além disso, os quatro vídeos apresentados são foto-filmes, ou seja, imagem-fluxo construída por imagens fixas, e é a montagem que lhes atribui duração e sequencialidade. É na montagem que elas se tornam filme.

Por último, acrescenta-se a camada do espaço. A montagem espacial, que foi bastante explorada no período inicial da videoarte, desdobra as imagens no ambiente. Nessa videoinstalação, bancos de madeira, localizados no ponto de cruzamento entre as quatro telas, sugerem o lugar do espectador ou espectadora, que como o José Ninguém contemporâneo, não é capaz de visualizar tudo o que lhe é mostrado simultaneamente nas duas telas, nem de discernir todos os sons que cercam seus ouvidos. É preciso escolher para onde olhar tendo a consciência da escolha: a concentração em algo é necessariamente a desatenção no entorno. Então, a forma do trabalho afirma o problema que ele traz. No projeto, Rennó descreve assim:

As superposições pretendem produzir uma cacofonia visual e sonora, através da saturação de imagens e sons que, às vezes se complementam, outras, se anulam, emulando a dificuldade, hoje, em relação ao diálogo, à comunicação, à clareza dos objetivos, à que caminhos percorrer, chegando até a ineficácia de certos discursos da virada do século XXI. 6

No livro Suspensões da percepção, Jonathan Crary (2013) revela como a atenção tornou-se um objeto de estudo fundamental no processo de modernização da subjetividade, na segunda metade do século XIX. O autor trata da cientificização da subjetividade e da quantificação de sensações e percepções que delineavam um novo campo de pesquisa de onde se originam a

6.A autora teve acesso ao projeto da obra em contexto profissional.

Neurologia, a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise. De acordo com ele, a atenção tornou-se “um modo impreciso de designar a capacidade de isolar seletivamente alguns conteúdos de um campo sensorial em detrimento de outros, a fim de manter um mundo ordenado e produtivo” (Crary, 2013, p. 40). Isso contribui para a lógica cultural do capitalismo que naturaliza o ato de mudarmos nossa atenção de uma coisa a outra rapidamente. Crary acrescenta:

Inovadores corporativos como Stephen Jobs, Bill Gates, Andrew Grove são participantes tardios desse mesmo projeto histórico de perpétua racionalização e modernização. No final do século XX, assim como no final do século XIX, a administração da atenção dependia da capacidade de um observador se ajustar à contínua reconfiguração das formas de consumo do mundo sensorial. (Crary, 2013, p. 56)

A exposição na qual o José Ninguém foi apresentado pela primeira vez intitula-se Pequena ecologia da imagem, que é uma fusão dos títulos dos textos “A pequena história da fotografia”, de Walter Benjamin, e “Ecologia da informação: por que só a tecnologia não basta para o sucesso na era da informação”, de Thomas Davenport, que são pilares ou motores de algumas obras de Rennó. Já a videoinstalação tem forte influência do livro “Ideias pra adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, que aparece n’O grito da terra, na fotografia icônica de seu discurso da Assembleia Constituinte, em 1987, em que Krenak pintou o rosto com tinta preta de jenipapo em sinal de luto pelos povos originários, pouco contemplados na nova lei do país.

O título deste artigo, “Na terra de José Ninguém com Rosângela Rennó: (des)/(re)construção”, refere-se ao gesto estético-narrativo da artista que desconstrói a narrativa construtivista dos anos 1970/80, subvertendo-a de modo a evidenciar a continuidade, ou mesmo o agravamento, de questões como a desigualdade social, a opressão à classe trabalhadora, a medicalização da infelicidade ou da insatisfação, além de identificar e denunciar certos discursos de perpetuação de poder.

A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.[...] Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. (Krenak, 2020, p. 101 e 110)

Como espectadora, editora e pesquisadora da obra, identifico outras conexões filosóficas. Primeiro com o conceito, de Hans Ulrich Gumbrecht, de “amplo presente”, que seria a época em que vivemos, imersos em imagens digitais do passado e temerosos do futuro, por considerá-lo carregado de prognósticos assustadores. A tese central do alemão é de que ultrapassamos o cronótopo histórico moderno e vivemos um novo cronótopo, nomeado por ele de amplo presente.

O cronótopo moderno é baseado numa consciência histórica, que se imagina num tempo linear, em que o futuro seria como um horizonte evolutivo, repleto de boas possibilidades. Mas, segundo Gumbrecht, esse já não sustenta a experiência contemporânea, surgindo, assim, um novo cronótopo, no qual o futuro parece uma dimensão fechada a qualquer prognóstico e se aproxima quase como uma ameaça, trazendo emergência climática, guerras nucleares, etc. No novo cronótopo, o passado inunda o presente por meio da tecnologia informacional e da memória eletrônica automatizada, capaz de armazenar uma quantidade inimaginável de informação

Então, de acordo com o filósofo, estamos entre os passados que nos engolem e o futuro ameaçador, vivendo um presente de simultaneidades que se expandem, sendo cada dia mais difícil excluirmos do tempo de agora qualquer tipo de moda ou música, das últimas décadas. O amplo presente oferece demasiadas possibilidades, o que dificulta a definição de seus contornos (Gumbrecht, 2015).

Como exemplo de uma contradição trazida pelo novo cronótopo, temos a obsolescência da tecnologia e da própria informação. Gumbrecht usa justamente a fotografia, tema constante na obra de Rennó, e que, como ele ressalta, atualmente é produzida e arma-

Figura 6: Frames extraídos de A vida de José Ninguém cedidos pela artista.

zenada aos milhares, mas raramente, torna a ser vista ou acessada, convertendo-se rapidamente em arquivo “morto” num HD ou numa nuvem.

Como reações de resistência, ele identifica o que chama de “existencialismo ecológico”: os movimentos sustentáveis e ecológicos de proteção ao meio ambiente, a luta pela preservação das culturas indígenas, a popularização da tatuagem e outras práticas de autoagressão como piercings, as viagens turísticas de experiências e aventura, a celebração da memória e de sítios históricos, bem como o aumento do valor atribuído aos esportes, à dança e às performances na arte contemporânea. Todas são experiências de intensidade com o corpo e reconciliação com a terra como um lar.

A videoinstalação Terra de José Ninguém dialoga com todas essas questões: a da presença e da experiência diante da obra de arte; o ruído que a profusão de imagens e sons que nos cercam atualmente causam em nossa atenção; a demanda dessa atenção; a implicação do corpo, da percepção e das sensações diante da demanda e nossa capacidade de assimilação e reação.

Criei uma nova ficção para um indivíduo que se chama José Ninguém. Ele é José, não um Zé. Só que ele tem uma dúvida. Vai procurar ajuda científica, que dá para ele dois tipos de tratamento: ou ele toma “Amnesilax” ou “Memorilina”. Os dois têm efeitos colaterais, nenhum diagnóstico é categórico, ele tem que escolher. Só que ele não escolhe e a vida dele continua igual. É triste, mostrei para amigos que falaram que é deprimente. (Rennó, 2021)7

7.Na entrevista Os tempos entrelaçados de Rosângela Rennó. Disponível em: https:// artebrasileiros.com.br/arte/ entrevista/rosangela-renno/. Acesso em: 20 mar. 2025.

Figura 7: Frames extraídos de A vida de José Ninguém.

Referências

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

FATORELLI, Antonio. Fotografia contemporânea: entre o cinema, o vídeo e as novas mídias. Rio de Janeiro: Senac, 2013.

GONÇALVES, Osmar. (Org.). Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Circuito, 2014.

GUMBRECHT, Hans U. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

HIRSZMAN, María. Os tempos entrelaçados de Rosângela Rennó. Arte!Brasileiros. Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/ arte/entrevista/rosangela-renno/. Acesso em: 20 mar. 2025.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MACIEL, Katia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.

MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: SENAC, 2008.

NOVAES, Bárbara B. A presença e a materialidade da comunicação. Revista Eco-Pós, v. 20, n. 2, p.359-371, 2017. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/12497. Acesso em: 14 mar. 2025.

PARENTE, André. Cinemáticos. Rio de Janeiro: Editora +2, 2013.

PARENTE, André. Moving movie – por um cinema do performático e processual. In GONÇALVES, Osmar. (Org.). Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Circuito, 2014.

VOLZ, Jochen. Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Entre seres, mundos, imagens: o invisível na experiência sensível

Between beings, worlds, images: the invisible in the sensitive experience

Resumo: Este artigo propõe um diálogo entre formas de imagem que operam distintos encontros entre os viventes e o mundo: os seres-imagens da cosmologia Yanomami habitam a Terra-Floresta onde tudo vive e tem alma; o ser das imagens nasce no mundo onde se distinguem sujeitos e objetos. Obras cinematográficas, literárias e fotográficas são trazidas à cena para pensar como as imagens também podem ser meios de encontro com o mundo invisível, criando encontros que se dão para além da materialidade dos corpos.

Palavras-chave: Imagem; Experiência sensível; Invisível.

1. UFMG. Email: paulahuven@ yahoo.com. Currículo lattes: http:// lattes.cnpq.br/9740073386797462.

Não se olha a imagem como se olha um objeto.

Olha-se segundo a imagem.

Maurice Merleau-Ponty

Figura 1: Natureza Secreta (registros da instalação site specific). Paula Huven. Fonte: Arquivo pessoal.
Figura 2: Natureza Secreta (díptico fotográfico). Paula Huven. Fonte: Arquivo pessoal.

1 - A natureza secreta das imagens

Em um vidro teci uma manta formada por folhas secas perfuradas por formigas. Com a colagem, perdia-se o limite das folhas e criava-se uma espécie de constelação das formas orgânicas traçadas pelos insetos. Coloquei o vidro em meio ao bosque onde as folhas haviam sido coletadas e, assim, instalava-se um enigmático jogo de aparição e desaparição de imagens naquela lâmina atravessando a paisagem. Cada imagem só era possível de ser vista no instante de sua aparição e a sua duração era tão efêmera quanto a disponibilidade de se estar diante dela – um passo adiante e a imagem desaparecia, um passo atrás e uma outra se dava a ver. A partir da mudança da luz ou da mudança de perspectiva, diferentes imagens relampejavam no vidro que, em sua natureza translúcida e refletiva, dava a ver imagens formadas pela mescla furtiva do que era refletido de um lado e o que havia do outro. Em “Natureza Secreta”, imagens cintilam como um corte na paisagem. A partir do deslocamento do corpo, elas surgem na superfície espelhada e desaparecem com um passo. Ver é um gesto que se faz com todo o corpo, não porque o olho está acoplado ao corpo e com ele se desloca, mas porque é no corpo que as sensações, memórias e imaginações se movimentam junto ao olhar.

As imagens não são da mesma natureza que os objetos, nem apenas pura subjetividade, elas mediam nossa relação com o mundo. Aquele que olha está inscrito em um mundo no qual seu olhar se inscreve. E há muitas formas de se estar no mundo, muitas formas de olhar e de conceber as imagens.

Se na cultura ocidental o que define uma imagem é sua visibilidade iminente, sua exterioridade aparente que se põe como alvo do olhar, em outros modos de vida uma imagem pode ser inacessível à visão e ser pura presença sensível. Os xapiri pë, espíritos protetores da terra-floresta na cosmologia Yanomami, são os “seres-imagens”, visíveis apenas para os xamãs em transe. Neste artigo busco colocar em relação essas imagens espirituais e a concepção ocidental de imagem, “o ser das imagens”, partindo do pensamento do filósofo Emanuele Coccia, e trazendo para a discussão como algumas produções artísticas - literária, cinematográfica e fotográfica - podem, de certa forma, incitar o vínculo entre os viventes e o mundo invisível a partir da experiência sensível.

2 - Seres-imagens e o ser das imagens

Os seres-imagens e o ser das imagens operam distintos encontros entre os viventes e o mundo, encontros dos quais as imagens são a mediação. As próprias noções de vivente e de mundo já de -

sestabilizam uma possível unidade e certamente não será possível pensar em imagem sem atravessar esse tremor. O filósofo contemporâneo Emanuele Coccia diz que “o vivente não está no mundo tal qual uma pedra existe e também não se limita a ter com ele relações de ação e paixão diretas: enquanto vivente ele se relaciona com as coisas através da medialidade, através do sensível que é capaz de produzir” (Coccia, 2010, p. 47). Para os Yanomami, no entanto, o vivente estaria no mundo tal qual a pedra existe, não sendo a pedra, ou qualquer outro elemento da natureza, privado de subjetividade, ou seja, privado de produzir sensível e ser afetado por ele. Consideramos então como vivente tudo o que vive no mundo, e não na natureza .

Bruno Latour vai nos dizer que a noção sempre tão equivocada de “natureza” evoca sempre o par “cultura” . E, ao contrário do par indissociável Natureza/Cultura, a ideia de mundo por ele proposta vem como outra possibilidade – “um modo sem dúvida muito especulativo, como o que abre, de um lado, para a multiplicidade dos existentes e, de outro, para a multiplicidade dos modos que eles têm de existir” (Latour, 2020, p. 66), o que não significa que todos os existentes formam um “todo”, mas que estamos abertos à vertiginosa alteridade dos existentes e de suas maneiras de se conectar. Nessa definição ampliada, a ideia de mundo é uma tentativa de descer da “natureza” rumo à multiplicidade do mundo, evitando nos encontrar mais uma vez apenas na diversidade de culturas (Latour, 2020).

Falamos então de imagens que pronunciam distintas relações com o mundo, sendo impossível considerar aquele que olha separado do mundo onde seu olhar se inscreve, pois toda relação implica, pelo menos, os dois lados. Começarei por pensar as imagens que, como vínculo da relação entre viventes e mundo, não tardam a nos conduzir ao pensamento sobre o mundo de onde vêm, ou até mesmo de onde veem. Os seres-imagens habitam a Terra-Floresta, Urihi-a, onde tudo vive e tem alma; o ser das imagens nasce no mundo onde se distinguem sujeitos de objetos.

Para Coccia, o sensível, o ser das imagens, o que se chama de imagem em sentido amplo, tece a nossa experiência de vida, na vigília e no sonho, além do pensamento e da consciência (Coccia, 2010, p. 10). Segundo ele, a distância que separa o humano do resto dos viventes se expressa na força e na eficácia com o mundo das imagens e a prova disso é que “grande parte dos fenômenos que denominamos espirituais não apenas pressupõem alguma forma de relação com o sensível, como também são possíveis somente graças à capacidade de produzir imagens ou de ser afetados por elas” (Coccia, 2010, p. 11).

Na apresentação de A queda do céu, Kopenawa diz, referindo-se a Bruce Albert, coautor do livro: “Você ficou do meu lado e, mais tarde, quis conhecer os dizeres dos xapiri, que na sua língua vocês chamam de espíritos” (Kopenawa e Albert, 2015, p. 63). É a primeira menção ao xapiri no livro feita por Kopenawa, e Albert explica:

Todo ente possui uma “imagem” (utupë a, pl utupa pë) do tempo das origens, que os xamãs podem “chamar”, “fazer descer”, “fazer dançar” enquanto “espírito auxiliar” (xapiri a). Esses seres-imagens (espíritos) primordiais são descritos como humanóides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos. (Kopenawa e Albert, 2015, p. 610. N. 3)

Considero atraente a denominação de “seres-imagens” com a qual Albert se refere aos xapiri, embora os classifique como “espíritos”, enquanto Kopenawa frisa que essa é uma palavra da nossa língua. É impossível buscarmos traduções literais para algumas palavras Yanomami que transponham experiências que não encontramos equivalentes em nossa cultura. E talvez o que Coccia chame de espiritual não designe o mesmo a que Albert se refere.

“O que é uma imagem?” Coccia (2010, p.22) traz essa questão em reverberação à John Peckham, que responde: “Digo que é tão somente a aparência da coisa fora do seu lugar (extra locum suum) na medida em que a coisa não aparece apenas no próprio lugar senão também fora do próprio lugar”. Nas palavras de Coccia (2010, p.22), “toda imagem nasce com a separação da forma da coisa em relação ao lugar da sua existência: onde a forma está fora de lugar, tem lugar uma imagem”. Mas, o que acontece quando não se trata de uma forma da coisa fora de seu lugar, quando o que se desloca de seu lugar de existência original não é sua forma aparente e semelhante?

O seguinte trecho de A queda do céu traz elementos importantes para uma aproximação com o “ser das imagens”:

Os xapiri, para quem tudo é perto, vem por esses caminhos um atrás do outro, com muita leveza, suspensos nas alturas. Então é possível vê-los cintilar numa luminosidade lunar, na qual seus enfeites de pena tremulam, flutuando devagar, no ritmo de seus passos. Suas imagens são mesmo magníficas! Alguns desses caminhos são bem largos, como suas estradas à noite, salpicadas de luzes de faróis de carros, e os mais reluzentes são dos espíritos mais antigos. Ficam vindo em nossa direção sem parar, acumulados em filas sem número. Suas imagens são as de todos os habitantes da floresta que descem do peito do céu, um depois do outro, com seus filhotes. As araras-vermelhas, amarelas e azuis, os tucanos, papagaios, jacamins, mutuns, cujubins, gaviões herama, wakoa e kopari, morcegos e urubus são muitos na floresta, não é? E os jabutis, tatus, antas, veados, jaguatiricas, onças-pintadas, suçuaranas, cutias, queixadas, macacos-aranha e guaratibas, preguiças e tamanduás? E os

pequenos peixes dos rios, poraquês, piranhas, peixes pintados kurito e arraias yamara aka, então?

Todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. São essas imagens que os xamãs chamam e fazem descer. São elas que, ao se tornarem xapiri, executam suas danças de apresentação para eles. São elas o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais que caçamos. São essas imagens os animais de caça de verdade, não aqueles que comemos! São como fotografias destes. Mas só os xamãs podem vêlas. A gente comum não consegue. Em suas palavras os brancos diriam que os animais da floresta são seus representantes. O guariba iro que flechamos nas árvores, por exemplo, é outro que sua imagem Irori, o espírito do guariba, que os xamãs podem chamar a si. Essas imagens de animais tornados xapiri são muito bonitas mesmo quando fazem sua dança de apresentação para nós, como convidados no começo de uma festa reahu. Os animais da floresta, em comparação com elas, são feios. Existem, sem mais. Não fazem se não imitar suas imagens. Não passam de comida para os humanos.

No entanto, quando se diz o nome de um xapiri, não é apenas um espírito que se nomeia, é uma multidão de imagens semelhantes. Cada nome é único, mas os xapiri que designa são sem número. São como as imagens dos espelhos que vi em um dos hotéis onde dormi na cidade. Eu estava sozinho diante deles mas, ao mesmo tempo, tinha muitas imagens idênticas espalhadas neles. Assim, há um só nome para a imagem da anta xama enquanto xapiri, mas existem muitíssimos espíritos anta que chamamos de xamari pë. É assim com todos os xapiri. Há quem pense que cada um é único, mas suas imagens são sempre muito numerosas. Apenas seus nomes não o são. São como eu, de pé diante dos espelhos do hotel. Parecem únicos, mas suas imagens se justapõem ao longe sem fim (Kopenawa e Albert, 2015, p. 116-117, grifo da autora).

Nesta passagem, entendemos que os xapiri são imagens magníficas de todos os seres da floresta, embora não se pareçam em nada com estes seres. O que faz com que os xapiri sejam imagens desses seres mitológicos, ou seres-imagens, não é a correspondência com a forma visível desses animais, como aparecem aos olhos de todos, mas são imagens por tornar presente apenas aos olhos de quem as possa ver, os xamãs, sua dimensão invisível, seu verdadeiro interior, sua essência. Nesse sentido, para pensar os seres-imagens, o que importa sobre o ser das imagens no pensamento de Coccia, quando ele diz que “qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem” (Coccia, 2010, p. 22) é o qualquer coisa , pois o que passa a existir fora de seu lugar nos seres-imagens não é a forma, é outra coisa.

Todos os seres da floresta possuem sua imagem utupë, são estas imagens que os xamãs “ fazem descer”, “fazem dançar” através de seus espíritos auxiliares xapiri, elas correspondem ao princípio

vital, à interioridade verdadeira dos animais ancestrais, ao seu coração, à sua essência, não à sua aparência. Os xapiri são para eles os animais de verdade, os animais ancestrais, imortais, as imagens que só os xamãs podem ver. Albert (2015, p. 621, N.17) esclarece que essa triangulação ontológica entre ancestrais animais, animais de caça e as imagens xamânicas constitui uma das dimensões fundamentais da cosmologia Yanomami. Compreender essa transformabilidade nos aproxima da maneira como surgem os seres-imagens, caminho que Coccia sugere para a compreensão da natureza do ser das imagens:

É somente observando como as imagens se geram que se chegará à definição de sua natureza. Compreender a gênese de alguma coisa não significa interrogar-se imediatamente sobre sua essência ou sobre sua forma. Trata-se muito mais de perguntar onde, através do que, a partir do que, as imagens podem gerar-se nesse mundo. (Coccia, 2010, p. 19)

Mas, aqui, talvez não seja possível nos esquivar do pensamento acerca da essência e da forma dos seres-imagem, restringindo-nos ao modo como surgem, pois são ordens que se relacionam intimamente ainda que para se distinguirem, ao se falar em utupë. Embora as imagens fotográficas sejam designadas por utupë, o termo também pode se referir a reflexo, sombra, eco, miniatura, réplica, reprodução, desenho, ou seja, toda a sorte de imagem representativa, além de utupë também significa “imagem corpórea, essência vital, forma mítica primordial” (Kopenawa e Albert, 2015, p. 621, N. 14).

Mas quando ele diz que foram as peles dos animais ancestrais que se metamorfosearam em caça, trata-se de uma oposição da “pele” enquanto invólucro corporal (siki ) à imagem (utupë) interior, sede da energia e da identidade corporal, o que nos ajuda a compreender melhor a triangulação ontológica em que os animais ancestrais se transformaram duplamente. A imagem utupë (o verdadeiro interior, o coração dos seres, nas palavras de Kopenawa) deu origem aos xapiri, visíveis apenas para os xamãs, ao passo que seus invólucros corporais deram origem aos animais de caça que vivem na floresta, que todos podem ver. Parafraseando Coccia, que diz “onde a forma está fora de lugar, tem lugar uma imagem”, podemos dizer: onde a essência corpórea primordial está fora de lugar, tem lugar os seres-imagens. Os seres-imagens são, portanto, imagens não representacionais, são representantes e não representações.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em um texto dedicado a pensar a ontologia desses espíritos amazônicos, nota a natureza paradoxal dessa imagem que é, ao mesmo tempo, não icônica, ou seja, não se refere a seu objeto pela semelhança aparente, e também não visível (pelo menos para nós, “pessoas comuns”):

O que define os espíritos, em certo sentido, é indexarem os afetos

característicos daquilo de que são a imagem sem, por isso, parecerem com aquilo de que são a imagem: são índices, não ícones. Ora, o que define uma “imagem” é a sua visibilidade eminente: uma imagem é algo-para-ser-visto, é o correlativo objetivo necessário de um olhar, uma exterioridade que se põe como alvo da mirada intencional; mas os xapiri pë são imagens interiores, “moldes internos”, inacessíveis ao exercício empírico da visão. Eles são o objeto, poder-se-ia dizer, de um exercício superior ou transcendental desta faculdade: imagens que seriam então como a condição daquilo de que são imagem: imagens ativas, índices que nos interpretam antes que o interpretemos; enigmáticas imagens que devem nos ver para que possamos vê-las [...]. (Viveiros de Castro, 2006, p. 7)

Tal indicialidade desses seres-imagens nos leva à concepção de Alfred Gell de que, tendo em vista que a imagem age sobre a pessoa, ela partilha das qualidades daquilo de que é imagem. Els Lagrou, acerca da teoria de Gell, sobre as pinturas corporais Kaxinawá, diz: “a imagem tem sentido porque funciona, e não apesar do fato de ter utilidade. A imagem sintetiza os elementos mínimos que caracterizam o modo como o modelo opera e é por esta razão que uma imagem é um índice e não um símbolo ou um ícone do seu modelo” (Lagrou, 2009, p. 36) – o que também procede nas visões xamânicas dos xapiri

Se tais visões são inapreensíveis para nós brancos e para aqueles que não são xamãs, é no corpo do xamã em transe que tais imagens se mostram totalmente ativas – através dele podemos vê-las agir. Os seres-imagens, em sua invisibilidade, acionam o xamã em transe, de modo que esse passa a agir a partir dessa agência espiritual: são os espíritos – imagens visíveis para os xamãs – que agem sobre ele, e são seus gestos “tornados outros” que podemos ver. É verdade que os xapiri às vezes nos apavoram. Podem nos deixar como mortos, desabados no chão e reduzidos ao estado de fantasma. Mas não se deve achar que nos maltratam à toa. Querem apenas enfraquecer nossa consciência, pois se ficássemos apenas vivos, como a gente comum, eles não poderiam endireitar nosso pensamento. Sem virar outro, mantendo-se vigoroso e preocupado com o que nos cerca, seria impossível ver as coisas como os espíritos veem. (Kopenawa e Albert, 2015, p. 141)

Curadores da Terra-Floresta, um filme de Morzaniel Yanomami, acompanha o encontro de xamãs que aconteceu na aldeia Watoriki em 2011 e 2012. O cineasta optou por enquadramentos abertos privilegiando a relação entre os corpos e o espaço onde acontecia o ritual: “O enquadramento acolhe, é generoso com o invisível – o amplo pátio vazio, que cremos (ao ponto de quase vê-los) povoado pelos xapiri pë”, aponta André Brasil (2016, p. 268). Mas cremos na presença dos espíritos não só pelo espaço vazio do pátio que nos incita

a ver o invisível através da linguagem cinematográfica de Morzaniel, cremos pelo que os próprios corpos xamânicos nos dão a ver:

É peculiar o modo de funcionamento do índice: como espectadores somos convocados não a crer naquilo que nossos olhos veem, e sim naquilo que os olhos não veem, mas que ainda assim age sobre o corpo em performance. Algo atravessa esse corpo, como o vento atravessa a vela de um barco, tornando-se visível em sua invisibilidade e conferindo à vela e ao barco algo de seu poder. (Brasil, 2016, p. 268, grifo da autora)

O filme nos mostra os gestos e expressões do transe em suas pequenas variações nos corpos de cada xamã. As longas tomadas sem cortes permitem que o espectador acompanhe de forma mais afinada o ritmo do transe, assim como a sequência de performances ressalta o estilo e a singularidade de cada xamã incorporado.

Vemos, na verdade, seu corpo ganhar a maneira de outro corpo, xapiri, em devir-animal. Corpo-jaguar, corpo-pecari, corpo-urubu-rei... estilo e maneira não se submetem estritamente a uma mimese, ancorada na verossimilhança. Diríamos que, mais propriamente, eles acionam, por ressonância, as afecções do corpo-espírito. (Brasil, 2016, p. 267, grifo da autora)

Seres-imagens são visíveis apenas para os xamãs, porque os xamãs também são vistos por eles O xamã inicialmente “chama”, “faz descer” e “faz dançar” os xapiri; em seguida, os espíritos levam a imagem interior (utupë) do xamã, de forma que ele mesmo, enquanto “pessoa espírito” (xapiri thë), passa a agir e a se deslocar como espírito (xapirimuu), vendo então o que eles veem (Kopenawa e Albert, 2015, p. 659, N.39). Essa troca de perspectiva pode ser melhor compreendida a partir do perspectivismo ameríndio elaborado por Viveiros de Castro, segundo o qual “os animais não nos veem como humanos, mas sim como animais – por outro lado, eles não se veem como animais, mas como nós nos vemos, isto é, como humanos” (Sztutman, 1999, p. 120). A concepção de que os animais se veem como pessoas está associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (designado em Yanomami por siki ) que esconde uma forma interna humana visível apenas aos olhos da própria espécie ou de seres transespecíficos como os xamãs. Essa diferença ou indiferença entre humanos e animais que se institui no ato do olhar é descrita em A queda do céu :

[...] no primeiro tempo, todos fazíamos parte da mesma gente. As antas, os queixadas e as araras que caçamos na floresta também eram humanos. É por isso que hoje continuamos a ser os mesmos que aqueles que chamamos de caça, yaro pë. Os coatás, que chamamos paxo, são gente, como nós. São humanos cuatás: yanomae the pë paxo, mas nós os flechamos e moqueamos para servir de comida em nossa festa reahu! Apesar disso, aos olhos deles, continuamos sendo dos deles, embora

sejamos humanos, eles nos chamam pelo mesmo nome que dão a si mesmo. Por isso acho que nosso interior é igual ao da caça, mesmo se atribuímos a nós mesmos o nome de humanos, fingindo sê-lo. Já os animais nos consideram seus semelhantes que moram em casas, ao passo que eles se veem gente da floresta. Por isso dizem que nós somos “humanos caça moradores de casa”. (Kopenawa e Albert, 2015, p. 473)

Na floresta, animais e humanos se veem e cada um tem em si a própria referência de ser humano, olhando para o outro como animal (“humanos-caça”), de forma que é no encontro do olhar de um com o corpo do outro que se produz essa diferenciação. No transe xamânico, ao contrário, o encontro entre os seres (xamã e xapiri ) é fruto de um processo de identificação2 para além dos corpos. São os xamãs que se dedicam a comunicar e administrar as perspectivas cruzadas.

O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar as perspectivas aloespecíficas, de modo a administrar as relações entre essas e os humanos. Vendo os seres não humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história algo que os leigos dificilmente podem fazer. (Viveiros de Castro, 2002, p. 358)

O transe xamânico põe em cena uma correspondência entre o xamã e os xapiri pë por ele convocados e, somente a partir desse reconhecimento, ao compartilharem da mesma natureza espiritual, podem se ver uns aos outros, como um encontro, uma partilha do sensível no próprio coração do sensível. Só é possível vê-los a partir do momento em que se é também visto por eles.

Clarice Lispector, no conto “O búfalo”, narra o passeio no zoológico de uma mulher atravessada pela dor de um amor não correspondido, “rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas” (Lispector, 2016, p. 248), ela vagueia em busca de algum animal ao qual pudesse lhe dirigir a pronúncia do seu ódio. O encontro do seu olhar com o olhar de alguns animais remexe profundamente aquela mulher. Ela pensa em matar o macaco “entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar” (Lispector, 2016, p.249), salvo pelo véu branco que cobria sua pupila trazendo ao olhar do macaco a doçura da doença. Ela passa pelo elefante – “os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da carne herdada” –; pelo camelo; pelo quati –“De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati”. Ela caminha, senta, descansa e segue. Chega ao búfalo negro que de longe olhou-a um instante. A mulher e o búfalo investem nesse jogo de olhares em que a dúvida da correspondência é a ten-

2.Albert descreve o processo de identificação entre o xamã e os espíritos que ocorre quando “o xamã (sua “pele”, pei siki) inala a yãkoana que é bebida ‘através dele’ (he tore) pelos espíritos que, como ele e ao mesmo tempo que ele, ‘morrem’, ‘tornam-se fantasma’, enquanto ele, por sua vez, imita (uëmãi) seus cantos e coreografias” (Kopenawa e Albert, 2016, p.624, N.6).

são que mantém o jogo. Ele dá uma volta, ela estremece, empalidece, perde o tônus, ele de costas, ela joga uma pedra no cercado.

Então o búfalo voltou-se para ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e à distância encarou-a. Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. (Lispector, 2016, p. 256)

A personagem que “Não olhava para ninguém” atravessa uma densidade emocional a partir dos olhares dos animais e não de outros humanos que também passeavam pelo zoológico. O que aqueles olhares mobilizavam na mulher? Cada olhar à sua maneira a deslocava da estrangeiridade humana que se apresentava inicialmente e se transformava em encontro com aqueles animais com os quais partilhava, momentaneamente, física e emocionalmente, a condição de enclausuramento, enjaulada pelas jaulas fechadas. O encontro entre seu olhar e o olhar dos animais fazia reverberar uma vasta profundeza subjetiva, através de um encontro que parecia fazer transcender a distinção entre seus corpos, entre o humano e o animal.

A mulher inicia seu passeio no zoológico em busca de algo a que possa dirigir seu ódio e encontra no búfalo a promessa de um amor. O amor que existe no encontro entre ver e ser vista, em profundidade, para além dos corpos, além da pele como exterioridade visível. O xamanismo nos ensina sobre esse olhar como mergulho na essência do ser, de si e do outro, um modo de ver que inclui, necessariamente, ser visto, e o que é visto não são os corpos mas sua interioridade invisível, o “verdadeiro coração” dos seres – é isso o que nos diz os seres-imagens, sobre a possibilidade de ver e de se conectar com esse invisível essencial constituinte do ser.

Não somos xamãs e jamais veremos os xapiri pë, mas podemos estar atentos a esses encontros que se dão a partir de uma profunda e indescritível reverberação, onde os corpos se comunicam para além de sua materialidade visível.

Duas fotografias de Masao Yamamoto parecem nos mostrar que os animais, para além de nos devolver seus olhares, que no encontro com o nosso podem desencadear diversas experiências subjetivas, são eles mesmos também animados por essas experiências. Uma das fotografias é nomeada apenas #1275 e nos mostra um macaco-da-neve com metade de seu corpo imerso na água. Ele parece estar

sentado, o corpo em repouso e seus olhos delicadamente fechados desenham uma expressão meditativa que nos diz que ele não está dormindo, apenas quieto e sereno. Ao seu redor, o espaço vazio é atravessado por algumas sutis ondulações marcadas pela sombra suave do movimento da água, presente como se fosse para nos dizer que há outras coisas que também se movimentam com a mesma sutileza líquida naquela imagem. Yamamoto raramente dá títulos às suas fotografias, a maioria é apenas numerada. Entre nós e a imagem não cabe nenhuma palavra. #1275 faz parte da série Nakazora, termo budista que tem muitos significados, como o espaço entre céu e terra; o estado em que os pés tocam o chão; o centro do céu e zênite. Essa combinação de definições nos leva a pensar no espiritual, em como o mundo físico pode refletir esse “outro” mundo invisível. É uma palavra perfeita para usar em relação ao trabalho de Yamamoto, pois ele aparentemente não está preocupado tanto com o assunto quanto em permitir que o assunto seja um sinal para o imaterial. E, assim, o macaco-da-neve senta-se nesse estado indescritível de Nakazora – na água e no ar, no calor úmido da fonte termal e no frio invernal, entre o sono e a vigília, entre a gravidade de seu corpo e o brilho etéreo de seu reflexo.

A outra fotografia, da série A Box of Ku (A Caixa de Vazios), traz uma pomba que busca se olhar em seu próprio reflexo na água. Seu corpo, ligeiramente instável e inseguro sobre a pedra ilhada, inclina-se em direção ao reflexo, trazendo a fragilidade do encontro com a própria imagem que nasce na profundidade escura e misteriosa da água. O branco da pomba e de sua imagem refletida contrastam com o preto ao redor, evidenciando o corpo duplo e ao mesmo tempo a separação entre eles. Entre o animal e seu reflexo, é primeiramente a pomba que busca esse encontro entre corpo e imagem, para que depois nosso olhar se lance a ver esse jogo. Os olhos fechados do macaco-da-neve conduzindo-nos à sua profundidade interior e a pomba sobre a pedra, na busca de ver-se a si mesma em seu reflexo, evocam a experiência sensível desses animais. Coccia (2010, p. 37) vai dizer que “Não convém medir os limites da vida animal pelos confins de seu corpo anatômico. A vida animal – ou seja, a vida modelada e esculpida sobre e pelo sensível – chega onde chegam as imagens”.

A beleza desse pensamento – a vida chega onde chegam as imagens – produz também uma abertura inquietante para esse lugar “onde chegam as imagens”, onde reside o encontro de olhares entre a personagem de Clarice e os animais no zoológico, onde a pomba encontra-se com seu reflexo e onde os olhos fechados do macaco-da-neve remetem a ele e também a nós. Coccia vai dizer de um “lugar intermediário” entre nós e os objetos em cujo seio o objeto torna-se sensível Se o sensível é a forma enquanto separada de sua existência natural, o meio é como o lugar de separação, um espaço de potência imaterial entre as coisas e os sujeitos que permite às formas prolongarem sua vida para além de sua natureza

e de sua existência material e corpórea. “Os meios são aquilo que produz a relação de continuidade entre espírito e realidade, entre mundo e psiquismo” (Coccia, 2010, p. 38). Coccia toma o meio como lugar abstrato dos fenômenos em sua potência psíquica e imaterial.

Os meios – enquanto condição de possibilidade da existência do sensível – são o verdadeiro tecido conectivo do mundo. São eles que produzem a continuidade entre sujeito e objeto e que permitem a comunicação entre as duas esferas do subjetivo e do objetivo, do psíquico e do natural. Sujeito e objeto não tem comunicação imediata: colocados um em contato com o outro, sem a interação de um meio, nenhum deles seria capaz de agir sobre o outro. É graças ao meio que o objeto gera uma percepção no sujeito (penetra no sujeito, vive intencionalmente nele). E é graças ao meio que o sujeito pode ver, perceber e, dessa maneira, interagir com o objeto. Os meios são aquilo que produz a relação de continuidade entre espírito e realidade, entre mundo e psiquismo. (Coccia, 2010, p. 38)

Quando Coccia fala de uma continuidade entre sujeito e objeto, sendo o meio o espaço suplementar de interação entre eles, em que há uma comunicação entre as esferas do subjetivo e do objetivo, ele parece se afastar da epistemologia objetivista da modernidade ocidental em que conhecer é objetivar. Viveiros de Castro (2002, p. 358) define esse modo de conhecer como “dessubjetivar”, que consiste em explicitar a parte do sujeito presente no objeto de modo a reduzi-la a um mínimo ideal. Sujeitos e objetos são vistos através de um processo de objetivação onde, o que não foi objetivado, visto de fora como um “isso”, permanece irreal e abstrato. Viveiros de Castro (2002, p. 358) diz que neste modelo “a forma do Outro é a coisa”, enquanto no xamanismo ameríndio acontece o ideal inverso: “a forma do Outro é pessoa”, “conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”, ou seja, subjetivar.

Embora Coccia afirme que o sensível está além de toda oposição entre sujeito e objeto, ele enfatiza o espaço que os distingue e também os conecta – o meio entre eles – como essencial para que haja experiência sensível. O xamanismo, por outro lado, parece tornar tudo o meio, de modo que ele não seja um espaço entre (sujeito e objeto), mas o lugar da experiência, onde os seres se expandem, coincidem, deslocam, transfiguram e metamorfoseiam, afim de que o encontro aconteça no ato de ver e ser visto, dissolvendo as diferenças aparentes de seus corpos no encontro espiritual do transe xamânico.

Considerações Finais

Coccia vê a imagem como uma forma de produzir sensível e ser afetado por ele, sendo a imagem o que separa os humanos do resto dos viventes. A aproximação entre essa concepção, o ser das imagens, e os seres-imagens da cosmologia Yanomami direcio -

nou-se a pensar a partir da multiplicidade de seres no mundo, buscando ampliar a percepção das imagens e da experiência sensível.

Encontrei nos seres-imagens, que são ao mesmo tempo espíritos e imagens, a possibilidade de me aproximar de uma outra concepção de imagem, que difere da ocidental em diversos aspectos e abre a possibilidade para olhar de uma outra forma para o que vemos - e para o que não vemos, mas sentimos. Uma forma de imagem que não se restringe apenas à forma fora do seu lugar original - como Coccia define o ser das imagens - , mas que transcende do visível para o sensível. Quando a imagem se descola da ideia de representação para a noção de representantes, e traz consigo não a semelhança aparente, mas “o verdadeiro interior, o coração dos seres”, é possível colocar em movimento uma percepção menos condicionada à aparência e mais aberta a outros modos de subjetivação, que se estende, neste caminho proposto, para a experiência sensível para além da humana.

Clarice Lispector e Massao Yamamoto nos apresentam esses encontros possíveis, entre a subjetividade humana e a dos animais, em processos de identificação que, acredito, se aproximam da experiência xamânica por se tratar do encontro entre distintos seres. Encontros estes que se dão inicialmente através dos olhares, seja entre a mulher e os animais no zoológico, ou entre eles e nós, espcetadores de suas próprias experiências sensíveis permeadas por imagens, como a de ver o próprio reflexo na água e a meditação de olhos fechados. De certa forma, tomamos o ponto de vista destes animais - e os subjetivamos, ao invés de objetificá-los. E, deste modo, parece se diluir, mesmo que não absolutamente, a ordem das coisas postas na perspectiva ocidental, mais especificadamente, na perspectiva cartesiana, em que se distinguem sujeitos e objetos. Assim, inclinamo-nos ao perspectivismo ameríndio, em que cada espécie tem o seu envoltório e uma forma humana interna visível apenas aos olhos da própria espécie, cuja identificação se dá a partir da troca de olhares entre os seres. Se o xamanismo é um meio de colocar em contato seres de distintas espécies, pergunto então se a imagem, ao invés de ser o que separa o humano do resto dos viventes no mundo, como propõe Coccia, não seria, justamente, um meio de nos colocar em contato com outros seres?

Ainda que o olhar não chegue a repousar em nenhuma superfície visível, ele foi lançado em busca de alcançar na invisibilidade a potência dessa outra forma de ser imagem. É a própria condição, forma, natureza, essência do que consideramos imagem que também se multiplica, como os xapiri na floresta, no olhar lançado a essa outra imagem possível e na abertura a esses encontros em que os corpos se comunicam para além de sua materialidade visível, no coração do sensível.

Referências

BRASIL, André. De uma a outra imagem: traduções do visível e do invisível em curadores Terra-Floresta e Xapiri Novos Estudos CEBRAP, v. 35, n. 3, 2016, p. 256-271.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível . Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020.

LISPECTOR, Clarice Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

SZTUTMAN, Renato. Entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Sexta Feira – Antropologia, Artes e Humanidades. São Paulo: Hedra, 1999.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, v. 15, n. 14-15, 2006, p. 319-339. Disponível em: https://revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50120. Acesso em: 31 mar. 2025.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia . São Paulo: Cosac Naify, 2002.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Os ‘moitas’ de Rio Bonito de Cima The Bushmen of Rio Bonito de Cima

Pedro Urano1

Resumo: Anualmente, moradores do Vale do Macaé (RJ) reúnem-se no povoado de Rio Bonito de Cima, quando confeccionam roupas cobertas de folhagens vegetais para brincar o carnaval. As fantasias são “assemblages” interespecíficos (Tsing, 2019; 2022) cujo processo de produção funciona como um vetor de reconhecimento de alianças entre diferentes seres vivos. A festa, conhecida localmente como o “carnaval da moita”, sugere um outro modo de existir e se relacionar com a floresta.

Palavras-chave: Etnografia visual; Culturas vegetais; Plant theory

1.Doutorando no PPGCOM-ECOUFRJ. Email: pedro.urano@eco.ufrj. br. Currículo lattes: https://lattes. cnpq.br/1988390831247559.

Prancha 1
Carnaval da moita, 2023
Fotografia do autor
Fonte: Acervo pessoal

Os moradores do Vale do Macaé, na região serrana do Rio de Janeiro, reúnem-se anualmente no povoado de Rio Bonito de Cima, quando confeccionam roupas cobertas de folhagens vegetais para brincar o carnaval. Desde 2016, participo da festa, conhecida localmente como “carnaval da moita”, produzindo e animando com meu corpo trajes realizados com uma única espécie vegetal (prancha 1). O procedimento sublinha a percepção da espécie escolhida não por sua separação da paisagem, mas através de uma estratégia de acumulação, muito empregada pelo paisagista brasileiro Roberto Burle-Marx em seus jardins. Também chama atenção o fato de, ao longo da noite, não ocorrer nenhum desfile ou qualquer tipo de performance formalizada. Os brincantes simplesmente passeiam incógnitos, munidos de canudos presos ao rosto oculto, com os quais sorvem a cerveja dos copos alheios.

O consumo de bebidas alcóolicas (em especial, cerveja) está associado tanto à confecção dos trajes, quanto à performance noturna. Eventualmente, estratagemas dedicados a aumentar o consumo etílico são ocultos e incorporados à fantasia, como relata o brincante Josimar Muller Tavares, o Josi:

Eu disse: vou arrumar um canudo pra mim que vou ficar doido! Arrumei uma mangueira daquelas de fazer nível de obra, desse tamanho assim, amarrei com barbante no pescoço e escondi dentro da fantasia. Aí quando colocava no copo do cara, dava só uma chupada, a mangueira cumprida, dava só uma chupada, mas não bebia tudo não! Eu trancava a boca da mangueira embaixo e a mangueira ficava cheia! Eu puxava do copo ou da garrafa long neck de uma lapada só! Eu puxava, trancava a boca da mangueira, depois eu ia puxando devagarzinho, do jeito que eu queria, de golinho em golinho. A mangueira tava cheia!2

Os brincantes costuram as roupas com barbante ou linha de náilon, e usam como agulha um segmento de haste de guarda-chuva, afiada com este objetivo (prancha 2). A costura começa pela parte inferior do traje, seguindo na horizontal de maneira a formar camadas que se sobrepõem em direção ascendente. Com o processo avançado, interrompe-se por vezes a cosedura para vestir a roupa e identificar falhas na cobertura.

O macacão de algodão (em especial, os utilizados na indústria naval e petrolífera) é o tipo de vestuário mais estimado para a confecção dos trajes vegetais, por possuir uma tipologia antropomorfa em peça única que tanto permite melhor visualizar a conformação final da peça, quanto garante uma boa proteção do brincante (algumas espécies vegetais utilizadas podem causar irritação na pele após o contato prolongado).

2.Depoimento ao autor, 2021.

A originalidade das fantasias é valorizada. Jamais se repete no ano seguinte a mesma variedade vegetal utilizada no ano anterior. Os brincantes mais dedicados buscam o ineditismo na escolha das espécies com que vão participar do carnaval. Josi ficou célebre no arraial após realizar uma roupa de Bromélia (Neoregelia schultesiana), estruturada sobre uma tela aramada modelada no corpo. Quando realizamos juntos uma roupa de Embaúba-branca (Cecropia hololeuca), o fato de nunca ter feito um traje com a espécie foi um dos fatores que motivou sua decisão de aceitar meu convite. Por vezes, observam-se fantasias confeccionadas com materiais plásticos ou restos de tecido, mas estas são, em geral, raras e pouco valorizadas, por serem muito mais fáceis de produzir.

Ainda que, em linhas gerais, a técnica de criação das roupas seja sempre a mesma, quando observada de perto, percebe-se que as espécies vegetais determinam variações no processo de costura. A morfologia perfurada da Costela de Adão, por exemplo, exige inúmeras camadas de folhas costuradas individualmente pela base, onde esta encontra o pecíolo, que é descartado; nos braços, um segundo ponto se faz necessário, envolvendo a nervura central, próximo a ponta da folha. Já a roupa de Taquarinha, por sua vez, é produzida com sucessivas ‘cortinas’ realizadas com pequenos tufos, de maneira a melhor distribuir horizontalmente a folhagem, a fim de reduzir a quantidade de material vegetal utilizado, para que a fantasia não resulte demasiado pesada (uma estratégia similar é utilizada na roupa de Papiro).

Prancha 2

Confeccionando trajes vegetais, 2019, 2021 Fotografia do autor Fonte: Acervo pessoal

Na altura da gola, é feito o chamado ‘arremate’, em que feixes de folhas são amarrados horizontalmente, e então têm a base do tufo cortada e descartada. Roupas de Helicônia (Heliconia rostrata) são produzidas com as folhas da planta, semelhantes às da bananeira, e decoradas na altura da gola com a bráctea em forma de bico de papagaio característica da espécie, de vermelho intenso e bordas amareladas.

A confecção de uma roupa de “moita” exige habilidade manual, paciência e conhecimento da floresta e suas populações. É preciso saber onde encontrar a espécie vegetal escolhida (em quantidade suficiente para produzir o traje); é preciso conhecer as alianças da espécie escolhida com outras espécies vegetais, animais ou fúngicas (já que é comum apanhar inadvertidamente líquens, formigas, besouros e aranhas durante a coleta). E, finalmente, é preciso ser rápido, pois, em poucos dias, as folhas vegetais se deterioram e comprometem a fantasia. O trabalho com folhagens implica, de fato, uma atenção ao tempo das plantas. “Sempre que seres humanos encontram com plantas, dois ou mais mundos e temporalidades se cruzam” (Marder, 2013, p. 8). Como as plantas, as roupas vegetais têm uma duração específica de acordo com cada variedade utilizada. Folhas grandes (como a Costela de Adão) murcham rapidamente, abrindo buracos na camada vegetal que comprometem a fantasia. Gramíneas como a Taquarinha e o Sapê, assim como espécies de outras famílias botânicas, como o Samambaiaçu e o Papiro, possuem folhagem, flores e caules menores, murchando mais lentamente.

Quando a época dos festejos se aproxima, os brincantes passam a observar com maior cuidado a paisagem em busca da planta que será utilizada na produção do traje. A depender da espécie, é preciso estimar o crescimento do(s) indivíduo(s) escolhido, como no caso da Embaúba-branca (ou Embaúba-prateada), árvore de crescimento rápido cuja folhagem é preferencialmente colhida em um indivíduo jovem, a fim de facilitar o acesso à copa. Os mais experientes recomendam ainda que se deixe a folhagem coletada na mata descansar no quintal de um dia para o outro, a fim de que formigas, joaninhas, lagartas e outros insetos, além de aranhas, que muitas vezes são inadvertidamente colhidas junto à folhagem, tenham a oportunidade de abandonar flores, caules e folhas antes da confecção do traje. Josi relatou ao menos duas ocasiões em que uma aranha caranguejeira foi encontrada na fantasia. Numa delas, sua presença só foi notada por outro brincante, já no centro do povoado.

As fantasias são “assemblages” interespecíficos (2019, 2022) cujo processo de produção funciona como um vetor de reconhecimento de alianças entre diferentes seres vivos3. A variedade da Embaúba-branca é preferida em relação à variedade marrom por esta última abrigar muitas formigas que são carregadas para a fantasia e mordem o brincante desavisado. “Precisa nem beber pra se animar! Já fica o tempo todo se mexendo

3.Tsing emprega o termo “assemblage” para se referir aos diferentes tipos de relação entre seres vivos de espécies distintas em uma mesma comunidade ecológica. No prefácio da edição brasileira de ‘Viver em ruínas’ (2019), a autora menciona a dificuldade de traduzir o termo para o português sem que se perca parte de sua rica polissemia. “Em inglês, o termo reúne vários legados, servindo como tradução de agenciamento em Deleuze e Guattari, ao mesmo tempo que se liga à ecologia da paisagem, como os organismos que podem ser encontrados juntos e agrupados em um lugar. No meu caso, uso fortemente o último legado, que permite a um observador ver processos sociais mais amplos e dinâmicos do que os exclusivamente humanos, mesmo quando mantenho o termo aberto ao primeiro, com seu convite a novas maneiras de pensar sobre política e cultura.” (Tsing, 2019, p. 17) . No entanto, por observar como o termo em inglês é muito usado por cientistas sociais para se referir a um refinamento da “formação discursiva” de Foucault, que aponta para “o complexo de ideias, instituições e materiais que se juntam para criar algum tipo de efeito social humano” (loc. cit.), a autora e seus tradutores preferem a palavra “assembleia” nas edições publicadas no Brasil. É que Tsing emprega o termo apenas para se referir a seres humanos ou não humanos e jamais a ideias e instituições. Aqui, mantenho o termo em inglês (por sua vez, um galicismo com origem no latim), por considerar sua vertiginosa riqueza semântica afim ao emaranhado também vertiginoso de seres vivos vivendo e produzindo mundos juntos a que Tsing se refere. “A questão de como as várias espécies em “assemblage” influenciam umas às outras – quando isso ocorre – jamais se resolve: algumas reprimem (ou comem) umas às outras; outras trabalham juntas para tornar a vida possível; outras simplesmente vivem no mesmo lugar. Os “assemblages” são agrupamentos abertos.” (Tsing, 2022, p. 67-68).

A manutenção do termo original também tem por objetivo manter um quarto legado semântico subsidiário, mas interessante e, até o momento, pouco notado. Nas artes visuais, “assemblage” é uma técnica que combina materiais diversos em uma mesma composição. O termo é mais utilizado para se referir a peças que incluem elementos tridimensionais, explorando volume, textura e significados simbólicos a partir da justaposição de elementos heterogêneos. Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte Brasileira (2025), um “assemblage” figura menos uma síntese que uma justaposição de elementos. “Os diferentes objetos e materiais reunidos, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem seu sentido original.” Ao defender, no catálogo da exposição “The Art of Assemblage”, que uma obra de arte é uma encarnação, “um investimento do espírito sobre a matéria”, Seitz (1961, p. 10) propõe que “mais do que uma técnica artística, o assemblage é um complexo de ideias e atitudes.”

e o povo pensa que ele tá dançando e a formiga está mordendo. Aquele palhaço é dançarino, hein! Não é nada, é a formiga mordendo!”4, se diverte Josi.

De fato, a Embaúba comum mantém uma associação com formigas do gênero Azteca , que vivem dentro do caule oco característico da espécie, em grande simbiose. As chamadas formigas-de-embaúba não predam as folhas das árvores, elas se alimentam de um composto doce, produzido justamente com o objetivo de atraí-las, nos corpúsculos de Müller encontrados nas folhas, pecíolos e caules da planta. Em troca, as formigas, conhecidas pelo comportamento agressivo, protegem a árvore de outros herbívoros. O bicho-preguiça, entretanto, que tem no fruto da embaúba seu alimento preferido, é capaz de ignorar a presença das formigas, e até de se alimentar delas, de modo que se tornam mais um atrativo para ele. Por também consumir as folhas da espécie, a presença do animal faz com que os brincantes de Rio Bonito procurem por outra árvore para realizar suas fantasias, em busca de folhagens intactas.

A personagem folheada aponta para um outro modo de existir e se relacionar com a floresta, figurando uma atitude em tudo diferente da separação entre observador e ambiente representado, característica da visualidade moderna. Refiro-me a regimes visuais como o “perspectivismo cartesiano” descrito por Martin Jay (1988), esse produto da associação entre perspectiva linear renascentista e racionalidade subjetiva cartesiana que apresenta um mundo dividido em duas dimensões – uma mental, relativa ao sujeito, e outra física, relativa à realidade objetiva, relativa à Natureza. Esse modo de ver moderno deu suporte simbólico à transformação da relação com o ambiente, progressivamente objetificado como recurso a ser explorado e capital imobiliário. Associado ao contraste entre vastas extensões de terra e a reduzida presença de populações nativas nas representações das regiões coloniais, este regime visual produziu a fantasia de horizonte a ser ocupado – e território a ser conquistado – sustentada pela força centrípeta das linhas de fuga da perspectiva linear.

As representações de paisagens coloniais, produzidas por viajantes europeus, acompanharam as reconfigurações dos territórios conquistados em zonas de extração mineral e agropecuária, um processo que quase sempre se iniciava com a destruição total da paisagem nativa. Figurações da floresta, de fato, acompanharam, na maior parte das vezes, as derrubadas. Constituindo uma espécie de memento necare (lembre-se da sua letalidade) – como um memento mori, só que dos outros, são as outras espécies que morrem.

O avanço extrativista sobre a floresta atravessou os séculos e permanece expressivo na atualidade. À derrubada das matas do Nor-

4.Depoimento ao autor, 2021.

deste, onde primeiro aportaram os portugueses, seguiu-se o desflorestamento do Sudeste – a descoberta de ouro na Capitania de Minas Gerais havia deslocado o centro dinâmico da colônia, e em 1763, a capital foi transferida para o Rio de Janeiro. No final do século seguinte, o desmatamento avançou para o Sul do país. A partir da segunda metade do século XX, a destruição alcançou as regiões Centro-Oeste e Norte, ameaçando respectivamente o Cerrado e a Amazônia. Em 2021, o desmatamento da Amazônia alcançou o maior patamar em 15 anos (BBC News Brasil, 2021).

No território brasileiro, os sucessivos avanços do arco do desmatamento podem ser associados a diferentes tecnologias da imagem. Inicialmente figurado em iluminuras nas cartas náuticas seiscentistas, o desmatamento já era representado, poucas décadas mais tarde, em baixos-relevos de madeira e gravuras impressas. No século XIX, telas de grandes dimensões pintadas à óleo se juntaram a desenhos, aquarelas e outras imagens em papel com o motivo. Na virada para o século XX, a derrubada das matas do noroeste do Paraná foi registrada em fotografias. A partir de 1918, ano de produção do filme “Amazonas, o maior rio do mundo”, do cineasta luso-brasileiro Silvino Santos, a destruição da floresta Amazônica passou a ser flagrada por câmeras cinematográficas. Na virada para o século XXI, as imagens aéreas produzidas inicialmente por aeronaves tripuladas, e logo por satélites de sensoriamento remoto e drones, popularizaram-se, caracterizando uma novidade na representação do motivo e, consequentemente, em sua figuração no imaginário coletivo.

A prática dos moitas substitui portanto a distância entre observador e paisagem tão presente no imaginário colonial-extrativista, por uma ideia de imersão radical no ambiente, uma “metafísica da mistura” (Coccia 2018), na qual todo indivíduo está necessariamente relacionado a muitos outros. É preciso cuidado, no entanto, em entender como uma “contravisualidade” (Mirzoeff, 2011) a esta oposição entre distanciamento e imersão, identificada quando contrastamos a relação do observador com o ambiente representado no imaginário colonial-extrativista e a prática dos moitas. É que o ponto de vista experimentado por aquele disposto a se tornar o personagem folheado não foi construído contra o perspectivismo cartesiano, mas remonta a um imaginário muito mais antigo. É a visualidade extrativista que estabelece sua contradição ao modo de ver imersivo e vegetal associado ao humano folheado, e não o contrário.

A visualidade dos moitas está, portanto, menos associada a uma contra-história que a uma outra história, uma história que a visualidade extrativista reprime para existir. Seu caráter positivo, o fato de não constituir uma reação, mas a afirmação de um caminho diverso e

mais antigo, aproxima-a do que Dipesh Chakrabarty (2000) chama de História 2, quando descreve, em sua crítica ao historicismo, dois modos da história no regime capitalista.

Conforme sua proposição, a História 1 seria o passado evocado pelo capitalismo como sua condição de possibilidade, o conjunto de antecedentes que resultaram na emergência do modo de produção capitalista. Já a História 2, seria tudo aquilo que, ainda que anteceda o capitalismo, não contribui para sua emergência ou reprodução e, por isso, precisa ser subordinado (pela violência) ao historicismo moderno. Enquanto proclama que todo fenômeno social ou cultural é historicamente determinado, o historicismo moderno estabelece, no mesmo movimento, a Europa como cena de nascimento da modernidade (e do capitalismo), e o tempo histórico como medida da distância cultural entre o Ocidente e seus outros (Chakrabarty, 2000, p. 7). A história da Europa passa a ser apresentada então como uma meta-narrativa, um modelo universal de desenvolvimento com etapas bem definidas—aquilo que, nas colônias, legitimou a ideia de civilização. A História 2, portanto, é constituída por narrativas que dão conta de outros caminhos, de outras possibilidades de comunidade entre seres que a História 1 tenta, a todo custo, assimilar ao projeto moderno como algo “primitivo”, “arcaico”, “superado” e, no limite, “bárbaro” ou “selvagem”. A História 2 está, desse modo, sempre interrompendo a força totalizante da História 1.

O processo de confecção das fantasias folheadas de Rio Bonito de Cima torna visível não só a diversidade vertiginosa de seres que convivem nas florestas do Vale do Macaé, como também as alianças que cultivam entre si, instaurando uma perspectiva biocêntrica contra a qual a visualidade extrativista necessariamente se opõe. É afinal a energia vital dos seres, de outro modo integralmente dedicada às possibilidades do viver, que é apropriada pelo Capital. A vontade que anima os seres a realizarem as possibilidades que trazem consigo, no entanto, resiste à apropriação capitalista. Chakrabarty chama atenção para como, de fato, Marx enxerga na origem de toda resistência ao capitalismo uma força algo misteriosa que denomina simplesmente de “vida”. “A vida, em toda a sua capacidade biológica/consciente para atividade intencional, é o excesso que o capital, por meio de seus procedimentos disciplinares, sempre almeja, mas jamais consegue controlar ou domesticar completamente.” (apud Chakrabarty, 2000, p. 60)

Ainda preciso estudar melhor as relações entre certas narrativas da História 2 e as contravisualidades anticoloniais trabalhadas por Nick Mirzoeff. Intuo, no entanto, que as mais efetivas contravisualidades estão comumente ligadas a imaginários autóctones mais antigos, associados à História 2. Nesse sentido, e a fim de dar conta de memórias imaginais mais antigas, venho trabalhando em uma ge-

nealogia da figura do homem folheado que compreenda tanto sua antropologia histórica, quanto uma arqueologia do imaginário. O homem folheado é, afinal, uma imagem muito antiga, especialmente para a tradição ocidental (lembremos que o Vale do Macaé foi colonizado por camponeses suíços). Associado ao mito do homem selvagem europeu – este, caracterizado pelo corpo hirsuto – e considerado sua variante vegetal, o homem folheado aponta, como aquele, para as fronteiras do que seria (ou deveria ser) o homem civilizado. No caso do homem selvagem, é a bestialidade que ameaça sua humanidade. No caso do homem folheado, é a alteridade ainda mais fundamental representada pela vegetalidade. Este desdobramento recente da pesquisa será explorado num próximo texto.

Referências

ASSEMBLAGE. In ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira . São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Disponível em: http:// enciclopedia.itaucultural.org.br /termos/79912-assemblage. Acesso em: 08 de abril de 2025. Verbete da Enciclopédia.

CHAKRABARTY, Diphesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.

COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura & Barbárie, 2018.

DESMATAMENTO na Amazônia tem a maior taxa em 15 anos. BBC News Brasil, 18 nov. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/ portuguese/brasil-59341478. Acesso em: 02 abr. 2025.

JAY, Martin. Scopic Regimes of Modernity. In FOSTER, Hal. (Ed.).Vision and Visuality : Discussions in Contemporary Art. Seattle: Bay Press , 1988, p. 3-23.

MARDER, Michael. Plant-thinking: a philosophy of vegetal life. Nova York: Columbia University Press, 2013.

MIRZOEFF, Nicholas. The right to look : a counterhistory of visuality. Durham: Duke University Press, 2011.

SEITZ, William C. The Art of Assemblage. The Museum of Modern Art, 1961.

TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

TSING, Anna Lowenhaupt. O cogumelo no fim do mundo. São Paulo: n-1 Edições, 2022.

e políticas do sentir latino-americano

Florestania

Edu Monteiro1

A relação entre plantas e imagem é antiga na arte, remonta às primeiras expressões rupestres até florescer hoje em dia nas mais variadas vertentes. Na fotografia esta relação germina sob a luz de seu próprio advento através dos Desenhos Fotogênicos de Fox Talbot 2. Atualmente, diante do iminente colapso e desequilíbrio planetário causado pela ação humana, repensar esta relação traz novos contornos. O filósofo originário Ailton Krenak pergunta: “como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais?” E sugere: “podemos provocar o surgimento de uma experiência florestania começando por contestar a ordem urbana e sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, vou estudar a gramática dele.” (Krenak, 2022, p. 65)

Há dois anos cuido do meu quintal seguindo este caminho. Atualmente estudo a gramática de cerca de 60 espécies diferentes. Através deste gesto busco a floresta em mim. Da relação com minhas plantas brotam os autorretratos e imagens desta nova série chamada Florestania 3. As imagens são coletadas com câmeras digitais, analógicas e através do diálogo com antigos processos foto-botânicos.

É a segunda vez que encaro a jardinagem intensamente. A primeira foi em 2017 quando morei na França com a família para fazer pesquisas de doutorado. Uma amiga da minha mãe nos emprestou sua simpática casa no subúrbio de Paris com uma única condição: cuidar com muito carinho do seu jardim. Perguntou se eu entendia de plantas, menti, disse que sim. Comecei então minha alfabetização em jardinagem. Minhas professoras foram duas vizinhas atenciosas, com paciência elas me explicavam os cuidados nas diferentes estações do ano assim como as características e personalidade de cada planta. Elas foram muito solícitas e a troca espantava a solidão, sobretudo no rigoroso inverno francês.

Aos poucos não só me habituei com a atividade, como comecei a ter um enorme prazer em gerar vida. O trabalho era árduo; podar, limpar o terreno, regar, proteger as plantas de invasores e temperaturas oscilantes. No final de cada semana eu me encontrava com sacos e mais sacos de plantas descartadas que deveriam ser organizadas para a coleta feita por um caminhão especializado nestes insumos. Desta lida nasceu o ensaio fotográfico Jardinagem4 Eu me fotografava com as plantas e ao cuidar delas elas cuidavam de mim.

1. FCS-UERJ. Email: edurangelmonteiro@gmail.com. Currículo lattes: https://lattes.cnpq. br/1387475190018808.

2.Ao longo da história conhecimentos foram somados até o desenvolvimento da fotografia. Entre os precursores estão os franceses Joseph Nicephore Niépce, Daguerre e Hippolyte Bayard, o francobrasileiro Hércules Florence e os britânicos Sir J. Herschel e Willian Fox Talbot que utilizou plantas impressas sobre papéis fotossensíveis em um processo intitulado de Desenhos Fotogênicos.

3.O ensaio Florestania foi contemplado com o primeiro lugar na categoria Artes Visuais/ Fotografia no edital de cultura da Firjan SESI - Mosaico Rio 2025.

4. Disponível em: https://www. edumonteiro.com/le-jardin

Florestania é uma segunda etapa deste processo, agora realizada no novo jardim tropical carioca, a proposta é unir estes dois ensaios; Florestania e Jardinagem em um mesmo livro e exposição. Cuidar de plantas é trabalhoso e demorado, nos obriga a seguir em um ritmo mais lento, mais atento à vida e mudanças de estações. Algumas recompensas deste engajamento explodem, sobretudo na primavera, como aconteceu com o nascimento de uma flor obscenamente linda em meu jardim, a Amaryllis Carmem Vermelha, também conhecida por Açucena. Me marcou a rapidez com que ela surgiu – escondida em um bulbo durante o ano inteiro, como se não houvesse mais vida naquele vaso, ela explodiu. De um dia para outro um vigoroso caule emergiu da terra com quatro flores de vermelho intenso, duas abriram no primeiro dia e as outras duas no dia seguinte. Pareciam dançarinas de flamenco com longos vestidos vistosos, dançaram para mim por uma semana e partiram. Ficou no ar o cheiro e a lembrança da partida de alguém querido.

Adubei na leitura a relação entre plantas e imagem. O primeiro livro foi Louvor à terra do sul-coreano Byung-chul Han, também um dedicado jardineiro. No texto ele divaga sobre o cuidado com o seu quintal e traz preciosas reflexões sobre a terra, as flores, vida e morte, além de um interessante paralelo entre fotografia e jardim a partir dos escritos de Roland Barthes em A Câmara Clara . Para ele a fotografia que resiste apenas na memória de Barthes, com a imagem da sua mãe aos cinco anos de idade em um jardim de inverno é “um lugar simbólico para a morte e ressurreição [...] um jardim florescente, uma luz clara na escuridão invernal, uma vida em meio à morte [...]” (Han, 2021, p.18). Para o escritor coreano o punctum, a força vital do livro é justamente este jardim de inverno não retratado, a memória da mãe como sua única amada.

Desses acasos literários, do germinar das minhas flores e da paixão pela fotografia nasce meu quintal de reflexões. Pensar em relações entre fotografia e plantas é regar lembranças. De imediato me vem à cabeça os ensaios fotográficos de Henri Fox-Talbot, Anna Atkins e Karl Blossfeldt. Estes fotógrafos surgem como afetos, e assim como Barthes escolho estas imagens simplesmente porque elas existem pra mim, me convidam à aventura - plantas do meu jardim de memórias.

Os Desenhos fotogênicos de Fox-Talbot se confundem com o próprio nascimento da fotografia, o que faz dele um de seus inventores. Seus primeiros experimentos datam de 1834, neles as delicadas silhuetas de plantas são fixadas precariamente em um papel emulsionado com nitrato e cloreto de prata, e depois fixado sem muita perfeição com amoníaco ou solução concentrada de sal e por vezes iodeto de potássio, imagens que trazem no erro a

beleza da busca – por isso seduzem. Gesto de contato que inaugura a fotografia sem câmera e que posteriormente ficaria famoso nos fotogramas do fotógrafo, pensador e professor da Bauhaus Moholy-Nagy e nas rayografias do surrealista Man Ray. Ambos os processos não usavam câmera fotográfica, eram feitos a partir da iluminação de objetos dispostos sobre o papel fotográfico. Talbot foi também o precursor da fotografia positivo/negativo e publicou o primeiro livro de fotografia “lápis da natureza”.

Outra fotógrafa e botânica que trabalhou com um processo de contato foi Anna Atkins. Do encontro com Talbot e Sir J.Herschel, através de seu pai, o naturalista John George Children surgiu seu interesse pelo processo de cianotipia. Nos anos 1930 ela já possuía seu primeiro herbário de referência. A partir de 1942 ela começa a utilizar o processo de cianótipo para registrá-lo (Aresheva e Morette, 2024). Pequenas plantas, sinuosas, delicadas se espalham em silhueta branca por um azul intenso em suas imagens.

No ano de 2000 participei de uma exposição coletiva chamada Photo Morpho Vegetabilis , seis fotógrafos gaúchos mostravam suas flores. Karl Blossfeldt foi minha inspiração. Em suas fotos monocromáticas, plantas são apresentadas como esculturas. A ideia de escala amplifica e dignifica a complexidade dos padrões geométricos na natureza, precisos cálculos matemáticos em preto e branco. Walter Benjamim escreve sobre o artista em seu texto Pequena história da fotografia: “ É assim que, em suas surpreendentes fotografias de plantas, Blossfeldt mostrou no equisseto as formas mais antigas das colunas, no feto arborescente a mitra episcopal, nos brotos de castanheiras e aceráceas, aumentadas dez vezes [...]” (Benjamin, 1996, p. 95). Para Benjamin a natureza da fotografia é um espaço percorrido inconscientemente: “Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional.” (Benjamin, 1996, p.94). Em outro texto, também se referindo a Blossfeldt, ele fala: “essas fotografias revelam uma inteira, insuspeita, horda de analogias e formas na existência das plantas. Somente a fotografia é capaz disso” (Benjamin, 2008, p. 273).

Plantas são a pele da terra, principal fonte de vida “como em um negativo fotográfico, o que nos animais é branco nas plantas é preto e vice-versa; os animais se movem, as plantas ficam paradas [...]” as plantas garantem a vida dos outros seres “os animais se alimentam de outros seres vivos, as plantas alimentam outros seres vivos, animais produzem CO2, as plantas fixam CO2, os animais consomem, as plantas produzem [...]” (Mancuso, 2019, p. 97).

A luz é responsável pela fotografia e pelo ar que nos faz vivos através da fotossíntese. As imagens de plantas de Fox Talbot, Anna Atkins e Karl Blossfeldt falam da troca, do sopro que é a

vida - “fazer a arqueologia de uma fotografia é sempre defrontar-se com os vestígios das forças do mundo [...]”. A relação de flores, plantas, fotografia, terra e sol se encaixa e confunde-se no caminho cósmico “os antigos já o sabiam: imagem é o que sucede a tudo o que morre” (Lissovsky, 2014, p.197). Tal percepção reforça a ideia de vida e morte, que nas flores mais especificamente, configura-se de forma efêmera e impactante. Ao espelhar esses ciclos “a planta encarna o laço mais íntimo e mais elementar que a vida pode estabelecer com o mundo.” (Coccia, 2018, p.13) Florestania inspira-se no ar, na luz, na permeabilidade dos seres vivos, no cuidado com meu quintal para colher imagens íntimas. Tudo está em tudo 5 . 5. Anaxágoras.

Referências

ARESHEVA, Victoria; MORETTE, Clothilde. (Orgs.). Catálogo da exposição Science/Fiction Une non-histoire des Plantes. Leipzig: Spector Books, 2024.

BENJAMIN, Walter. News about Flowers. In The work of ar t in the age of its technological reproducibility and other writings on media . Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2008.

BENAJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo. Brasiliense,1996.

BLOSSFELDT, Karl. Urformen der Kunst: Photographische Pf/ anzenbilder [Originary Forms of Art: Photographic Images of Plants]. Berlin: Ernst Wasmuth, 1928.

COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.

HAN, Byung-Chul. Louvor à terra: uma viagem ao jardim. Petrópolis: Vozes, 2021.

KRENAK, Aílton. Futuro Ancestral . São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

LISSOVSKY, Maurício. Pausas do destino: teoria, arte e história da fotografia. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas: um novo modelo para o futuro. São Paulo: Ubu, 2019.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

São Paulo na década de 1940: Paisagens instáveis, por Francisco

Rebolo

São Paulo in the 1940s: Unstable Landscapes, by Francisco Rebolo

João Carlos Teixeira Junior1

Resumo: Este texto busca apresentar um panorama da paisagem paulistana em sua transformação, pelos olhos de Francisco Rebolo. Para tanto estabeleceu-se a década de 1940 como recorte temporal, já que representou um tempo de agudas modificações no tecido social, político e econômico em São Paulo. Elencou-se para tal, a análise das obras Praça Clóvis e Paisagem do Morumbi, a partir de conceitos de disputa de territórios de Pechman (1994) e de suas representações, conforme Beatriz Sarlo (2010).

Palavras-chave: Modernismo; Pintura de Paisagem, Arrabalde.

1.Doutorando pelo Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA-USP). E-mail: joaocarlosteixeiraj@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/1572660143967579.

O arrabalde

Francisco Rebolo Gonzales (1902 - 1980) pintou uma infinidade de telas cujos temas eram a paisagem das periferias paulistanas, de cidades satélites da capital, litorâneas e do interior paulista. Na segunda metade da década de 1930, Rebolo, pertencente à classe trabalhadora, passou a dividir espaço em uma sala no Edifício Santa Helena com figuras como Mário Zanini, Fúlvio Pennacchi, Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, entre outros, no que, posteriormente, ficou conhecido como “Grupo do Santa Helena”. A saleta era usada como escritório de prestação de serviços na área de decoração, construção civil e reformas, e, ao final do dia, servia de ateliê ao coletivo de artistas. Aos finais de semana, estes realizavam incursões para pinturas ao ar livre nos arredores de São Paulo (Zanini, 1991, p. 116).

Neste texto analisaremos duas pinturas de paisagens realizadas por Rebolo que são sintomáticas das mudanças no panorama paulistano da primeira metade do século XX, período de emergência de uma elite financeira baseada no setor primário (café); na reconfiguração arquitetônica do centro da cidade; na absorção de imensos contingentes imigratórios e no aprofundamento de desigualdades sociais.

Comecemos por Praça Clóvis , obra realizada pelo artista em 1944 (figura 1), que está entre as poucas exceções às pinturas dos ermos campos representados pelo artista em questão. Entretanto, muito embora o primeiro plano esteja composto de elementos insólitos para o que se costuma ver da produção de Rebolo, a pintura é mais “Reboliana ” do que pode parecer.

O quadro é pintado a partir da janela do escritório do pintor, no Edifício Santa Helena, cuja memória vale recordar: o prédio estava localizado à Praça da Sé, na lateral direita da catedral, mas foi demolido na década de 1970 para a construção da estação de metrô. Durante muitos anos figurou, ao lado do Teatro Municipal (estreado apenas 5 anos antes), como polo de entretenimento cultural. Contava com uma sala de cinema em seu subsolo, na qual Rebolo, segundo ele próprio, trabalhou na decoração (O eles tiveram o dom da humildade, 1971, p. 38) e um requintado cine-teatro.

sobre

dos Palácios do Governo.

Figura 1: Praça Clóvis (óleo
tela), Francisco Rebolo (1944), Acervo do Gov. do Estado de São Paulo. Fonte: Acervo Artístico-Cultural

Planejado para ser, originalmente, um prédio de escritórios comerciais, o local se converteu em um espaço multifuncional, através dos já referidos cinema e cine-teatro, somados às inúmeras lojas que ocuparam o local, atendendo, inicialmente, à elite da capital paulista. Contudo, a região passou a ser frequentada pela população de menos recursos financeiros, moradores de bairros periféricos cujos bondes faziam ponto final nas proximidades do Santa Helena. Esse, por sua vez, passou, em poucos anos, de um prestigiado emblema da aristocracia local a uma estrutura de saletas alugadas a preços reduzidos, pululadas de organizações sindicais e profissionais à espera de seu público, agora de menor poder aquisitivo. Os mais abastados preteriram a circulação no local e passaram a ocupar a região oeste do centro (Ibidem, p. 156).

Retomando a pintura, do ponto de vista formal, a paisagem está composta pela característica paleta acinzentada do pintor, fruto da quase inexistência de contrastes fortes e da predominância de tons pasteis que o pintor opacifica, inclusive nos elementos mais próximos do espectador. As linhas convergem para um ponto de fuga à esquerda, atrás do último telhado cortado ao meio da última casa ocre do lado esquerdo. As linhas retas são, talvez, o fator mais proeminente da composição, do ponto de vista formal, já que o excesso de verticais e diagonais criam, no primeiro plano, uma zona de tensão que se suaviza no fundo, com a solução de blocos de manchas justapostas, que sugerem a horizontalidade dos bairros residenciais ao fundo. Por fim, na faixa final, vê-se a passagem suave para um céu acinzentado, desbotado em certas zonas.

Por ser um pintor afeito às paisagens naturais, é curioso ver como Rebolo ordena as intersecções entre as linhas e cria uma geometria conflituosa que ordena com maestria no fundo. Ao analisar diagramaticamente esta mesma obra sobre este conflito, Campos afirma que:

Praça Clóvis exemplifica uma forte tensão espacial exemplarmente demonstrada pela contraposição de duas grandes estruturas arquitetônicas, ao mesmo tempo em que aponta para uma intensa abertura, tanto nas laterais quanto na profundidade[...] As forças tensionais angulares [...] ficam patentes por não haver praticamente alguma linha paralela à forma da tela. (Campos, 1990, p. 93)

Na metade debaixo da tela, seis elementos chamam a atenção e possuem forte valor simbólico e documental das transformações ocorridas na cidade: 1. um casebre bege, em primeiro plano, que ocupa a quarta parte inferior da composição. A construção,

com aparentemente três andares e localizada no encontro entre as ruas Roberto Simonsen e Ladeira do Carmo (futura avenida Rangel Pestana), prolongando-se nesta, no sentido do fluxo dos carros. Atualmente o casario deu lugar a um alto espigão de mais de 60 metros; 2. um coletivo bordejando a praça, e, ao lado, dois automóveis, além de duas pessoas caminhando. Trata-se da “Ladeira do Carmo”, rua que, após alargamento no final da década de 1940, passou a ser Avenida Rangel Pestana que liga os fundos da Sé ao bairro do Brás; 3. a igreja de uma torre só, à direita, é a da Ordem Terceira do Carmo, datada da metade do século XVIII, e, cuja ampliação contou com a construção de um frontispício realizado pelo arquiteto Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira) (Ferreira, 2018, p. 72); 4. os edifícios em frente à igreja, compostos de um bege mais opaco e resolvidos em quatro retângulos enfileirados e de tamanhos diferentes. O conjunto de prédios é uma inovação na região leste do centro. São os idos de 1940, e o processo de verticalização da cidade, iniciado vinte anos antes (O Edifício Martinelli data de 1924), está ainda restrito a uns poucos exemplares na região da Sé, São Bento (com destaque para o prédio do Banco do Estado de São Paulo, inaugurado em 1940 e que conta com 160 metros de altura), e, principalmente, a área situada entre o Vale do Anhangabaú e a Praça da República, novo foco de desenvolvimento para além do ‘triângulo’ (Campos e Simões, 2006, p. 64); 5. a faixa de casas atrás compõem um mosaico que se inicia com uma mancha verde, que indica as margens do Rio Tamanduateí, e termina com a Serra da Cantareira, representada por suas linhas sinuosas à direita. Trata-se de bairros como Brás (indicado pelo gasômetro que se revela por detrás do conjunto de edifícios maiores), Bresser, Mooca, entre outros que, apartados geograficamente, têm nos bondes sua ligação com a região central 2; 6. Acima dela, o trecho final do quadro, pictoricamente mais homogêneo que o restante da obra, que indica o céu de um dia ordinário na capital paulista.

Se compararmos a pintura de Rebolo à imagem em vídeo (figura 2), na qual tem-se o print de uma panorâmica feita por um drone, serão perceptíveis as mudanças no entorno da Praça Clóvis, que agora está ilhada entre edifícios. Para além dos diferentes registros memoriais, as imagens revelam uma alteração semântica na paisagem. Ferrara (2008) defende que a verticalização tem um poder simbólico sobre quem interage com sua visão: “Construir para significar, verticalizar para fazer ver, fazer ver para simbolizar. Esses são os elementos que permitem estudar a cidade como meio e como mídia” (Ferrara, 2008, p. 41).

2.Como mencionado anteriormente, os bondes para os bairros do Brás, Mooca e Penha, faziam ponto final no Largo do Tesouro, região baixa da Praça da Sé, o que afastou as populações mais abastadas da praça, em si, e, consequentemente, do próprio Palacete. Com a saída dos mais endinheirados, a Sé se tornou, posteriormente, ela mesma, ponto final de várias linhas de ônibus e, na década de 1940, a própria Praça Clóvis teve diversas demolições que a ampliaram e conformam-na no principal terminal de transporte coletivo de então (Campos; Simões, 2006, p. 165)

O conceito de mídia e meio são reveladores deste raciocínio sobre a cidade, pois esta, mais que funcionar, passa a comunicar. Os prédios são, portanto, “índices materiais e formais”, nas palavras da autora (Ibidem, p. 41), que constituem a imagem desta urbe. O uso do termo índice não é à toa: em última instância, erigir, empilhando bloco, concreto e vergalhão, denota uma ação incisiva do ser humano sobre a natureza, contrapondo planos e criando ortogonais que geram signos de dominação, poder e submissão4

Retomando ao raciocínio de Ferrara, a autora aprofunda a semiótica desta paisagem:

Enquanto fruição, a imagem está relacionada à paisagem da cidade. Nesse caso, paisagem não é cenário, ao contrário, é agente de uma dinâmica cultural que, enquanto mídia, elimina as dimensões perceptivas que distinguem visualidades para atuar como controle de um modo de ver programado à distância pelos veículos de comunicação de massa, para ser fruída em doses homeopáticas e comprimidas em porções ou pedaços metonímicos da cidade selecionados para valer pelo todo e, portanto, mais retórica visual do que paisagem propriamente dita. A imagem da cidade como mídia leva, portanto, à instrumentalização da sua paisagem e da sua visualidade. Nesse domínio, o cartão postal ou os lugares da cidade mostrados pela televisão são recursos ágeis para selecionar quadros, planos, angulações, cores e cenas e disciplinar os modos de ver a cidade. (Ferrara, 2008, p. 47)

Como mencionado anteriormente, a representação dos espaços de uma cidade e suas alterações compõem um evidente registro memorial de um estado temporal e espacial que foi atravessado por outras relações interpessoais - via de regra ligadas ao dinheiro. Milton Santos (1996), reforça a historicidade em que estes sistemas produtivos se dão, além das próprias configurações territoriais - em grande parte decorrentes de tais sistemas produtivos (p. 67). Assim, o que entendemos por paisagem também está em transformação: “a paisagem é um conjunto de formas heterogê -

Fonte: Youtube3

3.Encontrado em: https:// www.youtube.com/ watch?v=OILPUEuM5ns. Acesso em: 08 abr. 2025.

4.Conforme Teixeira Coelho, “índice é um signo que se refere ao objeto denotado em virtude de ser diretamente afetado por esse objeto” (Coelho, 2007, p. 58).

Figura 2: Vista aérea atual da Praça Clóvis desde a Praça da Sé (ponto de vista próximo ao antigo ateliê do Grupo do Santa Helena).

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

neas, de idades diferentes, pedaços de tempos históricos representativos das diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o espaço” (Santos, p. 68).

Já Paisagem do Morumbi (1942), retrata um rincão por muito tempo incomunicável com o restante da cidade, e que o próprio artista residiu.

Figura 3: Paisagem do Morumbi, (óleo sobre tela, 40 x 50cm), Francisco Rebolo (1942). Coleção Particular. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural5

5.Acesso em: 08 abr. 2025.

A territorialização da ordem a partir da inscrição na paisagem urbana de uma geometria, de uma abstração, irá subverter por completo a lógica que estruturava a vida urbana, comprometendo seriamente o destino daqueles nômades urbanos que sempre sobreviveram nas dobras do espaço público. (Pechman, 1994, p. 31)

Em meados do século XIX, o bairro constituía a grande fazenda do Padre Diogo Antônio Feijó (Regente Feijó), que a vendeu ao inglês John Rudge, que por sua vez desenvolveu nela a cultura de chá preto e de uva. Já no século XX, o empresário Oscar Americano de Caldas Filho loteou a região em chácaras (Levino, 2004, p. 195). A partir da década de 1940, o bairro assistiu a um intenso processo desenvolvimentista, o que, em seguida, foi acentuado com a construção do estádio do São Paulo Futebol Clube e com os substanciais investimentos em marketing pela Cia Imobiliária Morumby, no intento de comercializar terrenos no bairro. A criação de uma linha de ônibus que ligava o Morumbi ao bairro do Brooklin, foi, inclusive, parte dos esforços da empresa.

A tela, em análise, conserva a estrutura típica mantida por Rebolo no período anterior à viagem para a Europa (1954), em que o artista utiliza-se de uma inteligência bastante intuitiva para estabelecer uma composição equilibrada: na pintura, as cercas formam duas diagonais à direita que direcionam o olhar para um arbusto de troncos esguios e folhagem verde limão, no centro da tela. O terreno em declive somado às linhas oblíquas é um desafio para a representação em profundidade dos planos. Constata-se o que disse Milliet de sua pintura, quando da inauguração de sua mostra individual na Galeria Itá: “Suas paisagens são desde logo um jogo precioso, sensível e muito seguro, intuitivamente seguro de valores e planos, no qual, por instinto mais do que por sabedoria, o artista descobre a perspectiva aérea e as linhas rítmicas” (Milliet, 1944, p. 274).

Para solucionar o desnível do solo e evidenciar a hierarquia das posições, o recurso utilizado por Rebolo é o da acentuação do contraste no primeiro plano; enquanto que as demais porções se acinzentam à medida que se distanciam do observador. Além disso, os troncos dos três arbustos mais próximos e as duas estacas cravadas no solo, à esquerda, situam o espectador em relação à topografia acidentada da região a partir de sua relação paralela com as bordas do quadro.

A pintura é toda resolvida em uma paleta econômica, que varia dos tons de verde a um marrom cuidadosamente plantado no canto inferior direito e em outras zonas pontuais. O próprio céu, pressionado no primeiro quinto do quadro, acima, está

composto de um azul que se desmatiza e que prenuncia um incipiente âmbar em seu limite com os verdes da topografia. Dessa forma, o artista confere uniformidade cromática e tonal ao conjunto. Sobre tal aspecto de sua obra, o pintor, desde os primeiros anos de sua carreira, demonstrou um exímio controle sobre a utilização desses meios tons, e fez disso uma característica marcante de sua produção.

A paisagem suburbana é, certamente, um posto privilegiado de observação e estudo das transformações da cidade e da formação das classes sociais”, aponta José de Souza Martins (1992, p. 8). A periferia, enquanto ente posto no espaço urbano e constituído como o elemento fronteiriço deste espaço, torna-se ambígua, por representar a resistência ao acelerado processo de modernização que muitas cidades experimentam. Helaine Queiroz (2022) cita a pesquisadora do modernismo argentino, Beatriz Sarlo, para evidenciar este ‘não lugar’ ocupado pelas margens da cidade, como se estivesse entre a renovação estética e a preservação da memória (Sarlo apud Queiroz, 2022, p. 225). Esta incompletude passa a fazer parte do cotidiano de seus cidadãos. A própria Beatriz Sarlo sustenta que tais alterações, aceleradas e intensas, além de modificarem a estrutura física da cidade, têm um impacto decisivo na formação subjetiva de sua população (Sarlo, 2010, p. 36).

Assim, e concluindo, tanto Paisagem do Morumbi quanto Praça Clóvis estão perfeitamente inseridas no rol dos arrabaldes paulistanos, uma vez que constituem um desejo último de Rebolo de congelar o tempo e espaço das inevitáveis alterações urbanas do porvir. Em 1957, Oscar Pedro Horta, em discurso no Clubinho 6 já se referia a este tema:

Pintor dos horizontes brumosos que se confundem com céus apagados - pintor dos subúrbios de vida tranquila, ninguém melhor do que Rebolo interpretou essa atmosfera de São Paulo, hoje acelerada e rudemente transformada pelas fábricas e pelos arranha-céus. As suas telas constituirão, no futuro, documentos precisos, quase únicos, de um período de transição de nossa paisagem (Horta, 1952, apud Amaral e Gonçalves, 2002, p. 122)

O subúrbio “descoberto”

Sobre a paisagem do arrabalde, atribui-se a esta certa atmosfera de nostalgia - como um último bastião onde a mão do progresso tardou a tocar - e que, certamente, não passa despercebida pelos artistas aqui analisados. Mário de Andrade refere-se a esse

6.Em 1945 Rebolo se juntou a Nelson Nóbrega, Alfredo Volpi, Mario Zanini, Quirino da Silva e Paulo Rossi Osir para fundar o Clube dos Artistas e Amigos da Arte (CAAA), que ficou conhecido como clubinho, e durou até o fim da década seguinte.

fugere urbem7 dos santelenistas em artigo no Diário de São Paulo, ao mencionar o subúrbio paulista como paisagem agradável aos olhos, por ser uma terra trabalhada, com casas de telhados róseos, intercalados com o cultivo do solo em plantações e, em alguns casos, residências proletárias cujos residentes, lograram condições financeiras favoráveis, ampliando suas propriedades para chácaras (Andrade apud Zanini, 1991, p. 122-123). O autor de Macunaíma enxerga poesia nesses arrabaldes de São Paulo, mas não os vê no subúrbio carioca devido à configuração de suas habitações amontoadas (palavras do autor), que os torna “legítimos bairros pobres, com todas as deficiências vitais dos bairros mal dispostos e nada das graças e higiene de viver dos verdadeiros subúrbios” (Ibidem, p. 122). Mário conclui, afirmando que a periferia carioca deu-se a conhecer pelos prosadores, ao passo que da paulistana tomamos conhecimento através dos pintores; e, diz ainda, que o que defende não é a poetização do sofrimento, mas que o bem estar humano se dá em uma convivência harmônica com seu meio natural.

É vasta, na literatura e nas artes visuais, a recorrência à paisagem suburbana como fonte de inspiração por estar distante do que se considera progresso, quase como uma busca por paralisar a passagem do tempo. Neste sentido, Beatriz Sarlo, afirma que:

Uma velha ordem relembrada ou fantasiada é reconstruída como passado pela memória. Diante desse horizonte, posicionamos e avaliamos o presente. Tal configuração ideológico-cultural emerge de uma “estrutura de sentimentos” particular, transformação, recordação, lamento são formas e atitudes que uma sociedade - ou um setor dela - adota perante um passado cujo desaparecimento é vivido como irremediável. A idealização organiza essas reações; idealiza-se uma ordem passada a que se atribuem traços de uma sociedade mais integrada, orgânica, justa e solidária. (Sarlo, 2010, p. 60)

Milliet (1944, p. 274) refere-se a uma paisagem composta de verdes terrosos e horizontes pálidos que ganham visibilidade através de um olhar poético que Rebolo lança por um profundo conhecimento destes arrabaldes. O crítico atribui a este profundo conhecimento o fato de as representações referidas estarem distantes de elementos estereotipados e “violências luminosas”. Nesse sentido, retomando as palavras de Mário de Andrade, e precisando sua análise sobre os arrabaldes, o crítico enfatiza não ser sua intenção a de romantizar a pobreza e negar que haja também drama na periferia paulistana; e qualifica os Pintores do Grupo do Santa Helena (dentre os quais, Rebolo), como pintores “dotados de um proletarismo psicológico intenso (a quem) coube descobrir e revelar essa paisagem suburbana da cidade” (Andrade apud Zanin, 1991, p. 122).

A recorrência do termo “proletário” e suas ambivalências é necessariamente assunto para ser problematizado em estudo à par-

7.O termo “Fugere Urbem” vem do latim “fugir da cidade” e foi criado por Sêneca, dramaturgo romano que defendia o ato como um distanciamento necessário para contemplação da natureza e busca por uma vida mais frugal. Com o tempo a expressão ganhou contornos de bucolismo e foi utilizada na literatura. Eça de Queiroz, em seu livro A cidade e as serras (1901), narra a saga de duas personagens que vivem a relação dialógica entre a modernidade de Paris (experimentada por Jacinto) e o ‘atraso’ português (valorizada por José). Por fim, Jacinto tem que retornar à Portugal e passa a valorizar também essa vida inserida na natureza e abrir mão das facilidades da vida moderna, conforme narrado nas páginas finais: “Na tarde do seguinte domingo, debruçado da janela do comboio, que vagarosamente deslizava pela borda do rio lento, num silêncio todo feito de azul e sol, avistei, na plataforma da quieta estação da minha aldeia, os senhores de Tormes, com a minha afilhada Teresa, muito vermelha, arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacintinho, que empunhava uma bandeira branca”. (Queiroz, 1977, p. 184).

te, contudo, o uso de “descobrir” é o que pode ser contestado de antemão. Mário, que no período de 1927 - 29 viajou pelo interior do Brasil em busca de desvendar o país em que vivia, talvez tenha identificado nos pintores do GSH o mesmo intento. Entretanto, o termo descobrir - para além das camadas coloniais a que remete, vinculados à historiografia brasileira - pressupõe uma distância que, como tratado na crítica de Milliet, não corresponde à prática de vida de Francisco Rebolo.

Referências

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ZANINI, Walter. A Arte no Brasil nas Décadas de 1930-40: o Grupo Santa Helena. São Paulo: EDUSP, 1991.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Em Brasília - Últimos lançamentos

da moda têxtil

para a primavera e verão 1959/60

In

Brasília - Latest releases in textile fashion for spring and summer 1959/60

Virna Lucia Santolia da Silva1

Resumo: Um instantâneo da sociedade brasileira pode ser observado no publieditorial Em Brasília: Últimos Lançamentos da Moda Têxtil para a Primavera-Verão 1959/60, publicado na Revista Manchete em outubro de 1959. Fotografado por Otto Stupakoff, o editorial trazia seis fotografias que destacavam a alta costura com tecidos Rhodia, tendo a arquitetura modernista de Brasília como cenário de progresso. No entanto, perpetuava modelos paternalistas, racistas e de estratificação social, ainda visíveis em 2024.

Palavras-chave: Moda têxtil; Modernidade; Estratificação social.

1. PPGARTES Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Email: santolia@terra.com.br Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/9971891349916716

Introdução

Este artigo examina o publieditorial Em Brasília: Últimos Lançamentos da Moda Têxtil para a Primavera-Verão 1959/60, publicado na Revista Manchete em outubro de 1959, com fotografias de Otto Stupakoff e produção da Rhodia. O editorial, que promovia tecidos de filamentos artificiais e usava a Brasília em construção como cenário, destacava-se pela apresentação de alta costura e pela estratégia de encartá-lo em papel especial para atrair consumidoras. A questão central da pesquisa consiste em investigar como essas imagens, além de seu objetivo publicitário, podem ser lidas como representações visuais de questões sociais e culturais da época.

O objetivo principal da pesquisa é entender como as fotografias ultrapassam a simples função de um editorial de moda, permitindo uma análise crítica do contexto histórico, social e cultural do final da década de 1950. Em segundo lugar, busca-se explorar as estratégias visuais e narrativas de Stupakoff, observando a escolha do cenário, a representação das modelos e a inclusão de elementos simbólicos, como os trabalhadores da construção civil, que sugerem uma narrativa de progresso, mas também revelam desigualdades sociais subjacentes.

O estudo se concentra na análise de duas imagens específicas do editorial: uma fotografia panorâmica com doze modelos em frente ao Palácio do Planalto e uma foto final com duas modelos ao lado de operários da construção de Brasília. A partir da perspectiva de Georges Didi-Huberman, que vê a imagem como um rastro do tempo, a pesquisa busca revelar camadas ocultas de significado, demonstrando que, mesmo em um editorial de moda, há discursos visuais que expõem as desigualdades e aspirações de uma sociedade em transformação.

1 - O Publieditorial

O editorial de moda analisado neste artigo é um exemplo sofisticado de uma estratégia pioneira no Brasil introduzida pela Rhodia: o publieditorial. Diferente de um editorial de moda tradicional, que é produzido pela equipe de uma revista para destacar tendências emergentes sem custo para as marcas, o publieditorial é uma ação paga, planejada pela própria marca, com o objetivo de promover exclusivamente suas peças ou produtos. Nesse caso, todas as roupas exibidas foram confeccionadas por clientes da Rhodia, utilizando seus fios de filamentos artificiais. Essa inovação não apenas pro-

movia a marca, mas também educava o público sobre a qualidade e a aplicação tecnológica dos tecidos, além de explorar as tendências de moda da época, tudo em um encarte colorido, diferenciado do restante da revista Manchete, que era predominantemente em preto e branco.

A produção deste publieditorial se deu em um contexto histórico de otimismo e modernização acelerada no Brasil. Em 1959, o país vivia um período de grande ufanismo, impulsionado pela construção de Brasília, a nova capital idealizada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, símbolo do progresso e da industrialização que buscava deixar para trás a imagem de um Brasil rural e atrasado. Ao mesmo tempo, a cultura brasileira ganhava destaque internacional com a ascensão da Bossa Nova e a premiação de Manabu Mabe na Quinta Bienal de São Paulo, que atraiu milhares de visitantes e exibiu obras de mestres como Van Gogh.

A escolha de Brasília como cenário para o editorial não foi casual; a arquitetura modernista da cidade, com suas formas esculturais e linhas geométricas inspiradas em Le Corbusier, reforçava a imagem de um Brasil promissor e cosmopolita que a Rhodia desejava associar aos seus produtos.

Stupakoff, já familiarizado com a estética modernista, trouxe sua experiência anterior, adquirida ao fotografar a obra de Niemeyer em 1958 para a Revista Módulo, também dirigida pelo arquiteto, para compor imagens que combinam elegância e funcionalidade em um estilo já consagrado nas revistas europeias e tecnicamente dominado por Stupakoff, no qual mulheres se apresentam em imagens tão sublimes quanto quadros de “natureza morta” (Bonadio, 2014). São retratos em que a modelo se arma numa pose diante das câmeras com o compromisso de mostrar roupas, modelagens, tecidos e acessórios; esses são os referentes, ou como seria descrito por Barthes, uma fotografia que adere ao referente (Barthes, 2012).

1.1 A Terceira Foto: trazidos pela brisa de Paris

As doze modelos do time Rhodia que haviam ido a Brasília posam em frente às colunas do Palácio do Planalto com a inscrição “Trazidos pela brisa de Paris” e “Levados para Brasília nas seleções Albène, Rhodia e Rhodianyl”. O cenário é a fachada do Palácio do Planalto, projeto de Oscar Niemeyer e inaugurado seis meses após essas fotos. Um exemplo emblemático da arquitetura modernista brasileira que simbolizava o progresso e a modernidade almejados pelo governo de Juscelino Kubitschek.

As modelos são iluminadas pela luz natural do sol de Brasília numa manhã. É uma luz dura, que percebemos pelas sombras marcadas, principalmente na segunda e na sexta modelo que usam chapéus. Cabe ao fotógrafo fazer escolhas de como contar sobre uma cena e Stupakoff escolhe colocar a câmera pouco abaixo das modelos, provavelmente a altura da cintura delas. Esse ângulo torna-as pouco maiores, Trata-se de uma fotografia panorâmica, que sofreu cortes na parte de cima e de baixo para melhor se encaixar em quatro páginas do encarte. E a lente escolhida parece ser uma pequena teleobjetiva, uma lente que achata os planos, e ainda torna as modelos próximas do espectador.enaltecendo seus vestidos. A combinação de cores dos vestidos demonstra uma composição de imagem exímia. Todas se destacam do cenário e a única que poderia se misturar ao fundo azulado pela sombra, a décima modelo, vestida de azul, fica sobre uma das colunas brancas. Stupakoff demonstra toda sua maestria da composição e direção de modelos nessa foto.

Usando a imaginação para acessar a intimidade dessa imagem, digo que cada um desses 12 looks referem-se a um determinado estereótipo feminino: a primeira mulher lembra uma personagem de cinema; a segunda, alguém que vai pegar o trem na Europa; a terceira é a mais velha de alto poder aquisitivo; a quarta é uma adolescente; a quinta de cor de rosa é uma atriz dramática; a sexta vai almoçar com amigas; a sétima é uma jovem esposa; a oitava e a nona são as amigas se encontrando; a décima vai a um evento de gala; a décima primeira está elegantemente em uma tarefa cotidiana e a última é uma jovem debutante. Todas são brancas, felizes nas suas peles e pertencentes à classe hegemônica. Esse é o mundo perfeito que Rhodia nos entrega através das lentes de Stupakoff. Além das roupas, a atitude das modelos frente à câmera, também é carregado de significados e estereótipos. São mulheres sorridentes, leves e graciosas, em posições variadas, algumas segurando acessórios como chapéus, guarda-chuvas e luvas, todas exibindo um estilo elegante e sofisticado da moda do final dos anos 50. A performance dos corpos que se repete em outras fotografias da mesma época, compõe o imaginário do comportamento esperado de uma mulher feliz pertencente à classe hegemônica.

Figura 1: Em Brasília: Últimos Lançamentos da Moda Têxtil para a Primavera-Verão 1959/60. Fonte: Stupakoff, Revista Manchete, encarte

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Se a construção de uma nova capital significava progresso e futuro, fotografar roupas feitas com os novos filamentos que revolucionavam a indústria têxtil, na frente do Palácio do Planalto, significada que aquela era uma moda que iria se estabelecer, que muito em breve, o fio Rhodia estaria definitivamente implantado no Brasil. “Em 1960, o consumo aparente de fibras sintéticas no Brasil era de 5.731 toneladas. Cinco anos mais tarde, esse número quase triplicou, somando 15.041 toneladas e saltando para 56.640 toneladas em 1970.” (Bonadio, 2014, p. 208).

1.2 A Última Página: Pamela e Anne

Neste artigo vamos nos deter na segunda imagem desta página: duas modelos com vestidos glamourosos, ornadas com luvas, salto alto e sombrinha para proteger no sol do planalto, aparecem ladeadas por dois operários que construíam Brasília. As modelos Pamela e Anne são brancas e os operários, com nomes não citados, possuem a pele escura.

Figura 2: Em Brasília: Últimos Lançamentos da Moda Têxtil para a Primavera-Verão 1959/60.

Fonte: Stupakoff, Revista Manchete, encarte

A fotografia destaca a disparidade entre as classes sociais, representada pelas roupas e pela postura dos personagens. As mulheres estão em poses elegantes e descontraídas, enquanto os trabalhadores têm suas roupas sujas, o que reflete a hierarquia social. A presença dos dois trabalhadores serve apenas para realçar o status das mulheres brancas. Este contraste sugere uma sociedade estratificada, onde o glamour da alta sociedade é mantido às custas do trabalho braçal de classes menos privilegiadas.

A imagem afirma que o sonho de uma nova capital era sustentado por muitos trabalhadores anônimos, cuja contribuição frequentemente não era reconhecida de forma justa. A legenda menciona que as mulheres estão entre “dois dos vinte mil homens que estão construindo Brasília” (Martins, 1959, encarte), destacando a magnitude do trabalho braçal envolvido na construção da cidade. A ausência de identidade desses dois trabalhadores, cujos nomes não são citados, reforça a invisibilidade e a falta de reconhecimento desses indivíduos na grandiosa narrativa da construção de Brasília.

Além disso, a fotografia reafirma que lugar de mulher é cuidando da casa, no caso de mulheres brancas da alta sociedade, cuidando do jardim, reforçando um estereótipo de gênero restritivo. Essa foto não trata apenas de mostrar as novas fibras da Rhodia e as tendências primavera-verão de 1959/60, mas é também um poderoso comentário sobre as dinâmicas sociais, econômicas e raciais do período. Através da análise crítica, podemos compreender melhor as complexas interações entre moda, progresso urbano e injustiça social.

Considerações Finais

A fotografia de um editorial de moda opera no terreno do onírico. São imagens que visam transportar a leitora da revista para um mundo dos sonhos, onde pode imaginar- se como a personagem retratada, adotando seus hábitos, estilo de vida, aventuras, roupas e atitude. A edição da revista Manchete de outubro de 1959, por exemplo, apresenta a mulher idealizada que frequentará os salões de Brasília, vestida tão bem quanto uma europeia, destacando a cintura fina, luvas e muitas anáguas. Essa mulher também é retratada como dona de uma casa com jardim e funcionários, típica dos Anos Dourados, um período desenvolvimentista sentido à flor da pele, com eletrodomésticos que facilitavam a vida doméstica, comida industrializada e agora chegavam os tecidos que deviam vestir essa mulher. Para pertencer a essa elite, era essencial consumir.

A idealização da mulher reforça a posição de inferioridade em relação ao homem. A moda torna-se um espaço de apoio para a

mulher, oferecendo a ela um meio se vestir conforme as expectativas de um grupo social específico, obtendo assim aprovação e pertencimento. As mulheres são mostradas como símbolos de beleza e sofisticação, mas também como elementos decorativos no cenário arquitetônico de Brasília. Isso reflete um padrão comum na publicidade da época, e que perdura até hoje, onde o papel da mulher, muitas vezes é relegado a ser um adorno estético. Sua presença é chancelada por um padrão de beleza, e não por um papel mais profundo na sociedade, reforçando estereótipos, sobretudo por ser um padrão de beleza eurocêntrico, um ideal difícil e custoso de ser alcançado por grande parte das mulheres brasileiras. Essa idealização também revela as desigualdades sociais, raciais e de gênero presentes na época. Nos editoriais da Rhodia, por exemplo, não há modelos negras; os negros que aparecem são representados como empregados.

Essas imagens de moda em Brasília são mais do que simples registros estéticos; elas “ardem em contato com o real” (Didi-Huberman, 2012, p.208), encapsulam um momento de transformação no Brasil. Utilizam a nova capital como um símbolo de modernidade e progresso, ao mesmo tempo em que contrastam a vida glamourosa das modelos com a realidade dura dos trabalhadores, uma desconexão entre modernidade e realidade social. Esse contraste enfatiza as desigualdades sociais da época, enquanto a escolha de cenários modernos reflete o desejo de um Brasil que olha para o futuro. As fotografias, portanto, funcionam tanto como documentos históricos quanto como comentários sociais e políticos sobre a sociedade brasileira da época. A fotografia de moda ou a publicidade desses anos, provocam-nos pela exclusão, por aquilo que não mostram.

Não se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio, portanto, não se pode falar de imagens sem falar de cinzas. As imagens tomam parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de desejo e de temor) e suas próprias consumações. (Didi-Huberman, 2012, p. 210)

As imagens refletem uma tentativa de alinhar a moda e o estilo com o progresso do Brasil durante a construção de Brasília, mas o fazem de maneira que perpetuam estereótipos de gênero, ignoram as realidades sociais e contribuem para a marginalização das verdadeiras forças de trabalho por trás da construção da cidade

Nem todas as decisões no processo criativo de um editorial, tangem ao fotógrafo. No trabalho comissionado, o fotógrafo parte de um briefing2 , dado por uma editoria de moda, por uma agência de publicidade ou pelo cliente. A história que agências de publicidade nos vendem é a história das classes hegemônicas, seus clientes.

2.Briefing são uma série de dados, fornecidos pelo cliente ou agência ao fotógrafo, para nortear a produção da fotografia em publicidade e moda.

O que cabe ao fotógrafo é escolher as ferramentas para contar essa história. Stupakoff trabalhava com equipamento de grande formato, os mais recomendados quando o parque gráfico ainda não dispunha dos recursos atuais. Esse tipo de câmera requer um ritmo de trabalho do set de fotografia impensável hoje em dia. Se com equipamento digital, fotógrafos têm um latifúndio de cliques, até atingir a fotografia perfeita, a sessão fotográfica não precisa ser interrompida para a troca de filmes. No médio formato um filme tem de 10 a 15 cliques. No grande formato, cada clique é único, precisando o fotógrafo dirigir as modelos para que todas estejam na sua melhor forma com poucos cliques. O fotógrafo assume o papel de um caçador aguardando a presa, que é o instante decisivo 3 , quando todas as modelos estão no seu esplendor e a fotografia se enche de significados.

Essas fotografias são um retrato das tensões entre modernidade e tradição, progresso e desigualdade, que ainda são relevantes nas discussões sobre representação e justiça social hoje. Pensar numa evolução da linguagem visual dessa fotografia realizada por Stupakoff em Brasília para a Rhodia, é pensar onde seus defeitos foram sanados, onde a fotografia de moda tornou-se libertária para as mulheres, ativista em relação ao gênero e à raça, e promotora de uma sociedade mais igual, rompendo a história única das elites.

3.O termo instante decisivo foi cunhado por Cartier-Bresson para designar o momento perfeito em que uma fotografia se enche de significado, devendo o fotógrafo agir como um caçador à espreita desse átimo de segundo.

Anexo I:

Figura 3 a 6: Sequência de páginas do encarte que compõe o publieditorial em estudo neste artigo. Fonte: Revista Manchete, encarte

Referências

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Poéticas e políticas do sentir latino-americano

A fotografia à luz da teoria de Gilbert Simondon

Photography in the light of Gilbert Simondon’s theory

Dirceu Maués1

Resumo: Este artigo busca ampliar as discussões teóricas sobre uma suposta identidade ou estatuto da fotografia: propõe uma análise a partir dos conceitos de individuação, objeto técnico e invenção, apresentados por Gilbert Simondon. Neste sentido, a noção de fotografia pode ser pensada de modo mais amplo a partir de seus processos de individuação, os quais devem ser considerados sob três aspectos fundamentais: em relação ao dispositivo técnico fotográfico; ao processo inventivo entre o fotógrafo e o dispositivo; e às interações entre a imagem fotográfica, enquanto objeto-imagem, e o mundo.

Palavras-chave: Fotografia; Individuação; Gilbert Simondon.

1. Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Email: dmaues@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/2168484027682352.

Introdução

A fotografia, como objeto teórico e ontológico, enfrenta desafios de definição devido à sua natureza multifacetada e em constante transformação. Sabine Kriebel (2007) destaca que a dificuldade em estabelecer uma teoria universal da fotografia surge da ambiguidade sobre o que constitui seu objeto: a imagem em si, as práticas sociais de produção e circulação, ou suas funções culturais. A fotografia abrange diversos campos (arte, jornalismo, publicidade, etc.), operando em contextos históricos e tecnológicos dinâmicos, o que inviabiliza uma definição estável. Geoffrey Batchen (2004), utilizando o método arqueológico de Foucault (2017), propõe investigar a gênese histórica da fotografia, não apenas por datas e nomes, mas através de narrativas que antecedem sua institucionalização. Ele argumenta que a fotografia sempre está em um devir contínuo, ligada a redes tecnológicas e sociais em evolução, tornando insuficiente qualquer tentativa de definição categórica.

Portanto, em vez de buscar uma essência da fotografia (seja técnica, estética ou funcional), talvez seja mais produtivo analisar por que suas definições variam historicamente. As abordagens tradicionais, que focam exclusivamente em aspectos isolados (imagem, processo, função social ou arte), falham ao ignorar a multiplicidade de dimensões que a constituem. Assim, a fotografia resiste a uma identidade fixa, sendo um fenômeno mutante, cujo estatuto se redefine conforme os contextos culturais e tecnológicos.

1 - Genealogias, ontogêneses e individuação da fotografia: uma abordagem teórica

As teorias e narrativas históricas sobre a fotografia apresentam distintas abordagens para sua compreensão. Algumas análises privilegiam a gênese como parâmetro fundamental, utilizando o método genealógico foucaultiano para investigar a emergência de sujeitos, objetos e significações no âmbito das relações de poder, mediante análise de práticas discursivas e não discursivas. Outras perspectivas buscam definir a identidade fotográfica a partir de sua essência técnica, enquanto enfoques alternativos priorizam seus usos sociais. Esses eixos temáticos - gênese, essência, identidade e função social - convergem para questões mais amplas tratadas por Gilbert Simondon (2020), particularmente sua teoria da individuação, sua análise dos modos de existência dos objetos técnicos e sua concepção da imagem como modo de invenção.

A genealogia foucaultiana se opõe radicalmente às concepções metafísicas de história, rejeitando a noção de origem como essência imutável: tal abordagem opõe-se “ao desdobramento

meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem” (Foucault, 2017) , enfatizando antes a multiplicidade e heterogeneidade dos eventos constitutivos. Embora esta metodologia ofereça importantes insights sobre o estatuto da fotografia, a filosofia de Simondon apresenta ferramentas conceituais mais relevantes para essa investigação.

Simondon aborda a técnica - domínio intrinsecamente ligado ao fenômeno fotográfico - mediante uma perspectiva que examina a gênese da tecnicidade. Para o autor, a tecnicidade emerge como fase fundamental na relação homem-mundo, superando o “modo mágico primordial” (Simondon, 2020b). Seu pensamento desenvolve uma ontologia centrada no conceito de individuação, compreendida como processo ontogenético que redefine as noções tradicionais de ser e devir. Diferentemente das abordagens substancialistas e hilemórficas, que partiam do indivíduo já constituído, Simondon focaliza a operação mesma de individuação enquanto processo singular.

A teoria da individuação simondoniana aplica-se tanto ao domínio físico quanto ao vital, psíquico-coletivo e transindividual. No âmbito técnico, os objetos são entendidos como passíveis de processos análogos à individuação biológica - chamados de concretização e individualização - que promovem sua evolução mediante simplificação sinergética das estruturas internas. Essa perspectiva fundamenta a noção de objetos-imagem, desenvolvida na teoria dos ciclos da imagem, na qual a imagem é concebida como atividade inventiva que intermedia organismo e meio, constituindo redes simbólicas recorrentes. Partindo das noções de individuação, do modo de existência dos objetos técnicos e da teoria sobre a gênese das imagens, como situar a fotografia neste contexto? Seria possível pensar em um processo de individuação da fotografia? Qual a importância do dispositivo (objeto técnico) nesse processo? Como situar a imagem fotográfica na teoria dos ciclos da imagem? Como a teoria de Simondon poderia nos ajudar a compreender melhor o estatuto ou identidade da fotografia?

Aplicando esse arcabouço teórico à fotografia, propõe-se compreendê-la através de três dimensões inter-relacionadas: 1) o dispositivo técnico, em constante processo de concretização; 2) o processo inventivo, que envolve a relação dinâmica entre fotógrafo e dispositivo; e 3) a imagem-objeto resultante, inserida em redes culturais mais amplas. Essa abordagem permite superar as limitações das definições essencialistas, concebendo a fotografia como realidade relacional em permanente devir.

A ubiquidade contemporânea da fotografia está intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento técnico dos dispositivos e à amplificação dos processos criativos. Os conceitos simondonianos

- particularmente individuação, modos de existência dos objetos técnicos e ciclos da imagem - oferecem ferramentas analíticas potentes para compreender a ontogênese fotográfica como processo dinâmico que articula inovação técnica, criação imagética e circulação cultural. Deste modo, a fotografia emerge como fenômeno complexo, cuja identidade se constitui através de contínuos processos de individuação, marcados tanto por singularidades quanto por multiplicidades.

2 - Sobre a noção de individuação

A noção de individuação em Simondon abrange o mundo físico, os seres vivos, os seres técnicos, o pensamento e os coletivos. Ao desenvolver sua teoria da ontogênese, ele questiona os fundamentos da ontologia clássica, contrapondo-se às abordagens substancialistas e hilemórficas que tradicionalmente buscavam explicar a individuação a partir de um indivíduo já constituído. Invertendo essa lógica, Simondon propõe que se deve “conhecer o indivíduo pela individuação muito mais que a individuação pelo indivíduo” (Simondon, 2020a, p. 16).

Simondon critica a ontologia tradicional, que concebia o indivíduo como uma entidade estável e autocontida, com fronteiras claramente demarcadas na separação entre sujeito e objeto. Em sua perspectiva, os indivíduos não são entidades fixas, mas realidades em constante devir, constituídas mais por relações e interações do que por essências imutáveis. Para ele, a individuação não pode ser reduzida a um princípio prévio ao indivíduo, mas deve ser compreendida como uma operação contínua e processual.

O indivíduo seria apreendido como uma realidade relativa, uma fase do ser que supõe, antes dela, uma realidade pré-individual [...] pois a individuação não esgota de uma única vez os potenciais da realidade pré-individual. Além disso, o que ela faz aparecer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo-meio. (Simondon, 2020a, p.16)

Dessa forma, o indivíduo não pode ser concebido como uma entidade constituída, mas como um processo dinâmico de reestruturação e transformação. A realidade pré-individual, segundo Simondon, corresponde a um ser originário, ainda sem estrutura definida, contendo energia potencial e configurando um sistema tenso e supersaturado. Ele compara essa realidade primitiva a uma solução química em estado de metaestabilidade, em que a individuação atua como um processo de resolução das tensões internas. Resolução que acontece como processo transdutivo de atualização dos seus potenciais, estruturando o ser, de próximo em próximo, no interior de um certo domínio, no qual cada estruturação

serve de base para a operação estruturante seguinte. A transdução, nesse contexto, emerge como a operação fundamental do processo de individuação. Trata-se de um mecanismo estruturante e amplificador que opera em diversas esferas - física, biológica, mental ou coletiva - e que permite a constituição progressiva do indivíduo. Simondon argumenta que a filosofia tradicional falha ao tentar identificar um princípio de individuação anterior ao próprio processo de individuação, pois ignora a dinâmica relacional desse fenômeno. Para Simondon, a individuação ocorre dentro de um sistema energético que ele denomina ressonância interna, no qual matéria e forma atuam conjuntamente na atualização da energia potencial. Nesse sentido, o indivíduo não deve ser compreendido como uma substância autônoma ou uma identidade fixa, mas como uma realidade relacional em contínua transformação. “O indivíduo é realidade de uma relação constituinte e não interioridade de um termo constituído.” (Simondon, 2020a, p. 77). A ontogênese, segundo Simondon, designa a inseparabilidade entre ser e devir, de modo que o próprio ser já carrega em si sua potência de transformação. Diferentemente da visão tradicional, na qual o devir é visto como uma mudança externa e acidental, Simondon propõe que o ser é essencialmente processual e relacional.

Essa abordagem redefine o conceito de existência, afastando-se de uma visão substancialista e enfatizando o primado das relações sobre os termos. Assim, o conhecimento da realidade não se dá pela apreensão de entidades acabadas, mas pela compreensão das interações e processos que as constituem. Esse princípio pode ser estendido para diferentes domínios, incluindo a fotografia, cuja existência se estrutura em uma rede de relações entre dispositivos, processos de criação e as imagens produzidas. Quando observamos uma fotografia - seja impressa em papel ou exibida digitalmente - devemos considerá-la não como um objeto estático, mas como o resultado de um conjunto de interações e processos técnicos, sociais e perceptivos. Nesse sentido, a fotografia pode ser analisada sob a perspectiva da individuação, entendendo-a como uma realidade em constante transformação, cujos significados emergem das relações que estabelece com o mundo e com seus observadores.

3 - Sobre o modo de existência dos objetos técnicos

Após desenvolver sua teoria da individuação, Simondon dedicou-se à análise dos modos de existência dos objetos técnicos. Para ele, esses objetos possuem um modo de existência análogo ao dos seres vivos, pois passam por processos de evolução e transformação denominados concretização. Esse conceito refere-se à

resolução de tensões funcionais e estruturais dentro do próprio objeto técnico, promovendo sua adaptação e integração ao meio técnico e social. “Concretizar é, como individuar, resolver uma tensão existencial, que no caso do técnico é uma dificuldade de funcionamento. Concretizar é construir uma ponte entre a evidente atividade artificializante do homem e o natural” (Rodriguez, 2020, p. 19, tradução nossa).

Simondon rejeita a definição dos objetos técnicos exclusivamente com base em sua função utilitária ou em seu uso social, argumentando que um mesmo objeto pode ter múltiplas aplicações e que diferentes estruturas podem desempenhar funções semelhantes. Assim, a compreensão dos objetos técnicos deve partir de sua gênese e tecnicidade, e não de uma classificação tipológica baseada em sua utilidade. Ele afirma que “nenhuma estrutura fixa corresponde a um uso definido. Um mesmo resultado pode ser obtido a partir de funcionamentos e estruturas muito diferentes” (Simondon, 2020b, p. 55). A tecnicidade, conceito central em sua abordagem, representa o conjunto de características funcionais e operacionais que um objeto técnico carrega ao longo de sua evolução. Esse processo ocorre de forma análoga à linhagem filogenética dos seres vivos, em que cada estágio de desenvolvimento retém traços das fases anteriores: “o passado de um ser técnico em evolução permanece nesse ser, essencialmente, sob a forma de tecnicidade” (Simondon, 2020b, p. 56).

Portanto, um objeto técnico não pode ser definido apenas por sua presença no tempo e no espaço, mas sim pelo processo evolutivo que o constitui, marcado por reorganizações e ressonâncias internas entre suas estruturas funcionais. Simondon sintetiza essa ideia ao afirmar que o ser técnico evolui por convergência e por adaptação a si mesmo; unifica-se internamente segundo um princípio de ressonância interna. A convergência e a adaptação são, assim, os mecanismos pelos quais os objetos técnicos resolvem problemas internos, permitindo sua transformação e integração em sistemas técnicos mais complexos.

Nesse contexto, Simondon propõe uma classificação dos objetos técnicos baseada em seus níveis de tecnicidade, dividindo-os em três categorias principais: os elementos técnicos, que correspondem às ferramentas e próteses que podem ser acopladas ao corpo humano ou a um indivíduo técnico; os indivíduos técnicos, que são máquinas compostas por ferramentas e seu meio técnico; e os conjuntos técnicos, que correspondem a estruturas como oficinas, estaleiros ou fábricas, formadas por elementos e indivíduos técnicos. Essas categorias não são estáticas, mas formam redes tecnológicas interconectadas, influenciando a relação entre os seres humanos e o mundo. “Na medida em que uma tecnologia po -

litécnica substitui técnicas separadas, as próprias realidades técnicas, em sua objetividade realizada, adotam uma estrutura de rede” (Simondon, 2020b, p. 322).

O dispositivo fotográfico exemplifica esse processo de concretização e individualização. Desde sua invenção, a fotografia passou por transformações contínuas, tanto em sua estrutura técnica quanto em sua função cultural. A evolução dos dispositivos fotográficos ocorreu em paralelo à ampliação das redes técnicas às quais estão integrados, transformando não apenas as características e possibilidades da imagem fotográfica, mas também o modo como ela é produzida, distribuída e percebida. Assim, a fotografia não pode ser compreendida apenas como um meio estático, mas como um fenômeno técnico em constante interação com redes tecnológicas mais amplas, que influenciam e são influenciadas por seus processos de individuação.

4 - Sobre o ciclo das imagens: entre a imaginação e a invenção

Ampliando sua teoria da individuação para além dos modos de existência dos objetos técnicos, Simondon também se dedica ao estudo da gênese das imagens, concebendo-as como um processo cíclico entre imaginação e invenção. Para ele, a imagem não pode ser reduzida a uma entidade meramente visual ou pictórica pertencente ao mundo concreto e material, tampouco pode ser restrita ao domínio abstrato da imaginação e da atividade psíquica. A tradicional oposição entre imagem material e imagem mental, frequentemente discutida em disciplinas como Psicologia, Comunicação, História e Semiologia, não se sustenta na teoria dos ciclos da imagem de Simondon (2013). Imagem mental e imagem material não são realidades separadas ou opostas, mas sim fases sucessivas de um mesmo processo genético em constante desenvolvimento. Dessa forma, as imagens funcionam como realidades intermediárias entre objeto e sujeito, concreto e abstrato, passado e futuro, conferindo-lhes um estatuto de quase organismo que habita o sujeito e se desenvolve de forma relativamente autônoma em relação à sua atividade consciente.

Para Simondon (2013), todas as funções de um ser vivo possuem caráter ontogenético, pois, além de garantir sua adaptação ao meio, fazem parte do processo contínuo de individuação que define a própria vida. A atividade psíquica, como sistema de integração de disparidades internas, segue essa mesma dinâmica genética e cíclica, intercalando momentos de diferenciação e reorganização. Assim, as imagens mentais, enquanto estruturas funcionais do psiquismo, crescem e se desenvolvem em estágios, organizando-se

em diferentes níveis. Mais do que meras representações materiais ou abstratas, as imagens são processos operativos que estruturam a relação entre o sujeito e o meio. Nesse sentido, Simondon (2013) define a imagem como uma atividade local que transforma o sujeito em um gerador de sinais, permitindo-lhe antecipar, captar, conservar e reorganizar os estímulos provenientes do ambiente.

Se a imagem, enquanto processo interno, opera como uma atividade psíquica dinâmica, os objetos criados pelo ser humano podem ser compreendidos como objetos-imagens: “são portadores de significados latentes, não apenas cognitivos, mas também conativos e afetivo-emocionais; as imagens-objeto são quase organismos, ou pelo menos germes capazes de reviver e desenvolver-se no sujeito” (Simondon, 2013, p. 20, tradução nossa). A imagem, em sua dinâmica de individuação, surge inicialmente como atividade motora de antecipação à experiência, em seu nível biológico mais primário, e se desenvolve por meio de um processo transdutivo amplificante, até atingir um estado de saturação na rede simbólica formada pelas imagens-memórias mais significativas do contato entre organismo e meio. Essa saturação gera incompatibilidades que demandam resolução, dando origem à invenção, que se manifesta como uma mudança estrutural no sistema das imagens. Esse processo culmina na materialização da imagem mental em um objeto concreto, cuja funcionalidade ultrapassa a simples resolução do problema que motivou sua criação. Esse objeto-imagem torna-se, assim, um ponto de interseção e acoplamento entre imaginação e realidade, articulando-se no meio social como elemento de comunicação e reorganização simbólica.

Nesse sentido, Simondon (2013) argumenta que um objeto criado não apenas viabiliza a comunicação entre o ser vivo e seu meio, mas também organiza relações entre indivíduos, funcionando como mediador social. Dessa forma, o ciclo genético da imagem pode ser dividido em três fases essenciais: antecipação, experiência e sistematização, que correspondem, respectivamente, aos modos fundamentais da imagem – ação, percepção e memória. A imagem mental mantém seu caráter endógeno ao longo dessas fases. No primeiro estágio, correspondente ao crescimento espontâneo, a imagem surge como intuição motriz, funcionando como um esquema de projeção que antecipa possíveis experiências e simboliza soluções para desafios futuros. Essas imagens motoras pré-perceptivas ou imagens a priori operam de maneira autônoma, preparando o organismo para a experiência perceptiva. Na segunda fase, durante a experiência percepto-motora, surgem as imagens intra-perceptivas ou imagens a praesenti, que permitem a verificação das intuições prévias e a formação de novas imagens, responsáveis por captar e dar sentido à percepção da realidade. Nesse momento, “a imagem torna-se uma forma de receber in-

formações do meio e uma fonte de esquemas de resposta a esses estímulos” (Simondon, 2013, p. 26, tradução nossa). Após a experiência, as imagens-memórias ou imagens a posteriori emergem com um caráter intensificado e pregnante, permitindo a sistematização e conservação simbólica das repercussões afetivo-emotivas da experiência vivida. Essas imagens estruturam uma rede simbólica que organiza um mundo mental análogo ao mundo concreto. A quarta fase do ciclo, a invenção, opera como ponto de mutação entre o fim de um ciclo e o início de outro, renovando-se em um nível superior de complexidade. A saturação da rede simbólica torna-se uma condição metaestável necessária para a invenção de novas imagens, que se concretizam como objetos-imagens, realimentando o sistema sujeito-meio e desencadeando novos processos de gênese ao interagir novamente com o sujeito. A invenção, portanto, representa uma mudança estrutural que restabelece a compatibilidade da rede simbólica em um novo nível de complexidade, promovendo o desenvolvimento não apenas do indivíduo, mas do próprio sistema sujeito-meio. Esse ciclo evidencia a interdependência entre imaginação e invenção, em um processo contínuo e recursivo. Antecipação, experiência, memória e invenção configuram as fases funcionais da imagem, estruturando-se em diferentes níveis de complexidade – biológico, psíquico e formal (ou reflexivo).

No contexto da fotografia, essa teoria do ciclo das imagens permite compreender a imagem fotográfica como um processo de invenção inserido na dinâmica da antecipação, experiência e memória do sujeito fotógrafo. O ato fotográfico, seja como registro cotidiano ou como expressão artística, envolve a interação entre intuições, memórias afetivo-emotivas e novas percepções, conduzindo à criação de imagens que passam a integrar a rede simbólica coletiva. Assim, cada fotografia, além de sua materialidade visível, carrega um complexo esquema simbólico, funcionando como um nó dentro da vasta rede de objetos-imagens que estruturam nossa relação com o mundo.

5 - A individuação da fotografia à luz das noções de individuação, objeto técnico e invenção, em Simondon

A partir das noções de individuação, objeto técnico e invenção em Simondon, a imagem fotográfica pode ser compreendida como um objeto-imagem em constante transformação, assumindo diferentes formas e estabelecendo novas relações coletivas conforme os processos de concretização e individuação ocorrem. Em um primeiro momento, essas transformações dizem respeito à evolução do dispositivo técnico de produção da fotografia; em um segundo momento, referem-se à própria imagem fotográfica en-

quanto objeto-imagem resultante do processo inventivo na interação entre fotógrafo e dispositivo.

Ao longo da história, a fotografia passou por diversas concretizações técnicas que redefiniram suas características e relações socioculturais. Desde os primeiros processos, como a heliografia, o daguerreótipo e o calótipo, até o desenvolvimento da fotografia química e, posteriormente, da fotografia digital, cada tecnologia fotográfica implicou diferentes modos de existência da imagem. Cada inovação técnica não apenas aperfeiçoou os processos anteriores, mas também introduziu novas formas de apreensão e circulação da imagem fotográfica.

O advento da fotografia, em sua origem, representou uma invenção resultante da compatibilização entre a câmera obscura e uma superfície fotossensível. Inicialmente, “a invenção consistia em fazer a luz trabalhar direta e automaticamente sobre um material fotossensível dentro de uma pequena câmera obscura para formar uma imagem real dos objetos” (Simondon, 2013, p. 190, tradução nossa). Entretanto, para que a fotografia se consolidasse como técnica e meio de comunicação visual, foram necessárias diversas invenções complementares que refinassem a interação entre os fenômenos ópticos e fotoquímicos.

O primeiro registro fotográfico preservado, Vista da janela em Le Gras (1826-1827), de Joseph Nicéphore Niépce, demonstra os desafios técnicos da época: o processo heliográfico exigia longas exposições, de aproximadamente oito horas, para formar uma imagem esmaecida sobre uma placa de estanho recoberta por betume. Esse método, embora pioneiro, não se consolidou tecnicamente. Em seguida, Louis Daguerre introduziu o daguerreótipo, que utilizava uma placa de cobre polida, sensibilizada com iodeto de prata, permitindo a formação de uma imagem latente que precisava ser revelada com vapor de mercúrio e fixada com hipossulfito de sódio. O resultado era uma imagem altamente detalhada, mas única e não reprodutível. Paralelamente, Henry Fox Talbot desenvolveu o calótipo, um processo baseado na criação de negativos em papel, permitindo a produção de múltiplas cópias positivas – um avanço fundamental para a reprodução e difusão da fotografia.

A comparação entre esses três processos iniciais evidencia diferentes formas de individuação e concretização da imagem fotográfica. O sistema negativo/positivo introduzido pelo calótipo tornou-se a base da fotografia moderna e permaneceu hegemônico até o advento da fotografia digital. O daguerreótipo, apesar de sua limitação quanto à reprodutibilidade, teve um impacto significativo, especialmente no mercado de retratos, popularizando-se como um objeto de prestígio social. John Tagg (2005) observa que, devido ao alto custo e à necessidade de proteção da imagem em um es-

tojo, o daguerreótipo tornou-se um símbolo de status , funcionando como uma pequena joia. Com melhorias técnicas e redução de custos, os retratos em daguerreótipo se difundiram amplamente, até perderem espaço para as cartes de visite, desenvolvidas por André Disdéri, que exploravam a capacidade reprodutiva do processo negativo/positivo.

Esse percurso demonstra que, a cada concretização do dispositivo técnico, surgiram diferentes configurações da imagem fotográfica, cada uma implicando relações sociais singulares. Antes mesmo da revolução promovida pela tecnologia digital, a fotografia passou por inúmeros processos de concretização e individualização, não apenas na evolução dos materiais fotoquímicos, mas também na crescente mecanização do sistema óptico. No século XIX, as inovações concentraram-se no aperfeiçoamento dos materiais fotossensíveis e dos processos químicos de revelação e fixação da imagem. A introdução do brometo de prata-gelatina (placa seca) permitiu capturas instantâneas, facilitando a popularização da fotografia familiar e o desenvolvimento do fotojornalismo. O lançamento dos filmes flexíveis em rolo pela Kodak marcou o início da industrialização da fotografia e expandiu significativamente seu alcance.

No século XX, a concretização da câmera fotográfica avançou significativamente com a mecanização dos sistemas de obturação, diafragma e acionamento do disparador, além da implementação de mecanismos automatizados para a passagem do filme. Durante esse período, o dispositivo fotográfico parecia consolidado em sua estrutura química e mecânica, mas os avanços na eletrônica e na computação provocaram uma transformação radical: em poucas décadas, os processos químicos foram substituídos por sistemas eletrônicos e digitais, tornando obsoleta a produção industrial de filmes fotográficos.

A transição da fotografia química para a digital gerou intensos debates entre teóricos e especialistas. Alguns argumentavam que a fotografia digital representava uma ruptura irreversível, enquanto outros defendiam que essa transformação não comprometia a essência da fotografia. André Gunthert (2015) destaca que a digitalização conferiu um novo grau de fluidez à imagem fotográfica, libertando-a da dependência de um suporte material. Segundo ele, a fluidez digital levou a difusão da imagem a um nível sem precedentes, ampliando exponencialmente sua apropriação e circulação. A digitalização não apenas transformou a forma de produção e distribuição das imagens, mas também reorganizou estruturalmente o dispositivo fotográfico. Com a convergência das funções ópticas, químicas e eletrônicas, ocorreu uma internalização e redistribuição dos subconjuntos funcionais da câmera, tornando-a um dispositivo altamente sintético. Para Simondon, uma invenção genuína envolve

um salto qualitativo que amplia o horizonte técnico e funcional do objeto: “há na verdadeira invenção um salto, um poder amplificador que vai além do simples propósito e a busca limitada por uma adaptação” (Simondon, 2013, p. 193, tradução nossa).

A fotografia digital não apenas alterou os processos de captura, armazenamento e compartilhamento de imagens, mas também redefiniu a experiência fotográfica, criando novas formas de interação e apropriação da imagem. Se, no século XIX, a invenção do calótipo revolucionou a fotografia ao possibilitar sua reprodutibilidade técnica, a era digital inaugurou uma nova fase de concretização, caracterizada pela mobilidade, instantaneidade e ubiquidade das imagens. Assim, ao longo de sua história, a fotografia passou por sucessivos processos de individuação e concretização, cada um configurando novos modos de existência da imagem fotográfica e expandindo suas possibilidades de interação com o mundo.

Considerações finais

A noção de individuação em Simondon possibilita uma nova compreensão da fotografia, diferenciando-se das abordagens tradicionais adotadas até então. A fotografia não possui uma identidade fixa ou um estatuto único e definitivo. Se, como afirma Simondon (2020a), o indivíduo só pode ser compreendido como uma fase ou momento do ser, então a imagem fotográfica e o dispositivo que a produz devem ser vistos como múltiplas expressões de uma mesma realidade. Com o surgimento de cada novo dispositivo fotográfico ao longo da história, emergiam novas possibilidades de processos inventivos na relação entre fotógrafo e dispositivo, resultando na criação de diferentes formas de imagens.

O que chamamos de fotografia, portanto, se constitui como processo de individuação que está ligado à invenção em dois níveis diferentes: a invenção primeira do dispositivo fotográfico e, imediatamente associada a ela, a invenção da própria imagem fotográfica como objeto-imagem. A invenção do dispositivo fotográfico surge da necessidade de solucionar uma incompatibilidade dentro de um sistema repleto de potenciais. Como aponta Batchen, o desejo desempenha um papel fundamental nesse processo, impulsionando a busca por uma solução para um problema específico: como fixar, em um suporte material, a imagem projetada no interior da câmera obscura? Para Simondon (2013), a invenção ocorre quando se estabelece compatibilidade entre ordens de magnitude distintas. No caso da fotografia, trata-se da convergência entre o processo físico de formação da imagem real e o processo fotoquímico, viabilizada pelo fenômeno da imagem latente; em um segundo nível, o processo de fatura da imagem fotográfica (invenção de um

objeto-imagem), é indissociável da invenção de seu dispositivo técnico, composto pelo sistema ótico da câmera, seu suporte material fotossensível e todo processo técnico que envolve tal fatura.

Teremos sempre, portanto, uma imagem que estará ligada ao seu dispositivo técnico de produção, não no sentido semiótico que Jean-Marie Schaeffer (1996) afirmava, mas no sentido simondoniano de invenção dos objetos-imagens – como parte do ciclo genético das imagens e da concretização dos objetos técnicos a que essas imagens estão relacionadas; desse modo, a imagem fotográfica constitui-se como um processo em permanente transformação (devir), apresentando-se em cada momento histórico como uma fase particular de sua existência. Os conceitos de individuação, objeto técnico e invenção, postulados por Simondon se revelam, portanto, como ferramentas conceituais importantes para compreendermos a fotografia como realidade singular e, ao mesmo tempo, rica em multiplicidades de formas.

Referências

BATCHEN, Geoffrey. Arder en deseos: la concepcíon de la fotografia Barcelona: Gustavo Gili, 2004.

GUNTHERT, André. L’Image partagée: La photographie numérique. Paris: Textuel, 2015.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

KRIEBEL, Sabine. Theories of photography: short history. In ELKINS, James. (Ed.). Photography Theory. Londres: Routledge, 2007.

RODRIGUEZ, Pablo. Um novo modo de existência. In SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos Rio de janeiro: Contraponto, 2020.

SIMONDON, Gilbert. A individuação à luz das noções de forma e de informação Rio de Janeiro: 34, 2020a.

SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos Rio de Janeiro: Contraponto, 2020b.

SIMONDON, Gilbert. Imaginacíon e invencíon. Buenos Aires: Cactus, 2013.

SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Campinas: Papirus, 1996.

TAGG, John. El peso de la representación: ensayos sobre fotografías e historias. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.

VILALTA, Lucas Paolo. Simondon: uma introdução em devir. São Paulo: Alameda, 2021.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Fotografia como atenção e ficção: paisagens e existências

Photography as attention and fiction: landscapes and existences

Resumo: A partir de uma pesquisa bibliográfica e da análise da obra de artistas que se utilizam da fotografia junto a sobreposições que incluem elementos do próprio território e aspectos invisíveis às objetivas fotográficas, este trabalho explora as possibilidades da fotografia como prática de atenção e de ficcionalização na produção de paisagens que quebram padrões hegemônicos e que propõe modos de existência múltiplos, considerando questões socioambientais e aspectos culturais de cada território.

Palavras-chave: Fotografia; Paisagem; Ficção; Ambiente; Cosmopolítica.

1. Doutoranda do programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura Eco-Pós da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: carolinemjacobi@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/5963736297082836.

Introdução

Ao procurar por cogumelos matsutake nas florestas japonesas, a antropóloga Anna Tsing (2019) relata que esse exercício permite observar outros tantos elementos de escala menor na floresta, que juntos contam uma história de simbiose. Um exercício de observação da paisagem como forma viva e não como plano de fundo, analisando a partir de rastros e perturbações, as cooperações multiespecíficas que podem nos inspirar a entender modos de habitar coletivos nas ruínas do Antropoceno:

As paisagens são assembleias trabalhando em coordenações dentro de uma dinâmica histórica. Mas acabo de apresentar mais dois termos-chave para o projeto de pensar habitabilidade como simbiose: coordenação e história. Por história, refiro-me aos rastros e sinais humanos e não humanos, a como estes criam paisagens. [...] Simbiose - assim como competição, predação e outras relações interespecíficasrequer coordenação. Prestar atenção às temporalidades das paisagens permite-nos observar sua dinâmica intersticial. (Tsing, 2019, p. 94)

Em sua pesquisa, Tsing (2019) descreve como uma política de proteção das florestas japonesas que proibiu manejos tradicionaiscomo pequenas interações de camponeses e de seus animais que deixavam dejetos orgânicos - diminuíram a biodiversidade destas florestas, acabando com o surgimento dos cogumelos, alimento de animais da floresta e iguaria tradicional da culinária japonesa. Ou seja, aquelas florestas sempre haviam contado com a simbiose humana e animal daquele tipo de manejo em pequena escala, mas um imaginário protecionista de florestas intocadas, que separa o humano deste meio, sem observar simbioses, acabou por diminuir sua biodiversidade.

Tal visão de separação da natureza com a vida humana vem de longa data e o próprio conceito de paisagem e suas práticas culturais decorrentes estão envolvidos nisso. Cauquelin (2007) remonta à história do conceito de paisagem como ligado à invenção das leis da perspectiva e de sua aplicação à pintura de paisagem. Conforme recorda Baio (2022), o termo perspectiva vem do latim “[...] ‘perspicere’ – per (através) + specere (olhar para), a palavra “perspectiva” tem o significado original de “olhar através de”, o que pressupõe a divisão entre sujeito, meio (aquilo através do que se olha) e objeto (mundo)” (Baio, 2022, p. 86). Um modelo de representação que incorpora os ideais de objetividade e a geometria euclidiana, uma mediação técnica que separa o sujeito do mundo e permite uma observação distanciada, de acordo com noções kantianas e antropocentristas que se intensificaram durante o Renascimento (Baio, 2022, p. 86).

Mas, como uma construção cultural, uma mirada específica sobre algum lugar, as paisagens podem ser reimaginadas e ressignifi-

cadas, dependendo de como construímos e reconstruímos nossas visões sobre elas e que histórias são contadas sobre esses espaços. Como orienta Tsing (2019), é possível adentrar as paisagens com práticas de atenção aos diversos seres que ali habitam, pesquisar e contar suas histórias e estórias, principalmente aquelas apagadas pela História oficial contada pela colonização e pela modernização.

Em tempos de mudanças climáticas, essa prática parece poder auxiliar na criação de formas novas de fazer política, como a proposta de exercício aberto que Isabelle Stengers (2018) denomina de cosmopolítica, o qual considera a manutenção da maior multiplicidade possível de existências, em seus modos de vida plenos. A concepção de cosmopolítica permite desacelerações, para que “matters of concern ”, questões importantes para os envolvidos, não sejam rapidamente sufocados ou extintos por “matters of fact ”, fatos sustentados por uma maioria ou por razões econômicas.

Para isso é preciso de fato atenção e sensibilidade ao menor. O campo das artes tem há muito tempo utilizado da atenção e da ficção para trabalhar o sensível e, assim, pode contribuir, conforme propõe Ranciére (2005), à uma partilha do sensível no mundo, reorganizando experiências sociais, tornando visível o invisível e elaborando questões políticas a partir da dimensão estética.

E aqui falamos de uma ficção que seja o oposto de um escapismo, que fale sobre questões do mundo e dos diversos mundos dos seres invisíveis na História e na maioria das estórias famosas. Para ilustrar esse pensamento, Ursula K. Le Guin, autora de ficção que marcou o século passado com seu embasamento filosófico e antropológico, elaborou “A teoria da bolsa de ficção”, no qual ela conta que um dos primeiros aparatos tecnológicos da humanidade foi, provavelmente, um recipiente, uma bolsa, ou um objeto similar feito para guardar, para coletar. Não uma arma, mas um suporte para as atividades daqueles primeiros humanos de regiões temperadas e tropicais, local onde ocorreu a passagem de hominídeos para humanos, e que se alimentavam majoritariamente de sementes, frutas e pequenos insetos e animais. No entanto, foi o mito do herói, muitas vezes ocupado pela figura do caçador e do guerreiro que povoaram a maioria das estórias. Ursula cansou dessas estórias povoadas de armas e guerras, e quis contar romances que funcionassem como uma bolsa que guarda palavras, significados e pessoas, pessoas que também têm bolsas, pessoas que nascem de úteros e que guardam coisas que encontram em seu caminho para levar para suas casas - que são como outras bolsas acolhedoras de pessoas (Le Guin, 2019 [1986]). Para ela, aí está sua ficção, a qual não é evasão, mas um espaço para pensar realidades, humanas e não-humanas, apresentando estórias menores de seres que transitam en -

tre mundos e que quebram um ideal de história única, apresentando mais pontos de vista e existências.

Ao se pensar em novas formas de enxergar e apresentar as paisagens, tomamos como foco de pesquisa alguns artistas que vêm realizando exercícios ficcionais e experimentais que quebram uma visão objetiva, antropocêntrica e hegemônica das paisagens a partir da fotografia. Mesmo este tendo sido um dispositivo que, como invenção decorrente da perspectiva, serviu muito bem e por muito tempo a propósitos coloniais e modernos - tendendo a um olhar que prometia captar fielmente a “realidade”; um olhar cindido do ambiente e que servia como argumento para dominação. Se a fotografia já serviu e ainda serve aos projetos coloniais e modernos, indagamos como esta pode ser acionada para compor e recompor mundos, mais múltiplos, decoloniais, ecológicos. Desse modo, nos propomos aqui a investigar artistas que se utilizam da fotografia como base para contar histórias, a partir de exercícios de atenção e de um olhar de dentro das paisagens, que tornam visíveis e dão protagonismo a seus habitantes menores.

Em entrevista, Maria Teresa Bastos aborda o teórico francês Michel Poivert (2023) sobre o termo ficção documental, que vem ganhando espaço em festivais de fotografia pelo mundo. Michel Poivert (2023) elabora que o termo ficção documental une dois termos contraditórios para inaugurar um terceiro, a ficção-documental, o qual contempla ambivalências exigidas da fotografia contemporânea, como objetividade e subjetividade e da qual se espera, assim como as ficções de Ursula K. Le Guin, que fale sobre o mundo, mas que também seja uma criação deste mundo. Poivert (2023) aponta que o termo caracteriza bem uma geração de fotógrafos atuais que trabalham com questões sociais e ecológicas a partir de narrativas e entende que a fotografia não necessita da objetividade para realizar um trabalho documental, sendo mais adequado contar histórias do que limitar a fotografia a constatações.

A ficção-documental é um termo que mostra muito bem a expectativa contemporânea sobre a fotografia. São “construções” documentais, mais do que “ficções”, pois “ficção” remete à evasão, ao irreal, enquanto “construção documental” indica que algo foi fabricado. Poderíamos até falar de “imaginação documental”. (Poivert, 2023, p. 6)

Tal corrente de fotógrafos e artistas que se valem da ficção-documental parecem ser bons objetos para pensar o estado atual do pensamento sobre fotografia, como descrito por Dubois (2017), que demonstra que esta percorreu um caminho de imagem-traço do real à imagem-ficção, no qual uma suposta objetividade da fotografia como documento da realidade foi sendo questionada e tendo sua relevância diminuída, enquanto

o caráter narrativo e a potência ficcional da fotografia foram valorizados:

[...] não mais alguma coisa que “esteve ali” no mundo real, mas alguma coisa que “está aqui” diante de nós, alguma coisa que podemos aceitar (ou recusar) não como traço de alguma coisa que foi, mas como aquilo que é, ou, mais exatamente, por aquilo que ele mostra ser: um mundo possível, nem mais nem menos, que existe paralelamente ao “mundo atual”, um mundo “a-referencial”, para retomarmos uma expressão de André Gunthert, um mundo “plausível”, que possui sua lógica, sua coerência, suas próprias regras. Não se trata de um mundo “à parte”, que tem como referência algo para além, mas de um mundo tão aceitável quanto recusável, sem critério de fixação e que existe no seu ato mesmo de mostrar-se, presentificado e presente, sem ser necessariamente o traço de um mundo revelado, contingente e anterior. Uma imagem pensada como um universo de ficção e não mais como um “universo de referência”. (Dubois, 2017, p. 45)

Ou seja, como uma das representações possíveis deste mundo, o caráter ficcional da fotografia ganha relevância e esta pode funcionar como uma bolsa para colecionar ficções e se tornar uma ferramenta que dá suporte à investigação dos artistas nas paisagens. Como o caminhar atento a histórias menores descrito por Tsing (2019), o próprio ato de sair para fotografar já pode levar a um olhar cuidadoso sobre um local e munir uma investigação artística, na qual cada foto registrada é também uma parte de uma coleção de mundos possíveis guardada no corpo da câmera-bolsa-de-histórias e que pode servir de subsídio às ficções documentais.

Assim, vamos percorrer o trabalho de alguns artistas que se utilizam da fotografia como base para contar histórias, dialogando e trabalhando o imaginário dessas paisagens. Num olhar atento, de dentro, circular, que visibiliza elementos presentes e relevantes dos territórios ou que insere estórias e modos de vida que foram fronteirizados e desvalorizados na arte ocidental nos processos de colonização (Gómez, 2019).

Bonikta é artista de Ourém, Pará, que tem como foco de seu trabalho o imaginário ribeirinho amazônico em diálogo com a cidade. Em entrevista à fundação Vist (2023), Bonikta conta que a partir da fotografia e do trânsito entre interior e cidade, iniciou um processo de observação de contrastes e de violências, mas também de rememoração de sua ancestralidade indígena (Bonikta, online, 2023). A cidade despertou um fazer artístico urbano que aplica sobre as fotografias que registra da vida ribeirinha. Assim, as fotografias são a base de muitas de suas obras, porém com intervenções típicas da arte indígena Marajoara, que, segundo Bonikta, povoam

as paisagens de tudo que lá vive, mas que não necessariamente pode ser facilmente visto ou captado pela câmera, como seres encantados, dimensões espirituais e bichos escondidos na mata.

Na obra kintal da rua de kasa, sonhos de igarapé (2025)2, vemos que a montagem fotográfica utilizada traz pessoas, paisagens e animais, mas, sem os grafismos, não dá conta de apresentar as dimensões espirituais e culturais presentes naquele espaço. É a partir dos grafismos Marajoara, dos olhos monoculares de Bonikta e dos pequenos seres que emergem nos desenhos, que a objetividade de uma cena corriqueira de beira do igarapé é quebrada, aparecendo a ancestralidade e evocando também outras temporalidades à fotografia.

Bonikta compreende sua arte dentro de um papel decolonial e como forma de contar outras histórias.

Para mim, a decolonialidade é criar novas narrativas que não sejam violentas, que não conheçam a mesma história, que realcem outros pontos de vista. Quando penso em criar arte trago a imagem de minha avó, de minha mãe, de meus amigos. Para mim, isso é importante, porque essas histórias não podem ser contadas, então fazer arte é também poder contar histórias que foram apagadas, que não podem estar nos livros. (Bonikta, online, 2023).

Bonikta se apresenta como bicho que vira gente e gente que vira bicho, ou seja, num trânsito de espécies e espíritos, o que nos remete também ao perspectivismo ameríndio, um multinaturalismo, como descrito por Viveiros de Castro (2018), que é característico da ancestralidade de algumas etnias da Amazônia e que representam uma quebra de paradigmas de separação modernos, como humano e natureza, material e espiritual, passado e futuro. O próprio uso de uma montagem fotográfica, na qual as fotos são unidas parecendo que não têm fim, também remete a uma unidade dos espaços e seres da paisagem.

1.2 Davi de Jesus Nascimento

Davi de Jesus Nascimento realiza uma poética visual fotográfica ligada ao corpo, à paisagem e aos diversos seres e objetos que a habitam, trabalhando questões de gênero, ancestralidade e preservação ambiental na vida ribeirinha do São Francisco. Muitas das fotografias envolvem sua família - principalmente na figura do pai pescador e da avó. Davi relembra a história de como a família ribeirinha barranqueira chegou a esse local, a partir de uma expulsão territorial para construção da barragem de Brumadinho (Nas-

2.Observe uma fotografia da obra de Bonikta “kintal da rua de kasa, sonhos de igarapé” (2025) no link: https://www.nonada.com. br/2025/03/conheca-boniktaencantaria-amazonida-presenteno-trabalho-do-artista-caioaguiar/. Acesso em: 01 abr. 2025.

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

cimento, online, 2022), mostrando como a barragem havia sido um trauma já naquele tempo. Davi saiu e voltou àquele local, fazendo a escolha de viver e trabalhar perto do rio, compondo narrativas que evocam colaborações e multiplicidades de vida. Davi conta que quer propor um futuro em que o Rio São Francisco siga navegável, vivo (Nascimento, online, 2022). Sua ancestralidade consta neste futuro, principalmente através do uso das fotografias analógicas, da apresentação do trabalho típico do local e da espiritualidade das carrancas.

Figura 1: Singra (obra comissionada para o festival fluvial “Seres-rios”, Davi de Jesus Nascimento em colaboração com seu pai e Caio Esgario), Davi de Jesus Nascimento (2021).

Fonte: Site Prêmio Pipa.

Figura 2: Corpo-embarcação (fotografia analógica, 22 x 21 cm, Davi de Jesus Nascimento com butuca de Alexandre Lopes), Davi de Jesus Nascimento (2019).

Fonte: Site Prêmio Pipa.

Figura 3: Um calor para se despedir do que é vivo mas tem cheiro de carniça (objeto de águas guardadas, caderno de enchente, fotografia da tataravó do artista Ana Josefa Paixão num envoltório de espinhas de peixe, 21x32x5 cm) Davi de Jesus Nascimento (2018).

Fonte: Site Prêmio Pipa.

Figura 4: Elizeu, pescador desaparecido objeto de águas guardadas (objeto de águas guardadas, caixa de pregos, restos de peixe, calhaus, conchas, sementesde tamboril, linha de pesca, anzol e fotografia do acervo de família, 8x22x10 cm), Davi de Jesus Nascimento (2017).

Fonte: Site Prêmio Pipa.

Além do uso da fotografia digital, Davi trabalha muito com fotografias analógicas combinadas a restos de animais e elementos do espaço, que leva em conta as vidas e relações de trabalhadores com o rio, evocando a memória de carranqueiros, pescadores e lavadeiras, com os seres que os circundam, o que remete à cosmopolítica (Stengers, 2018), como um exercício de observação desacelerado das relações daquele espaço. Assim, muitas de suas obras adquirem uma materialidade extra com esses elementos orgânicos (restos de animais, principalmente) e as fotografias analógicas formando fotos-esculturas com rastros das paisagens, borrando fronteiras entre local e representação, e quebrando o padrão planificado da fotografia tradicional.

1.3 Duo Paisagens móveis

Para a obra Quando o tempo durar uma tonelada (2021)3 , as artistas Bárbara Lissa e Maria Vaz, que compõem o Duo Paisagens Móveis, visitaram, dois anos após o ocorrido, as paisagens hostis do crime ambiental do rompimento da barragem do Córrego do Feijão (25 de janeiro de 2019, Minas Gerais) de responsabilidade da multinacional Vale S.A, que tirou a vida de 270 funcionários e assolou mais de 35 municípios com devastação ambiental e humanitária, espalhando 10 milhões de metros cúbicos de lixo. Até hoje, poeira invisível e águas tóxicas se perpetuam por toda a região, causando doenças e perda de biodiversidade no rio Paraopeba.

As artistas contam que, para trabalhar as diversas sobreposições temporais do desastre, com efeitos longevos, utilizaram um negativo de 120mm, sem separação dos quadros, sobrepondo imagens (Duo Paisagens, online, 2021). Também coletaram águas tóxicas da região para inserir no processo de revelação e produção das imagens, incorporando parte do espaço à materialidade das fotografias. Itens esquecidos na região, como equipamentos de segurança de trabalho, luvas, garrafas e materiais de construção também foram fotografados, trazendo traços de presença humana com investigações do residual.

Essas artistas não parecem trabalhar tanto a dimensão ficcional no sentido clássico, mas parecem criar uma atmosfera de tempo ou lugar outro, que causa estranheza. O cenário das paisagens, a lama, a grama crescida e as casas abandonadas trazem cenas que remetem a outro tempo, a uma paisagem que parece há muito tempo esquecida, mas que, na verdade, há pouco tempo é ruína. As sobreposições e os próprios grãos de terra trazem ainda mais ruídos à foto analógica e lembram outra temporalidade ou temporalidades sobrepostas, característica que é vista por Fatorelli (2013) como possibilidade da fotografia que se propõe a experimentações de

3.Acesse a apresentação da obra no site das artistas pelo link: https://en.paisagensmoveis.com/ quando-o-tempo-dura-umatonelada, Acesso em: 01 abr. 2025.

temporalidades. No caso da recepção das sobreposições de imagens, entendemos que necessita-se de um tempo extra para olhar as imagens que compõem cada quadro, numa linha narrativa, porém fragmentada, inquietante. Além disso, as fotografias viradas e os objetos esquecidos acentuam que há algo estranho nesse espaço. Os objetos abandonados, especialmente aqueles de cunho mais industrial, deixam pistas sobre um projeto de progresso moderno fracassado que deturpou uma bela paisagem.

2 - Histórias outras de paisagens e existências: a atenção e a ficção na fotografia como exercícios de cosmopolítica e decolonialidade

Ao pensar no termo ficção documental como descrito por Poivert (2023), mais como uma construção ou imaginação documental, entendemos que os artistas parecem se enquadrar nestes termos, pois tratam de lugares e de suas questões, mas interferindo nas imagens, seja a partir de sobreposições ou trazendo personagens e elementos fictícios às cenas que explicitam a cultura local, adicionam espiritualidade e ancestralidade, os quais não poderiam ser transmitidos ou visualizados facilmente sem suas intervenções ou performances ficcionais. Eles criam com a fotografia num movimento de coleta de elementos locais e buscam quebrar sua suposta objetividade e borrar limitações da reprodução automática de estética realista.

As paisagens trazidas pelos artistas são permeadas pela presença humana, mas também extra-humanas, como animais e espíritos, ao contrário de fotografias tradicionais da história do gênero de fotografia de paisagem, que tendiam a reforçar um imaginário de natureza separada da vida humana. Em Bonikta, as paisagens se enchem de muitos múltiplos em convivência. Já Davi de Jesus Nascimento traz uma paisagem calma, permeada por histórias de família que vivem junto de peixes, animais, elementos locais espirituais e ferramentas de trabalho e de pesca. São paisagens que questionam os ideais de progresso, ou por mostrar suas mazelas, como faz o Duo Paisagens Móveis, ou por mostrarem um tempo calmo de trabalhos tradicionais e um viver ribeirinho.

Todos esses artistas trabalham uma atenção a diferentes escalas, ao menor, ao residual, que pode contar histórias e demonstrar as assembleias que vivem ou viveram nestas paisagens. A partir de personagens, performances ou objetos, transmitem estranhezas que servem para quebrar hegemonias estéticas de paisagens belas e relembram vidas, criaturas e espíritos negados pela colonialidade.

Como os próprios artistas trazem em entrevistas, suas ficções lutam contra apagamentos, contam histórias que não são contadas na perspectiva colonial e que podem, nos referindo à Gómez (2019), recuperar memórias roubadas a partir de um pensamento outro.

[...] un pensamiento Otro que hace posible la recuperación de las “memorias robadas” por la colonialidad para iniciar, desde la exterioridad fronterizada, la re-contrucción ontológica del ser, que no es otra cosa que la sanación de las múltiples heridas producidas, desde hace más de cinco siglos, en los cuerpos, los espíritus y en la naturaleza por el accionar desgarrante, negador y jerarquizador de la colonialidad del poder. (Gómez, 2019, p. 384)

As ficções servem então como elo para o passado, para relembrar histórias não contadas, mas também trazem invenções de estórias que propõem pensamentos para a elaboração de futuros mais múltiplos, menos cindidos em relação ao ambiente, e que levem em consideração as existências diversas locais, o que entendemos como possibilidades de um fazer decolonial (Gómez, 2019) e cosmopolítico (Stengers, 2018).

Referências

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu , 2018.

e políticas do sentir latino-americano

Reciclar o arquivo: vínculos entre fotomontagem e performance

Recycle the archive: connections between photomontage and performance

Gisett Elizabeth Lara1

Resumo: Neste texto, exploro o conceito de “reciclar o arquivo” como prática fundamental para reinterpretar e transformar memórias pessoais e sociais por meio da materialidade. Parto de um arquivo fotográfico chileno, com imagens de mulheres fotografadas por Damasio Ulloa entre 1970 e 1985, no contexto da Plaza Dignidad e da ditadura chilena. Durante minha graduação, realizei uma performance e uma fotomontagem, atualizando elementos históricos e trazendo reflexões sobre corpos femininos, monumentos masculinos e opressão. Ao revisitar esse trabalho em 2020, já vivendo no Brasil, incorporei uma abordagem física, recortando as imagens e criando outras cenas, que integrei à minha pesquisa acadêmica e exposição fotográfica. Utilizando a performance como metodologia, fui além da manipulação artística, abordando traumas pessoais e sociais ao deslocar os corpos femininos representados no arquivo e subverter sua solenidade histórica. Essas imagens se transformaram em ferramentas vivas, permitindo-me expressar, ressignificar e reconstruir sentidos. Este trabalho integra atualmente minha tese de doutorado e dialoga com práticas familiares e processos criativos compartilhados, evidenciando meu vínculo entre memória, materialidade e produção acadêmica.

Palavras-chave: Reciclar o arquivo; Fotomontagem; Performance

1. Doutoranda em Letras Neolatinas, área de Estudos Literários Hispânicos no PPGLENUFRJ. Email: gisett.lara@gmail. com. Currículo lattes: lattes.cnpq. br/8924149630104492.

O desafio está em como liberar os dispositivos de sua captura, como estabelecer outras relações com eles para que suas forças criativas se abram.

(Soto-Calderón, 2020)

No ano de 2009, ao ver essas fotografias em um texto de Nelly Richard, percebi que elas refletiam não apenas a realidade de mulheres chilenas dos anos 1970 e 1980, mas também as condições sociais e culturais impostas pelo regime político da época. Essas poses, como destaca Richard, reforçam hierarquias e assimetrias, evidenciando um modelo de organização patriarcal e autoritário (figura 1). Além disso, Alejandra Castillo denomina essas representações como “dispositivo de gênero”, mostrando como os corpos femininos eram uniformizados pelos padrões da época, criando uma ilusão de igualdade enquanto perpetuavam estereótipos sociais. Desenvolvi essa reflexão com maior profundidade no artigo “Derecho a estar presente: arte, feminismo y posmemoria ”, que escrevi no ano passado (2024) e que foi publicado no e-book do I Simpósio de História, Literatura e Resistências, em parceria com a Editora Biblioteca Ocidente. Essas imagens se tornaram um ponto de partida para questionar e repensar as narrativas de gênero, memória e poder que marcaram aquele período histórico.

1: Série fotográfica de mulheres (Damasio Ulloa, 19701980). Fonte: Reprodução de Richard (2001)

Em 2010, ainda durante a graduação no Chile, produzi um trabalho baseado nessas fotografias (figura 2). Pedi a uma amiga que me acompanhasse na praça onde as fotos foram originalmente tiradas e juntas realizamos uma espécie de performance.

Figura

Passamos o dia imaginando onde aquelas mulheres estariam e qual seria sua relação com o espaço. Fotografamos e, posteriormente, desenvolvi uma fotomontagem que buscava atualizar o cenário, incluindo elementos da modernidade chilena, como o sistema de transporte Transantiago e os edifícios modernos de Santiago. Também incluí mulheres à noite, um gesto simbólico que buscava transgredir as restrições sociais sobre a presença feminina em espaços públicos durante o período noturno. Assim, na montagem, as mulheres aparecem juntas, representando a coalizão e força coletiva feminina.

Em 2020, reencontrei um trabalho que havia realizado no Chile e decidi revisitar esse processo, agora morando no Brasil. Com uma perspectiva diferente, abandonei a manipulação digital e passei a imprimir e recortar os corpos das mulheres presentes nas fotografias. Esse processo ocorreu enquanto eu preparava uma exposição fotográfica na UFRJ, onde atualmente curso o doutorado em Letras. Criei diversas cenas com mulheres em diferentes contextos e recortei essas imagens, permitindo que esses fragmentos começassem a ocupar meu espaço doméstico. Para mim, esse movimento de criação foi profundamente significativo, pois habitar o instante no cotidiano representa estar presente. Conseguir expressar experiências por meio da criação de imagens me permitiu acessar memórias traumáticas.

Figura 2: Série Direito a estar presente (Gisett Lara, 2010). Fonte: Arquivo pessoal

A análise posterior, transformada em textos, torna-se uma forma de restaurar fragmentos da minha vida, permitindo-me avançar e viver com maior plenitude. As imagens me ajudaram a materializar ideias e reconhecer feridas, tanto pessoais quanto sociais. Após identificá-las e analisá-las, adotei a performance como metodologia para incorporar e registrar esses processos na minha prática acadêmica e artística. Hoje, essas imagens, situadas em outro território, evocam novos significados que dialogam com minha escrita e pesquisa acadêmica. Esse trabalho tem se integrado à minha tese de doutorado, enriquecido pelas trocas e diálogos realizados no curso Tecnoimagens contemporâneas: pensamento e poética 2 .

O processo e o procedimento manual realizados nesses momentos foram extremamente significativos. Recortar as fotografias e liberar os corpos do fundo foi um gesto marcante, pois deslocou materialmente os corpos femininos e subverteu a solenidade histórica dos documentos fotográficos. Esse ato permitiu uma nova leitura das imagens, abrindo espaço para questionamentos sobre os discursos e as tecnologias que moldam as representações do corpo feminino. Como observa Alejandra Castillo (2015),

Não há práticas sem discursos, não há corpos sem técnica. Mesmo aquelas práticas associadas aos jogos de linguagem da ‘identidade’, da ‘interioridade’ e da ‘intimidade’ colocam em ato um conjunto de tecnologias do ‘eu’ delimitadas por um “arquivo”. (Castillo, 2015, p. 7)

Essa reflexão destaca como as práticas artísticas que exploram corpo e identidade estão profundamente conectadas a esses discursos e tecnologias. Dentro desse processo criativo, um momento especialmente importante foi a utilização de um desenho feito por minha filha de sete anos, que participou ativamente desse movimento artístico (figura 3). A inclusão dela trouxe uma dimensão afetiva e simbólica ao trabalho, evidenciando como a criação manual pode não apenas transformar nossa relação com a obra, mas também impactar significativamente as pessoas ao nosso redor.

Ao incorporar práticas manuais ao cotidiano, como o recorte e a composição das imagens, o processo artístico se torna uma ponte para interações mais próximas, promovendo diálogos afetivos e criativos. Essas práticas representam um movimento de ruptura com a automatização das técnicas digitais, trazendo uma dimensão tátil e íntima à criação. Recortar as imagens e liberar os corpos do fundo não foi apenas um gesto estético, mas também um ato de ressignificação, permitindo que esses fragmentos visuais habitassem meu espaço doméstico e ganhassem novos

2.Formação online sobre fotografia contemporânea realizada no período de setembro a dezembro de 2024.

significados. Essas imagens carregam fragmentos do meu passado, conectando-me a uma história de vida que, através desse processo, também passa a fazer parte do universo de minha filha. Esse gesto transforma a memória individual em uma narrativa compartilhada, criando um elo profundo entre gerações e renovando o vínculo afetivo.

Além de habitar o imaginário infantil, essas imagens abriram espaço para reflexões importantes sobre como as práticas dos adultos influenciam e moldam as perspectivas das crianças. O envolvimento de minha filha no processo criativo não foi apenas uma interação ocasional, mas uma participação ativa que resultou em momentos de descoberta e aprendizado mútuo. Por meio desses diálogos artísticos, a arte se posiciona como um espaço para repensar e reconstruir narrativas, conectando experiências individuais e familiares. Esses momentos evidenciam como a arte pode operar como uma ferramenta de conexão emocional e intelectual entre gerações, ampliando perspectivas sobre identidade, memória e criação coletiva.

Figura 3: Série Habitar a imagem (Gisett Lara, 2023). Fonte: Arquivo Pessoal

Compartilhar a experiência e o processo de criação subverte o lugar tradicional do artista como o centro do poder criativo, abrindo espaço para outras vozes e perspectivas. Essa dinâmica ressoa profundamente com a linhagem materna que permeia meu trabalho, pois integra histórias e experiências familiares no processo. No meu caso, minha filha ficou tão envolvida nesse movimento artístico que quis criar a última imagem da exposição. Esse gesto demonstra como a criação artística pode se transformar em um espaço inclusivo, em que diferentes visões e narrativas ganham protagonismo, transcendendo as intenções originais do criador. Essa coautoria não apenas enriqueceu o resultado final, mas também ressignificou a obra como um testemunho vivo das práticas artísticas compartilhadas entre gerações, consolidando a conexão entre passado, presente e futuro dentro da linhagem materna.

Ao lidar com meu próprio trauma, este trabalho se desdobrou em camadas múltiplas de construção e subjetividade, refletindo tanto feridas pessoais quanto sociais. As fotografias, ao serem recortadas e manipuladas, transcendem sua função original como vestígios de uma performance e se tornam resíduos vivos, orgânicos e em constante transformação. A performance, como afirma Schechner (2011, p. 39), “oferece a indivíduos e grupos a oportunidade de se tornarem novamente o que já foram ou, mais frequentemente, de se tornarem o que nunca foram, mas desejam ter sido ou desejam ser”. Nesse sentido, a fotomontagem se apresenta como uma ferramenta poderosa que combina fragmentos materiais, narrativas históricas e elementos da imaginação, permitindo a criação de novas interpretações e significados. A prática artística funciona, assim, como um espaço de ressignificação e expansão de possibilidades criativas e identitárias.

Ao reciclar o arquivo, a fotografia deixa de ser um material passivo e assume um papel ativo, transformando-se em uma agência que conecta memória e criação. O arquivo, antes percebido como uma estrutura sólida e imutável, ganha plasticidade e performatividade, abrindo caminho para ressignificações contínuas. A partir desse processo, ressignifico também minha memória histórica, pessoal e social, reconstruindo aspectos fundamentais de minha trajetória. As mulheres retratadas nessas imagens simboli-

zam uma herança materna que me foi negada devido à ausência de minha mãe biológica em minha criação (figura 5). Apesar disso, fragmentos da sua história, narrados por meu irmão e minha tia, foram integrados de forma consciente ao meu trabalho artístico, permitindo que a ausência se transformasse em uma presença simbólica.

As fotografias, agora recicladas, transcendem a materialidade para se tornarem agentes vivos de transformação. Elas não apenas refletem o passado, mas também criam possibilidades para novas interpretações de identidade e representação. Cada imagem carrega simbolismos que desafiam o apagamento histórico e ressaltam a presença feminina em minha trajetória. Por meio da prática de fotomontagem, sou capaz de reconciliar fragmentos materiais e narrativos, conectando memórias individuais e coletivas. Essas fotografias, que passaram a habitar meu espaço doméstico, vão além de memórias visuais: elas representam uma construção material e fabulada de uma linhagem materna que, por muito tempo, me foi negada. Como destaca Alejandra Castillo,

La imagen, entonces, como falla y alteración, como apertura y performance. Lejos de la estabilización, la imagen es la superficie en la que confluyen diversos registros. Lugar de cruces y desfases infinitos en el que se encuentran, en tanto aspecto de circulación, objetos, sujetos, lo expresado, lo silente, la intención, así como la falta de ella, el presente y el pasado. (Castillo, 2015, p. 60-61)

Essa citação reforça a ideia de que a imagem opera como um lugar dinâmico de encontro e transformação, no qual camadas de significado se sobrepõem e dialogam, transcendendo a mera representação estática. Nesse sentido, o processo de reciclagem e ressignificação das fotografias não é apenas uma prática de recuperação histórica, mas também uma abertura performativa que permite a convergência de narrativas, emoções e temporalidades. Ele cria um espaço de cruzamento entre o que foi negado, o que está presente e o que ainda está por vir, reafirmando a potência da imagem como um meio de conexão entre memória, identidade e história.

Para concluir, gostaria de destacar que a performance, como metodologia de pesquisa, não apenas conecta o fazer manual ao sentido de transformação interna, mas também opera como uma forma de preencher lacunas e ressignificar histórias negadas. As imagens criadas nesse processo desempenham um papel essencial: elas emergem como fragmentos que reconstroem e reformulam uma narrativa interrompida. Esses fragmentos carregam vestígios do passado que, ao serem manipulados e reconfigurados, adquirem novos significados e possibilitam o diálogo entre memória individual e memória coletiva. Ao reciclar e ressignificar arquivos fotográficos, as imagens transcendem seu papel inicial de registro histórico para se tornarem agentes de transformação. Elas preenchem as ausências, dando materialidade e expressão a uma linhagem materna que, por muito tempo, foi negada. Esse

Figura 5: Série Habitar a imagem (Gisett Lara, 2023). Fonte: Arquivo pessoal

ato não é apenas criativo, mas também profundamente simbólico, permitindo que as histórias pessoais sejam recontadas e reimaginadas.

Ao reconstruir essas narrativas com fragmentos, cada imagem carrega consigo um testemunho de resistência e de recuperação de identidade. Essas fotografias não apenas resgatam memórias, mas ampliam as possibilidades de existir, fornecendo um espaço onde traumas e ausências possam ser ressignificados. O gesto de reciclar, nesse contexto, torna-se uma forma de transformar materialidade em expressão viva, conectando passado, presente e futuro. Ao preencher as lacunas deixadas por histórias negadas, as imagens criadas evocam uma força criativa que dialoga com a memória, trazendo uma nova consciência daquilo que foi, do que é e do que pode vir a ser.

Referências

CASTILLO, Alejandra. Adicta imagen. Buenos Aires: La Cebra, 2015.

LARA, Gisett. Derecho a estar presente: arte, feminismo y posmemoria. In LACERDA, Amanda; CLAUDIANO, Leonardo; ROQUE, Mateus. (Orgs.). I Simpósio de História, Literatura e Resistências. 1ª ed. v. II. Parnamirim: Editora UICLAP, 2024, p. 134-154.

RICHARD, Nelly. Residuos y Metáforas: ensayos de critica cultural sobre el chile de la transición. Santiago: Cuarto Propio, 2001 [1988].

SCHECHNER, Richard. Restauración de la conducta. In TAYLOR, Diana (Org.). Estudios avanzados de performance. 2. ed. Cidade do México: FCE, 2011, p. 35-50.

SOTO-CALDERÓN, Andrea. La performatividad de las imágenes. Santiago: Metales Pesados, 2020.

TAYLOR, Diana. Performance. São Paulo: Perspectiva, 2023.

173 Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Arte, Comunicação e Sustentabilidade: estudos contemporâneos1

Art, Communication and Sustainability: contemporary studies

Wilton Garcia2

Resumo: Este artigo destaca arte, comunicação e sustentabilidade, a partir da relação Brasil e México. Na base dos estudos contemporâneos, discute-se o decolonial na América Latina, entre atualização e inovação. O percurso metodológico em formato de ensaio propõe uma abordagem qualitativa inter/multi/transdisciplinar. O referido texto está dividido em: 1) O Ensaio como Método; 2) O Decolonial da/na América Latina; 3) O Olho do/no México; 4) A Boca do/no Brasil; além do Desfecho.

Palavras-chave: Arte; Comunicação; Sustentabilidade.

1. Esta pesquisa Comunicação, educação e tecnologia: estudos contemporâneos (2023-2025) –Processo 2022/14102-9) é apoiada pela Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp.

2. Docente da Fatec Itaquaquecetuba, pesquisador Fapesp, Doutor em Comunicação pela USP. E-mail: 88wgarcia@gmail. com. Currículo lattes: http://lattes. cnpq.br/3458459542807532.

A diversidade existe nos modos diferentes de conhecê-la e formalizá-la Canclini (2021, p. 32)

A diversidade destaca alternativas híbridas, capazes de desenhar a pluralidade. A epígrafe do antropólogo argentino, Canclini (2021), (re)conduz à manifestação diversa da América Latina. Interessa-nos discutir sobre América Latina, ao buscar alternativas para inverter a lógica de poder. Nossa latinidade estratifica-se na extensão geográfica em evidência. O que se expande, na verdade, são variantes culturais do ideal latino entre Arte, Comunicação e Sustentabilidade.

Da arte contemporânea, as experimentações artísticas, estéticas e/ou poéticas querem provocar revolução, tendo a diversidade como fator que impacta a sociedade. Nessa abordagem, Brasil e México exemplificam tal feito (figura 1), a partir de suas alianças.

Figura 1: BR MX (técnica mista, 24 10x10cm). Fonte: Do Autor (2024)

Dois momentos pontuais em 2024 – um no primeiro semestre no México e outro no segundo semestre no Brasil – desdobram duas obras de arte com técnica mista de (re)uso de material e suporte do cotidiano. Em uma perspectiva decolonial, tais obras Ojo (200x150cm) e Rios Flutuantes (200x300cm) expressam a ideia de diversidade da América Latina. Valer-se de estratégias (Villaça, 2017).

Disso, surgem quatro perguntas como problema de pesquisa:

• Qual seria a produção de arte contemporânea na América Latina?

• Como traduzir o quadro social da América Latina, entre Brasil e México, hoje?

• Como as instituições latino-americanas lidam com o decolonial diante de contradições, controvérsias, paradoxos?

• Quais agentes profissionais são ativados no mercado da arte latino-americana?

Tendo como base os estudos contemporâneos (Canclini, 2021, 2016; Hui, 2020), entre atualização e inovação, a decolonialidade coloca em debate a superação da ultrapassada esfera colonial. Tais estudos valorizam a produção de conhecimento, subjetividade e informação recorrentes do decolonial na América Latina (Iara e Oliveira, 2022; Lugones, 2014; Torrico, 2019) e pensar acerca do Sul Global (Silva, 2024) para além da dinâmica do Norte Global. Sem dúvida, pensar tem muito peso, porque desperta a ideologia.

Já o percurso metodológico, em formato ensaio (Canclini, 2016; Meneghetti, 2011), propõe uma abordagem qualitativa inter/multi/ transdisciplinar – vide tópico 1. Desse modo, o referido texto parte da pesquisa Comunicação, educação e tecnologia: estudos contemporâneos3, ao (re)considerar instâncias do tecido socioeconômico latino-americano.

Realizadas tais notas preliminares, o presente trabalho está dividido em quatro tópicos: 1) O Ensaio como Método; 2) O Decolonial da/na América Latina; 3) O Olho do/no México; 4) A Boca do/no Brasil; além do Desfecho. São partes distintas que, ao mesmo tempo, se complementam como possibilidades enunciativas.

1 - O Ensaio como Método

Entre o sensível e o inteligível, o formato ensaio pode provocar reflexão profunda. Tal reflexão equipara-se ao tecimento de estratégias discursivas, capazes de sinalizar alguns princípios, valores e (re)dimensiona a condição dos estudos contemporâneos, sobretudo na ordem da decolonialidade no campo das ciências humanas.

3.Financiamento (Fapesp 20232025).

Isso vislumbra saberes disruptivos e alternativas fragmentadas por conflitos, contradições, controvérsias, dissidências, enfrentamentos, paradoxos, resiliências, resistências.

Ensaiar, portanto, tangencia uma abordagem qualitativa do método (Canclini 2016), sobretudo pela lógica inter/multi/transdisciplinar. De acordo com Meneghetti (2010, p. 331), “o ensaio é importante recurso para ampliar a interdisciplinaridade e promover a construção de saberes por meio da relação intersubjetiva”.

Ou seja, a validação de um esforço crítico-reflexivo confronta, de modo estratégico, diferentes substratos: ideológico, mercadológico, profissional, tecnológico. Conforme Canclini (2016, p. 135), o ensaio “[...] é uma estratégia de compreensão de um processo histórico ou de um movimento da sociedade com base em reflexões subjetivas e leituras de um autor”.

Dessa maneira, uma escrita ensaística se vale de qualquer tema/ assunto acadêmico, científico e/ou intelectual, valendo-se do seu rigor com o critério aplicado ao propósito como produção de conhecimento acerca de uma investigação, pesquisa e/ou estudo. Na expectativa de se aproximar e conhecer o objeto/contexto, “o ensaio, anterior ao estabelecimento da ciência com critérios extremos de objetividade, procura fugir dessa lógica” (Meneghetti, 2010, p. 328), para obter resultantes inesperadas.

Como proposição metodológica, o formato ensaio desenvolve estrategicamente um posicionamento crítico-reflexivo (axiológico, epistemológico e ontológico) em torno da área da comunicação sobre decolonialidade (Garcia, 2024). Para observar, descrever e discutir tal proposição, fontes secundárias (artigos e livros) (re)articulam estratégias acerca de questões emergentes (Villaça, 2017).

2 - O Decolonial da/na América Latina

Se a lógica colonial violenta vorazmente a sociedade, ainda hoje, ao oprimir e explorar a vida humana, isso evita qualquer alternativa de um sujeito se manifestar contra ela. Havia uma proteção somente para os que mandavam. Essa lógica colonial acabou propiciando o desenvolvimento de um corpus teórico-conceitual contraintuitivo, potente, com respostas expressivas: Neocolonial, Pós-colonial, Descolonial, Decolonial, Transcolonial, Contracolonial.

A noção de decolonialidade desafia as estruturas de poder estabelecidas pelo colonialismo, para despertar fenômenos recorrentes. Seria, sim, radicalizar um posicionamento ideológico crítico-reflexivo que potencialize o Ser/Estar do sujeito no mundo. Com isso, o decolonial ativa territórios periféricos, marginalizados, na expectativa de indagar as diferentes narrativas opressoras e promo-

ver expressões singulares, as quais desmantelam qualquer eixo dominante. Ao questionar o sistema hegemônico (branco, masculino, eurocêntrico), tal feito decolonial amplia a percepção acerca do cotidiano.

Quero pensar o/a colonizado/a tampouco como simplesmente imaginado/a e construído/a pelo colonizador e a colonialidade, de acordo com a imaginação colonial e as restrições da empreitada capitalista colonial, mas sim como um ser que começa a habitar um lócus fraturado, construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os “lados” do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla. (Lugones, 2014, p. 942, grifo nosso)

A autora radicalmente rompe com o paradigma da colonialidade, para ampliar o olhar acerca da exploração humana. Lugones (2014) coloca em debate a ideia de saberes e fazeres para elaborar uma nova possibilidade de América Latina, longe de temáticas ultrajantes que exploram a colônia e o/a colonizado/a. Tal posição radical atinge imediatamente a discussão a respeito de poder, o qual permeia as condições adaptativas da América Latina (Iara e Oliveira, 2022; Torrico, 2019).

Nessa situação, o valor tecnológico traz a dimensão digital (Canclini, 2021; Hui, 2020), tendo a comunicação como produção de informação (Torrico, 2019). Na medida em que observa o acesso à informação, examina-se as condições adaptativas da sociedade contemporânea. Ou seja, isso pressupõe renovação na sociedade contemporânea, pois a noção de decolonial balança o status quo quando estimula a novidade, distante do conservadorismo. Longe de um texto denúncia, formalizam-se reivindicações coerentes que ultrapassam o senso comum.

Disso, instaura-se um território fecundo de possibilidades alternativas entre transgressão e/ ou subversão. O que transgride vai além, já o que subverte está aquém, em camadas. Desse modo, a perspectiva decolonial reitera uma (des)ordem peculiar para que o capital seja subvertido e sugere revisão imediata da agenda global (Canclini, 2016, 2021; Iara e Oliveira, 2022; Lugones, 2014), a favor do sujeito no mundo.

Ao tematizar a diversidade na América Latina como vestígio de nossa herança ancestral andina, afrodescendente, indígena, verifica-se estrategicamente a abrangência do nosso viver em comunidade. Dessa maneira, a diversidade na arte contemporânea (re) articula o hibridismo cultural (Canclini, 2016), na insurgência do Ser/ Estar do sujeito no mundo. De acordo com a introdução deste texto, a diversidade destaca alternativas híbridas, capazes de desenhar a pluralidade (Bezerra, 2018). O diversus provoca variantes, que versam sobre o cotidiano.

Entre arte, cultura e imagem, qualquer projeto decolonial dissolve a promoção dessa diversidade, estrategicamente, a qual faz oscilar os referentes hegemônicos (entre tradição e conservadorismo) cristalizados e, portanto, ultrapassados. Como artista visual e professor universitário, procuro abordar diversos aspectos identitários, socioculturais e políticos que elegem a noção de decolonialidade na América Latina. Entre noções de deformidade, informalidade e precariedade, seria despertar a sensibilidade para uma Arte Sustentável, a qual se faz atenta ao meio ambiente e ao consumo contra o desperdício e a poluição.

3 - O Olho do/no México

A experiência de visitar, algumas vezes, o México – ex-colônia espanhola – chama a atenção em especial sobre o olho e o olhar –la mirada . Como prerrogativa, vale considerar que a população mexicana não se relaciona frequentemente, de maneira aberta, pois o olhar direto solicitaria vínculo com o/a outro/a. Provavelmente, a miragem, traduzida do hispânico, reflete uma zona complexa de observação, tensão e/ou confronto. E, talvez, a estratégia do desvio desse olhar, como experiência visual, parece facilitar a conexão (parcial), entre duas ou mais pessoas, com muito filtro. Há um filtro no olhar que delicadamente intermedia a vida – quase como uma poética imagética – de encantos.

Figura 2: Caderno de esboço. Fonte: Do Autor (2024)

A própria palavra em espanhol ojo (olho em português) desenha, em uma metáfora visual, a face humana entre olhos e nariz (figura 2). Mais que isso, o volume anatômico dessas partes do rosto demonstra uma composição visual instigante entre a palavra e a imagem – como arranjo figural, iconográfico, imagético. Nesse cenário, o valor artístico traz a dimensão estética, tendo a arte como produção de subjetividade.

Em uma vertente distinta, a artista mexicana Frida Khalo (19071954) projeta a intensidade do olhar – na força feminina da mulher –em suas várias pinturas de autorretratos (figura 3). A radicalidade de Frida mostra sua tentativa de distanciamento desse lugar comum mexicano, legitimando sua potência artística (cultural, identitária e política), ao evidenciar tal assinatura plástica, pictórica. A obra colorida de Frida ativa o mundo e reflete bastante fibra em seus referentes visuais. Por isso, há o reconhecimento internacional de sua obra de arte com o enorme valor representativo da nossa América Latina, pois a presença no autorretrato demonstra nossas ranhuras cotidianas.

A temática explorada nas pinturas de Frida Khalo traz o cotidiano para dentro da tela. A artista olha o México em sua latinidade e pinta o que vê, sente e imagina, ao construir elementos viscerais que permeiam sua própria história. Nitidamente, Frida buscou

Figura 3: Autorretrato com Colar de Espinhos e Beija-flor (pintura). Fonte: Frida Khalo (1941)

transformar sua dor em arte, pontuando dificuldades e sofrimentos da humanidade. Há vestígios visuais de um sentimento pessoal que se traduz em efeito.

Nesse bojo, em junho de 2024, aconteceu o projeto Hilando Organismos , no Centro Cultural Plaza de Fátima em Monterrey, no México. Desenvolvi o Taller de Arte Sostenible, que resultou na obra Ojo (figura 4). Foi um tecimento poético que abrange o fazer arte e cultura. Produzida coletivamente com (re)uso de material e suporte do cotidiano, foram utilizadas diferentes técnicas (colagem, desenho, pintura), tendo como referências conceituais da história da arte: Arte Naif, Arte Pop, Arte Povera, Artesania, Assemblage, Bricolagem. Aqui, arriscar é a palavra de ordem.

Figura 4: Ojo (técnica mista, 200x150cm). Fonte: Do Autor (2024)

Trata-se de um manifesto colaborativo, em que diferentes participantes (residentes e/ou visitantes) desenvolveram cenas parciais que se complementaram, de modo cooperativo, conforme se debateu a respeito de natureza e cultura na América Latina. Afinal, verifica-se uma gigantesca crise identitária mexicana quando se toca sobre sua pertença civilizatória inscrita como norte-americana e, ao mesmo tempo, latina.

4 - A Boca do/no Brasil

A experiência de viver no Brasil – ex-colônia portuguesa – chama a atenção sobre a boca – com o nosso devorar antropofágico (comer o/a outro/a), para além do ideal modernista brasileiro. Como pressuposto, vale considerar que o brasileiro se relaciona frequentemente, de maneira aberta, pois a boca que engole solicita vínculo imediato com o/a outro/a. Provavelmente, a ideia de comer (degustar, deglutir, incorporar) esbarra na compreensão do paladar (entre o sabor e o saber); assim como tato e olfato, para além do visual. E, talvez, a estratégia de aproximação parece facilitar a conexão (parcial) entre duas ou mais pessoas, sem muito filtro.

Nessa circunstância, o valor acadêmico traz a dimensão intelectual, tendo os estudos contemporâneos como sistema produtivo a ser aprofundado. Os diferentes tipos de produção almejam uma solução criativa e flexível a respeito de arte e imagem para pensar sobre a América Latina, em particular no diálogo cultural de Brasil-México. Isso requer observar tanto a Produção quanto o Valor de bens e serviço, bem como sua Dimensão. Conforme Quadro 1 (Garcia, 2024), para cada tipo de Produção instaura-se um determinado Valor, além da Dimensão como referentes complexos e pulsantes nessa discussão:

Produção Valor Dimensão artística estético poética conhecimento acadêmico intelectual subjetividade social pessoal

informação tecnológico digital mercadológica econômico comercial

Quadro 1: Produção, Valor e Dimensão Fonte: Do Autor

Em uma vertente complementar, a artista brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973) projeta a expressão facial de lábios grandes como herança ancestral afrodescendente própria da mestiçagem (do catiço à Kalunga), na cultura brasileira, com a obra Negra (ver figura 5). Nela, Destacam-se traços identitários híbridos do corpo negro feminino tão explorado pela escravidão no Brasil e no mundo. A ênfase visual desses lábios grandes aglutina a modernidade brasileira, a qual tenta humanizar a presença da pessoa em cena.

Figura 5: Negra (pintura), 1923, de Tarsila do Amaral. Fonte: Reprodução internet

A pintura em destaque, de Tarsila, evidencia nossa brasilidade catiça, com linhas retas coloridas ao fundo e o enorme corpo feminino nu, despido, despojado, ao centro da tela. Provavelmente, esse conflito visual dilata, de modo simultâneo, o problema da latinidade, uma vez que não se fala espanhol no Brasil. E essa quase ausência de vocabulário ibérico-hispânico em nosso território confunde e atravessa o ideal de América Latina. Esta última nota-se plural, diversa e inclusiva.

Na expectativa de ampliar esse debate criativo, em setembro de 2024, aconteceu a primeira edição do Festival de Artes e Saberes das Águas (FASA), na cidade de Nazaré Paulista, no Estado de São Paulo. Desenvolvi a Oficina Criativa de Arte Sustentável, que resultou na obra Rios Flutuantes (figura 6). Produzida coletivamente com estudantes de escola pública, o (re)uso de material e suporte do cotidiano foi relevante no processo de ensino-aprendizagem sobre meio ambiente, clima, consumo e sustentabilidade. Tal iniciativa equaciona Arte, Cultura e Educação para se pensar sustentabilidade e meio-ambiente.

Figura 6: Rios Flutuantes (técnica mista, 200x300cm). Fonte: Do Autor (2024)

Nessa conjuntura, o valor ambiental traz a dimensão de natureza e cultura, tendo a sustentabilidade como produção de capital. O tema abordado de Rios Flutuantes refere-se ao desafio climático da geografia latino-americana, entre os Andes e a Amazônia. A ideia foi capacitar o público participante sobre a emergência do debate acerca da arte e dos saberes da água. Dessa maneira, a diversidade na arte contemporânea (re)articula o hibridismo cultural (Canclini, 2016), conforme indicado no texto.

Desfecho

Em 2023 e 2024, comemoramos um momento especial de colaboração cultural entre Brasil e México, na expectativa da cooperação internacional. Por certo, Frida e Tarsila traçam cores vibrantes de um profundo diálogo. São laços relevantes que despertam sensibilidade sobre povos originários (nativos), (re) formados mediante a diferença, a diversidade e a alteridade. Todavia, ressalta-se a troca de informações entre os dois países, para estimular o intercâmbio cultural e, consequentemente, econômico. Pertencentes à América Latina, Brasil e México formam alianças econômicas e culturais, pois são duas potências em desenvolvimento, cujos capitais econômicos e culturais devem ir além da dinâmica comercial.

Com a divulgação de suas riquezas econômicas e culturais, as estratégias discursivas (re)articulam suas próprias experimentações artísticas, estéticas e/ou poéticas tanto de imagens quanto de arte para a composição sólida de uma América Latina. O que, efetivamente, solidifica adesão e vínculo estrangeiro entre essas nações ditas “em desenvolvimento”, que buscam fomentar a criatividade e a flexibilidade para alavancar melhores resultados.

Disso, a representação visual da obra BR MX (figura 1), promovida como quebra-cabeça de 24 partes, equaciona uma mistura necessária para alargar as fronteiras. Os limites entre as partes podem e devem ser ampliados para dar lugar aos desafios criativos e flexíveis. Entre noções de deformidade, informalidade, precariedade e pluralidade, uma arte sustentável permite (re)significar valores humanos como afeto, solidariedade e esperança.

e políticas do sentir latino-americano

A atmosfera produzida pela perspectiva decolonial –como fator de impacto social – convida a sociedade contemporânea a (re)ver o Sul Global, distante da lógica pautada pelo Norte Global. Desejo que disso aflorem poéticas e políticas do sentir latino-americano

Referências

BEZERRA, Valter. Por que o pluralismo interessa à epistemologia? Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea , v.6, n.1, p. 187207, jul. 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/ fmc/article/view/20237 Acesso em: 22 ago 2024.

CANCLINI, Néstor García. Cidadãos substituídos por algoritmos. São Paulo: Edusp, 2021.

CANCLINI, Néstor García. O mundo inteiro como lugar estranho. São Paulo: Edusp, 2016.

GARCIA , Wilton. Valores sociais e econômicos no mercado da arte contemporânea. Anais do 2. Seminário Acadêmico da Economia do Mercado da Arte. São Paulo: FGV, 2024. Disponível em: https:// repositorio.fgv.br/items/5c78aac2-fa4a-4579-868e-f8e503e8c890 Acesso em: 10 out. 2024.

IARA , Aia Oro.; OLIVEIRA , Cássia. Comunicação decolonial: encontro de saberes para a conquista de direitos. Nhengatu , v.1 n.6, p. 144-174, jan-dez 2022. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/nhengatu/article/view/60819. Acesso em: 10 out. 2024.

HUI, Yuk. Tecnodiversidades. São Paulo: Ubu, 2020.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, , v. 22, n.3, p. 935-952, set-dez, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/ view/36755/28577. Acesso em: 10 out. 2024.

MENEGHETTI, Francis. O que é um ensaio-teórico? RAC, v. 15, n.2, p. 320-332, mar-abr 2011. Disponível em: https://rac.anpad.org. br/index.php/rac/article/view/845. Acesso em: 10 out. 2024.

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TORRICO, Erick. Para uma Comunicação ex-cêntrica. MATRIZes, v.13, n.3, p. 89-107, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ matrizes/article/view/159957. Acesso em: 10 out 2024.

VILLACA , Nizia. Comunicação, desfronteirização dos gêneros e estratégias identitárias. Artefactum, v. 15, n. 2, p. 1-14, 2017. Disponível em: https://artefactumjournal.com/index.php/artefactum/article/view/1540. Acesso em: 10 out. 2024.

187 Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Quando a matéria bruta brilha: luz negra como método de leitura de trabalhos artísticos

When raw matter shines: black light as a method of reading artworks

Guilherme Barbosa Ferreira1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar o método da luz negra, desenvolvido pela filósofa e artista brasileira Denise Ferreira da Silva. A partir dos textos “Em estado bruto” (Ferreira da Silva, 2019) e “Luz Negra” (Ferreira da Silva, 2016), argumento que a luz negra propõe deslocamentos em relação a fundamentos do que chamamos de pensamento moderno. Com esse propósito, investigo quais formulações são desafiadas pelo método a partir de um breve percurso pela história da metafísica ocidental. Em seguida, apresento como pensadores da disciplina estética se relacionam com as ideias de Ferreira da Silva. E, por fim, defendo que o método da luz negra propõe um método reflexivo crítico singular para a análise de trabalhos artísticos, ao enfatizar aspectos historicamente subvalorizados.

Palavras-chave: Pensamento moderno; Luz negra; Estética.

1. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Email: guilherme1ferreira11@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/5274817523311029.

Introdução

No texto “Em estado bruto” (Ferreira da Silva, 2019), publicado originalmente na revista e-flux em 2018, Ferreira da Silva define o que chama de método da luz negra: “um método de reflexão e pensamento feminista e negro” (Ferreira da Silva, 2019, p. 10). Esse método tem como objetivo liberar o sujeito dos limites do pensamento moderno. E enfatizar os aspectos vagos e incertos dos trabalhos artísticos, na tentativa de escapar da determinabilidade característica do julgamento estético kantiano. A luz negra propõe um exercício de despensar o mundo como o conhecemos. Libera os objetos, em geral, e as obras de arte, de modo específico, de uma condição subjugada em relação ao sujeito universal. A partir de uma proposição conceitual e poética, a luz negra tem como objetivo enfatizar, fazer brilhar, aquilo que foi subjugado pela tradição moderna na interpretação de trabalhos artísticos.

Em “Luz Negra”, Ferreira da Silva (2016) escreve sobre o trabalho da artista nigeriana Otobong Nkanga. E se interessa pelo elemento metálico cobre. Em como o cobre é utilizado pela artista tanto por sua materialidade brilhosa, quanto por seu significado enquanto uma mercadoria popular hoje. Pensar sobre o cobre a partir da instalação In pursuit of bling (2014) torna visíveis determinadas relações de poder a partir de sua materialidade. Ferreira da Silva conecta o verde cobreado característico do topo das igrejas das cidades europeias com o uso do cobre em infraestruturas tecnológicas. Sobre a luz negra, comenta a respeito das pistas de dança ao som de Donna Summer, e o papel da luz negra como fundamental para produzir o efeito que transforma os corpos, objetos opacos, em objetos resplandecentes. Ferreira da Silva: “Em outras palavras, a luz negra não ‘ilumina’: na verdade, ela faz com que as coisas emitam ou irradiem sua própria luz” (Ferreira da Silva, 2016, p. 2). Nesse sentido, ativar a luz negra como ferramenta teórica é um esforço que exige decompor categorias abstratas, na tentativa de tornar visíveis a violência colonial e impossibilitar a indiferença em relação à violência racial (Ferreira da Silva, 2016).

O que chamamos de pensamento moderno é um termo impreciso. É uma história grande demais, mas que de todo modo tento esboçar na segunda seção a partir de dois pensadores centrais para a metafísica ocidental: René Descartes e Immanuel Kant. Se, por um lado, Descartes e Kant estabeleceram as bases do pensamento moderno, por outro, uma miríade de pensadores e artistas promovem deslocamentos em relação às suas teorias, entre as quais a filósofa e artista Denise Ferreira da Silva. Em seguida, na terceira seção do texto, proponho que o método da luz negra promove deslocamentos em relação à: a) a hierarquia criada pelo racionalismo cartesiano em relação às qualidades primárias e se -

cundárias e b) o dualismo kantiano entre as categorias de sujeito e objeto. Sob uma perspectiva política contra colonial e contra racista, a luz negra contribui para o desenvolvimento do que chamamos de pensamento extramoderno2 na análise de trabalhos artísticos. Por fim, na última seção do texto, relaciono o método da luz negra com ideias de outros pensadores do pensamento extramoderno, ressaltando suas contribuições para a disciplina estética da filosofia.

1 - Pensamento moderno, pensamento extramoderno

A grosso modo, aquilo que entendemos por pensamento moderno corresponde a um conjunto de saberes surgidos entre os séculos XVII e XIX em territórios europeus, associado a um contexto de profundas mutações culturais conhecidas como Iluminismo. Em Meditações sobre Primeira Filosofia (2004 [1641]), Descartes contrasta a realidade formal das ideias à realidade objetiva. No cartesianismo, o que existe são os fenômenos, manifestações mentais do mundo material. E o que está em oposição – e, que, corresponde às categorias de sujeito e objeto – são as categorias de mente e mundo. Por um lado, o objetivo se refere ao modo como as coisas aparecem à consciência. Por outro, o subjetivo corresponde às coisas elas mesmas. O racionalismo cartesiano é uma teoria do conhecimento que pressupõe uma hierarquia, em que a apreensão racional é privilegiada em detrimento da experiência sensorial. Nesse sentido, em Princípios da filosofia (2017 [1644]) Descartes define as qualidades mentais primárias e secundárias, criando uma distinção que privilegia o tamanho, a figura, a duração, o volume e a posição, em detrimento de qualidades como o odor, a cor, o sabor e a dor. O argumento é que as qualidades primárias são percebidas pela mente humana com mais clareza do que as qualidades secundárias.

Historiadores da ciência apontam recentemente (Daston e Galison, 2019) que as categorias de sujeito e objeto, conforme formuladas por Descartes no século XVII, não foram amplamente aceitas, sendo utilizadas como termos técnicos por uma parcela restrita da comunidade científica, especialmente entre lógicos e metafísicos. No entanto, foi Kant quem retomou esses conceitos e os consolidou como uma norma científica a partir do século XIX, redefinindo a separação entre sujeito e objeto não mais associada às categorias de corpo e mente, mas em relação às categorias de particular e universal.

As formulações de Kant produziram implicações diretas no campo da estética, cujas bases foram lançadas anteriormente por Alexander Baumgarten em “Ästhetik ” (2007 [1750]). Neste texto, Baumgarten estabelece a separação entre o domínio sensível e o domínio lógico, criando a disciplina estética no campo da filosofia. Enquanto a lógica, considerada superior, ocupava-se do estudo dos objetos inteligíveis,

2. Inspirado livremente pelo pensamento de Eduardo Viveiros de Castro a partir do curso “Fora do lugar: reocupação cosmopolítica do espaço”, de 2023, cuja a hipótese era impedir a cronofilia no pensamento ocidental. O sentido do prefixo extra-, para o antropólogo, está ligado à dimensão ontológica e epistemológica (os povos indígenas são povos extramodernos), mas também em relação a um sentido espacial ligado à exterioridade (territórios tradicionais como território fora do Plantationoceno). O extramoderno surge como uma alternativa à sucessão temporal implícita pelo termo pós-moderno. A ementa do curso e mais elaborações sobre o termo podem ser encontrados em: https://ppgas.museunacional. ufrj.br/ppgas-divulga/disciplinaciencia-da-literatura-ministradapelos-profs-eduardo-viveirosde-castro-e-joao-camillo-penna. Acesso em: 21 fev. 2025.

a estética se dedicava ao estudo de objetos sensíveis. Anos depois, Kant herda os problemas pensados por Baumgarten e escreve Crítica da Faculdade do Juízo (2012 [1790]), considerada o texto fundador da estética moderna. O julgamento estético kantiano independe do objeto e é função atribuída ao sujeito, que, a partir do juízo de gosto, determina se algo é belo. A grosso modo, nenhum objeto é belo em si, porque essa qualificação depende do sujeito e das regras do chamado livre jogo da faculdade da imaginação e do entendimento. A finalidade do juízo estético é extrair prazer sobre o objeto belo, mesmo que ele não apresente nenhuma finalidade em si, o que demonstra um primeiro paradoxo no pensamento kantiano. Outro paradoxo envolve a definição kantiana de juízo: as faculdades de julgar dependem de um princípio de universalidade, uma espécie de universalidade subjetiva que é, ao mesmo tempo, particular e universal. Sendo assim, sabemos que os binômios conceituais consolidados pela filosofia moderna – em que a matriz sujeito e objeto se desdobra em outros dualismos como mente e corpo, universal e particular, sensível e inteligível, matéria e forma, etc –, foram amplamente reformulados desde sua origem. As categorias abstratas da arte, beleza e verdade, inicialmente inspiradas na estética clássica, foram questionadas quanto à sua suposta universalidade por inumeráveis teóricos e artistas. Nesse contexto, diversas correntes científicas – do pragmatismo norte-americano do século XIX ao pós-estruturalismo francês do século XX – contribuíram para o desenvolvimento do que estou chamando amplamente de pensamento extramoderno. Na área da filosofia estética, autores do materialismo histórico como Walter Benjamin, e mais tarde Susan Buck-Morss, contribuíram para a reconfiguração da crítica estética a partir do surgimento de novas tecnologias. Jonathan Crary insere-se nessa tradição ao pensar sobre visão, percepção e modernidade. Mais recentemente, autores como Nicholas Mirzoeff e Denise Ferreira da Silva têm produzido, a seu modo, deslocamentos em aspectos centrais do pensamento moderno, enfatizando, sobretudo, sua ligação com a história do colonialismo e da violência racial.

2 - Luz negra

Nesta seção, proponho que o método da “luz negra”, concebido por Ferreira da Silva, contribui para o pensamento extramoderno ao desestabilizar os fundamentos do racionalismo cartesiano e ao recusar o dualismo kantiano na interpretação de obras de arte. Em relação ao primeiro aspecto, consideramos que a luz negra [...] muda o foco para o elusivo, o vago, o incerto - a fragrância -, possibilitando, assim, eliminar a sequencialidade e expor as

correspondências (virtuais) mais profundas, que foram encobertas (mas não extintas) pelas formas abstratas do pensamento moderno. (Ferreira da Silva, 2019, p. 8)

Inserido em um projeto filosófico mais amplo de despensar a tradição iluminista, a luz negra desassocia a luz da razão, do esclarecimento, e do desejo de emancipação do sujeito universal, associando-a aos aspectos geralmente subjugados dos trabalhos artísticos. Como escreve a filósofa, a luz negra faz brilhar os aspectos elusivos, vagos, incertos. Nesse sentido, o método inverte a hierarquia criada por Descartes entre as qualidades mentais primárias e secundárias, na tentativa de atualizar, ressaltar, fazer brilhar, as características menos objetivas das obras de arte. Se, para Descartes, as qualidades primárias são sobrevalorizadas em relação às qualidades secundárias, é porque as primeiras são mais claramente percebidas pela mente do que as últimas. Com a criação das qualidades mentais, o filósofo realiza uma distinção entre entidades de diferentes naturezas, em que a matéria é diferente da ideia, a mente se distingue do mundo: “isto é, tratava-se de uma distinção entre entidades puramente mentais, um tipo de ideia versus outro - aquilo que os autores do século XIX chamariam (e chamaram) ‘subjetivo’” (Daston e Galison, 2019, p. 32, tradução nossa).

Em outras palavras, as qualidades secundárias cartesianas –como cores, sons, cheiros e sensações táteis como calor e frio –ocupam um lugar menos valorizado precisamente porque são subjetivas: dependem da percepção do sujeito universal3. Isso nos leva a pensar, com o método da luz negra, que é justamente o domínio sensível, despertado pela percepção, que deve entrar em foco em um tipo de pensamento extramoderno. E que é o sensível – e não apenas os sentidos, em um sentido convencional aristotélico (visão, audição, tato, olfato e paladar) – que a luz negra persegue a partir da inversão da hierarquia cartesiana entre as qualidades primárias e secundárias. Nesse sentido, a luz negra abre o domínio do sensível para o imprevisto da relação, que dá sinais através do corpo por meio de manifestações sensíveis. Ferreira da Silva: “Você sente com o corpo, conhece o corpo, mas não é sentir o cheiro, não é sentir a solidez, não é ouvir dos sentidos tradicionais, é sentir o arrepio.” (Ferreira da Silva, 2023, p. 21)

Em seguida, proponho que o método da luz negra desloca também a abordagem de Kant baseada no dualismo entre sujeito e objeto, que, como vimos, tem suas raízes no pensamento de Descartes. Ferreira da Silva:

[...] o trabalho de arte não deve, de antemão, apresentar-se ao apreciador na condição de ‘objeto’, com todas as premissas e implicações que isso comporta. Pois o objeto (da ciência, do discurso ou da arte) nada mais

3.Entretanto, é importante notar que a questão entre a percepção das qualidades secundárias para Descartes não estava relacionada aos diferentes modos de percepção de um objeto do mundo. Por exemplo, aos diferentes modos de perceber a cor azul por diferentes humanos. De modo distinto, o que importava era se todas as mentes percebiam o azul da mesma maneira: “O que está em questão é a correspondência entre as mentes e não entre uma imagem mental (em qualquer mente que seja) e o mundo.” (Daston e Galison, 2019, p. 275, tradução nossa).

é que uma mistura dos pilares onto-epistemológicos da razão universal, que sustenta os modos de operação do sujeito nos momentos de apreciação, produção e presentificação. (Ferreira da Silva, 2019, p. 11)

Contra os modos de ser e conhecer da razão universal, a luz negra convida a uma relação com o mundo em que o trabalho de arte não é objeto e o sujeito não é universal. Se o pensamento kantiano depende da noção de universal – para, por exemplo, definir se um objeto de arte é belo através do jogo da faculdade da imaginação e entendimento –, a luz negra despreza a universalidade porque ela é fundamento onto-epistemológico da violência racial. Esse ponto foi amplamente problematizado por teóricos dos estudos feministas e pós-coloniais ao longo do século XX, que evidenciaram como as categorias ontológicas e políticas modernas excluem os sujeitos subalternos. Além do universalismo, a luz negra libera o trabalho de arte de uma finalidade específica, de sua determinabilidade. Com o método, as obras de arte são autodeterminadas e não ocupam o mundo com a finalidade de gerar prazer para um sujeito universal. Em outras palavras, a luz negra desloca fundamentos da estética moderna porque “[...] a Estética jamais questionou a predeterminação metafísica do ente, i. e., jamais questionou sua origem platônica.” (Figueiredo, 2014, p. 138).

Esse debate se aproxima do que a teórica Susan Buck-Morss (1992), amplamente citada nos debates sobre estética contemporânea, chamou de desestetização da arte, ou a filósofa Virgínia Figueiredo (2014) chamou de alforria da arte. Ressoando discussões pertinentes à disciplina estética da filosofia, o método da luz negra contribui para a construção de ferramentas conceituais extramodernas capazes de despensar as obras de arte, por um lado, e o mundo moderno, por outro, precisamente porque suas formas abstratas continuam profundamente operantes.

Considerações finais

Walter Benjamin, pensador do materialismo histórico alemão, é um dos principais críticos da estética moderna, e trata a estética a partir de um outro vocabulário conceitual. Em sua tese de doutorado, Benjamin (1993 [1921]) se inspirou no romantismo alemão para pensar na noção de reflexão em detrimento do juízo. Diferentemente da abordagem kantiana, para Benjamin a crítica de arte não é responsável por produzir um juízo, mas uma reflexão que teria a capacidade de ampliar a obra, produzir o seu avivamento4. Para a filósofa Susan Buck-Morss, a partir de Benjamin, a arte passa por uma politização que envolve: “desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade” (Buck-Morss, 1992, p. 156). Considerando que

4.Benjamin desfaz esse argumento em textos posteriores, quando fala na obra de arte como ruína e mortificação em A origem do drama trágico alemão (2004) [1927].

O sujeito transcendental de Kant purifica-se dos sentidos, que põem em perigo a autonomia, não só porque o enredam de forma inevitável no mundo, mas também, especificamente, porque o tornam passivo (‘lânguido’ [schmelzend], nas palavras de Kant), em vez de ativo (‘vigoroso’[wacker]), suscetível, como os orientais voluptuários, à comiseração e às lágrimas. (Buck-Morss, 1992, p. 161)

Buck-Morss recupera o sentido clássico de estética, argumentando que as teses benjaminianas sobre estética remetem especificamente a essa origem. Nesse sentido, aisthitikos é a palavra grega que designa o que é percebido pela sensação. Enquanto a aisthisis é a experiência sensorial da percepção. Os sentidos, desenvolve a autora, conservam um traço do biológico, do incivilizado, do instintivo, que se relaciona ao sentido original de estética ligado a experiência sensorial antes de ser ligado ao domínio artístico. Nas palavras da autora, “o campo original da estética não é a arte, mas a realidade – a natureza material, corpórea” (Buck-Morss, 1992, p. 157).

“Quando a luz negra atinge a obra de arte, sua matéria prima (o material bruto) brilha” (Ferreira da Silva, 2019, p. 10). Aquilo que brilha com a luz negra está mais relacionado às entidades empíricas do mundo, sua materialidade – como o cobre, na obra da artista Otobong Nkanga – do que aos seus aspectos formais, frequentemente ressaltados pela tradição crítica moderna. A cor verde do cobre, que Denise percebe na instalação da artista nigeriana, provoca uma lembrança pessoal relacionada ao verde acobreado do topo de igrejas em cidades europeias. E que, encadeado a isso, produz um comentário relacionado ao ciclo de violência colonial necessário para a construção dessas cidades. Essas questões já foram colocadas de antemão pela instalação, que investiga a extração de recursos naturais e sua relação com a economia global e a história colonial. Nesse sentido, ao aplicar a luz negra sobre In Pursuit of Bling, Ferreira da Silva realiza um gesto que se aproxima da noção benjaminiana de avivamento das obras de arte: pensar um trabalho artístico é um gesto que enfatiza a luminosidade autodeterminada dos objetos, conforme seus próprios termos.

Em um movimento que envolve identificação, recusa e proposição, o método persegue o avivamento, a animação, o fazer brilhar dos trabalhos artísticos, sem, no entanto, cair no construtivismo e no relativismo. Se, para a filósofa Donna Haraway, não basta desvelar os modos pelos quais o conhecimento se constrói, é porque é preciso ser propositivo em relação a um “projeto de ciência sucessora que ofereça um relato mais adequado, mais rico e melhor de um mundo [...]” (Haraway, 1988, p. 579, tradução nossa). Nesse sentido, a luz negra enriquece o mundo extramoderno a partir do vocabulário criado por Ferreira da Silva, que “reconhece os limites do mundo como figurado para o sujeito, e busca não permanecer

no interior deles” (Ferreira da Silva, 2018, p. 10). De dentro para fora, despensar os trabalhos artísticos envolve um exercício onto-epistemológico que enriquece – no sentido que se fala de enriquecer o urânio no vocabulário da química – as possibilidades de imaginação do próprio mundo.

Portanto, se a noção antiga de estética possui raízes na materialidade, a matéria bruta, que a luz negra faz brilhar, é a contra-imagem das qualidades primárias cartesianas e um deslocamento dos dualismos kantianos. Nesse sentido, solicitam dos sentidos uma relação mais instintiva com o mundo em que aspectos menos imediatos – cores, sons, cheiros, sensações táteis – possam emergir. Além disso, a luz negra instaura um jogo em que as relações sujeito e objeto, espectador e obra de arte, se rearranjam, como um deslocamento do universalismo que possibilita a violência colonial e a subjugação racial. Do juízo de gosto à reflexão, do objeto a matéria, do iluminar ao emanar, da estética ligada a arte a à estética ligada à experiência sensorial, a luz negra se insere como um dos métodos interessantes para o pensamento extramoderno na arte.

Referências

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BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica Porto Alegre: Zouk, 2012 [1936].

BENJAMIN, Walter. A origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assirio & Alvim, 2004 [1927].

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão São Paulo: Iluminuras, 1993 [1921].

BUCK-MORSS, Susan. Aesthetics and anaesthetics: Walter Benjamin’s artwork essay reconsidered. October, v. 62, p. 3-41, 1992.

DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.

DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira . Campinas: Unicamp, 2017 [1641].

DESCARTES, René. Princípios de Filosofia . Campinas: Unicamp, 2017 [1644].

FERREIRA DA SILVA, Denise. Em estado bruto. ARS, v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/ view/158811. Acesso em: 18 mar. 2025.

FERREIRA DA SILVA, Denise. O que interessa é o presente que se ganha quando nadamos juntas: entrevista com Denise Ferreira da Silva. TRANSFLUÊNCIAS - 7º Encontro de Pesquisadoras/ es dos Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais do Estado do Rio de Janeiro. 2023. Disponível em: https://www.academia. edu/106492149/O_que_interessa_%C3%A9_o_presente_quando_ nadamos_juntas_entrevista_com_Denise_Ferreira_da_Silva . Acesso em: 18 mar. 2025.

FERREIRA DA SILVA, Denise. Luz negra / Blacklight. In MOLLOY, Clare; PIROTTE, Philippe; SCHÖNEICH, Fabian. (Eds.). Otobong Nkanga: Lustre and Lucre. Berlim: Sternberg Press, 2016.

FIGUEIREDO, Virgínia. O paradoxo sublime, ou a alforria da arte. Viso - Cadernos de Estética Aplicada , n. 15, p. 127-161, 2014.

HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575-599, 1988.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo São Paulo: UNESP, 2012 [1790].

Poéticas e políticas do sentir latino-americano

Clivagens

estéticas no show

Belezas São Coisas Acesas Por Dentro

Aesthetic Cleavages in the Concert Belezas São Coisas Acesas Por Dentro

Allyson Pains / Alpasi1

Resumo: Originado na disciplina Perspectivas sobre a arte e a cultura como fenômenos na sociedade contemporânea, do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ (PPGARTES), este trabalho analisa a justaposição de qualidades imagéticas e sonoras presentes no espetáculo Belezas São Coisas Acesas Por Dentro: Catto canta Gal. Exploram-se as simbioses estéticas, temporalidades e significações do corpo no show de Filipe Catto, sugerindo formas de subjetivação e autopoiesis a partir do agenciamento coletivo.

Palavras-chave: Corpo-tela; A/r/tografia; Autopoiesis.

1. Estudande de mestrado/ doutorado no Instituto de Artes da UERJ. Email: allysonpains@ usp.alumni.com.br. Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/8534440553039467.

Voltar ao fim

Pintar três vezes o sete: ficar doido.

(Pintar o sete, Mário Cesariny)

Introdução

Quantas vezes é possível pintar o sete — e o set — de forma a provocar epifanias que espiralizam o tempo, dissolvem nossa ideia de fim e semeiam começos sedutoramente lúcidos? Em algumas expressões da arte, as belezas acesas por dentro são, para o exterior, o vislumbre de uma textura; são a identificação da reunião de fragmentos que erigem um fio único, inerentemente resistente pela diversificação de seus componentes, e que se faz reconhecível por analogias e associações. Ao mesmo tempo, a arte se fixa como imagem, corpo e som incomparáveis, pelo hibridismo de sua própria gênese. Logo, qualquer acepção fixa se transmuta e recria em si mesma novas imagens especulares para a obra, para a artista e para o coletivo, que somos nós.

Nesse contexto, participar de um espetáculo musical é uma experiência pictórica. No espaço povoado por luzes, sujeitos e estruturas, o estímulo emocional decorre das palavras, dos sons e dos silêncios; as emoções se produzem, afinal, a partir da fusão de todos esses elementos indispensáveis ao show. No palco, a artista da voz é tinta sobre a tela onde não está só, ainda que em destaque. O quadro é a pintura daquele momento artístico em que testemunhamos, na performance evocativa, a manifestação da palavra, do silêncio e dos interlúdios. Ali, no ambiente musical do espetáculo, cantar é a atividade de pintar com voz e fisicalidade centenas de outros corpos-sujeitos, coadunando, assim, uma temporalidade única.

Continuemos a recorrer às analogias, procedimento que Certeau (1998) nos sugere como movimento de criação e revisão. No espetáculo musical, além da estrutura espacial, cada corpo individual representa um palco adjacente a outro. Nessa disposição, a experiência pictórica se dá pelos sentidos do corpo em consonância com a música, como descreve Leda Maria Martins (2021) ao introduzir o corpo-tela. Segundo ela, o corpo-tela é como um corpo-imagem que pode, também, ser escutado:

Geralmente, adereçamos as imagens na sua qualidade visual, privilegiando o olhar, a janela da alma, como evocavam os gregos. Mas as imagens podem ser também sonoras e cinéticas e essas suas qualidades são contíguas. (Martins, 2021, p. 79 )

É precisamente em virtude da justaposição de qualidades imagéticas e sonoras que o espetáculo musical Belezas São Coisas Acesas Por Dentro: Catto canta Gal se destaca. Neste texto, pretendemos analisar as simbioses estéticas, a temporalidade e as significações do corpo perceptíveis no show do álbum2 da cantora Filipe Catto. Os desdobramentos aqui feitos visam a apresentar vias de formação subjetiva — autopoiesis — que se estabelecem a partir do agenciamento coletivo no território concreto e simbólico do espetáculo.

1 - Belezas que estão: notas sobre o tempo

Ao referir-se à concepção ancestral africana, Leda Maria Martins (2021) elucida que a habitação de um tempo histórico preconiza a vivência de uma “cronosofia em espiral”3, ou seja, ao passo que remete ao passado, o presente também tensiona o futuro. Assim, ao deslocar esse significado para contextos de produção artística, e especificamente para o espetáculo musical, depreendemos que o anelamento do tempo é um dos fundamentos ontológicos para a sinestesia da experiência de comunhão em torno da música. Tanto no palco quanto no registro de estúdio, Filipe Catto transmuta com visceralidade as retomadas que fez a uma obra consagrada que, concomitantemente, demarca e dissolve as características do tempo cronológico: a discografia de Gal Costa, falecida em novembro de 20224

As investigações sônicas, líricas, corporais e performáticas que arquitetam o show propiciam uma gama infinita de subjetividades estéticas (Guattari, 1992). Ao reinterpretar canônicas canções da música popular brasileira, Catto fricciona o presente para enredar um futuro de múltiplos devires possíveis. A respeito disso, podemos observar que o ambiente musical opera como um dispositivo de subjetivação onde a estética é a prórpia dimensão de refundação do político (Guattari, 1992), colocando em perspectiva a nossa busca por sentidos existenciais. Se, em meio a adversidades de distintas ordens (Guattari, Ibidem, p. 32), produzir uma subjetividade que enriqueça continuamente a nossa relação com o mundo parece ser a única finalidade aceitável, essa re-composição se torna ativa na duração particular do espetáculo, sobretudo pela interação entre artista, público e agentes que cocriam o momento do show:

Essa catálise poético-existencial que encontraremos em operação no seio de discursividades escriturais, vocais e musicais ou plásticas, engaja quase sincronicamente a recristalização enunciativa do criador, intérprete e do apreciador da obra de arte. Sua eficácia essencialmente reside em sua capacidade de promover rupturas ativas no interior de tecidos significacionais e denotativos semioticamente estruturados, a partir dos quais ela colocará em funcionamento a subjetividade de emergência.

2.Lançado em 26 de setembro de 2023, pelo selo Joia Moderna, “Belezas São Coisas Acesas Por Dentro” — abreviado BSCAPD — é o sétimo álbum de estúdio da cantora Filipe Catto. Surgido a partir de um projeto de show para o Sesc Bom Retiro, em São Paulo, o álbum abrange 10 faixas da discografia de Gal Costa.

3. “Cronosofia em espirais” referese a um enquadramento não linear do tempo apresentado em “Performances do tempo espiralar”, de autoria de Leda Maria Martins, uma das principais pensadoras do teatro brasileiro. Este trabalho vai ao encontro de muitas ideias presentes no livro, que foi lançado em 2021 pela Editora Cobogó.

4.Uma das representantes do movimento sessentista conhecido como Tropicália, com cerca de seis décadas de carreira, uma discografia extensa e profundamente enraizada no imaginário da cultura brasileira, a cantora Gal Costa veio a óbito em 09 de novembro de 2022, em São Paulo.

(Guattari, 1992, p. 31)

No show Belezas São Coisas Acesas Por Dentro (BSCAPD), a performance de Filipe Catto se condensa no tempo cronológico, mas se alastra na cronosofia; esse alastramento ocorre através da transformação de cada corpo-sujeito5. O restabelecimento de acessos às letras do repertório cantado, somado ao irrompimento de novas roupagens de som e a um novo ordenamento das faixas incide, de maneira muito singular, uma descarga de motricidade autopoiética que dinamiza a força vital durante todo o espetáculo (Martins, 2021). Gal Costa, honorífica personificação da música e da cultura brasileira, sempre foi, para a subjetividade coletiva, A Pele do Futuro6 , e para gerações de cantoras — inclusive Filipe Catto — a “Mãe de Todas as Vozes”.

Diante desse estatuto, a caligrafia rítmica de Catto se inscreve em nossas espirais de percepção. Enquanto participantes do agenciamento coletivo — o show —, experimentamos novas estéticas sonoras, voltando os sentidos para uma impressão de estilo autêntica sobre atributos reconhecíveis em Gal, como sensualidade e transcendentalidade. À luz de Martins (2021), podemos entender a operação afetiva da performance como um modo de apreensão do mundo, ou seja: um trânsito sígnico, uma intersecção ou uma encruzilhada. Por agrupar em um período esses significados e valores, Filipe Catto circunscreve-nos na atmosfera de sua performance e cria, para todos os participantes do espetáculo, uma permanência no tempo cronosófico, entregando, entre a ética e a estética, uma oferenda7 que se reveste de um aspecto sacramental devido à efeméride do falecimento de Gal:

Como a palavra, a morte é um evento, um ato necessário na dinâmica de transformação e de renovação de tudo o que existe, permitindo o movimento contínuo do cosmos e sua permanente renovação e revitalização. Se, no plano familiar, a morte significa a perda do indivíduo, no plano coletivo ela traduz o seu enriquecimento. (Martins, 2021, p. 66 )

5.Adotamos a substantivação “corpo-sujeito” para aproximar os sentidos de corpo e subjetividade que, no âmbito deste trabalho, apresentam sobreposições relevantes.

6.“A Pele do Futuro” é o nome do álbum de Gal Costa lançado em 2018 pelo selo Biscoito Fino. Composição de Nando Reis, “Mãe de Todas as Vozes” é uma das faixas do disco.

7.Nesse contexto, a expressão “Entre ética e estética, oferendas” é utilizada como sintagma para se referir ao título de um dos capítulos de “Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela”.

2 - Belezas que tornam-se: notas sobre os afetos

Na pesquisa a/r/tográfica, a intercorporeidade é um dos elementos mais importantes. Essa condição diz respeito ao toque, à relacionalidade e às vias páticas da experiência. No entanto, trata-se de uma metodologia ligada não somente ao corpo biológico, mas à dimensão intra e extracorpórea da subjetividade. Nesse âmbito, Irwin e Springgay (2023) descrevem a a/r/tografia como um rizoma que opera por variação do fluxo de intensidades, não estando sujeita a critérios estandardizados. Isso nos auxilia a compreender a especial relevância dos interstícios em experiências artísticas, como os shows: são eles que possibilitam que a tensão repercuta no rizoma de expressão da arte, pavimentando, assim, nossas vias de interpretação.

Figura 1: Setlist do show de lançamento do BSCAPD.

Fonte: Compilação do autor, acervo pessoal.

Retomemos, então, o ambiente musical: como discorrem Irwin e Springgay (2023), ao passo que o lugar — neste caso, o território do espetáculo — é reimaginado como uma situação pela artista e por seus participantes, temos abertura para refletir sobre a convergência de um dispositivo de subjetivação que se edifica em torno das gravuras da voz. A caçada com os ouvidos, a que Martins (2021) se refere para ilustrar os ritornelos8, é uma alegoria precisa do modus operandi a/r/tográfico no contexto do espetáculo, e não só por conta das canções. Afinal, assimilamos o conjunto do show como um agenciamento enunciativo forjado e, portanto, carregado de substâncias de expressão, acima e ao redor do palco. Eis, nesse ponto, um mise en abyme que nos interessa: a subjetividade refletida além das fronteiras do indivíduo, ou, dito de outro modo, nos interstícios dos corpos-tela. Às avessas de um pensamento individualista, Guattari (1992) propõe o descentramento do sujeito para a subjetividade:

O sujeito, tradicionalmente, foi concebido como essência última da individuação, como pura apreensão pré-reflexiva, vazia, do mundo, como foco da sensibilidade, da expressividade, unificador dos estados de consciência. Com a subjetividade, será dada, antes, ênfase à instância fundadora da intencionalidade. Trata-se de tomar a relação entre o sujeito e o objeto pelo meio [...]. A partir daí, se recoloca a questão do Conteúdo. Este participa da subjetividade, dando consistência à qualidade ontológica da Expressão. É nessa reversibilidade do Conteúdo e da Expressão que reside o que chamo de função existencializante. (Guattari, 1992, p. 34)

Espetáculos musicais como o Belezas... são contextos de grande coeficiente sensível para o descentramento do sujeito para a subjetividade. Parte disso se deve, evidentemente, ao acúmulo de imagens presente no corpo-tela da cantora, bem como nas linguagens fônicas produzidas no palco e no universo sígnico do show. Como mencionado acima, são significativas as reminiscências e relocalizações das canções no tempo, espaço e persona: Filipe não elide Gal; na verdade, ela a reafirma, reivindica e conclama. Ao voltar os olhos para a canção, podemos expressar que, no show de Catto, a intercorporeidade é o mecanismo concreto que clareia todas as coisas entre nós.

Na condição de participantes do ambiente musical, há uma concordância tácita com a transformação que decorre do intercâmbio de informações e afetos pelas vias dos sentidos. Aquilo que Guattari descreve como “constelações incorporais singulares” (1992, p. 39) opera uma cinesia em função do encontro: as constelações viram universos inteiros compartilhados entre os corpos-sujeitos. Sem tecer uma linha contraditória, a hecceidade — ou seja, as idiossincrasias que fazem com que cada participante seja o que é — permanece incorruptível no seio dessa comunhão emocional polifônica.

8.Esse conceito, trabalhado por Leda Maria Martins e também presente nas teorias de Félix Guattari, refere-se a padrões repetitivos ou refrões que criam territórios de subjetivação e expressão. Nos espetáculos, os ritornelos são as recorrências sonoras e performativas que estabelecem um espaço simbólico e comunicativo, permitindo a construção de significados e identidades coletivas.

Estamos nos referindo objetivamente a trocas interpessoais de variadas conotações que acontecem no âmbito do show. Não se trata exclusivamente do flerte, da tensão erótica, da cantada ou da confissão, mas da consciência corporal de uma imanência da subjetividade coletiva que se manifesta no agenciamento pela interconexão que nos aproxima do outro; uma função existencializante cujo conteúdo se constitui em domínios extralinguísticos, não humanos, biológicos, tecnológicos e estéticos (Guattari, 1992).

No palco, Catto é a antítese do que Martins (2021) postula como texto-medusa: ao invés de nos petrificar em uma postura contemplativa, a performance da artista nos estimula a expandir campos subjetivos. Desse modo, podemos pensar no espetáculo como um rito de transmutação estética: as belezas emergem do que se dá em torno da música. Tampouco percebemos um confronto que oblitera a individualidade ou impõe uma diástase entre a artista e qualquer outro participante do show: no espetáculo Belezas..., a operação dos afetos é conjuntiva e dionisíaca à medida que suscita a “absorção da outridade como princípio vital indispensável para a fecundação da identidade” (Martins, 2021, p. 210).

Figura 2: Rabisco a/r/tográfico (ou nota de deriva) feito no verso da setlist.

Fonte: Compilação do autor, acervo pessoal.

3 - Belezas que são: o corpo e a artista

Aquém de fragmentos de uma estrofe, os “cornos para fora e acima da manada” são uma sinalização objetiva: ali, na contiguidade física que se instaura em frente ao palco, o corpo de Filipe Catto é a luminescência de todas as belezas do espetáculo. É a partir dele que podemos visualizar uma sequência de imagens e gestos performáticos que dão energia cinética às palavras, poesias, cumprimentos e enunciados, destilando e condensando os sentidos. No corpo de Catto, a ultrapassagem da fisionomia é flagrável, e podemos atribuir a isso os efeitos de um trabalho estético convergente de visagismo, figurino e maquiagem. Indubitavelmente, essa clivagem importa para erguer a autoproclamada Vaca Profana9 diante dos participantes do ambiente musical, mas não se trata apenas do impacto da imagem. Há, no palco, uma eminência de outra ordem: um acontecimento corporificado. Ao discutir as poiesis do corpo-tela, Martins (2021) comenta que o acontecimento corporificado

[...] inclui as experiências individuais e coletivas, a memória pessoal e a memória histórico-social. O corpo-tela é assim também um corpus cultural que, em sua variada abrangência, aderências e múltiplos perfis, torna-se locus e ambiente privilegiado de inúmeras poéticas entrelaçadas no fazer estético. (Martins, 2021, p. 82)

No show, o entrelaçamento de poéticas e símbolos projeta uma ação performática anticolonial: enquanto uma artista transgênero, a extensão do corpo e da voz de Catto são a materialização de um imaginário que é preconcebido por ela para ser continuadamente cocriado pela coletividade no ambiente musical. Esse mecanismo de cocriação faz ressoar sobre o corpo de Catto e de todos nós o que seria a pulsão fabulatória da subjetividade; é, como um flash, o súbito inframince10 da história dos nossos corpos no mundo, em múltiplos contextos sociais e em momentos dos mais ímpares aos mais cotidianos. Ao discorrer a respeito das transgeneridades em performance, Dodi Leal (2020) destaca a anteposição entre a antropofagia e a transpofagia, sendo esta última orientada por uma fabulação que não depende do esvaziamento da alteridade, uma vez que cultiva os próprios componentes que corporificam a existência cênica e subjetiva:

Na transpofagia não é o canibalismo que dá vetor aos processos de criação em performance: as transgeneridades põem em questão cada corpo, cada regionalidade (Mombaça, 2016). Ou seja, ao passo que os ditames de dominação colonial trabalham em uma fantasia com especificidades de gênero e étnico-raciais (normatividade branca e cisgênera), a luta anticolonial conduzida pelas transgeneridades por meio da perspectiva transpófaga prescinde o canibalismo e nos remete à atividade de criação de novos imaginários, em que até mesmo a cisgeneridade é convidada a transicionar gênero. (Leal, 2020, p. 109)

9.Em entrevista concedida ao Jornal da Gazeta, em janeiro de 2024, Filipe Catto comentou sobre a relação de experimentação e identificação que tem com o palco e com as músicas que fazem parte do repertório do show BSCAPD, entre elas, “Vaca Profana”. Nesse contexto, Catto declarou: “Aquela vaca profana sou eu”. Disponível em: https://youtu.be/pt mmyVedt2Y?si=AeCjrAr16Dq8ch69. Acesso em: 29 de julho de 2024.

10.Para Pereira (2013), o inframince seria como “a sutileza do próprio ato criativo, envolvendo não só o objeto, mas também o seu entorno, suas potencialidades e as suas interrelações.”

A transpofagia em BSCAPD cria as circunstâncias para que “a tigresa possa mais do que o leão” 11. Envolvida em um tecido que reveste assimétrica e incompletamente seu corpo, Catto se movimenta pelo palco com uma gestualidade ondulante que parece sinalizar, em alguns momentos, o controle de seu registro vocal durante as interpretações; já em outros, os gestos são os contornos de expressão das letras e o metrônomo das canções. Dessa maneira, o palco comporta um espetáculo que é fundamentalmente musical e que se produz, conforme (Haderchpek, 2020), por uma perspectiva ritualística da cena: romper o silêncio com a voz, narrar uma história, descrever a relação entre arquétipos, contemplar o cotidiano, agradecer às entidades espirituais, constatar o esoterismo, sentir, recolher-se, curvar-se, esticar-se. Toda a composição cênica do show remete à proposta de um Teatro Ritual:

A proposta de um Teatro Ritual coaduna com o debate decolonial na medida em que a arte ritualística traz para o “centro” da cena os processos de criação guiados por um viés do inconsciente, do simbólico, do não racional e do subjetivo. (Haderchpek, 2020, p. 109)

Se no lançamento de estúdio anterior ao BSCAPD Catto proclamara O Nascimento de Vênus, no presente espetáculo, fica sublinhado que o corpo ganha um tônus complexo e uma propriedade irradiadora, características que remontam à continuidade da linha de desenvolvimento da pessoa e da artista Filipe. Assim, a presença dela no palco não é unívoca: no show, não estamos apenas diante de uma individualidade ou de uma figura artística concebida para a cena. O que se mostra é um canal para a reminiscência de diversos atos, contextos e temporalidades, bem como o surgimento de novas semânticas. O intercâmbio de tudo isso ocorre através do corpo, que é, em Catto, a principal plataforma de produção artística e um “portal e teia de memórias e idiomas performáticos” (Martins, 2021, p. 82).

Considerações finais

O espetáculo Belezas São Coisas Acesas Por Dentro ressignifica a obra de Gal Costa, criando um espaço de memória e resistência. Filipe Catto entrelaça som e imagem em uma performance que atravessa passado, presente e futuro, promovendo uma experiência coletiva de transformação. A transpofagia reforça a arte como espaço de transmutação e desafio às normatividades. Mais que homenagem, o show se torna um gesto vivo de criação, no qual estética e política se fundem, ampliando horizontes para novas subjetividades e reafirmando a potência da arte na reconfiguração dos afetos e da memória.

11.A passagem faz referência a um verso da canção

Tigresa, de Caetano Veloso.

Referências

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.

CESARINY, Mário. Pintar o sete: Manual de prestidigitação. Lisboa: Assírio e Alvim, 1981.

DIAS, Belidson; IRWIN, Rita. (Orgs.). Pesquisa educacional baseada em arte: A/r/tografia. 2. ed. Santa Maria: UFSM, 2023.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 2. ed. São Paulo: 34, 1992.

HADERCHPEK, Robson. Poéticas Decoloniais nas Artes da Cena: Identidade e Performatividade. In LYRA, Luciana. (Org.). Coleção PPGArtes-UERJ Arte e Cultura Contemporânea 3 trans_bordar horizontes. Rio de Janeiro: Nau, 2022, p. 106-112.

LEAL, Dodi; ROSA, André. Transgeneridades em Performance: desobediências de gênero e anticolonialidades das artes cênicas. Revista Brasileira de Estudos da Presença , v. 10, n. 3, p. 01–29, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/presenca/article/ view/97755. Acesso em: 29 de julho de 2024.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela . São Paulo: Cobogó, 2021.

PEREIRA, Caroliny. Inframince e o estado latente da experiência estética através da micropercepção. In: V SEMINÁRIO DE PESQUISA EM ARTES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA, Anais... 2013.

Referências sonoras

CATTO, Filipe. Belezas São Coisas Acesas Por Dentro. (Vinil). Joia Moderna, 2023.

207 Poéticas e políticas do sentir latino-americano

¿Qué es el cuerpo robot?: poéticas dos corpos em Paula Gaetano Adi
¿Qué es el cuerpo robot?: poetics of bodies in Paula Gaetano Adi

Rafael Malhado1

Resumo: Paula Gaetano Adi é artista e pesquisadora argentina, explorando temas entre arte, ciência e tecnologia, sob um olhar não-hegemônico das máquinas e de IA, além das implicações políticas e de imaginários de “corpos” robôs. Neste texto, buscaremos uma breve análise tecnopolítica de três de seus trabalhos sobre corpos humanos e não-humanos, o regime informacional e o contexto latino-americano. A ideia de “corpo estranho” nas poéticas performativas também será utilizada via concepção teratológica.

Palavras-chave: Corpo; América Latina; Arte.

1. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro dos Grupos de Pesquisa Labim/PPGCOM-UERJ e Extremidades/PPGCOS-PUC-SP. Email: rafael.malhado@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq. br/7273517883409866.

Introdução (ao corpo)

Nossos primeiros contatos com a obra de Paula Gaetano Adi (2024d)2 foram na sua apresentação do 17º Simpósio de Arte Contemporânea, promovido pelo Laboratório de Pesquisa em Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias Digitais (LABART), da Universidade Federal de Santa Maria, em 2022.

A artista e pesquisadora argentina apresentou seu trabalho A Robocalyptic Manifesto: Technopolitics for Liberation (Adi, 2020; 2024b)3 no Festival de Arte, Ciência e Tecnologia FACTO 9, promovido pelo evento, e também discursou sobre essa e outras práticas artísticas mais recentes que trabalham a robótica como parte do processo, envolvendo arte, tecnologia, natureza, vida artificial, inteligência artificial (IA), etc. Ela trabalha com temas, como Arte Robótica, Vida Artificial e Inteligência Artificial, Performance, New Media Art , Tecnociência Feminista, Pós-colonialismo e Descolonização, Tecnociência Pós-colonial, Pós-humanismo, Estudos Latino-Americanos, entre outros 4

Colocando em xeque muitas vezes os saberes hegemônicos e coloniais e apostando em perspectivas multiculturais e regionais (sul globais), a artista procura responder criticamente as questões da nossa cultura imbricada às tecnologias. Analisando algumas obras de Adi, uma crítica que permeia os seus trabalhos tem sua atenção principalmente na ideia de corpo no mundo contemporâneo pela problemática entre humano e não-humano. Não obstante, as tensões em torno da produção de informação elaborada por mecanismos não-humanos, como os algoritmos computacionais, são alguns de muitos outros exemplos que vigoram como um mal-estar no nosso presente.

Assim, nosso objetivo neste trabalho é analisar três obras da artista, compreendendo suas poéticas performativas sobre o corpo e a política em Anima (Adi, 2024a), Mestizo Robotics (Adi, 2024b) e Robocalyptic Manifesto (Adi, 2024c)5 . Nossa compreensão é que, nessas obras, a robótica funciona como ponto-chave para seu imaginário de “corpos” robôs, com um olhar não-hegemônico e não eurocentrado no desenvolvimento das máquinas e da inteligência artificial (IA) no qual estamos inseridos.

As obras partem de uma perspectiva fabulatória, tendo como base seu imaginário sobre outros mundos possíveis que diferem da política sobre os corpos na contemporaneidade. Além disso, há também em suas obras um viés tecnopolítico (Bruno et al, 2018), criando o embate com os processos sociotécnicos do presente, descentralizando e recentralizando os saberes, os corpos e as subjetividades latino-americanos a partir da crítica com e das tecnologias informacionais.

2.Adi está entre os artistas catalogados até agora na pesquisa de doutoramento, em andamento, que analisa um cenário no qual a lógica algorítmica se torna uma via para a compreensão das políticas latino-americanas atuais.

3.Há duas fontes para a leitura da obra: na videoarte pelo Youtube (Adi, 2020) e pelo projeto que trata com detalhes suas imagens no website da artista (Adi, 2024b). Apesar de a primeira referência à postagem da obra na plataforma digital ser do ano de 2022, e do nosso acesso ser no ano de 2024 para a realização deste trabalho, optamos por utilizar o ano de referência de 2020 por ser o ano da criação da obra.

4.Paula Gaetano Adi foi professora do programa Electronic Arts, em Buenos Aires, e dirigiu os programas de graduação e pósgraduação em New Media Arts na University of North Texas. Ela possui mestrado em Arte e Tecnologia pela Ohio State University e atualmente é doutoranda na European Graduate School na Suíça. Informações disponíveis em: https://www.risd.edu/ academics/experimental-andfoundation-studies-efs/faculty/ paula-gaetano-adi. Acesso em: 20 set. 2024.

5.As imagens das obras utilizadas neste artigo foram autorizadas pela artista.

As inquietações do pensamento sobre a performance robótica e a vida humana na pesquisadora argentina podem ser debatidas também de forma ampla. O papel das tecnologias informacionais digitais - que Adi também propõe nos trabalhos artísticos quando soma a eles elementos como o funcionamento dos sistemas algorítmicos - faz parte da constituição dos sintomas de uma contemporaneidade em meio a crises diante da reprodutibilidade das imagens, massividade de dados e veracidade de fatos diante de um regime da informação (Han, 2022).

Cabe aqui também uma defesa importante. Para o filósofo sul-coreano supracitado, o regime informacional estabelece uma gestão sociopolítica cujo foco não está na disciplina de corpos, mas sim nos dados por meio dos algoritmos e da IA. Contudo, defendemos que o corpo constata e é marcado sim pelos sistemas algorítmicos e de dados. Seja nas tecnologias de vigilância e da saúde, por exemplo, ou se pensarmos na substituição de humanos por máquinas em diversas operações trabalhistas, ou ainda na construção de uma estética frente às inumeráveis imagens que nos perpassam, etc. - todos esses, temas explorados por Paula Gaetano Adi. Se “o que se faz na performance é, utilizando-se essas mesmas “armas” (incluindo-se tecnologia e eletrônica), manipular também o real para se efetuar uma leitura sob outro ponto de vista” (Cohen, 2002, p. 88), nas três práticas artísticas de Adi há o desenvolvimento de uma leitura do corpo sob diferentes perspectivas que buscam também a regeneração dos corpos ligados ao respeito à terra e aos seres viventes.

Por fim, as ideias sobre teratologia, de “corpo estranho” e da figura do “outro”, sobretudo em Gil (2000), Joron (2006) e Tucherman (2012), servirão de guia para a compreensão das poéticas artísticas em Paula Gaetano Adi. Dessa forma, a partir da questão-chave presente também em uma de suas obras, What is the human?6, lançamos o questionamento: ¿Qué es el cuerpo robot?

1 - De que corpos de mulheres estamos falando? A concepção política e estética do robô Anima

Ao analisar o catálogo da artista, pesquisadora e professora Paula Gaetano Adi, a problematização mais importante de seus trabalhos é mesmo a ideia de corpo na contemporaneidade. A partir de tal ótica, é possível perceber as ramificações das tensões que Adi desenvolve: as culturas hegemônicas, a ideia de humano e não-humano e seus entrecruzamentos, a eficácia dos sistemas algorítmicos, e tantas outras mais. Das três práticas artísticas que nos propomos analisar, sem dúvida a obra Anima (Adi, 2024a) é um ponto de partida interessante quando estamos, então, diante do seu dilema

6. Intitulamos essa como a frase central, presente na sua obra A Robocalyptic Manifesto: TechnoPolitics for Liberation (Adi, 2020; 2024b) e que representa também todas as outras duas obras analisadas neste trabalho.

artístico principal. Afinal, de que corpos estamos falando quando diante da obra Anima?

Parte de sua descrição é assim:

Anima é um robô interativo que respira. Quando um espectador se aproxima de Anima, seu corpo incha e gradualmente o pequeno orifício localizado em um lado de seu corpo começa a se dilatar no ritmo de sua respiração. Com forma e comportamento orgânico primitivo, Anima é um organismo vivo na sua expressão mais simples. A estrutura suave do robô serve não apenas como um significante de vivacidade, mas é em si um convite para estabelecer um encontro interespécies e um diálogo não-verbal entre um humano e uma máquina. (Adi, 2024a, tradução nossa)7

Tomando por essa justificativa inicial, Anima , então, é uma obra que performa a ideia de corpo primitivo e feminino como um estado estético para apresentar o quão a forma corporal é sinônimo de políticas que envolvem, por exemplo, o controle social. Na medida em que o trabalho remete a um jogo de aproximações e afastamentos entre corpos (o espectador que interage e a obra), Adi procura evidenciar os mecanismos de poder entrecruzados nas relações sociais e procura denunciar, de maneira mais ampla, “a personalidade interior feminina do inconsciente masculino” (Adi, 2024a).

Anima é uma espécie de agente robótico autônomo e a sua “pele” é constituída de silicone com alguns pigmentos em relevo. Aos olhos humanos, seu formato é de uma grande massa e sequer é semelhante às configurações de um robô que, em muitas ocasiões, ganha feições humanas - braços, rosto, pernas, etc (figura 1). O objeto artístico de Adi interage com o observador e atua simulando uma respiração por meio de um ventilador e um pequeno motor eletrônico em sua parte interna, que possui um sensor e identifica a aproximação de pessoas.

7.“Anima is an interactive robot that breathes. When a viewer gets close to Anima, its body swells and gradually the small orifice located on one side of its body, begins to dilate at the rhythm of its breathing. With a primitive organic form and behavior, Anima is a living organism in its simplest expression. The robot’s soft structure serves not only as a signifier of liveness, but it is in and of itself an invitation to establish an inter-species encounter and a nonverbal dialog between a human and a machine”.

Assim, Anima possui um “corpo” com reações que denunciam as formas de compreender o corpo quando, e principalmente, a figura do outro é considerada como a de monstros teratológicos; a beira do fantástico, da fantasia, e nesse cenário não nos reconhecemos e nem reconhecemos a outridade. “Que corpo podemos nós ter hoje?” (Gil, 2000, p. 169).

Essa pergunta do autor português é fundamental na compreensão de que, em Anima , a reflexão artística se refere a um corpo controlado e programado diante de um regime de informação (Han, 2022). É certo que a psique para Chul-Han é determinante na governança de dados; o autor traz a ideia de uma psicopolítica (grifo nosso) que “explora o inconsciente, oculto ao próprio agente”, que pode “influenciar nosso comportamento num nível que fica embaixo do nosso nível de consciência” (Han, 2022, p. 23). Contudo, conteúdos em plataformas digitais organizados pelos sistemas algorítmicos ainda perpetuam, e ainda, ampliam certas configurações e visualidades dos corpos.

O colonialismo de dados pode estar pavimentando um caminho para uma expansão sem precedentes do capitalismo: a capitalização total da vida humana [...] esse processo será a base para um novo arranjo social que aprofundará em níveis ainda não experimentados a desigualdade, o controle sobre os indivíduos e os corpos e a dependência de uma série de países no sistema mundial. (Souza, 2021, 114-115, grifo nosso)

Figura 1: Fotos dos elementos que compõem a Anima sendo elaborada no laboratório.

Fonte: Adi, 2024a.

Todavia, por meio de um outro questionamento, é possível trazer à discussão a crítica que ronda a obra da artista argentina: de que corpos estamos falando?

O trabalho da pesquisadora se manifesta sobre as políticas em torno dos corpos das mulheres. Nesse sentido, Adi opta por tornar feminino o modelo da obra feita de silicone e material eletrônico, contribuindo para uma leitura sobre os processos culturais hegemônicos que sempre trouxeram a figura central do masculino nas relações históricas de poder. Há também um reconhecimento do papel da mulher enquanto inúmeras práticas de submissões, principalmente, ao pensarmos que a obra fricciona as ações cotidianas da mulher condicionadas a um papel limitado e dependente.

Há um local na massa de silicone que possui um orifício responsável pelo único canal de sensibilidade na aproximação do observador. A performance da massa é captar a proximidade por meio do sistema eletrônico dentro de Anima (figura 2). Assim, se torna evidente também que tal abertura ilustra uma parte sexual do corpo feminino.

Dessa forma, o que Adi desafia é o anti-imaginário do que Gil denominou como “monstruosidade banal” (2000, p. 167). Ou seja, de que tais corpos das mulheres na contemporaneidade não permaneçam seguindo uma estética ainda dominante, tendo em vista as relações de poder dos corpos. Adi denuncia a deformidade de corpos nos mecanismos de conformidade, a monstruosidade na estabilidade dos modelos de domínio e dá outro significado a esses corpos.

Figura 2: Anima interagindo com uma observadora.
Fonte: Adi, 2024a.

Se “os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser”, como descreve Gil (2000, p. 168), Adi mostra que a condição presente nos revela o que já podemos ser. Anima , definitivamente, é uma obra que remete às desanimadoras políticas sobre os corpos femininos, programados e moldados por hegemonias culturais e reguladas hoje também pelos sistemas eletrônicos e digitais.

Dentro do contexto latino-americano, é igualmente fundamental compreender as dinâmicas dos corpos das mulheres, marcados por períodos não só de colonização como também de governos ditatoriais. Em ambas as circunstâncias, há políticas visando os processos desses corpos ora submissos à escravidão, ora exterminados, ora submissos a um controle disciplinado; configurações estas que Anima também explora a partir da sua estética, gerando a formação de novos olhares.

2 - Mestiçagem latino-americana nos corpos robóticos em Mestizo Robotics

No capítulo bíblico de Gênesis, há uma passagem sobre a formação do corpo do “homem”8. Nesse trecho é dito que Deus, então, criou-o feito de barro e soprou-lhe para torná-lo ser vivente. Os Maias, em sua espiritualidade, também possuíam a crença de que seu povo era feito a partir da terra. É a partir dessa e de outras convicções que Paula Gaetano Adi filia o desenvolvimento de sua prática artística em Mestizo Robotics (Adi, 2024c).

O que Adi procura trazer como centro da sua discussão nesta obra é, sem dúvida, a mestiçagem de corpos, trazendo a discussão diante de uma problemática latino-americana e que pode se dar também no campo do humano e do não-humano maquínico. A artista argentina mescla elementos como a argila e as tecnologias digitais para questionar as hierarquias em torno das relações dos corpos, confrontando o tom de superioridade entre o que é possível dizer sobre a eficiência em um desenvolvimento tecnológico: o conhecimento da terra ou das máquinas?

O que Adi traz é exaltar as substâncias terrosas enquanto elementos capazes de promover a vitalidade, tal como hoje creditamos esse papel às tecnologias maquínicas. Além disso, a pesquisadora busca desenvolver uma revivificação de novos corpos na junção entre a tecnologia digital e os elementos primários, como a terra, para contestar as políticas de nivelação dos corpos na contemporaneidade. Se os Maias tinham a crença de que seu propósito era servir aos deuses, a pesquisadora transfere sua posição crítica também na figura do humano servindo novos deuses: as máquinas.

8.Aqui é importante ressaltar que a palavra está contida no texto bíblico. Para nós, sem dúvida, a palavra “humano” é a que prevalece.

Adi mestiça os elementos maquínicos e da natureza para elaborar robôs em formatos esféricos, mostrando que tal junção ainda é sinônimo do estranho, ou seja, de um “outro” robótico. Assim, o fruto dessa produção robótica-artística possui uma estrutura da ordem da diferença, do inusitado, se pensarmos novamente numa composição fora dos padrões de um “corpo” robô.

Mestizo Robotics é elaborada exatamente como consta no início do site da obra: “Implementar táticas que mudem a forma como pensamos e criamos robôs” (Adi, 2024c, tradução nossa)9. A partir novamente de uma perspectiva fabulatória, a argentina cria quatro protótipos utilizando a robótica, mas também argila, cipós, raízes e outros elementos da natureza para construir cada um dos modelos: Quinchabot , Claybot I, Terracotabot e Claybot II (figura 3). O projeto é denominado TZ’IJK e na língua maia significa ch’orti’ (lama ou argila). Todos são uma espécie de “agente móvel esférico autônomo ‘feito de lama’, cujo comportamento é inspirado nas mitologias criacionistas maias relativas aos primeiros habitantes humanos da Terra” (Adi, 2024c, tradução nossa)10. Tais seres primários eram um tipo de um agente robótico autônomo, segundo Adi, cegos, surdos e mudos; diferentes dos encontrados nas primeiras literaturas e filmes de ficção científica, como a figura lendária de Frankenstein, cujo imaginário povoa o formato do corpo humano.

Um sistema robótico é colocado no interior da esfera, construído com rodas. Assim, ligado dentro de um local esférico, o equipamento se movimenta desequilibradamente, pois o espaço no interior não é plano. Ao se mover, ele desloca a esfera, causando a impressão de que o protótipo se tornou um ser vivente. Nesse sentido, os mudbots 11 funcionam também como uma crítica à identidade dos corpos contemporâneos; em sua maioria, são constituídos a partir de um imaginário hegemônico que, muitas vezes, promove o “corpo estranho” por meio de políticas anti-imigrantes sul-globais, racistas e transfóbicas.

Fonte:

9.Tradução de “Implementing tactics that change the ways we think and make robots”.

10.Tradução de “Implementing tactics that change the ways we think and make robots”.

11. A tradução pode ser entendida como “robôs-de-lama”, em referência aos protótipos que Adi criou usando argila e elementos da robótica.

Figura 3: Os protótipos de Mestizo Robotics: Quinchabot, Claybot I, Terracotabot e Claybot II
Reprodução de Adi (2024c)

Dessa forma, Mestizo Robotics cumpre seu propósito quando da ideia da mestiçagem como símbolo de uma latinoamericanidade – construído a partir de violências e disputas desiguais de poder. Como afirma o cientista em Economia brasileiro George de Cerqueira Leite, “a mestiçagem e mistura cultural, consistem em questão crucial da identidade latino-americana, pois o racismo serviu para justificar, ao longo da história, a agressão e a exploração dos latino-americanos” (Leite, 2009, p. 5). O que se quer dizer é que Adi propõe na obra um entrecruzamento entre espécies maquínicas e naturais; a mestiçagem está carregada de sentidos pejorativos frente à espécie humana e essa seja a crítica mais importante da artista para decolonializar a imagem do corpo latino-americano, sempre estigmatizado pelos processos coloniais.

Podemos ir mais além: a mestiçagem deve ser entendida como sinônimo de uma teratologia, na medida em que a visualidade sobre o outro é causa do estranho, do monstro, do que não pertence à humanidade. É assim que Adi também procura desenvolver tal afecção; o latino-americano encontra-se num lugar no pensamento hegemônico que mantêm distâncias estruturais estáveis com a situação que ele ocupa (Gil, 2000, p. 170).

A título das definições de mestiçagem, há certas especificidades nas questões brasileiras se comparadas a outras latino-americanas que julgamos pertinente destacar para que não passem desapercebidas. A autora e ativista Lélia Gonzalez e o antropólogo Kabengele Munanga, por exemplo, ecoam sobre as relações raciais brasileiras; o antropólogo comenta sobre as “peculiaridades culturais e históricas do racismo à moda nacional” (Munanga, 1999, p. 118) que simbolizam o que a autora aponta como “mito da democracia racial” (Gonzalez, 2018, p. 194). Para tais autores, a realidade latino-americana emite um contexto geral de um “racismo por denegação” (p. 324), com ideias de mistura e assimilações raciais. Em contrapartida, no Brasil, o que existe é uma segregação notória com a legitimidade do Estado.

De qualquer forma, a identidade dos povos da América Latina precisa ser estabelecida fora dos parâmetros eurocêntricos e norte-americanos. E Mestizo Robotics representa o resgate da diversidade e desses povos através da regeneração com os elementos da terra, enfrentando uma lógica programática dos corpos que se estabelece também nas zonas dos processos digitais, nas quais os agentes maquínicos, como os sistemas algorítmicos, continuam organizando estruturas de poder coloniais. “O novo eu-colonizado vê as práticas das empresas de dados invadirem seus espaços mais íntimos, tornando o rastreamento uma característica permanente na vida, delimitando inclusive o que cada ser humano pode explorar em relação aos seus semelhantes” (Cassino, 2021, p. 28, grifo do autor).

3 - Manifesto-robô pelo seu “corpo” em A Robocalyptic Manifesto: Techno-Politics for Liberation

A Robocalyptic Manifesto: Techno-Politics for Libertation (Adi, 2020; 2024b) é uma videoarte elaborada por Adi que trabalha para traçar outros imaginários possíveis a partir da imaginação de um poder político das máquinas e robôs. O trabalho é uma espécie de manifesto e Adi faz um exercício imaginativo para dar “vida” aos “seres vivos” maquínicos e robóticos, como o computador Hal 9000, do lendário filme de ficção científica 2001 - A Space Odyssey (1968). O trabalho visa a especular um imaginário no qual as máquinas se rebelam contra um status quo dos humanos ocidentais e ganham força política por meio das suas próprias formas de agenciamento.

Nesse sentido, a obra procura refletir sobre uma certa política das máquinas, incluindo elementos humanos e não-humanos contra as relações de poder hegemônicas, estabelecendo novos “corpos” na contemporaneidade: galhos de árvores e as telas de computador, por exemplo, fazem parte de tal estrutura. Assim, é notório perceber que Adi chama atenção para os elementos que compõem o trabalho estabelecendo fortes conexões com a alteridade.

Afinal, sua obra também busca refletir a composição ficcional de um robô em uma tentativa de destacar outras visões sobre o próprio humano e suas políticas de eliminação de categorias

Figura 4: Novas formas de vivência a partir da revolução robô em A Manifesto Robocalypitc12 Fonte: Reprodução de Adi (2020)

12.Daqui em diante, optamos por fazer referência à obra dessa maneira apenas por adequação.

como as mulheres, pessoas de gênero trans, negros, indígenas, refugiados, etc. Se, como afirma Ieda Tucherman, a “tecnologia política do corpo” possui como objetivo a constituição de um “saber do corpo”, conhecendo seu funcionamento por meio de “um controle de suas forças e da capacidade de dobrá-las” (Tucherman, 2012, p. 72), que políticas Adi quer destacar atuantes sobre os “corpos” performados dos robôs para imprimir sua crítica em torno dos corpos humanos?

Evidentemente, não poderíamos deixar de trazer à discussão algumas das já muito debatidas questões de Donna Haraway, em seu A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century (2000)13:

Pois uma das mais importantes questões de nosso tempo é justamente: onde termina o humano e onde começa a máquina? Ou, dada a ubiquidade das máquinas, a ordem não seria a inversa?: onde termina a máquina e onde começa o humano? Ou ainda, dada a geral promiscuidade entre o humano e a máquina, não seria o caso de se considerar ambas as perguntas simplesmente sem sentido? Mais do que a metáfora, é a realidade do ciborgue, sua inegável presença em nosso meio (“nosso”?), que põe em xeque a ontologia do humano. Ironicamente, a existência do ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza das máquinas, mas, muito mais perigosamente, sobre a natureza do humano: quem somos nós?. (Haraway, 2000, p. 10-11)

A autora problematiza as fronteiras dos “corpos-máquinas” e corpos humanos pois, no seu entendimento, tais limitações escapam em meio às inúmeras intervenções sociopolíticas no mundo contemporâneo, obrigando-nos não só a repensar a subjetividade humana a partir da figura do ciborgue (um vivente híbrido de carne e metal, de natureza e artificialismo), pois que a sua realidade é ponto de deslocamento do conceito de ontologia humana.

É por isso que a pergunta central da obra, What is the human? (figura 5), serve para nos guiar e relacionar alguns pontos interessantes do trabalho. A Robocalyptic Manifesto é composto por uma espécie de três atos que atuam como um processo imaginativo de uma política apocalíptica de libertação das máquinas. Cada ação visa, por fim, “a descolonização da máquina e o ensaio de um ato de imaginação radical que recupera formas de vida não destrutivas” 14 (Adi, 2024b, tradução nossa). Isso quer dizer que, para a pesquisadora, os bots operam em sistemas que ainda persistem em práticas colonizantes. Pensando em corpos, como já abordamos antes, de grupos que continuam sendo atravessados pelo racismo, opressões e desigualdades, fica claro que o regime da informação (Han, 2022) ainda atua em perdurar tais feitos.

13.O ano do título se refere ao livro com o texto de Donna Haraway e Hari Kunzru, organizado por Tomaz Tadeu, Antropologia do ciborgue: as vertigens do póshumano e encontra-se descrito na bibliografia deste trabalho.

14.Tradução de “the decolonization of the machine and the rehearsal of an act of radical imagination that reclaims non-destructive forms of life.”

O primeiro ato é denominado Robots in Strike: Robocalypses Reenacted. É nesse momento, por exemplo, que a imagem de Hal 9000 aparece cercado de expressões como que descategorizando os bots , como “inumano”, “infra-humano”, “menor que humano”, convocando, então, uma certa greve geral dos robôs com a frase a seguir:

Se queremos reiniciar a história da humanidade, devemos imaginar um Apocalipse Robô radicalmente diferente, que não seja um fracasso, mas sim como uma chance de reparações: nossa oportunidade de ignorar a robótica e chamar a atenção para esse regime imperial de trabalho forçado, de exploração, racionalização e instrumentalização15. (Adi, 2020, tradução nossa)

Esse “vivente” deve ser um novo robô, um “robô camarada” (Adi, 2020). A figura de Robby, de outro clássico filme de ficção científica Forbidden Planet (1956), dirigido pelo norte-americano Fred McLeod Wilcox (1907-1964), é classificada como um cool robot e é o modelo da artista para significar a liderança do apocalipse-robô. A imagem seguinte possui um trecho de uma das principais obras do filósofo e psiquiatra Franz Fanon, The Wretched of the Earth (1963). Ela reflete tendo como ponto a posição de Fanon na qual um novo humano é criado a partir dos processos de descolonização do qual se liberta (p. 36-37). Seria então Robby esse novo vivente transformado a partir de uma descolonialidade dos corpos e das políticas implantadas sobre estes na contemporaneidade?

Figura 5: A imagem da obra de Adi com a pergunta central What is the human?

Fonte: Adi, 2020

15.“If we want to set up history for humanity we must imagine a radically different, we must imagine a radically different Robotapocalypse, one that is portrayed not as a world debacle, but as our chance for reparations: our opportunity to unlearn robotics and foreground to the imperial regime of forced labor, exploitation, rationalization and instrumentalization”.

O segundo ato é chamado Robots Beyond Instrumentality: Humanity Reconquered e pretende chamar a atenção de que todo o desenvolvimento maquínico, como a robótica e a IA, são invenções que se baseiam exata e simplesmente na história de um humano branco. Ou seja, para a revolução em curso dentro da narrativa fabulatória proposta em A Robocalyptic Manifesto, é preciso fugir dessas amarras históricas humanas. O curioso é que o título desse ato parece propor o contrário: que os humanos ainda sejam o ponto central desse imaginário. Até que a pergunta-chave aparece: então, o que é o humano? Se a história perpassa pela humanidade, é possível que a regeneração entre humanos, robôs e outros corpos viventes estabeleça um ponto de partida sem a centralidade na humanidade?

O terceiro e último ato responde: Adi resgata em A Robocalyptic Manifesto a ideia animista. O Animismo é uma cosmovisão que identifica a presença de alma em todas as entidades não-humanas presente em muitas religiões. “Vamos criar e programar robôs, não à imagem da ciência moderna, mas às nossas próprias imagens e tradições” (Adi, 2020, tradução nossa)16 A imagem do novo vivente, criado na obra, reflete bem esse trecho da videoarte em um ponto: uma parte da sua vestimenta é justamente uma espécie de lenço no local que seria o seu pescoço, uma peça da cultura asteca (figura 5). Logo após, a videoarte apresenta outros viventes que possuem corpos já recriados dentro da nova lógica robô-revolucionária. Assim, todas elas foram reconfiguradas buscando uma fuga das amarras hegemônicas na visualidade de corpos do mundo contemporâneo.

Considerações (do corpo-robô) finais

Nessas práticas artísticas performáticas, Adi traz a problematização das políticas radicais que se constituem no presente sobre a presença do outro. Enquanto a alteridade for exterminada por máquinas de guerras coloniais (Mbembe, 2016, p. 17) e a dissolução da diferença estiver nas inúmeras imagens disseminadas nas plataformas digitais, corpos ainda terão como nomenclatura a figura do estranho. A sua visão fabulatória nas três obras parece funcionar enquanto um meio que alimenta sua própria malha simbólica rodeada de signos contra-hegemônicos e fortalecendo uma identidade latino-americana, sempre marcada por um outro até hoje colonizado - agora pelos dados e pelos algoritmos computacionais.

A artista gera novas imagens dos corpos e sua arte digital possui o papel de armazenar e transmitir informações sobre novas maneiras de ver e existir no mundo. Ela atua, nas palavras de Renato Cohen, como uma artista que constrói a linguagem da perfor-

16. Tradução de “Let’s create and program robots, not in the image of western science, but after our own image and traditions”.

mance como uma “reversão da mídia” (Cohen, 2002, p. 88) – nesse caso, uma mídia robótica. Mesmo que em alguns momentos ainda possa ceder a uma reconquista humana do processo robô-revolucionário, como é o caso da performance no segundo ato de A Robocalyptic Manifesto, Adi nos apresenta frutíferas tecnopolíticas, experimentando resistências, subversões e regenerações no jogo sociotécnico com a robótica e a IA. A tríade artística coloca, sim, em xeque o pensamento sobre o corpo e as relações estético-político-culturais no presente.

O entendimento da alteridade, das relações de comunicação com o que é efetivamente outro, um “corpo estranho” (Joron, 2006, p. 14) esteve apontado o tempo todo contra as culturas hegemônicas e deram voz a latinoamericanidade dos corpos com os antagonismos entre os “seres” robóticos e as raízes dos povos, como os astecas e os maias, além, é claro, da figura de uma tecnociência feminista, igualmente fundamental para a pesquisadora. É bem verdade que, utilizando-se da robótica, Adi também se encontra numa linha tênue em ser uma artista a exemplos de outros que caem nas armadilhas que “compartimentalizam o homem em especialização e limites dos quais ele não pode escapar” (Cohen, 2002, p. 163, grifo nosso)17. Se a pesquisadora argentina quis retratar tal cenário das mudanças híbridas dos corpos, nem mesmo os sistemas robóticos escaparam.

17.Um grifo que precisa ser utilizado para alertar que, novamente, o uso dessa palavra se encontra degenerado.

Referências

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223 Poéticas e políticas do sentir latino-americano

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