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Ideologia, Consumo e Lazer
Por Rubens Pinto Lyra
O mundo fantástico da ideologia, onde as ilusões se confundem com o real, encontra terreno fértil para sua difusão nas propagandas comerciais veiculadas na mídia. Se para os miseráveis aconselha-se a privação dos prazeres deste mundo, bem diversa é a mensagem que se destina, em graus variáveis, aos que participam do mercado. Para estes, os meios de comunicação estimulam, por todas as formas, o consumismo.
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“Sucesso... com Hollywood” é um exemplo paradigmático - veiculado com grande destaque anos atrás – de mensagem publicitária produzida pela mídia com esse objetivo. Ela induz ao consumo na medida em que associa a imagem do produto ao sucesso, à saúde e à vida privilegiada. Sua aquisição não confere satisfação às necessidades reais, mas funciona como sucedâneo destas.
Fumar cigarro, longe de propiciar as vantagens alardeadas à saúde do indivíduo pela sua propaganda, propicia, entretanto, a sensação efêmera e ilusória de felicidade. Isto porque o ato de fumar aparece, subliminarmente, na consciência do fumante, como se fosse o da prática de todos os atos a que aspira e com os quais a propaganda do cigarro se identifica (e o identifica).
Desta forma, o mundo real, permeado de frustrações sexuais e afetivas, de desconforto e de insucessos, em suma, o ramerrão da vida cotidiana, transfigura-se, na mente do indivíduo, no universo de realizações e prazer inigualáveis. A sensação de harmonia, de “estar bem” com a vida, obscurece a consciência da realidade concreta em que vive, cheia de conflitos e de desafios.
Tudo isso o induz à uma atitude passiva e conformista, e a uma prática voyeurista, que substitui a práxis transformadora do sujeito vis-à-vis de situações de injustiça e de alienação, inibindo a sua disposição de lutar por uma vida material e espiritual dotada de atrativos reais e da alegria de viver.
A ideologia consumista dispensa, ao internalizar os valores dominantes, o sentimento de culpa (e a consequente auto-repressão). Nesse caso, a sublimação da realidade ocorre através da ocultação da necessidade da ação coletiva para a resolução de problemas que, embora individuais, têm um conteúdo social, o que, naturalmente, conduz a “soluções” puramente pessoais e ideais, e, portanto, ilusórias.
Erich Fromm mostra a relação entre o comportamento consumista com a atitude passiva dos que o cultivam. Para ele, “são precisamente desses homens de que necessita o capitalismo para funcionar sem atrito”. De “homens que desejem consumir mais e mais e cujos gostos padronizados possam ser facilmente influenciáveis e previstos. Homens que não se sintam sujeitos a nenhuma autoridade e, não obstante, dispostos a se enquadrar na máquina social. O capitalismo moderno conseguiu produzir esse tipo de homem - o homem alienado cujos atos se tornam estranhos a ele (FROM, 1965, p. 82-83).
Já as diversas modalidades de jogos e entretenimento, a exemplo da loteria, funcionam como lenitivo para os despossuídos, como o “opium de la misère”. Quelle est aujourd’hui la puissance sociale qui peut, pour quarante sous, vous rendre heureux cinq jours et livrer idéalement tous les bonheurs de la civilisation?” (GRAMSCI, 1976, p. 346).
É consabido que essa modalidade de jogo, atualmente, potencializa ainda mais a ilusão de milhões de pessoas, mantendo-as, cada semana, na expectativa de serem premiadas e assim receberem milhões de reais.
Jogos lúdicos e diversões constituem a válvula de escape, a ilusão reconstituída a cada dia, mês ou ano, a “cachaça” que lhes permite suportar as privações permanentes de uma vida material desprovida de atrativos e sem perspectivas de mudança.
Servem como um paliativo efêmero para os problemas existenciais de milhões de pessoas, oferecendo instantes de fuga e/ou de prazer, que compensam, momentaneamente, as agruras do cotidiano.
O carnaval, por vezes palco de manifestações críticas, funciona, em geral, como um poderoso lenitivo, propiciando instantes de fuga e – ou – de prazer.
O poeta Vinicius de Morais descreve a grande catarse provocada pelo Carnaval:
a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval a gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho pra fazer a fantasia, de rei, de pirata ou de jardineiro e tudo acabar na quarta-feira (1976, p.388).
Desde Marx, sabemos que as relações mercantis penetram, no sistema capitalista, no âmago das relações sociais. Atualmente, o capitalismo, como consequência de suas recentes transformações, tem ido muito além da produção econômica no sentido convencional do termo.
Elas alcançam, entre outras, as necessidades físico-psíquicas da sociedade do consumo, a cultura, a indústria do lazer e do entretenimento e os sistemas de crença.
Assim, o sistema capitalista “passou a ser um modo de vida, um universo simbólico-cultural suficientemente hegemônico para impregnar a subjetividade e a mentalidade das vítimas de suas classificações e hierarquias. A luta anti-capitalista passou a ser mais difícil, passando a ser cultural e ideológica para ter eficácia no plano econômico” (SANTOS, 2016, p. 148).
As elaborações teórico-religiosas, enquanto integrantes do universo simbólico-cultural de produção capitalista, são, regra geral, manifestações do pensamento hegemônico. A Teoria da Prosperidade, com influência determinante em importantes igrejas neopetencostais, ilustra bem essa questão. Esse pensamento se concretiza, nessas igrejas, na busca frenética, e de seus principais líderes, por enriquecimento. Eles ensinam que o sinal principal da salvação é o progresso material: “É tácito, não está explícito, que a ideologia capitalista é assumida como se fosse um artigo de fé” (RAMOS E ZACARIAS, 2020).
Há mais de meio século, Fromm se perguntava se haveria maior sacrilégio do que a prática religiosa, cada vez mais corrente, de “ensinar a rezar para que Deus se torne um sócio de seus negócios, “maior sacrilégio do que “vender” a religião com os métodos usados para os sabonetes” (1955, p.163).
Concluímos essa reflexão com os comentários de Safatle (2012) a respeito da relação entre ideologia liberal e fé religiosa. Segundo ele, “a vida contemporânea nos ensina que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se em dois pólos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular. Teremos que conviver com os resultados políticos dessa patologia social” (SAFATLE, 2012, p. 71). NOTAS
FROMM, Erich. O dogma de Cristo. Rio de Janeiro: Zahar,1965.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
MORAIS, Vinicius. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Ed. Aguilar, 1976.
RAMOS, Ariosvaldo; ZACARIAS, Nilza. Neopentecostais e projeto de poder. Le Monde Diplomatique, São Paulo, fev. 2017.
SAFATLE, Wladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo, Três Estrelas, 2014.
SANTOS, Boaventura. A difícil democracia. São Paulo: Boitempo, 2016.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.
Samuel Paty, o professor decapitado, e os fanáticos
Por Pedro de Souza
No dia 16 de outubro de 2020, um professor de história e geografia do colégio de Conflans-Sainte-Honorine, nos subúrbios de Paris, Samuel Paty, foi decapitado por um rapaz de 18 anos, Abdoullakh Anzorov, que foi logo depois abatido pela polícia. Esse horroroso crime causou uma imensa comoção na França.
Dias antes, Samuel Paty, o professor em questão, tinha mostrado, numa aula sobre laicidade — sobre o caráter laico ou não confessional do Estado francês —, umas imagens explicativas, entre as quais as das caricaturas de Maomé reproduzidas pelo jornal satírico francês “Charlie Hebdo”. Como o Corão afirma que não se pode representar a imagem de Maomé, no dia 7 de janeiro de 2015 um terrorista muçulmano entrou na redação e abateu 12 dos jornalistas da revista, a quase totalidade da equipe de redação. O julgamento desse caso gravíssimo está em curso.
O assassino do professor Samuel Paty, um rapaz de origem chechena de 18 anos, filho de refugiados políticos russos muçulmanos, e que não era aluno desse colégio, teria seguido essa mesma motivação: a lei muçulmana não permite representar a imagem de Maomé. Durante essa aula, o professor teria avisado que ia mostrar essas imagens, para ilustrar a questão da liberdade de expressão, e que, se algum aluno se sentisse ofendido, fizesse o favor de não olhar. Essa situação provocou alguma agitação no colégio, mas que acabou serenando. Porém, o pai de uma aluna que tinha sido suspensa por outros motivos (e que, em consequência, não estava na aula), também de origem muçulmana e conhecido por seu proselitismo, levou a questão para as redes sociais, e, a partir daí, o caso se potencializou. O criminoso pagou, na saída das aulas, a alunos do colégio para lhe indicarem quem era o tal professor.
A emoção por todo o país foi muito forte, devido à barbaridade do ato e ao fato de a vítima ser um professor. O professor assassinado se soma às 263 vítimas de terrorismo islâmico na França desde 2012. Entretanto, mais que tudo, esse crime veio confirmar a pressão dos integristas muçulmanos sobre a escola pública, considerada, na França, como a raiz da democracia. Com efeito, é na escola pública que se formam os cidadãos, é lá que se transmitem os valores da República, duramente adquiridos desde a Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.
As religiões monoteístas, desde sempre, procuraram se sobrepor aos Estados. A história da Europa pode ser lida como uma longa contenda para se liberar da tutela da Igreja. O grande passo para a independência do Estado foi a Revolução Francesa, inspirada no Iluminismo de Voltaire e Diderot, entre outros. Com a queda do absolutismo, ou seja, da doutrina que radicava a soberania dos reis na vontade divina, a democracia ganhou autonomia até à criação da escola pública e gratuita para todos, garantia da proeminência do Estado laico. Este Estado laico não é inimigo das religiões, muito pelo contrário, é o fato de o Estado ser laico, ou seja, acima de todas as religiões, que permite que os cidadãos possam livremente aderir a uma qualquer religião.
A França viveu nesse contexto ideológico-institucional desde o final do século XIX, aceito por todos os emigrantes que se foram juntando, ao longo do tempo, à comunidade nacional. O problema que se põe agora é com relação aos integristas muçulmanos que têm emigrado para a França e ao doutrinamento da comunidade muçulmana francesa por ímãs integristas sustentados pela Arábia Saudita, e mais recentemente pelos militantes de organizações integristas muçulmanas, como a Al Qaeda ou o Estado Islâmico.
Mas foi nas redes sociais que esses grupos integristas encontraram o seu grande aliado. Através das redes sociais, eles têm acesso direto à juventude muçulmana europeia, por meio da qual pretendem impor a superioridade e preeminência da lei muçulmana, a Sharia — a lei canônica do Islão, que rege a vida religiosa, política e mesmo privada de alguns estados islâmicos integristas —, à lei francesa. Para Gilles Kepel, professor na École Normale Supérieure, especialista da região do Médio Oriente e Mediterrâneo, e autor de excelentes obras sobre a questão, a França estaria enfrentando uma nova forma de terrorismo. Na fase anterior, os terroristas tinham ligações com o Estado Islâmico, a Al-Qaeda, ou outras organizações terroristas. A polícia podia chegar a eles por métodos de investigação e repressão tradicionais. Hoje, as teorias integristas — e, consequentemente, um terrorismo larvar — teriam se disseminado via redes sociais entre a juventude muçulmana francesa. Essa opinião parece encontrar respaldo nos múltiplos incidentes que se têm vindo a verificar no meio escolar francês. Uma moça muçulmana está sendo julgada na região de Toulouse por insubordinação e graves insultos a uma professora.
Essa pressão dos jovens muçulmanos estaria tam-
bém provocando uma reação de autocensura por parte dos professores, que deixariam de lado as ideias menos palatáveis para essa franja de jovens fanatizados, pondo assim em causa a escola como base da integração, e da educação de todos os jovens franceses. Esses conflitos, aliás, não se resumem às escolas, mas a toda a vida social nos municípios onde há fortes minorias ou maioria de muçulmanos: nas piscinas, nos ginásios etc., surgem insolúveis problemas de vestuário ou convivência entre sexos. A essa tendência, tem se chamado ultimamente “separatismo”: os muçulmanos estariam construindo um país deles dentro da França.
Não se trata de um problema fácil de tratar e solucionar. Quanto mais não seja porque, para combater os excessos dessa população, seria necessário pôr em causa as liberdades que a Constituição garante a todos os cidadãos franceses, por exemplo no caso de se decidir a censura das redes sociais. Se levantando contra a liberdade de expressão, o que é o caso com a interdição da publicação das caricaturas de Maomé, os integristas colocam o Estado francês diante de um dilema de difícil solução, pois, para garantir a liberdade de expressão, teriam simultaneamente de pô-la em causa. Seria necessário que esses fanáticos, que não são os únicos no nosso mundo, entendessem que blasfêmia só é blasfêmia para os crentes, para os não crentes, blasfêmia significa liberdade de expressão, ou crítica, ou mesmo zombaria. Mas, pelo contrário, eles pressentem que a aceitação do princípio da laicidade é o começo da secularização, como aconteceu com a catolicismo. É o fim da religião como cultura total.
O presidente Macron, qualquer que seja a opinião que se tenha sobre ele, não teve sorte. Foi eleito sob um programa que prometia amplas reformas, e a União Europeia — e, especialmente, Angela Merkel — não o acompanhou nas suas intenções. Depois, apanhou em cheio a crise dos “coletes amarelos”, que, durante meses, deixaram o país semiparalisado. Veio, em seguida, a pandemia, que derrubou a economia e contradisse a sua agenda liberal: na hora do aperto, se verificou que foram os serviços públicos, ou mlhor os funcionários públicos, ostracizados desde que se impôs a ideologia liberal e de privatização, que se ergueram e fizeram frente à pandemia. Finalmente, agora surge a questão do “separatismo” muçulmano, que contradiz, em parte, a índole liberal do presidente, inicialmente disposto a facultar uma certa margem de autonomia às minorias.
Mas será que é mesmo azar? Olhando de um ponto de vista um pouco mais amplo, o que se verifica na França, e não só na França, é uma tribalização social crescente. Assistimos, nos países e nas classes mais afluentes, para as quais a religião é uma vaga lembrança, ao incessante desfile de lésbicas, antirracistas, gays, metoo’s, ecologistas radicais e, nos países, nas regiões, e classes mais desfavorecidas, a “coletes amarelos”, islamistas, evangelistas e conspiracionistas. O que não significa que algumas dessas lutas não tenham fundamento.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa entrou num período de forte crescimento e otimismo, que durou 30 anos. Foi um período em que havia esperança e solidariedade, até o advento do liberalismo radical de Ronald Reagan e da Senhora Thatcher, para quem não havia sociedade, havia indivíduos. Na realidade, havia o mercado. Está na hora de se entender que o individualismo consumista exigido pelo mercado não leva a lugar nenhum, senão à balcanização da sociedade, ao isolamento e à angústia de todos. O mercado não é uma fé, mas cria fanatismos, amparados pelas mentiras e pelo ódio irradiados através das redes sociais. A pergunta que se põe é se, diante do liberalismo e da globalização, os valores da Revolução Francesa sustentam, ainda, a inclusão cultural dessas populações muçulmanas radicais.
O mundo ocidental perdeu todas as guerras desde 1945, mas age como se as tivesse ganho, pela força do capital, criando a globalização pelo mercado, que é inevitavelmente também a globalização das populações e das culturas. Para que possa encarar o futuro com algum otimismo, e não assistir à transferência da guerra para o interior dos seus domínios, teria de se entender que os benefícios dos direitos humanos não fazem sentido apenas para os mais favorecidos, e se organizar de forma a que a toda a população fosse oferecida a possibilidade de olhar também o futuro com alguma esperança e espírito solidário, no momento em que se constata que a pandemia agrava as desigualdades.
Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
A permanente morbidez da sociedade brasileira
Por Fábio Konder Comparato
Para compreendermos a verdadeira natureza do governo Bolsonaro, precisamos nos dar conta de que ele nada mais é, na verdade, do que um dos múltiplos sintomas de uma grave moléstia, contraída pela sociedade brasileira desde o início do processo de colonização de nosso território, no século XVI. Se quisermos, portanto, começar a combater a enfermidade — o que vai se tornando sempre mais urgente neste início do século XXI —, não podemos nos limitar a encontrar paliativos para os sintomas no momento em que eles se declaram, mas, sim, compreender em profundidade a causa morbi.
Na verdade, trata-se de uma enfermidade permanente, cujo início data do próprio Descobrimento. Focalizo aqui, especialmente, um dos efeitos permanentes da enfermidade; a saber, a dupla vigência das nossas instituições políticas: uma oficial, pouco respeitada, e outra não oficial, mas que acaba sempre por se impor, pelo fato de corresponder aos interesses dos grupos dominantes em nossa sociedade.
Causas Históricas da Moléstia - A vigência efetiva e não meramente pressuposta das normas componentes do ordenamento jurídico oficialmente adotado em cada Estado depende, por inteiro, de dois fatores, intimamente relacionados entre si. De um lado, a estrutura de poder efetivo em vigor nessa sociedade, estrutura essa organizada em forma hierárquica, em cujo ápice encontra-se o poder supremo ou soberania. De outro lado, a mentalidade coletiva, entendida como o conjunto de valores éticos, sentimentos, crenças, opiniões e mesmo preconceitos, dominantes na sociedade, e que tendem a se consolidar em usos e costumes.
Criou-se, destarte, em vários países e especialmente no nosso, uma duplicação anômala de ordenamentos jurídicos: um, declarado oficialmente pelo Estado, a culminar com o sistema constitucional; outro, composto por uma interpretação seletiva de normas, efetuada pelos agentes estatais — notadamente magistrados judiciais —, interpretação essa que sempre favorece os interesses próprios dos potentados econômicos privados, em geral não repudiada pelas outras classes sociais. É à luz desses dois fatores estruturantes da ordem social, que podem ser melhor compreendidas as peculiaridades da sociedade brasileira.
A realidade social por trás do direito positivo - Bem examinada nossa sociedade, não é difícil perceber que a sua estrutura foi moldada, genericamente, pelo espírito e pelo sistema de poder, próprios da civilização capitalista; e, especificamente, pelas instituições da escravidão e do latifúndio. Com efeito, diversamente do que sucedeu no Velho Mundo, as sociedades criadas no continente americano foram inteiramente estruturadas pelo capitalismo, que dominou toda a política de colonização no Novo Mundo. As marcas indeléveis dessa gênese capitalista são evidentes nos dois grandes fatores estruturantes da sociedade brasileira: a relação de poder e a mentalidade coletiva.
O poder soberano entre nós, desde os tempos coloniais, foi profundamente marcado pela doação de terras públicas aos senhores privados, e pela mercantilização dos cargos públicos. Desde a dinastia de Avis, em Portugal, que inaugurou pioneiramente, já no século XIV, o sistema de capitalismo de Estado, os monarcas, para enfraquecer o poder nobiliárquico, passaram a vender cargos públicos a membros da burguesia. No Brasil colônia — tirante os Governadores Gerais e, mais tarde, os Vice-Reis —, praticamente todos os cargos públicos foram comprados por burgueses, que para cá vieram no intuito de amortizar a despesa de aquisição de tais cargos e fazer fortuna. Tais funcionários, aqui instalados, longe de toda fiscalização da metrópole, tornaram-se, de fato, embora não de direito, um estamento de “donos do poder”, como os qualificou Raymundo Faoro.
Não é, pois, de estranhar se, desde as origens, a dupla formada pelos potentados econômicos privados e pelos agentes estatais passou a servir-se do dinheiro público como patrimônio próprio dessa associação oligárquica, gerando a duradoura endemia da corrupção estatal. Com a criação, desde os primeiros tempos coloniais, dessa oligarquia binária — potentados econômicos privados e agentes estatais —, estabeleceu-se, por via de consequência, uma dualidade permanente do ordenamento jurídico entre nós: um oficial, em grande parte de mera aparência, e outro efetivo, mas sempre dissimulado.
Representa, na verdade, um dos múltiplos ludíbrios do sistema de dominação capitalista sustentar que ele independe do Estado e se esforça por limitar o poder estatal, em nome da livre iniciativa. A realidade histórica sempre foi bem outra, como advertiu o grande historiador francês Fernand Braudel (2008).
Concomitantemente, na consciência dessa dupla oligárquica, sempre preponderou certo complexo de
país colonizado ou, como disse Sérgio Buarque de Holanda, um sentimento de vivermos desterrados em nossa própria terra. Assim, as Constituições aqui promulgadas sempre seguiram um modelo estrangeiro, vigente em país que considerávamos culturalmente superior ao nosso. Nossos oligarcas jamais se preocuparam em saber se tal modelo podia ou não se adaptar à realidade brasileira.
A Constituição Federal de 1988, tal como as anteriores, principia declarando que “todo poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único). Infelizmente, porém, trata-se de afirmação meramente retórica. Em todo o curso de nossa História, o povo jamais exerceu um poder efetivo, contentando-se em ser mero figurante do teatro político.
Em homenagem à moderna democracia direta, já em vigor em alguns países do Ocidente, os constituintes brasileiros decidiram adotar os institutos do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular legislativa (art. 14). Mais adiante, porém, no art. 49, inciso XV, fizeram questão de precisar que, entre os poderes da “competência exclusiva do Congresso Nacional”, inclui-se o de “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, a Constituição Brasileira vigente criou uma espécie original de mandato político, no qual o povo mandante somente pode manifestar legitimamente suas declarações de vontade, quando obtém o consentimento do mandatário.
Quanto ao projeto de lei de iniciativa popular, o art. 61, § 2º, da Constituição exige que seja ele “subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Ora, quando os grupos oligárquicos perceberam que tal exigência podia ser cumprida, não tiveram dúvidas: fizeram com que a Câmara dos Deputados impusesse o requisito formal do reconhecimento de firma de todos os signatários do projeto; o que tornou, na prática, impossível o cumprimento da norma constitucional. Resultado: até hoje, nenhuma lei exclusivamente de iniciativa popular foi votada em nosso país.
No tocante à chamada “democracia representativa”, inaugurada pela classe burguesa dominante na Europa e nos Estados Unidos no final do século XVIII, e aqui instaurada constitucionalmente, ela se funda, na verdade, em grosseiro equívoco, agudamente denunciado por Rousseau:
A Soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não pode ser alienada: ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa de forma alguma: ela é a mesma, ou é outra; não há meio-termo.
Em suma, como afirmou com razão Sérgio Buarque de Holanda, a democracia em nosso país sempre foi “um lamentável mal-entendido”. Eis a razão principal do medíocre respeito que têm merecido os direitos humanos no Brasil: da mesma forma que a soberania popular, as declarações constitucionais de direitos humanos têm sido, em grande parte, retóricas, pois o seu respeito efetivo pressupõe uma limitação ao exercício do poder na sociedade; o que contraria frontalmente o sistema de dominação capitalista.
Se o esquema de poder político, como se vê, segue fielmente o padrão dissimulatório capitalista, os valores fundamentais que moldam a mentalidade coletiva não são outros, senão aqueles desde sempre sustentados pelos grupos dominantes, e que acabam permeando a consciência popular. Até meados do século passado, entre nós, o poder de formar a mentalidade coletiva foi predominantemente exercido pela Igreja Católica, intimamente associada aos órgãos estatais, através da instituição do padroado (instituição eclesiástica que vigorou nos países ibéricos e consistia na atribuição ao monarca da organização local da Igreja Católica). Por isso mesmo, a pregação eclesiástica sempre enfatizou como pecado grave o desrespeito da “ordem pública”, entendida como a completa submissão de todos os fiéis às autoridades políticas, com a consequente aceitação, sem ressalvas, do conjunto das instituições econômico-sociais, inclusive a escravidão.
Atualmente, a inserção dos valores capitalistas na consciência coletiva é feita, sobretudo, por intermédio dos meios de comunicação de massa, cujos principais veículos — grande imprensa, rádio e televisão — estão submetidos ao controle de um oligopólio empresarial.
Como tive ocasião de sustentar (COMPARATO, 2014, p. 44), em agudo contraste com o que ocorreu em todas as civilizações anteriores, na civilização capitalista sempre predominou a moral do egoísmo, sendo a busca incessante do interesse material de cada um a finalidade última da vida. Aristóteles, é verdade, já havia reconhecido que, contrariamente à moral prevalecente em sua época, “a maior parte da humanidade prefere o ganho material à honra”. Na civilização capitalista, contudo, vai-se mais além: ser rico é ser honrado e respeitado pelos pobres. Duas características desse espírito egoísta marcaram profundamente a sociedade brasileira em todos os seus aspectos: o individualismo e o privatismo.
Sérgio Buarque de Holanda, entre outros intérpretes clássicos da realidade brasileira, caracterizou o nosso individualismo pela tibieza do espírito de organização, fruto da ausência de solidariedade e, portanto, de coesão social. Tal foi, na verdade, o resultado em nosso meio de uma estrutura patrimonialista fortemente dissociativa. De um lado, a grande massa dos pobres só é, por assim dizer, ajuntada pela força do patrão ou do governo, o grande patrão impessoal. Já a minoria rica e poderosa, até hoje, mantém-se unida tão-só para a defesa de seus privilégios patrimoniais e posições de mando. Garantidos estes, cada empresário procura
dominar seu concorrente, a fim de lograr o monopólio do mercado. De onde a tradicional ausência em nossa sociedade do espírito republicano; ou seja, a constante submissão da vida pública à esfera privada.
Duas instituições históricas moldaram profundamente o espírito privatista do poder político e dos costumes sociais no Brasil: a escravidão e o latifúndio. Entre seus múltiplos efeitos, a perdurar ainda hoje, está a convicção arraigada na mentalidade coletiva de que negros e pobres não têm propriamente direitos subjetivos, mas podem eventualmente gozar de favores pessoais, concedidos pelos patrões ou chefes políticos.
A escravidão (de indígenas autóctones e dos africanos para aqui importados como mercadorias) e seus horrores foram tratados em outro artigo. Mas vale registrar, aqui, que ainda hoje persiste o costume de escravizar trabalhadores, sobretudo no meio rural. Ano após ano, a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho resgatam quase um milhar de pessoas que trabalham em situação análoga à do escravo. Mas não consta que algum dos proprietários rurais que utilizam essa mão de obra cativa tenha sido denunciado pela prática do crime definido no art. 149 do Código Penal (redução à condição análoga à de escravo).
A escravidão de negros deixou profundas marcas na mentalidade coletiva e nos costumes políticos do nosso povo. Em nenhum outro país do hemisfério ocidental a escravidão legal durou tanto tempo: quase quatro séculos. Ela fez com que a relação social de comando e obediência se fundasse costumeiramente na força ou no dinheiro, em lugar do livre consentimento. No seio da multidão dos pobres de todo gênero — os nascidos “para mandados e não para mandar”, conforme a saborosa expressão camoniana (Os Lusíadas, Canto V, versos 1211/1212) —, nunca houve propriamente a garantia de direitos subjetivos, com a consequente exigência legal do cumprimento de uma prestação em favor do seu titular.
Em 5 de junho de 2014, foi finalmente promulgada a Emenda Constitucional nº 81, cuja proposta tramitou no Congresso Nacional durante 15 anos. Ela alterou a redação do art. 243, caput da Constituição, determinando o confisco das propriedades rurais e urbanas onde for localizada a exploração de trabalho escravo. Até o momento, porém, que eu saiba, essa norma constitucional não foi aplicada uma única vez, em razão do imenso poder, exercido pela classe dos grandes proprietários rurais e pelas empresas exploradoras do agronegócio, sobre os órgãos oficiais encarregados de aplicar essa medida punitiva.
O sistema latifundiário - A exploração das terras agrícolas em grandes unidades autárquicas surgiu desde cedo na Península Ibérica, durante a dominação romana. Eram os latifundia. Eles foram depois, no curso do século XV, sob a denominação de senhorios, instalados por Portugal nas ilhas atlânticas para a produção do açúcar de cana. Foi essa, justamente, a época em que teve início o tráfico regular de africanos como escravos para a Europa, pois esse tipo de exploração agrícola exigia forte contingente de mão de obra.
A partir dessa experiência desenvolvida nas ilhas atlânticas, Portugal decidiu transportá-la para o Brasil, logo no início da colonização, sob a forma de capitanias hereditárias. Costuma-se qualificá-las como modalidades de feudalismo, mas o instituto do senhorio dele difere radicalmente. O feudalismo implica a existência de uma relação vassálica de natureza pessoal, fundada na homenagem (do latim bárbaro hominium ou homagium) e na fidelidade (fides); ao passo que o senhorio era simplesmente uma posição dominante sobre os servos ou clientes, estribada na posse de terras. O senhor, além dos poderes econômicos decorrentes da propriedade, gozava, ainda, de prerrogativas políticas, como a jurisdição sobre todos os que viviam em suas terras, o direito de portar armas e o de cobrar tributos. Enquanto, na sociedade predominantemente feudal, as pessoas, embora em posição desigual, mantinham relações de direitos e deveres recíprocos, a sociedade predominantemente senhorial foi toda estruturada em torno do poder do proprietário (dominus), diante do qual não havia propriamente sujeitos de direito, mas simples dependentes.
Tendo em vista o insucesso da experiência das capitanias hereditárias, Portugal optou por criar o regime de sesmarias, instituto criado por uma lei de 1375, e destinado a combater a grande crise agrícola desencadeada na Europa com a irrupção da peste negra. Graças à precoce organização da economia colonial no sentido da monocultura agrícola dirigida à exportação, o território brasileiro foi partilhado em grandes domínios rurais, cujos proprietários concentravam em sua pessoa a plenitude dos poderes, tanto de ordem privada como política, assim como os de natureza civil, como os de índole eclesiástica. Pode-se afirmar, sem risco de exagero, que do senhor dependiam o presente e o futuro de todos os que viviam no território fundiário, fossem eles familiares, agregados, clientes ou escravos. “O ser senhor de engenho”, disse Antonil em sua obra de 1711, “é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor
de engenho, quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino”. E ainda: “Quem chegou a ter título de senhor, parece que em todos quer dependência de servos”.
O regime latifundiário está na origem do costume aqui institucionalizado de privatização do espaço público. É que a grande propriedade rural brasileira, submetida a um regime quase autárquico, era uma espécie de território soberano, onde o proprietário, como nos latifundia romanos, fazia justiça e mantinha força militar própria, para defesa e ataque. Entre o senhor e as autoridades do Estado, à imagem do que ocorre no plano internacional entre as diferentes nações, estabeleciam-se relações de potência a potência, fundadas na convenção bilateral de que o Estado se comprometia a respeitar a autonomia local do senhor, ao passo que este se obrigava a manter a ordem na região, emprestando à autoridade pública o concurso de seus homens de armas para a eventual guerra contra o estrangeiro, ou a episódica repressão aos levantes urbanos.
A consequência inevitável dessa privatização do espaço público foi a ausência de um verdadeiro sistema de justiça, pois o seu funcionamento pressupõe a existência de uma autoridade pública acima dos particulares; inexistindo aquela, estes últimos não têm propriamente direitos subjetivos, a serem por todos respeitados.
Outra consequência da privatização do espaço público foi a instalação e difusão, em todo o território nacional, do sistema de compadrio e clientelismo. Para o acesso a qualquer cargo público ou, simplesmente, para obter êxito em qualquer demanda junto aos Poderes Públicos — notadamente em matéria de proteção policial ou judicial —, era indispensável o apoio do senhor rural do qual dependia o demandante, de onde vem o conhecido ditado: “quem não tem padrinho, morre pagão”. Inútil dizer que tal sistema invadiu quase que inteiramente o campo da representação política.
Logo após a Independência, a criação da Guarda Nacional reforçou, em todo o nosso território, o poder local absoluto dos grandes senhores rurais, qualificados doravante como coronéis. Entre eles e as autoridades públicas firmava-se um acordo tácito, pelo qual o coronel dava seu apoio político ao governo, que, de sua parte, comprometia-se a nomear as pessoas indicadas pelo coronel, como juízes locais, delegados de polícia, coletores de impostos, agentes do correio e até professoras primárias. Graças a esse acordo, o coronel protegia sua clientela e enfrentava seus inimigos pessoais. Como se sabe, o coronelismo perdurou largamente na política brasileira após a proclamação da República, e subsiste até hoje. Foi ele um dos principais obstáculos à existência efetiva, entre nós, do Estado de Direito, em que todos, governantes e governados, submetem-se ao império da lei. Aliás, uma expressão muito usada entre nós pelos chefes políticos bem expressa essa realidade: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.
Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Jornalistas escritores do Nordeste refletem sobre o livro-reportagem
Por Alexandre Zarate Maciel | Coluna Prosa Real
Nesta e nas próximas duas edições, a coluna irá apresentar, em primeira mão, os resultados da pesquisa “Jornalistas escritores de livros-reportagem no Nordeste: perfis profissionais, obras e rotinas produtivas”, coordenada pelo autor e desenvolvida em conjunto com cinco acadêmicos do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – campus de Imperatriz (MA), entre março de 2018 e julho de 2020. Ao todo, foram entrevistados 21 escritores de seis estados nordestinos: Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará, Maranhão, Alagoas e Pernambuco. Eles falaram sobre as suas condições específicas de produção, longe das grandes editoras e, muitas vezes, do sucesso de público nacional, mas com importante contribuição para a interpretação mais cuidadosa de fatos regionais. A proposta original era a de abarcar o universo de escritores de todos os nove estados nordestinos, porém, a partir de uma pesquisa exploratória inicial, percebeu-se a necessidade de se descartar os estados do Piauí, da Paraíba e de Sergipe por dificuldade de contactar com os autores e também pela escassez de obras escritas e publicadas por jornalistas nativos nessas regiões. Nesse primeiro recorte, apresentamos as opiniões dos entrevistados a respeito da primeira linha de força da pesquisa, que trata do acervo do conhecimento adquirido no jornalismo e aplicado ao livro-reportagem. O objetivo principal era saber quais são as suas técnicas pessoais para lidar com os entrevistados e fontes documentais, além dos fatores que os motivaram a ingressar nesse universo.
“Acho que a principal motivação é a paixão”: a concepção do livro-reportagem
Antes de o livro se tornar um produto final na mão do leitor, ele passa por diversos processos para torná-lo palatável para o grande público, e, quando se trata de um livro-reportagem, os crivos e critérios adotados anteriormente à publicação se tornam ainda mais rígidos, pois existe a apuração, a hierarquização de informações e uma investigação criteriosa que o jornalista, nesse momento se desdobrando como escritor-autor, deve percorrer parar tratar do elemento humano presente em suas obras. O entrevistado Sérgio Maggio, jornalista baiano autor de Conversas de Cafetinas, com relatos dessas personagens, contou que o tema foi algo imprescindível para ele: “A ideia de um tema de livro-reportagem passa por diversos aspectos, diversos crivos, mas eu acho que o principal é a motivação, é a paixão, é o desejo de se instigar por aquele tema, isso é fundamental porque é algo desgastante”. A insatisfação com o cotidiano da profissão motivou o escritor alagoano Jorge Oliveira a escrever a obra Curral da morte: “Os meus temas estão nitidamente relacionados à minha carreira no jornalismo investigativo. Eu nunca me conformei com a primeira versão dos fatos quando eu era um repórter da área policial”. Já o escritor baiano Jorge Gauthier, autor de Irmã Dulce: os milagres pela fé, acrescentou que, “na produção para a redação, é preciso seguir prazos mais curtos e hierarquias do jornal. No livro, sou eu. Não é mais fácil. Sou exigente comigo mesmo, e a complexidade vem a partir daí. Ser o próprio editor é uma dádiva perversa”, comparou. Porém, as heranças trazidas de outras vivências além da faculdade, como a da redação, por exemplo, tiveram sim um grande impacto na construção dos livros dos autores entrevistados. O jornalista baiano Tiago Bittencourt, autor de O Raul que me con-
taram – A história do Maluco Beleza, relatou que suas experiências como repórter e documentarista foram cruciais para o processo de estruturação e escrita do livro: “Seja como repórter ou como produtor, a gente precisa pensar como dar o algo a mais, a informação a mais, a imagem mais bonita. Então, essa experiência foi bastante interessante e culminou no livro”. A redação também representa uma espécie de escola para a prática do jornalismo literário, que, para a entrevistada maranhense Andrea Oliveira, que escreveu João do Vale: mais coragem do que homem, é o “namoro” do jornalismo com a literatura: “É contar histórias. O que eu faço quando eu escrevo, mesmo quando estava no jornal, eu sempre gostei disso, de contar histórias e acho que esse é o nosso papel”.
“Você tem uma responsabilidade maior ao produzir um livro-reportagem”
A questão tempo foi o que mais fez a diferença entre a redação e a produção do livro-reportagem. Os entrevistados têm perfis profissionais bem parecidos, em sua maioria, por já terem trabalhado em redação. O escritor do Rio Grande do Norte Luan Xavier, autor de A bruxa e as vidas de Marinho Chagas, sobre um ex-jogador de futebol, pontua as principais diferenças entre a prática de produção de um jornal e de um livro: “O que muda com o livro é que você tem mais tempo para produzir, você tem mais espaço para escrever e vai ter uma vida útil maior daquele produto. E, principalmente, você tem uma responsabilidade maior, porque o livro não se esgota no outro dia nem no outro mês nem no outro ano”. Essa opinião se complementa com a visão do escritor alagoano Odilon Rios, autor de Alagoas, 200, sobre a história do estado, que acrescentou: “No livro-reportagem, o tempo está a favor do jornalista. Como hoje as redações estão meio que resgatando o passado da apuração mais rigorosa e tempo mais largo, o livro-reportagem acaba se contaminando, e muito bem, por essa proposta”. Com base nas respostas dos autores entrevistados, notou-se que os diálogos com os personagens para produzir os livros-reportagem surgiam, em muitos casos, de conversas triviais, sem necessariamente possuir um padrão de entrevistador-fonte, como no jornalismo diário. A baiana Lícia Loltran, autora de Famílias homoafetivas – A insistência de ser feliz, relatou que é necessário ter sensibilidade e perceber se o entrevistado está ou não à vontade para falar: “Tem gente que você já sabe, coloca o gravador na frente da pessoa, contou a vida toda, igual é o meu caso, mas tem gente que é muito mais fechada. Então, para essa pessoa, não perguntei nada, só falei com ela normal, mas não falei que queria entrevistá-la”. Nas próximas duas edições do Prosa Real, o leitor continuará acompanhando esse rico debate sobre o universo do livro-reportagem.
BITTENCOURT, Tiago. Entrevistadora: Viviane Reis Silva. Imperatriz: entrevista por
WhatsApp Áudio. [15/04/2020]. 1 arquivo .mp3. (27 min 75s).
GAUTHIER, Jorge. Entrevistadora: Viviane Reis Silva. Imperatriz: entrevista por e-mail. [01/06/2020]. 1 arquivo .doc.
LOLTRAN, Lícia. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. Imperatriz: entrevista por Skype [12/04/2019]. 1 arquivo .mp3 (1h 16min).
MAGGIO, Sérgio. Entrevistadora: Viviane Reis Silva. Imperatriz: entrevista por WhatsApp Áudio. [08/02/2020]. 1 arquivo .mp3. (12 min 57s).
OLIVEIRA, Andrea. Entrevistador: João Marcos dos Santos Silva. João Lisboa: entrevista presencial [11/10/2019]. 1 arquivo. Mp3 (53 min 53s).
OLIVEIRA, Jorge. Entrevistadora: Ana Carolina Campos Sales Imperatriz: entrevista por WhatsApp Chamada de Áudio. [29/04/2020]. 1 arquivo .mp3. (59 min)
RIOS, Odilon. Entrevistadora: Ana Carolina Campos Sales. Imperatriz: entrevista por WhatsApp. [30/01/2020]. 1 arquivo .doc.
XAVIER, Luan. Entrevistador: João Marcos dos Santos Silva. João Lisboa: entrevista via Google Meet. [18/07/2020] 1 arquivo. Mp3 (42 min).
Em parceria com: Ana Carolina Campos dos Santos, Gislei Nayra Soares Moura, João Marcos dos Santos Silva, Viviane Reis Silva, Yanna Duarte Arrais.
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) – campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.
O retorno à comunicação onomatopaica assíncrona
Por Lílian Márcia Chein Féres
O século XX acenou para a necessidade de convergência cultural, até mesmo porque uma maneira própria de processar informações, assim como a ideia de que se algo poderia ser inventado deveria ser feito, nasceu no século XIX e culminou na Revolução Industrial. Nesse período, surgiram as invenções que deram substância à expressão “revolução nas comunicações”. A fotografia e o telégrafo na década de 1830, a prensa rotativa à energia nos anos de 1840, a máquina de escrever na década de 1860, o cabo transatlântico em 1866, o telefone em 1876, o cinema e a telegrafia sem fio em 1895.
O telégrafo e o telefone foram não somente necessários, mas grandes aliados para lidar com o grande fluxo de energia e matéria-prima nas fábricas, para controlar grandes massas de trabalhadores e para encaminhar a distribuição dos produtos.
Antes do telégrafo, a informação era procurada como parte do processo de compreender e resolver problemas particulares e só podia mover-se com a velocidade do trem: a cerca de 50 km/hora. Além disso, tendia a ser de interesse local. O telégrafo removeu o espaço como um embaraço inevitável ao movimento da informação e, pela primeira vez, o transporte e a comunicação se libertaram um do outro (POSTMAN, 1992: 76). A telegrafia instigou, pois, o segundo estágio da revolução da informação.
Já a fotografia fez com que se iniciasse o terceiro estágio da revolução da informação: a revolução gráfica. No final do século XIX, uma imagem valia não apenas mil palavras, mas, em vendas, milhares de dólares. Juntas, telegrafia e fotografia abriram o caminho para uma nova definição de informação.
Com a cultura ocidental ofegante, ocorreu o quarto estágio da revolução da informação, a radiodifusão. E depois, o quinto: a tecnologia do computador, que ganhou este nome devido a sua função de computar. Inicialmente foi apenas mais uma ferramenta inventada para que se pudesse gravar e transmitir códigos ou símbolos de representação do conhecimento humano. Hoje, interligado aos sistemas de telefonia, tem como tarefa comunicar.
Conforme POSTMAN (1992), cada uma dessa invenções trouxe consigo novas formas de informação, quantidades de informação sem precedentes e velocidades aumentadas. Giovannini (1987) já afirmava que o computador é o protagonista do nosso tempo, justamente por não ser apenas um calculador no sentido literal da palavra. Também elabora a informação, na acepção mais ampla do termo. Ciência e tecnologia avançaram e temos na palma da mão um aparato tecnológico que nos permite acessar vários bancos de dados, graças aos sistemas de comunicação a distância integrados, como Internet.
Vista como uma aldeia global, permite aos usuários interagirem e comunicarem de forma síncrona. No entanto, percebe-se um processo de retorno à chamada comunicação assíncrona de outrora e muito baseada em linguagens onomatopaicas.
Quando falamos de linguagem, referimo-nos a demarcação, significação e comunicação. Portanto, todas as práticas humanas são tipos de linguagem, visto que têm a função de demarcar, significar e comunicar (KRISTEVA, 1969, p.14). Mas o que é linguagem? É uma questão difícil de ser respondida, pois a linguagem varia conforme a época e a civilização. Segundo Kristeva, torna-se necessário “seguir o rastro do pensamento que, através dos tempos e antes mesmo da constituição da linguística como uma ciência particular, esboçou as diferentes visões da linguagem”.
Mas “como é que a linguagem pode ser pensada?” Seja na época antiga ou moderna, apresenta-se como um sistema complexo, onde se misturam problemas de ordem diferente. Ela tem, ao mesmo tempo, um caráter espiritual e material, em que o segundo se caracteriza por ser a linguagem uma cadeia de sons articulados, uma rede de marcas escritas ou um jogo de gestos. E desta materialidade enunciada ou articulada, temos a produção e expressão do pensamento.
Na medida em que a linguagem é a matéria do pensamento, é também o próprio elemento da comunicação social, pois não há sociedade sem linguagem e sem comunicação, seja esta verbal ou não verbal. A linguagem é um processo de comunicação entre dois sujeitos falantes, onde um é o destinador ou emissor e o outro, o destinatário ou receptor. O destinador é, ao mesmo tempo, emissor e receptor da sua própria mensagem, assim como o destinatário também o é, na medida em que envia uma mensagem decifrando-a e não emite nada que não seja capaz de decifrar. O destinador-decifrador só decifra na medida em que pode dizer aquilo que ouve (na sociedade onomatopaica, lê). Percebe-se que este circuito de comunicação nos leva a um domínio complexo do sujeito, assim
como da sua constituição em relação ao outro, da sua maneira de interiorizar esse outro para, então, confundir-se com ele. Assim, por ser complexa e diversa, a linguagem precisa da análise de outras disciplinas, como a psicanálise.
A psicanálise se vale da linguística para entrar no processo do inconsciente. Donde Jacques Lacan (1966) afirmar que as coisas do mundo podem ser substituídas pela linguagem. Ora, a significação é sempre provisória e remete a outra significação, sendo, portanto, preciso pensar o sujeito em sua formação especular. Na relação especular – e, também, narcísica – espectador/telefone celular, entra em cena o tecnonarcisismo, ou seja, um poder, nova forma de controle social que funciona por efeito de fascinação e de persuasão. No caso do telefone celular (vídeo, voz e emojis), o que se produz sob a forma de simulacro é o “desejo” de persuadir o outro.
Comunicação onomatopaica – Embora este mundo conectado seja caracterizado por inteligência distribuída em toda parte, continuamente valorizada e sinergizada em tempo real, percebe-se uma substituição da comunicação síncrona, outrora tão ansiada, pela comunicação assíncrona e não verbal (emojis e linguagem pictórica), que muito se assemelham à forma de comunicação dos comics, baseadas em onomatopeias.
Nessa comunicação imagética, temos um devir da comunicação que busca nas histórias em quadrinhos a expressão artística constituída por dois tipos de linguagem: a gráfica (imagem) e a verbal (texto). Do ponto de vista técnico, a HQ recorre a meios específicos para apresentar os diálogos: balões, apêndices e símbolos diversos. Outro recurso é a onomatopeia: a representação gráfica dos sons. Embora não se saiba ao certo quando surgiu a onomatopeia, segundo pesquisas de Moacy Cirne, o exemplo mais antigo encontrado de ruídos nos comics é o da estória assinada por Winsor McCay (08/12/1907) – Little Nemo in slumberland – na qual podemos ver os sons ZZZZ, UH, UMPH, BOOM (CIRNE, 1972, p.31). Saliente-se que o ruído é mais visual do que sonoro e os desenhistas estão sempre à procura de novas expressões gráficas, na medida em que o efeito de um buum ou um crash, ao ser relacionado de modo conflitante com a imagem, é acima de tudo plástico.
De acordo com Roland Barthes, as onomatopeias atingem uma linguagem universal, apesar de regidas por modelos fonológicos que diferem segundo as línguas (CIRNE, 1972, p.31). Sabe-se que uma boa onomatopeia (temática, gráfica e/ou plástica) está para os quadrinhos assim como um ruído bem utilizado está para o cinema (Godard, Antonioni, Kubrick, Tati). Por vezes, a transcrição dos ruídos chega a ser um elemento pictórico. As sílabas sonoras incham-se, adelgaçam-se ou desfiam-se para sugerir intensidade. Este processo é usado nas histórias consagradas aos automóveis, onde se pode ver páginas inteiras com os vrooooooooooooooooom e os scriiiiiiiiiiiiiiiiiiiim se estendendo em bandeirolas por sequências inteiras, de forma a indicar a velocidade dos bólides.
As letras também são usadas como artifício para expressar os sentimentos das personagens, além de indicar o que elas dizem ou pensam. Primeiramente, temos o conteúdo discursivo ou explicativo, em que o personagem se exprime com a ajuda de palavras ou frase, como qualquer pessoa. Já o conteúdo subjetivo, caracteriza-se por letras que tremem, esfiapam-se, diminuem ou aumentam de volume, conforme os sentimentos do emissor.
A HQ se assemelha ao cinema mudo ao expressar o som através de um meio visual. Cabe salientar que o humor desempenha uma função importante na escolha e na ortografia - muitas vezes anglo-saxônicas – dos vocábulos: crash, bang, crack, poinng, bing, bong, smack, clic, ding, argn, gulp. Os comics criaram um código verbo-voco-visual que dispensa qualquer explicação: vela, estrelas, sino = tive um destes choques; ponto de interrogação = o que é que se passa; balão vazio = já não sei o que dizer ou pensar; caveira e duas tíbias = tenho pensamentos homicidas.
O texto-figura constitui outra extensão do escrito e se exibe em letreiros, chapas de automóveis e placas indicando a direção. Nos quadrinhos também encontraremos o som, porém representado graficamente. O tipo de balão em que se insere um diálogo, um pensamento ou um som em off determinará a intensidade com que deveria ser ouvido. O estilo das letras – grandes ou pequenas, em grifo, normal ou negrito – também contribuem para induzir o leitor a perceber o timbre, o tom, a maneira como o som deveria ser, se fosse possível ouvi-lo de fato. Aqui, exige-se uma sensibilidade muito aguçada por parte do leitor, pois toda a significação está contida tão somente em imagens.
Essa explanação mostra como a comunicação via Whatsapp, Telegram, Viber, Messenger (e outras aplicações mobile para conversas) em muito se assemelha às linguagens das HQs e, ademais, vem perdendo terreno para a comunicação em tempo real, ou seja, tornando-se cada vez mais assíncrona em tempos que a tecnologia, mais do que outrora, permite uma comunicação síncrona.
Lílian Márcia Chein Féres é Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, bacharel em Comunicação Social pela FACOM/UFJF, membro do LabCom da Faculdade de Artes e Letras da UBI e doutoranda em Ciências da Comunicação pela UBI/Portugal.
Crise do jornalismo e possíveis soluções no contexto da internet
Por Ana Célia de Sá | Coluna Comunicação na Web

O jornalismo tem passado, nos últimos anos, por uma crise que envolve questões econômicas, editoriais e de credibilidade. O ambiente on-line tem servido de palco para esse processo, uma vez que remodelou os modos de produção e de difusão de conteúdos informativos, tornados mais interativos e participativos com a cooperação do público ativo, além de multidirecionais, com propagação em canais diversos e em múltiplas direções. A disseminação de notícias falsas (fake news) e a atmosfera de pós-verdade na rede também influenciam essa crise.
As plataformas de redes sociais são bons exemplos desse cenário. Dada a natureza relacional, elas expandem o espaço social da informação em produtos multimidiáticos, que naturalmente agregam comentários dos usuários e incentivam a formação de redes de comunicação. Isso é perceptível em fanpages jornalísticas no Facebook, nas quais os veículos de comunicação postam notícias, e os usuários se expressam, agregam informações e geram conversações afins, utilizando as ferramentas disponibilizadas pelo site para complementar suas ações.
Para Christofoletti (2017), a crise do jornalismo tem diversas vertentes. “Vejo a crise de forma mais ampla. Não é apenas uma crise financeira, uma situação que coloca em xeque a sustentabilidade do negócio jornalístico. É também uma crise de confiança (que afeta a credibilidade do jornalismo como instituição), uma crise de governança (que atinge a forma como estabelecemos a gestão dos empreendimentos jornalísticos e sua relação com os públicos e demais grupos interessados) e uma crise existencial (que recai sobre o papel do jornalismo nas sociedades complexas contemporâneas)” (CHRISTOFOLETTI, 2017, p. 111).
Esses aspectos são agravados pelo crescimento da indústria da desinformação, alimentada pelas notícias falsas, usadas para deliberadamente manipular, enganar ou manobrar o público em benefício de interesses particulares. Junto a isso está a pós-verdade, situação na qual os sen-
timentos, as opiniões e as crenças pessoais se sobrepõem aos fatos perante a opinião pública, favorecendo causas e grupos específicos e desarticulando valores democráticos e direitos coletivos. A credibilidade jornalística e os seus princípios de qualidade são, assim, desafiados.
“É como se a verdade não estivesse mais ancorada na razão, mas na emoção. Mas nós nos acostumamos, há séculos, a vincular a verdade a um sistema lógico, racional, apoiado em certezas construídas por provas. Por isso é que chamam de pós-verdade, como se a verdade não mais importasse. A propagação cada vez maior de notícias falsas ajuda a minar a confiabilidade nesse sistema de verdade que tínhamos até então. Passamos a desconfiar das instituições, e o jornalismo também é afetado por isso. Então, as notícias falsas abastecem um sistema de pós-verdade, o que pode trazer consequências ruins para muita gente” (CHRISTOFOLETTI, 2017, p. 115, 116).
O uso de algoritmos também interfere nessa situação. Apesar de promoverem rapidez, precisão e automação de tarefas cansativas, os sistemas computacionais têm sido utilizados majoritariamente para filtragem extrema de informações e difusão dirigida, ações que desembocam na restrição da liberdade do usuário em nome de interesses econômicos, políticos e culturais de grupos da elite. Uma consequência é a formação de bolhas, que minam a diversidade de olhares sobre o mundo, ferindo um dos mais importantes compromissos do jornalismo e contrariando uma condição essencial para a formação de uma sociedade mais justa e acolhedora.
Christofoletti (2017) ressalta a necessidade de o jornalismo buscar formas para sanar as suas crises, como novos modelos de negócios, retomada da credibilidade, gestão horizontalizada e transparência de procedimentos. “Se o jornalismo sofre também de uma crise existencial, e que lhe impele a questionar qual seu papel na sociedade, teremos todos que responder a isso, dando um lugar para o jornalismo e delegando a ele um conjunto de tarefas para fazer jus ao seu estatuto social” (CHRISTOFOLETTI, 2017, p. 122).
Para contornar a situação de instabilidade, o jornalismo e os seus agentes precisam compreender o contexto digital, adaptar-se e também inovar por meio de valores, modelos, processos e técnicas capazes de manter o seu protagonismo na sociedade da informação. Tudo isso precisa estar em sintonia com os anseios da vida contemporânea, os quais incluem o reposicionamento do público, que ganha maior espaço na construção da notícia; a convergência midiática, que ultrapassa a tecnologia e reverbera em questões culturais quanto aos modos de produção e fruição de conteúdos; a remodelação espaço-temporal da rede, vista como desterritorializada e instantânea; entre outros aspectos.
O contrato social estabelecido entre jornalismo e público, baseado em critérios éticos e democráticos, ainda mantém a confiabilidade dessa atividade profissional quanto à mediação e à interpretação do mundo social na atualidade. Entretanto, a continuidade dessa relação depende das formas como o jornalismo conduzirá suas rotinas de produção noticiosa para enfrentamento da crise.
REFERÊNCIAS
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Jornalismo: crise de confiança, reposicionamentos em relação ao público e a busca de credibilidade. In: SILVA, Fernando Firmino da; SOUSA, Joana Belarmino de; NUNES, Pedro (Orgs.). Escutas sobre o Jornalismo. João Pessoa: Editora do CCTA, 2017. [e-book]. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ancora/ article/view/40091/20127>. Acesso em: 22 mai. 2020.
Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
Covid-19 e Política Econômica no Brasil e na China
Por Joyce Helena Ferreira da Silva
Entre os dias 14 e 16 de outubro, foi realizado o III Encontro da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina), organizado pelo Instituto de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O sucesso do evento e a consolidação da RBChina demonstram o crescente interesse de estudantes e pesquisadores a respeito do país asiático, a despeito do contexto sinofóbico gerado a partir das estruturas político-institucionais brasileiras, marcadas na pela liderança rudimentar e preconceituosa do presidente da República.
Naquela oportunidade, foi possível tratar a respeito das políticas econômicas, colocadas em marcha no Brasil e na China, para a inversão dos efeitos da pandemia. Na esteira dessa leitura, colocou-se a relevância de se atentar para os limites e o esgotamento das políticas fiscal e monetária, dado o atual estágio do processo de acumulação capitalista, cujo centro dinâmico está projetado na esfera das finanças. Tal discussão será reproduzida neste texto.
O pós-pandemia poderia ser discutido como um exercício de observação das tendências históricas do capitalismo, em uma tentativa de compreender quais as possibilidades ou impossibilidades de ação, colocadas no âmbito do próprio sistema. De modo geral, o instrumental à disposição do Estado, para gerenciamento das flutuações sistêmicas, ainda tem um recorte predominantemente keynesiano. Isso significa que, em momentos de crise, o Estado deve realimentar o sistema, através de políticas fiscal e monetária expansionistas, a fim de que a demanda agregada possa dinamizar o mercado. Tal configuração parece ser ponto de descanso entre diversos economistas, das mais variadas correntes teóricas, em períodos de turbulência.
Neste texto, serão colocadas em perspectiva as ações postas em marcha por Brasil e China, na tentativa de contenção da crise, apontando as divergências entre os dois modelos adotados. Posteriormente, avaliar-se-ão os elementos que podem conduzir, especialmente nos quadros do neoliberalismo, ao esgotamento dos efeitos dessas medidas. Em especial, será abordada a tendência intrínseca de queda da taxa de lucro no sistema capitalista, a qual, na etapa financista, agrava a desigualdade social e, pela via do endividamento, reduz a margem de manobra da política econômica.
A primeira questão que se coloca, para o entendimento da ineficiência da ação brasileira no combate à crise econômica atual, é o engessamento ideológico da equipe econômica. A Escola de Chicago pressupõe que os mercados são sempre eficientes e que o mecanismo de preços é suficiente para lidar com as possíveis flutuações econômicas. Ocorre uma remoção das classes sociais do modelo, e se impõe a argumentação de que os indivíduos são idênticos (agente representativo), não sendo possível distinguir entre um banqueiro e um trabalhador no mercado A referida teoria também revela que não haveria assimetria de informações e que os agentes econômicos, dotados de racionalidade, aprenderiam com o passado (STIGLITZ, 2010).
Essa breve apresentação de pressupostos é suficiente para que se chegue à primeira conclusão monetarista a respeito da política fiscal: a mesma teria um efeito nulo. Já que os indivíduos aprendem com as experiências anteriores, seria possível identificar que uma elevação dos gastos públicos teria como resultado um crescente déficit, posteriormente financiado por uma elevação da carga tributária. Diante desse cenário, a política expansionista não conduziria ao efeito multiplicador keynesiano, ou seja, não seria suficiente para promover uma ampliação da demanda agregada, em especial, o consumo das famílias e o investimento privado.
Esses atores também compreendem que o governo pode ser comparado a uma família, argumento frequentemente utilizado como padrão também nos veículos de imprensa. Por essa lógica, assim como para as famílias, o endividamento é algo negativo, que faz com que o desequilíbrio financeiro se propague e se retroalimente ao longo do tempo. O que essa perspectiva não distingue é que o investimento público, necessariamente, será um fator gerador de receita para o próprio Estado, movimento que não acontece no caso da estrutura familiar.
Através desses breves apontamentos, já é pos-
sível perceber uma indisposição da atual equipe econômica, orientada por tais pressupostos, em ampliar o gasto público. Em verdade, os limites à ação do Estado estão colocados, no Brasil, desde o estabelecimento do Plano Real, o qual tem como um dos seus tripés o estabelecimento de um superávit primário que não distingue a qualidade e o objetivo desses gastos. Em resumo, são três as âncoras que não permitem que a ação estatal possa se erguer em toda a sua estatura: (i) resultado primário; (ii) regra de ouro; (iii) teto de gastos.
Diante desse quadro, o governo levou adiante as seguintes ações: medidas fiscais que somam 12% do Produto Interno Bruto (PIB); estabelecimento do orçamento de guerra (o que desobriga da meta primária para 2020); auxílio emergencial; antecipação do 13º para aposentados e saque emergencial do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Pelo lado da política monetária: diminuição da taxa básica de juros; redução do compulsório e ampliação da liquidez (FMI, 2020).
Essas medidas apresentam uma série de problemas. O cenário brasileiro é agravado pela ampliação da informalidade, que atinge mais de 40% da população, e pela ineficiência das medidas adotadas, em especial, pelo lado monetário. O “empoçamento” dos recursos no sistema financeiro, bem como as exorbitantes taxas de lucro obtidas pelos bancos em meio à pandemia, demonstram os limites de uma agenda voltada aos ganhos financistas.
A China apresenta uma configuração completamente contrastante, o que já se concretiza em sua excepcional recuperação no último trimestre. A política econômica é mais exitosa no contexto chinês tendo em vista a grande capacidade estatal; o consequente maior controle sobre as flutuações econômicas; a elevada quantidade de bancos públicos, comprometidos com a agenda de desenvolvimento nacional; e dada a política monetária voltada, diferentemente do caso brasileiro, para o estímulo à economia real.
De modo concreto, os chineses aplicaram cerca de 4,6 trilhões de remimbis (RMB) em políticas fiscais, divididas em: aumento dos gastos com prevenção e controle de epidemias; produção de equipamentos médicos; desembolso acelerado do seguro-desemprego; redução de impostos e uso intensivo de investimento público. Este último, gerido e ancorado em grandes empresas estatais. Pelo lado da política monetária, a China ampliou a liquidez do sistema, em especial, irrigando financeiramente as micro e pequenas empresas (FMI, 2020).
Finalmente, diante desse breve panorama, coloca-se a urgência de se pensar os limites do sistema capitalista, em sua configuração neoliberal, dado o nível de financeirização vigente desde a década de 1970. Em uma tentativa de escapar da tendência de queda da taxa de lucro, optou-se por um modelo de acumulação centrado nas finanças, o que reforça a ampliação do exército industrial de reserva, de superexploração do trabalho e de criação constante e insustentável de crédito. O mecanismo de endividamento tem colocado sérias amarras à ação do Estado e às possibilidades de expansão da demanda agregada, fazendo com que se coloque no horizonte a urgência de uma ruptura severa com esse modelo de acumulação.
REFERÊNCIAS
STIGLITZ, J. E. O mundo em queda livre. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Joyce Helena Ferreira da Silva é Doutora em Ciência Política e pesquisadora associada do Instituto de Estudos da Ásia (UFPE).