Caderno Flávio Cerqueira | CCBB Educativo - Lugares de Culturas

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Ministério da Cultura e Banco do Brasil apresentam

8 out 2025 a 18 jan 2026

CCBB Educativo - Lugares de culturas

UM INÍCIO DE CONVERSA

Ao usar o subtítulo “um escultor de significados” para a sua exposição, Flávio Cerqueira procura dar uma pista a cada visitante: há muitas camadas revestindo as figuras tridimensionais presentes no CCBB do Rio de Janeiro. Mas antes de mergulhar nas criaturas imaginadas pelo artista, é preciso se deter em uma das palavras que ele escolhe para si, aquela que é mais direta: “escultor”.

A escultura acompanha a humanidade há milhares de anos. As chamadas “Homem-leão” e “Vênus de Hohle Fels” foram achadas em cavernas na Alemanha e criadas em marfim de mamute. Pesquisadores situam a origem daquelas peças em 40 mil anos antes de Cristo (período Paleolítico) e ambas têm claras marcas de ferramentas. Esta última característica é fundamental para a definição de uma escultura: a ação humana para transformar determinada matéria-prima (pedras, metais, gesso e outras) em uma forma pretendida, seja ela figurativa ou abstrata.

Este é um início de conversa e de percurso para entender a individual de Cerqueira: ele é um artista escultor, disposto a criar determinadas formas a partir de materiais minuciosamente escolhidos, de modo a reforçar seu diálogo com a história da linguagem artística que abraçou como profissão.

CCBB Educativo - Lugares de culturas

Amnésia Tinta látex sobre bronze 2015

Há registros muito mais antigos debatidos como escultura. “A Vênus de Berekhat Ram”, encontrada nas Colinas do Golã, em Israel, e feita de rocha vulcânica, tem idade situada por pesquisadores entre 230 mil e 700 mil anos antes de Cristo. Já a “Vênus de Tan-Tan”, achada no Marrocos e

VIGOR JUVENIL

A opção pelos retratados jovens também é uma espécie de carta de intenções do artista, que se alimenta da energia transgressora dos adolescentes para criar

A traição do olhar

Acrílica sobre bronze, espelho e madeira 2017 Coleção do artista

JARDIM

Qual foi a última vez que vocẽ teve tempo para sentar em um banco de praça ou jardim e, com o celular desligado, simplesmente observar o espaço ao redor? A exposição de Flávio Cerqueira começa com um convite à contemplação. No foyer, espaço térreo do CCBB, o público é recebido por um jardim cenográfico, no qual pode ver três esculturas do artista. O conjunto lembra a relação de qualquer escultura com o espaço público e com a escala do corpo humano, seja ela uma

Para dar nome às coisas

Bronze 2021

Coleção Cristiano Biagi

Na medida do impossível

Bronze e vidro

2014

Coleção do artista

A representação de uma frágil bolha de sabão ganha forma a partir de vidro transparente conciliado com a figura em metal. A aura de eternidade que banha o estatuário em bronze em nosso imaginário coletivo entra propositalmente em choque com a efemeridade insinuada pela bolha.

Em “Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim” (2015) (na próxima página), Cerqueira provoca um diálogo com uma importante

Eu vi o mundo e ele começa dentro de mim

Bronze, aço inox, sistema de bombeamento hidráulico, plantas aquáticas, bonsai e água 2015

Coleção Sergio Carvalho

AO AR LIVRE

A relação entre jardins e esculturas é uma tradição antiga no lugar que aprendemos a chamar de Ocidente. Também é fortíssima em países da Ásia como China e Japão. Na Grécia e na Roma antigas, figuras mitológicas eram retratadas em espaços públicos, pátios e villas. A Europa dos séculos XV a XVII, especificamente a dos movimentos Renascimento e Barroco, conheceu o apogeu das esculturas ao ar livre. Mas a tradição de relacionar a obra de arte tridimensional com a paisagem perdura até a contemporaneidade. No Rio de Janeiro, espaços como a Praça Paris evidenciam a relação entre esculturas e jardim. Essa tradição perdura no diálogo com a arte contemporânea, e o Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, é um bom exemplo disso.

SUBVERSÃO E MONUMENTO

Quantos generais, barões e celebridades artísticas e culturais você já viu representadas em esculturas em espaços públicos? A tradição do monumento está ligada à história dos vencedores que, em um país como o Brasil, com seu passado colonial, está ligado majoritariamente aos homens brancos que ocuparam posições de poder. Ao entregar esse posto de monumentalidade para jovens de um amplo espectro da população brasileira que se autodeclara como “negro” ou “negra”, Cerqueira almeja para essas pessoas o lugar da eternidade.

CRONISTA

Cansei de aceitar assim
Bronze e sinalização de trânsito 2020
Coleção Rose e Alfredo Setúbal

CONTRADIÇÕES

Mais do que imprimir as características físicas dos jovens que ele retrata no bronze, Cerqueira persegue transmitir a quem olha uma peça sua um estado emocional e subjetivo. Para isso, conta com o auxílio do título de cada obra, pensado de forma bastante minuciosa, na elaboração de um caminho possível de diálogo com o público.

Em “Atalho para a liberdade” (2019), o uso de tinta azul sobre os balões que sustentam a escultura no teto cria simultaneamente ilusão e mobilização a partir de características contraditórias: a suposta leveza dos balões, que é fala,

Pretexto para te encontrar

Pintura automotiva sobre bronze e cabos de aço

2013

Coleção do artista

visto que eles não são de borracha, e, sim, de metal, não seria capaz de sustentar o corpo da jovem, ainda mais sendo ele esculpido em bronze, tampouco levá-la a lugar algum. Tais dicotomias funcionam como uma alavanca disparadora de sentidos, mais uma vez os múltiplos significados a que se refere o título da exposição.

No interior da sala, as cores quentes de “Pretexto para te encontrar” (criada seis anos antes da peça anterior, em 2013) são o acesso para um estado de alegria, em que a flutuação sugerida é de apaixonamento, de mobilização na direção de outro alguém.

Não estou no meu passado Bronze patinado 2024 Coleção do artista

POR QUE

SEM BRAÇOS?

Duas das maiores obras de arte do chamado Ocidente estão no Museu do Louvre, em Paris. São esculturas do período Helenístico (criadas entre 200 a.C. e 100 a.C.) e têm ainda em comum o fato de que perderam seus braços: a "Vênus de Milo" está na galeria greco-romana da instituição, enquanto a "Vitória de Samotrácia" fica no topo da escadaria Daru. Em peças de mármore ou outras pedras, como a maioria das obras clássicas que sobreviveram até nossos dias, as partes mais frágeis da escultura são os braços, que estão fora do centro de massa da peça, mesmo quando não estão levantados.

VIL METAL

O curioso é que havia muitas estátuas gregas — a maioria delas — fundidas em bronze, o que permitiria que estivessem intactas, graças ao material resistente. Mas elas não atravessaram os séculos porque foram saqueadas, derretidas e transformadas em armas e moedas pelas gerações seguintes às dos artistas que as criaram. Grande parte das obras que chegaram ao nosso conhecimento foram preservadas no fundo do mar, em naufrágios ou acidentes naturais. É o caso da peça que representa uma divindade masculina (alguns julgam ser Zeus; outros, Poseidon), localizada no fundo do mar, no cabo Artemísio, na Grécia, em 1928. A escultura tem dois metros e mostra o deus grego de braços abertos, como se fosse arremessar algo (um raio, defendem os que julgam ser Zeus); ou ostentar algo (um tridente, no caso de ser o senhor dos mares).

NO BRANCO, VAZIOS E ABRAÇOS

As peças pintadas em branco, do início da trajetória de Flávio Cerqueira, destacam, de modo muito contundente, duas características simbólicas importantes da obra do artista que parecem díspares, mas caminham juntas. A primeira delas é a constatação de que se está só, seja por estar com um buraco no peito, como em “Ex-corde” (2010) ou por mergulhar sem interlocutores em “Monólogo” (2011). A outra é a resposta de autovalor a partir da consciência anterior, que transforma solidão em solitude a partir de um abraço em si mesmo, como em “Vai ver é assim mesmo” (2013) ou de uma conversa com o espelho, como em “Antes que eu me esqueça” (2013).

Vai ver é assim mesmo

Pintura eletrostática sobre bronze

2013

Coleção do artista

O PRAZER TAMBÉM MORA NOS DETALHES

Às vezes, uma sutileza cria outras camadas de interpretação para uma obra de Cerqueira. É o caso dos pés do menino de “Monólogo” (2011), que foram representados usando sapatos de um famoso camundongo da história do cinema.

Há uma relação desses calçados lúdicos, de certa forma também personagens, com as marionetes de animais que o garoto segura para fazer seu monólogo.

Tudo entre nós

Pintura eletrostática sobre bronze 2010

Coleção do artista

Iceberg

Pintura eletrostática sobre bronze 2012

Coleção do artista

Passarinho
Bronze e tronco de árvore 2013
Coleção do artista

VOOS IMAGINADOS

Três esculturas formam um conjunto semântico importante na obra de Cerqueira. “Avua!” (2013); “Ao seu alcance” (2012); e “Passarinho” (2013) falam de voos imaginários e utópicos, que jamais poderão ser concretizados com os recursos utilizados pelos personagens das esculturas. Tanto a pequena asa da primeira peça quanto os fogos de artifício de “Ao seu alcance” (2012) e as tímidas penugens das asas-braços do menino-passarinho são insuficientes para que, de fato, consigam voar. Obras que tanto podem ser vistas de modo pessimista, como sonhos abortados, quanto pelo viés da alegria — a capacidade que um jovem tem de imaginar e seu desejo de futuro podem ser mais fortes que as limitações econômicas e sociais.

Ao seu alcance

Bronze e madeira

2012

Coleção do artista

Avua!

Bronze, madeira e cordão de couro

2013

Coleção do artista

LEVANTES

Na história contemporânea da humanidade, sempre que houve um levante, havia jovens dispostos a mudar o mundo, ou pelo menos o mundo em que viviam. O grande pensador da história das imagens, Didi-Huberman, afirma que todo levante já nasce derrotado, condenado a um sufocamento, ou não seria um levante, mas, sim, uma revolução. Mas Huberman também argumenta que o verdadeiro poder de um levante, e dos jovens que o deflagram, é servir de exemplo para futuras contestações. A partir disso, importa menos se as asas imaginadas para o voo vão ser ou não capazes de ir muito longe. Importante mesmo é querer voar.

ELES ESTÃO SURDOS?

Viver no Brasil é fazer parte de uma nação que é uma das campeãs de violência contra a mulher em todo o mundo. Dados do Ministério das Mulheres mostram que houve um recorde de registros de violência de gênero e feminicídio em 2024, o que também evidencia que as mulheres de todo o país estão se sentindo mais estimuladas e encontrando canais para denunciar os maus tratos. Ciente de que a arte é uma atividade política, mesmo quando se recusa a ser política, Cerqueira criou esculturas que são processo de escuta de mulheres próximas a ele, tanto amigas quanto familiares. A partir disso, criou “Cansei de aceitar assim” e “Como se o silêncio dissesse tudo”, ambas de 2020.

Coleção do artista

MÁRTIRES E RÉQUIENS

Em “Tião” (2017), Cerqueira se relaciona diretamente com um ícone da imagética religiosa e da cultura popular brasileira, especialmente da carioca. Padroeiro do Rio de Janeiro, São Sebastião reaparece como Tião, um jovem menino preto insinuado como mártir. O tom de réquiem, aparece no conjunto de velas (um velório, afinal) nas mãos de um outro adolescente.

Em memória de mim Bronze e velas derretidas 2017
Coleção do artista
Tião Bronze
2017
Coleção do artista

ESQUECIMENTOS E RELEITURAS

"Amnésia" (2015) é provavelmente uma das mais populares esculturas de Flávio Cerqueira. Um jovem negro toma um banho de tinta branca, como frequentemente aconteceu ao longo da história de apagamentos e embranquecimentos na sociedade brasileira. Quantos Machados de Assis tiveram os traços de afrodescendente adulterados pelo poder e pelos imaginários? Quantos, como o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e como a princesa rebelde Aqualtune, tiveram as trajetórias diminuídas ou esquecidas.

Há um contraponto possível a esse apagamento em “Um lugar que não seja esperar” (2018). Uma mulher que carrega livros na cabeça, no lugar que antes parecia destinado a uma lata d’água, mostra uma afinidade da obra de Cerqueira com os movimentos que pleiteiam uma celebração da cidadania e das culturas afroconfluentes para além do lugar da dor. Se o Brasil sofreu de amnésia seletiva, é preciso e urgente disponibilizar novas narrativas, reescrever histórias, carregar em si mesmo a capacidade de ser uma biblioteca.

Uma palavra que não seja esperar Bronze 2018 Coleção do artista

A ESCRITA INDIVIDUAL E A COLETIVA

O grafite e as pichações estão incorporados ao olhar de cronista que Flávio Cerqueira dirige à vida urbana. As grafias da cultura de rua aparecem em uma obra recente, inédita em exposições, o boné “Poder” (2024), que emula um tecido artesanal no bronze, e também em duas obras que combinam esculturas com intervenções no ambiente.

Em “Nunca foi a primeira opção” (2024), o artista parte novamente de sua experiência pessoal — o fato de, no passado, receber poucos convites para exposições e vendas, por causa de suas escolhas estéticas — para criar uma obra que pode se referir a uma camada imensa de jovens que não são a primeira opção de vagas, oportunidades e circuitos destinados a quem já recebeu inúmeros privilégios pelas origens social e econômica.

Já em “Better together” (Melhor juntos, 2020) (na próxima página), uma jovem oferece os ombros para que a colega suba e consiga escrever a frase que dá título à obra. Há um caminho individual, mas também uma escrita que é coletiva.

Bronze e vinil adesivo sobre parede

ATELIÊ

Flávio Cerqueira — Um escultor de significados culmina com a reprodução de parte do ateliê do artista. Ele compartilha um pouco de seus bastidores da criação de modo a desmistificar um lugar que ele próprio um dia considerou inacessível a jovens periféricos, como aquele que um dia foi.

Depois de percorrer os caminhos que pareciam interditados, Cerqueira almeja que futuros artistas presentes no público que visita o CCBB possam ter estímulos para fazer o mesmo.

Coleção Simone e Clovis Ikeda

CCBB Educativo - Lugares de Culturas

PRODUÇÃO

Sapoti Projetos Culturais

COORDENAÇÃO GERAL

Daniela Chindler

COORDENAÇÃO ARTES VISUAIS

Alexandre Diniz

COORDENAÇÃO ARTES CÊNICAS

Fátima Verônica Santos

Gabriel Sant´Anna

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO

Nathalia Pereira

ASSISTENTE DE MÍDIAS SOCIAIS

Amanda Vieira de Mello

PRODUTORES

Bruno Moulin, Mercedes de Assis Santos

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO

Marina Paranhos

RH

Luciene Mendonça da Silva Jobim

EDUCADORES

Antonio Valladares Diez, Gisele Geminna de Niemayer, Louise Ferreira de Jesus

Melissa Anselmo, Nicole Pinheiro, Raphael Rodrigues, Ruana Carla Andrade

ESTAGIÁRIOS

Alex Martins, Ana Carla Rodrigues, Beatriz Monção Lopes, Hiane Neves Nunes, Hiata Bruno Bastos, Laura Caetano Almeida Lethbridge, Maria Paula Estrella, Mariane Gonzaga Chamarelli, Marianna Bilotta, Matheus Vieira Soares Silva, Michelle Marques, Milena Luzia Maciel de Souza, Pamela Bastos da Rocha, Thalles Cruz, Vitória Alves Barreto da Silva, Vitória Regina Ferreira

COORDENAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS

Moulin Projetos e Cultura - Isabella Moulin

APOIO ADMINISTRATIVO

Matheus Mello

FINANCEIRO

Hugo Nascimento

Exposição

PATROCÍNIO

Banco do Brasil

REALIZAÇÃO

Ministério da Cultura

Centro Cultural Banco do Brasil

ORGANIZAÇÃO E PRODUÇÃO

Pink Pineapple

Adelaide D’Esposito

Waleria Alexandrino Dias

CURADORIA

Lilia Moritz Schwarcz

DIREÇÃO ARTÍSTICA

Flávio Cerqueira

PRODUÇÃO EXECUTIVA

Rebeca Hindrikson

PRODUÇÃO LOCAL

Tatiana Belli

Caderno

Educativo

PESQUISA E REDAÇÃO

Daniela Name

EDIÇÃO

Daniela Chindler

DESIGN

Giovanna Cima

REVISÃO Sol Mendonça

FOTOGRAFIAS

Agência Galo

Amanda Mello (capa)

Produção

Educativo

Realização

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