A mulher que virou beija-flor


Como as pessoas falecidas chegam ao céu? Na Amazônia algumas comunidades indígenas acreditam que os mortos se transformam em borboletas.
















Essa mutação física é também um processo de purificação que desmaterializa o corpo humano e lhe confere leveza e asas. A borboleta é a emanação de um corpo celestial, espiritual.




































Para ganhar os céus na forma de borboleta, é preciso voar de flor em flor, sugando o néctar e fortalecendo-se para carregar o próprio peso durante a viagem, onde cada ser alado irá encontrar com seus antepassados e viver em harmonia.








Coaciaba era uma mulher indígena de rara beleza. Muito jovem havia se casado com um homem guerreiro, protetor de sua aldeia.







Numa das batalhas para proteger seu povoado, seu marido foi atingido por uma flecha inimiga e faleceu.







































































Muito desolada com a perda de seu amor, Coaciaba realizou o funeral de seu marido com a filha Guanambi.

































Para aliviar a saudade interminável do marido, Coaciaba passeava todo dia pelas margens do rio, vendo as borboletas, ou na campina, onde também esvoaçavam os mais diferentes pássaros e insetos.




De tanta tristeza, Coaciaba acabou morrendo. Não se morre só de doença ou por velhice.
Morre-se também por saudade da pessoa amada.






Guanambi, a filha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente, nas horas em que sua mãe costumava levá-la para passear. Passava os dias ao lado do túmulo de Coaciaba. Não queria mais viver. Pedia a mãe e aos espíritos que viessem buscá-la para reencontrar seus pais.









De tanta tristeza, Guanambi foi definhando dia a dia até que morreu também. Mas, curiosamente, seu espírito não virou borboleta como o dos demais antepassados da aldeia.
Ficou aprisionada dentro de uma linda flor lilás, pertinho da sepultura de sua mãe, como havia pedido aos espíritos.




Coaciaba, em forma de borboleta, esvoaçava entre as flores sugando néctar para se fortalecer e encetar sua viagem ao céu onde encontraria seu amado guerreiro.

Certo dia, ao entardecer, ziguezagueando de flor em flor, pousou sobre uma linda flor lilás. Ao sugar o néctar ouviu um chorinho triste. Seu pequeno coração de borboleta estremeceu e quase desfaleceu de emoção. Reconheceu dentro dela a vozinha da filha querida Guanambi. Como poderia estar aprisionada dentro da flor?








Era preciso libertar Guanambi para juntas alcançarem o céu. Mas na forma de uma borboleta ela não teria forças para abrir as pétalas, romper a flor e libertar sua filha. Em lágrimas, Coaciaba suplicou aos espíritos criadores e aos ancestrais da comunidade.

- Por amor ao meu marido, valente guerreiro, morto em defesa dos irmãos e das irmãs, por compaixão da minha filha orfã, Guanambi, presa no coração da flor lilás, eu vos imploro, espírito benfazejo e a vós todos, anciãos da nossa comunidade, transformem-me num passarinho veloz e ágil, com um bico pontiagudo para romper a flor e libertar minha filhinha.




Tamanha foi a compaixão despertada por Coaciaba que o espírito criador e os anciãos atenderam, sem delongas, a sua súplica.
Transformaram-na numa belíssima beija-flor, que pousou imediatamente sobre a flor lilás.


















Emocionada sobre a flor, Coaciaba sussurrou:
– Filhinha, sou eu, sua mãe. Não se assuste. Fui transformada num beija-flor para vir libertá-la. Com o bico pontiagudo, foi tirando com cuidado pétala por pétala até abrir o coração da flor e encontrar Guanambi.











Ao se abraçarem, Coaciaba recuperou sua forma de borboleta. Mãe e filha purificadas, iniciaram um voo em elipses a caminho do céu.
No meio da viagem juntou-se a elas mais uma borboleta. Era o guerreiro pai e marido que veio encontrá-las para levá-las ao seu recanto celestial, onde a família passaria a viver agora.



Coordenação
Eder Chiodetto e Milton Montenegro
Plataforma de Inteligência Artificial
Midjourney V4 e V5
Design gráfico
Rafael Simões
Fotógrafos
Ana Regina
Bia Serranoni
Carol Gorini
Carolina Krieger
Dani Carbognin
Daniela Balestrin
Daniela Lucheta
Denise Camargo
Eduardo Paiva
Eduardo Sandeville
Gui Mazzoni
Ivonete Leite
Lorena Lopes
Luca Jardim
Lucrécia Couso
Marbo Mendonça
Marcela Neves
Marcelo Conrado
Maria Ercília Castro
Maria Helena Macêdo
Mariana Rocha Biojone
Mateus Morbeck
Matheus Bernert
Paulo Vitale
Rogerio Marques
Sabrina Lisauskas
Tati Abreu
Thaina Duarte
Ulisses Castro
A geração de imagens por meio de plataformas de Inteligência Artificial vem sendo otimizada e difundida pelo mundo, alcançando um grande contingente de fotógrafos e outros interessados em conhecer melhor essa surpreendente e ainda polêmica novidade. A fim de avaliar os recursos e possibilidades dessa tecnologia, que abala as estruturas da fotografia contemporânea, nada melhor do que experimentá-la.
Essa foi a proposta que fiz aos integrantes dos dois grupos do meu curso “Fotografia: Curadoria, Edição e Repertório”. O fotógrafo Milton Montenegro, profissional com grande experiência na interface entre fotografia e tecnologia, e um dos pioneiros no uso de IA em trabalhos autorais de cunho artístico no Brasil, foi convidado para ser o instrutor deste módulo.
Entre março e abril de 2023, os 63 participantes do curso mergulharam no oceano de possibilidades da plataforma Midjourney, instigados pelas ferramentas mostradas por Montenegro. Após a assimilação de alguns processos de geração de imagens, os grupos de fotógrafos foram desafiados a criar uma crônica visual para dois contos do livro “O Casamento entre o Céu e a Terra” (Editora Planeta), do teólogo Leonardo Boff.
Narrativas da tradição oral indígena amazônica, vertidas em literatura pelas mãos de Boff, agora ganham uma versão imagética com os efeitos da inteligência algorítmica. Em tom fabular e mitológico, as lendas dos habitantes nativos do Brasil mostraram-se um terreno fértil para a livre criação de imagens em contexto surrealista.
Em determinadas situações do nosso estudo, os participantes do projeto perceberam algumas dificuldades do sistema de aprendizado de máquina (machine learning) para conseguir que a plataforma gerasse imagens com as feições de indígenas brasileiros ou paisagens com a floresta amazônica.
Espelhando o predomínio econômico e político do Hemisfério Norte, a plataforma de IA parecia desconhecer as pessoas e a natureza das áreas mais ao Norte do Brasil e abaixo da Linha do Equador. Nos diálogos durante os encontros, decidimos deixar que o trabalho final apresentasse essas discrepâncias para pontuar esse poder hegemônico responsável pela disseminação de processos de exclusão, apagamentos, preconceitos e divisão desigual de renda, entre outros problemas que se arrastam na história da humanidade.
Seremos eternamente gratos a Milton Montenegro pela generosidade e paciência em nos mostrar caminhos antes nunca imaginados para a criação desse projeto coletivo. Um profissional que sabe extrair poesia de onde imaginávamos que houvesse apenas a frieza dos algoritmos é, com certeza, um modelo de pensador e criador que devemos exaltar nesses novos tempos.
Agradecemos ao escritor Leonardo Boff por trazer à tona contos dos povos indígenas do Brasil, facilitando assim nosso acesso às histórias dos povos originários.
Fazer a ponte entre novas tecnologias e a mitologia dos indígenas da Amazônia foi também nossa forma de manifesto em prol da ancestralidade e da sabedoria dos povos originários que tanto têm nos ensinado nesses tempos obscuros em que a vida precisa ter seus valores revisados.
Agradeço imensamente a forma como as duas turmas de fotógrafos e entusiastas da fotografia se entregaram nessa imersão por vezes fantástica, outras perturbadora, mas que sem dúvida nos ampliou a visão crítica sobre as mudanças do status da imagem na contemporaneidade.
Os 184 anos de história da fotografia provam que não devemos temer novos suportes e ferramentas que chegam para ampliar o repertório de possibilidades expressivas da linguagem. O ser humano, no fim de tudo, será sempre o principal vetor da criação.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha elaborada segundo a AACR2r M956
A mulher que virou beija-flor [livro digital] / fotografias Bia Serranoni [et al.] ; coordenação Eder Chiodetto e Milton Montenegro — São Paulo : Fotô Editorial, 2023.
109,4 Mb ; PDF (157 p.)
ISBN 978-85-63824-51-6
1. Fotografia. 2. Natureza. 3. Cultura indígena.
4. Morte. 5. Inteligência artificial. I. Serranoni, Bia. II. Chiodetto, Eder. III. Montenegro, Milton.
IV. Título CDD 770
Renata Baralle — Bibliotecária — CRB-8/10366 ISBN 978-85-63824-51-6