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A Revista Dasartes (ISSN 1983-9235) é uma publicação da Indexa Editora Ltda ME.
Capa: Kourtney Roy,
Les Rencontres d’Arles
A Bienal do Sertão possui em seu arcabouço original dois eixosdevínculoexpositivo:um Contemporâneo, com obras selecionadas por edital livre e deartistasconvidados;eoutro, o eixo Histórico, formado por instituições museológicas ligadas ao campo do saber e arqueologias materiais e imaginárias.Ademais,mantêm desde a primeira edição parceriascomUniversidadese centros de pesquisa e extensão, com a colaboração de galerias de arte, casas de cultura,residênciasartísticase demais organismos ligados às artes visuais dentro e fora do país.
Por isso, desde o começo da Bienal, corresponde-se toda ediçãocomumtemaespecífico ponderado para cada região, pensando-a de maneira itinerante por causa da vastidão do território a abranger, pelas suas peculiaridades e, último mas não menosimportantes,pelassuas paisagens diferenciadas: naturais,sociais,culturais.
•OPaçodasArtescelebra55 anos com o chamamento relâmpago ,abertode26/9a3/10. A coletiva propõe diálogos sem hierarquias, valorizando a diversidade eaproduçãocontemporâneaautoral. Podem participar artistas maiores de 18 anos, sem representação comercial, com um trabalho bidimensionaloutridimensionaldeaté 1 m x 1 m. Regulamento disponível no sitedainstituição.
• Pesquisadores da Universidade Adam Mickiewicz (Polônia) identificaram a cabeça em mármore, encontrada em 2003 nas ruínas de uma casa em Quersoneso, Crimeia, como sendo da matrona romanaLaódice.Elafoihomenageada com uma estátua após articular a concessão da à cidade em 140 d.C., direito que garantia autonomia administrativa, jurídica e tributáriasoboImpérioRomano.
• O autorretrato (1940), de Frida Kahlo, vai a leilão em novembronaSotheby’sdeNovaYork, estimado entre US$ 40 e 60 milhões. A obra pode se tornar a mais cara já vendida de uma artista, superando Georgia O’Keeffe e o próprio recorde de Kahlo com (1949). Pintado em meio a dores pessoais, o quadromostraaartistanacamasoba ameaçadeumesqueleto.
• A Baró Galeria abre em Paris no dia 24 de outubro, na Galerie Véro-Dodat, próximo à Bolsa de Comércio. A inauguração acontece durante a efervescente semana de arte da cidade, que inclui a Art Basel e a abertura da nova sede da Fundação Cartier. O espaço será ponto de encontro para colecionadores, curadoreseamantesdaarte.
12GalerieVéro-Dotad,75001,Paris
• A artista Panmela Castro apresenta , no Les Jardiniers,emMontrouge,comoparte da Temporada Brasil-França 2025. Com curadoria de Maybel Sulamita, a mostra reúne 15 pinturas inéditas sobre mulheres negras do Brasil, França e Senegal, como Lélia González,CarolinaMariadeJesus,Safi Faye e Josephine Baker, recontando suas trajetórias em uma perspectiva contemporânea.Até31/10/2025.
A WMF Martins Fontes lança , livro que apresenta a trajetória da artista mineira Naira Pennacchi. Organizado por Mario Gioia, reúne mais de 30 trabalhos e traz textos de Ana Avelar e Bianca Coutinho Dias. A publicação revisita a pesquisa da artista sobre ancestralidade,paisagensinterioranaseexperimentações empintura,emsuportesquemesclamtradiçãoelinguagem contemporânea.
• WMF Martins Fontes • 256 páginas • R$ 200
Histórias reais, de Sophie Calle, ganha nova edição pela Relicário com 66 narrativas e fotografias — 27 a mais que a versão de 2009, hoje peça de colecionador. Obra em constante expansão desde 1994, o livro mistura artes visuaiseliteratura,revelandocamadasdavidaeintimidade da artista. Cada edição é única, reafirmando a ideia de que nossas histórias nunca são fixas ou definitivas.
66 RELATOS •
Relicário Edições • 152 páginas • R$ 89,90
Renato Valle, publicado pela Cepe Editora, reúne a trajetória e a obra do artista pernambucano em 292 páginas, incluindo exposições e oito textos críticos. Organizado de forma não linear, o livro apresenta desenhos, pinturas, gravuras e esculturas, revelando a visãodeVallesobrevidaesociedade.Aobramostracomo apráticaartísticadoautoréinseparáveldesuaexperiência e vocação.
Tudo, em São Luís do Maranhão, conspira ao devaneio: até olhar ao céupelosenfeitesdeSãoJoão–as bandeirinhaspenduradaspelasruas do centro histórico que ficam também umas semanas após as festas juninas acabarem, é uma experiência estética. Única capital brasileira fundada por franceses,em1612,desde1997,São Luís do Maranhão é Patrimônio Mundial da Unesco, alegadamente ao seu excepcional conjunto arquitetônico colonial português, com milhares de edificações históricas dos séculos 18 e 19, das quais a maioria revestida com os tradicionaisazulejos.Eénaqueleque semprefoichamadodePalaceteda rua Formosa que, a partir de agosto de 2026, abrirá o primeiro Museu NacionalBrasileirodosAzulejos,cuja reforma está sendo guiada pela historiadora Kátia Bogéa, já presidente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e superintendente na capital do Maranhão.
“No Maranhão, temos mais de seis mil imóveis tombados: é realmente difícil a manutenção de um centro histórico como esse, ainda mais quando ele perde a centralidade. Mas isso acontece em todas as nossas cidades: Rio de Janeiro, Salvador,Recife,Belém.Ascidades mineiras até conseguem, mas é outra escala, porque são menores”
– relata Kátia Bogéa e complementa: “Este palacete foi construído utilizando a técnica da gaiola pombalina, criada pelos técnicos reunidos pelo Marquês de Pombal após o terremoto de Lisboa, em 1755, formalizando o que se tornou uma solução antissísmica e, simultaneamente, muito leve. Isso permitiu criar moradias de forma veloz, já que São Luís, outrora, estava num processo econômico muito forte devido à produção do algodão.”
Do Palacete da rua Formosa, está-se recuperando tudo, na medida do possível, tendo bem em vista que montar um museu dedicado à azulejaria não é tarefa comum: “No maior centro de azulejos do mundo, que é a nossa capital, teremos dois museus: um lá fora, com um acervo inacreditável de azulejos em péssimo estado, e esse, o primeiro Museu Nacional no Maranhão, que, espero, trará [...] outra consciência e percepçãodacomunidadeemrelação à preservação do acervo ao ar livre”, acrescenta Bogéa, explicando também os recursos de cerca de R$ 31milhões,captadossobaleiRouanet para dois projetos - o primeiro com o BNDESeoInstitutoCulturalVale,para a reforma do prédio; o segundo, para a montagem do Museu em si.
Anovainstituiçãoexporámaisdetrês mil peças, entre painéis comprados mundo afora em vários leilões – um acervo que vai do século 9 até o 19 –,
uma seção dedicada à cerâmica brasileira,deVolpiaAthosBulcão,euma área contemporânea, além de uma oficina de restauração, biblioteca, residência artística e uma fábrica de biscoitos de azulejo para os artistas usarem como suporte. Entre os primeiros nomes que terão obras no futuro Museu, estão Adriana Varejão, cujo projeto em escala monumental abrirá o percurso de visita em conexão com um grande lustre de HumbertoCampana,eThiagoMartinsde Melo, artista maranhense atualmente protagonista de uma grande exposição dividida entre o ex-Convento das Mercês e o espaço da residência artística Chão, criada em 2015 pelo mesmo Thiago com Samantha Moreira, enquanto um núcleo de obras em pequenoformatoseencontra,também, na Galeria Lima, no bairro São Marco. Thiago teve uma escolha apurada ao realizar essa individual na sua própria cidade natal, patrocinada pelo Will Bank, banco que nasceu em 2017, pioneiro ao focaremumpúblicocommenosacesso aocrédito,oferecendoumacontadigital completa.Hoje,commaisdedezmilhões de clientes em todo o país, o Will Bank está investindo ativamente no suporte cultural de iniciativas que se desenvolvem fora dos grandes centros das regiões Sul e Sudeste; o apoio à reforça a importância de enraizar a criação artística em seus territórios de origem, como já acontece com a parceria que o
banco assinou com o Balé Folclórico da Bahia (BFB) e o São João de Campina Grande, na Paraíba, cujo suporte começou exatamente em 2025.
“Demoramosdoisanospararealizaresse projeto muito ambicioso. Thiago já foi convidado,entreoutras,paraaBienalde São Paulo, a de Dakar, a das Amazônias e a Bienal de Lyon, na França; expôs nas melhores galerias do Brasil e afora, mas, para construir essa exposição em São Luís, era preciso alinhar os astros: percebe-se,aqui,umaenergiaincrível,só que falta infraestrutura, falta investimento,faltamosparceiroscertos.
Dessa vez, conseguimos”, relata o curador Germano Dushá.
Intitulada , em colaboraçãocomaLima–representante do artista –, a mostra inclui mais de vinte trabalhos realizados de 2013 a 2025 – a maioriadosquaisjánoacervodegrandes coleções–,colocandoemfocodetalhes da trajetória de Thiago, enfatizando o próprio uso fantasmagórico da pintura para relatar camadas e camadas de histórias que misturam políticas atuais e antigas, encantarias e esoterismo, símbolos e imagens que pertencem à crônica do mundo.
“OtítulodessaexposiçãodeThiagoveio propriamente de suas modalidades de trabalho; de gênesis, de criação, de criações de mundo, de clarões oníricos sempre com muita fúria, irracional, caótica: é tudo ao mesmo tempo, o tempo todo”, ressalta o curador.
A não esquecer, no ex-Convento das Mercês, (2013),talvezamais impressionanteteladaexposiçãotoda:uma pintura de grande formato, repleta de camadas tanto pictóricas quanto simbólicas, a relatar um teatro cósmico onde entram temporalidades e histórias diferentes, do Brasil ao mundo, de acontecimentos políticos e raciais, naquela que – escreve Germano Dushá – “é uma espiral de opressão, dor, libertação e reinvenção”.
“A criação de Thiago pode ser lida por váriossentidos:cosmológico,astronômico, mas também pelas formas de sujeitos completamente envolvidos em questões sociais. Contudo, mesmo falando de questões brutais, ainda mantém um lado espiritual: essas idas e vindas dão ao trabalho um aspecto permanentemente interdimensionaleintertemporal”,finalizao curador.
No entanto, no Chão, na rua do Giz, “um disparador de encontros que, há mais de dez anos, movimenta a cena cultural da capital levando e trazendo artistas do Maranhão para outros lugares e viceversa”, conforme as palavras da gestora Samantha Moreira, vale a pena destacar a tapeçaria (2023): uma técnica bem diferentequeultrapassaaexpansãogótica da pintura de Thiago Martins de Melo, por sua vez expandindo uma alegoria onde o povo brasileiro e a natureza avassaladora do país se confrontam com a perpétua lógica opressora que afeta essa geografia desde sua descoberta pelos não nativos.
“Quando fundamos o Chão em um casarão histórico perto do Mercado Central, a ideia era clara: criar fluxos. O Chão nunca foi só residência. É uma plataforma giratória: artistas, curadores, pesquisadores se misturam. Todo mundo que chegatrazumacontrapartida–oficina,conversa,performance. Éassimqueoconhecimentosetornaumatrocaviva,enãouma mercadoria.Osprojetosnascempropriamentedessecaldo:da relação com o território, das pesquisas sobre o Maranhão profundo,dasparcerias”,continuaSamantha,jogandoumaluz a mais sobre aquela que até agora foi uma das poucas realidades conectadas com o mundo contemporâneo, mantendo as raízes em São Luís: uma herança importante que reverbera também no afeto que a comunidade criativa da cidade reconhece ao projeto. Acabou o roteiro? Nada disso: há bem mais por vir. De fato, MarcoAntonioLima–fundadordaprópriaGaleriaLima–está finalizando o primeiro Instituto Maranhense de Arte
Contemporânea(IMAC),cujaaberturaéprevistaparaofinalde 2027, já que o projeto arquitetônico de restauro do imóvel que receberá o acervo acabou de ser aprovado pelo Iphan. “O Institutocultural,semfinslucrativos,receberáanossacoleção de arte maranhense como doação do casal Marco e Fátima Lima”, comenta o galerista, acrescentando: “Já temos cerca de 350 obras, que alcançam artistas desde 1892 até os dias atuais. Será um Instituto dinâmico, com exposições temporárias, criando diálogo entre o acervo e os artistas contemporâneos. Além da exposição permanente, teremos também uma sala para exposições temporárias e uma residência para pesquisadores que queiram conhecer mais profundamente o universo cultural do Maranhão”. Um projeto ambicioso e, também, um desejo para suprir a escassez que afeta São Luís em matéria de promoção de cultura visual moderna e contemporânea, apesar da forte identidade que pertence aos artistas que aqui vivem e trabalham.
A propósito, um dos fotógrafos cujo trabalho foca no registro da cultura popular e religiosa dos afrodescendentes no Brasil, especialmente no Estado do Maranhão, é Márcio Vasconcelos. Em suas séries, a –comoéconhecidaSão Luís e seus arredores – mostra a própria atitude de homenagear e cultivar a herança de cultos originários. Pela lente crua do fotógrafo,eisqueencontramosos encantados do , –projeto inspiradonahomônimaobra-prima do poeta Ferreira Gullar (nascido em São Luís), vencedor do XIV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia,em2016,ea , investigando os lugares de Pajés de Negro, religião praticada na Baixada Ocidental, na borda oeste do Estado. Entre muitosoutros,MárcioVasconcelos retratou também as maravilhosas indumentárias e as cerimônias do Bumba meu boi da floresta, no bairro da Liberdade – quilombo urbano da cidade, criado por Mestre Apolônio e hoje gerido por Nadir Cruz –, que nos conta quão importante é para a comunidade a ação do próprio terreiro, criando sabedoria e possibilidade de emprego: “A cultura popular é ferramentaparaasalvação”,relata Nadir no dia do nosso encontro, 14
“ “
deagostode2025,mesmadatana qual o Bumba meu boi recebeu a certificaçãodePatrimônioCultural ImaterialdaHumanidadepeloIphan junto com o Governo do Estado. Mais uma artista que de São Luís vai ao mundo é Gê Viana, entre os protagonistasdapróximaBienalde São Paulo, mas não só: a partir do dia 30 de agosto, a Pinacoteca exporá o filme ,umainvestigaçãosobre as interligações que unem fé espiritual e música : “puro suco”daculturavibrante,híbridae miscigenada do Maranhão. Para finalizar esse breve elenco, olhos para Romildo Rocha, pintor maranhense que começou como muralista e hoje trabalha em pequeno e médio formato, retratando de uma forma aparentemente irônica o dia-a-dia do povo, entre crenças e lutas, misturando sagrado e profano, cenas cotidianas de desentendimentos ou constrangedoras, objetos, marcas de roupa e moto, letreiros e paisagens, em uma misturadecoreseexpressõesque incendiam o imaginário.
Aquele mesmo imaginário conectadoaossaberesancestrais eàforteculturaindígenaquemora aqui: não à toa, o Maranhão não somente é o segundo Estado mais negro do Brasil, é a terra dos encantados:valeapenaumavisita
à Casa das Minas, templo de tambor símbolo da tradição Jeje, fundado nos anos 1840 por Maria Jesuína, possivelmente a rainhaNãAgontimédoDaomé,trazidacomoescravadoBenin, e ainda hoje governado por mulheres, já que apenas elas incorporam voduns, embora a última iniciação tenha ocorrido em 1914, marcando o destino final dessa realidade. Imperdíveis,emumanoitedeterça-feiranaFontedoRibeirão, ou numa quinta, na Ladeira do Comércio, a roda de : marcada pela percussão de três tambores diferentes por tamanho e, claro, por som; homens e mulheres podem colocarumasaiaedançarnaquelaqueeraumaantigadevoção a São Benedito, também padroeiro da cidade de São Luís. Um enredo folclórico que se junta também à comida e ao artesanato, a descobrir no antigo Mercado das Tulhas,
localizado no coração antigo da cidade, a poucos metros de três pequenos museus que, por sua vez, contam de outros encantados daquela que é a ilha que os nativos tupinambás chamavamde ,istoé,ilhagrande:oGastronômico, o do Tambor e, mais um a não perder, o do . Reza a lenda que o ritmo de Bob Marley foi trazido a São Luís pormeiodemarinheiroseporondascurtasderádiodoCaribe, aolongodadécadade1970.Umaculturaquehojenãosomente “ecoa”nasruasdocentrohistórico,massoadeverdade,pelos ritmos que transformaram o Maranhão na Jamaica do Brasil e o norte-americano em maranhense. A melhor combinação dos trópicos.
Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Trabalha com as revistas italianas ArtsLife e Il Giornale dell'Arte, e também colabora com a portuguesa Umbigo Magazine.
Rencontres Les
No cenário global atual, onde crises antigas e novas se entrelaçam, a tecnologia se apresenta como uma força disruptiva e progressista, mas também como motivo de preocupação. Conflitos geopolíticos e humanitáriossemultiplicam,enquanto a crise climática, a instabilidade econômica e a ascensão do nacionalismo se consolidam dia após dia. Diante desse panorama, pode a arte emergir como voz e agente de transformação?
Qualquer manifestação artística é, de certa forma, um gesto rebelde, um movimento espontâneo ou calculado, que pode desafiar a linearidade do tempo, a lógica da história oficial e a anestesia coletiva diante das crises contemporâneas.Aartetambémpode questionar o papel das instituições, a influência de governos e as abordagensqueutilizamparalidarcom problemas complexos. É nesse espírito de insurgência que o 56º Les Rencontres d’Arles reúne, de 7 de julho a 5 de outubro de 2025, um arquipélagodeolharesinsubordinados de158artistasefotógrafosdediversas nacionalidades, com destaque para a presença vibrante de brasileiros. A presenteedição,intitulada ( ), surgecomoumfarolnasantigasvielas da pequena cidade no sul da França, para abordar, com sensibilidade e coragem, as incertezas de um mundo em turbulência.
A direção artística de Christoph Wiesner e a diretoria-adjunta de Aurélie de Lanlay, ao celebrarem o Brasil e a Austrália, ecoam uma tendência global de deslocar o eixo da narrativa artística do Norte para o Sul, como visto na última Bienal de Veneza,sobadireçãodobrasileiroAdrianoPedrosa.Ofestival se apropria dessa perspectiva, não para impor um olhar exótico, mas para construir uma “tradução cultural” que enxerga na fotografia um “instrumento de resistência, testemunho e transformação social diante das crises contemporâneas”. A imagem, aqui, não é um mero registro, mas um ato de presença, uma ferramenta para reescrever a história e reivindicar o futuro.
Aparticipaçãobrasileiraéumdospontosaltosdoevento,com exposições que desvendam camadas de memória e
resistência. Em , uma nova e audaciosa geração de artistas lida com fotografia, vídeo, colagem e inteligência artificial para reinterpretar arquivos visuais e tradições. O título da mostra, que tem curadoria de Thyago Nogueira, atualmente coordenador da área de Fotografia ContemporâneadoIMS,fazreferênciaaolivrodolíderindígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro Ailton Krenak, que propõeumfuturoconstruídoapartirdoselementosessenciais dopassado,emoposiçãoàideiaocidentaldeprogressolinear. Osartistas,com“ironiaferozeimaginaçãoradical”,segundoo textocuratorialdaexposição,contestameremontamhistórias oficiais para denunciar a violência contra comunidades afrobrasileiras, indígenas e LGBTQIA+.
MelissadeOliveira(2000,RiodeJaneiro),porexemplo,explora oscortesdecabelocomoumaformadecomunicaçãosecreta e subversiva entre negros escravizados. Já Yhuri Cruz (1991, Rio de Janeiro), com a fotonovela Jongo e Adriano, resgata a históriadepersonagensdoromance ,deAna MariaGonçalves,parausarasimbologiadafugacontraaprisão dos corpos, dos sentimentos e desejos durante o Império, tendocomopanodefundoumadasmaioresrevoltasdaépoca, a dos Malês.
Ainda sobre o amor, (2024), de Mayara Ferrão (1993, Salvador), traz uma série de fotografias geradasporIAdemulheresnegraseorigináriasemmomentos afetuosos. Mergulhando em arquivos da escravidão, a artista de Salvador constrói um universo de especulação. Ela desafia oregistrocolonialaoquestionar:eseessasmulherestivessem tidoachancedeamaremplenitude?Suapesquisaéumatode imaginação que busca resgatar a possibilidade desses afetos silenciados.
Outra joia do Brasil em Arles é a exposição Claudia Andujar –, que se dedica a um período pouco conhecido da fotógrafa e ativista nascida na Suíça, em 1931. AntesdededicarseutrabalhodevidaaosYanomami,Andujar produziuumcorpodetrabalhomarcantenasdécadasde1960 e 1970. A mostra nos guia pelos primeiros passos de Claudia Andujar(1931,Neuchâtel,Suíça)pelafotografiarevelandocomo ela, marcada pelos traumas do Holocausto, inseriu-se em diferentes realidades sociais e construiu laços com comunidades em situação de vulnerabilidade. Também é possível notar tanto sua inspiração na fotografia humanista, o modo como procurou, por meio de experimentações, ir além do simples registro realista da imagem e seu interesse pela natureza e por questões ambientais.
Do outro lado da cidade, a exposição
reúne o trabalho de 33 artistas e fotógrafos e nos leva a uma viagem pela nossa fotografia modernista(1939-1964)eopapel do Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB). Conhecida como a Escola Paulista, o grupo revolucionouafotografiadeSão Pauloaocapturaravelocidade,a fragmentaçãoeasmudançasde escala da cidade em transição. Artistas como German Lorca (1922-2021), que se projetaram paraalémdoclube,eGeraldode Barros (1923-1998), com sua série , ilustram a quebra de paradigmas. O trabalho de Barros, que explorava o aspecto escultural das imagens e culminou no (1952), foi um catalisador para o Concretismo no Brasil, mostrando a intersecção fértil entre a fotografia e outras vanguardas artísticas. Além deles, também participam da exposição Gertrudes Altschul (1904-1962), Alice Brill (1920-2013), Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004), entre outros.
Mas é em que a voz do Brasil emerge com uma ternura arrebatadora. A exposiçãocelebraotrabalhodos mineirosJoãoMendes(1951,Iapú) e Afonso Pimenta (1954, São PedrodoSuaçuí),doisfotógrafos que, ainda adolescentes (João aos 15, Afonso aos 13), começaram a registrar a vida da comunidade da Serra, em Belo Horizonte. O curador e artista GuilhermeCunhaconcebeuessa mostra como um tributo a um arquivo monumental de 250 mil negativos, que agora convida o público europeu a refletir sobre a evolução do olhar e um legado culturalquepermaneceuinvisível para a maioria. Longe do exotismo, o trabalho da dupla revela um cotidiano vibrante e uma identidade construída por e para os próprios moradores. O conjuntoofereceumcontraponto essencial à história oficial do Brasil,dandovisibilidadeàsvidas, lutas e conquistas de uma população que raramente aparece nas narrativas hegemônicas. Suas imagens são testemunhos de uma das muitas experiências latino-americanas, capturada de dentro para fora, e se apresentam ao público europeu como um complemento vitaletocanteàcompreensãoda história recente do país.
Durante a visita guiada com o trio, Cunha proferiu uma reflexão profunda sobre o papel da arte: “É preciso que a gente se permita sentir e ver o mundo pelo olhar do outro, é isso que vai nos salvar enquanto humanidade nestes tempos sombrios”. A frase ecoa a de Édouard Glissant, poeta da Martinica, a de que é no encontro, e não no isolamento,queresideanossasalvação.A arte,então,torna-seumatodeacolhimento para o que é invisível e desprezado, uma formadetrazernovasideiasdebelezaedar vozaumacomunidadequeseconstróicom basenaeducação(são23escolasnoMorro da Serra) e na solidariedade.
A homenagem a Sebastião Salgado, que partiu recentemente, é um dos momentos mais solenes do festival, ressoando por entre suas feridas abertas. A memória do fotógrafo foi celebrada em duas ocasiões durante a semana de abertura, com a presença de Lélia e Juliano Salgado, sua esposa e filho. A primeira, na noite de 8 de julho, durante a abertura do festival, e a segunda, no dia 10, por ocasião da entrega do Prix Pictet. Salgado foi um homem de profundas contradições, e sua obra, que capturou as mazelas e a beleza da humanidade,éumconviteàreflexãosobre a própria existência. Ele documentou tragédias e injustiças, como a destruição ambiental, a fome, e os fluxos de refugiados. Suas fotografias, embora chocantes, nunca traíram a dignidade daqueles que retratou. Elas são a celebração de um trabalho marcado por uma profunda humanidade e um poderoso compromisso social.
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E como o tema central é a desobediência,nãopoderiafaltar Nan Goldin (1953, Washington, EUA), a premiada fotógrafa que revolucionou o gênero do retrato com sua franqueza, recebeu o prêmio e a primeira noite de projeção noturna–umdosmomentosmais aguardados do festival – foi dedicada a ela. Na ocasião, em tom irônico, Goldin declarou: “Uma vez, um homem me disse que uma mulher nunca seria uma boa artista ou fotógrafa e aqui estou. E, embora eu mal consiga andar,sinto-mehonradadeainda me sentir uma mulher em movimento”.
A frase se torna ainda mais pungente quando, em seguida, Goldinpediusilêncioparamostrar imagensdeGazaediscursarcom firmeza ao lado do escritor Édouard Louis, pedindo o fim do genocídio.SegundoaAlJazeera, são1.300civisisraelensesmortos em contraponto aos 61.258 palestinos – sendo 17.492 crianças – desde outubro de 2023eatéoiníciodefevereirode 2025,alémde152.045feridos.As autoridadesdeGazaafirmamque o número real pode ser maior, pois há milhares de pessoas desaparecidas sob os escombros.
Aartista,quejáhaviaseposicionadosobreoconflito na abertura desua retrospectiva emBerlim,voltoua alertar para a confusão entre antissionismo e antissemitismo, algo que, segundo ela, “é convenienteparaIsrael,mastornaocrescimentodo antissemitismo real ainda mais perigoso”. Quando uma pessoa da plateia gritou em defesa de Israel, o restante do público retrucou com gritos de Free Palestine, em um momento de solidariedade que mostrou como a arte pode ser um espaço de confrontação e mobilização política. “De quem é a vida que importa?”, ela disse em resposta.
Emummundoassoladoporguerras,crisesmigratórias e mudanças climáticas, a arte e a fotografia nos convidamairalémdovisível.“Aqui,afotografianãose limitaaumolharexotizante:elainscreveoalémemuma dinâmica de troca e ‘tradução cultural’”, diz o texto curatorial,eéexatamenteissoquevemosnestaedição. Desdeo conflito da “Guerra da Lagosta”, entreFrança e Brasil de 1961-63, que é o tema da exposição com curadoria de Jean-Yves Jouannais e da artista brasileira Mabe Bethônico, até as reflexões sobre as crises migratórias na exposição U.S. Route 1, o festival nos mostra que as crises são interconectadas e a fotografia pode ser um instrumento para entendê-las.
Aarte,comseulirismoesuarebeldia,podenosoferecerentão umanovamaneiradehabitarestemundo.OcuradorGuilherme Cunha, ao final de sua apresentação durante a visita em Retratistas do Morro, que se estendeu bem além do tempo previsto,brincou:“Nuncadeixemumbrasileirosozinhocomum microfone na mão, isso aqui pode levar muitas horas pois adoramos contar uma história. Ok, tô brincando. Na verdade, maisoumenos”.Aaudiência,comumrisocúmplice,entendeu um pouco da essência do “jeitinho brasileiro” ali: cada imagem carregaemsiumahistória,umafeto,umaespontaneidadeque transcende a experiência visual. E parece ser nesse modo da vida, que se encontra a esperança de um mundo maisplural,maishumano,emaisconectadoemsuadiversidade.
Thais Gouveia escreve sobre arte e é assessora de comunicação cultural. Publicou textos críticos em veículos nacionais e internacionais. É formada em Tecnologia e Mídias Digitais com especialização em Arte pela PUC-SP e estudou Crítica de Arte na Central Saint Martins University of the Arts (Londres). Atuou como coordenadora de comunicação em galerias de arte e museus e, em2024,fundousuaprópriaassessoriadecomunicação:aTabulaComunicação.
Mariana Palma
O título também evoca a passagem através do espelho, comoimaginadaporLewisCarroll, em seu famoso romance . – nesta exposição do MON, os espelhos são as “transparências”dasobras–pode ser interpretado como uma metáforaparaaautodescobertae o confronto com o inconsciente. É uma exploração da passagem de um mundo racional para um mais absurdo e ilógico, cujas regras usuais são invertidas e onde o homem poderia – talvez – se libertar da realidade. Mariana Palma nos confronta com a relatividade de Einstein, em que tempo e espaço não oferecem mais pontos de referência fixos. O que permanece estável? Apenas “o fio dos meus pensamentos”. Mariana nos convida a penetrar nos meandros da consciência de Alice, ou seja, “em algum lugar entre minha memória e minha imaginação”. Suas composições, seja em suas pinturas, instalações fotográficas sobre véu ou projeções, são feitas de temas reconhecíveis, mas, reunidos dessa forma, criam um novo mundoqueestimulaaimaginação.
Sobre , obra central da mostra, Mariana comenta: “A obra tem um lugar muito especial nessa exposição. Ela foi um pontodevirada,quaseumensaiogeraldoqueviriadepois.Nela, eucolocodoistecidossobrepostosdefrenteaumacaixacom água e espelhos, o que forma uma espécie de caixa de luz perpendicular – um cinema ao avesso – criando uma imagem a partir do reflexo da cintilância e que está sempre se deslocando. É como se ela respirasse, e a luz que dela emana vaitomandotodaaabóbodadomuseu,conduzindoaexposição. Elaacabousetornandoocentrodamostra,nãosófisicamente, masconceitualmentetambém.Apartirdela,fuiorganizandoos outros trabalhos como desdobramentos – uns mais silenciosos, outros mais intensos, todos dialogando com essa ideia de imagem como aparição. Pensei cada núcleo da exposição como um ambiente sensorial, que o visitante atravessa – como o título já sugere. Tudo vai se revelando aos poucos,comoquemmergulhaemumtecidoevaiencontrando outras camadas, outras paisagens.”
A SÉRIE
Mariana é uma das grandes artistas que exploraram a transparência em suas obras. Entre eles, Francis Picabia é conhecido por suas transparências da década de 1920, sobreposições de imagens inspiradas na pintura antiga. Em 2016-2017, com , por meio de um jogo de cores, projeções, reflexos, transparências e contrastes, tanto internos quanto externos, Daniel Buren mostrou o edifício da Fundação Vuitton de Frank Gehry ,em Paris, sob uma nova luz. Mariana aborda as imagens com as quais vem compondo há muitos anos, folhas e flores de todas
as idades, elementos empurrados pelas marés, tecidos, azulejos...queelasobrepõe.Emboraaperspectivanãosejaseu tema, o espaço de suas obras permanece profundo. Como as diferentes imagens que ela encena, que deslizam umas sobre as outras, não têm conexão ou lógica aparente, seu encontro levanta enigmas que buscamos resolver. Automatismo do inconsciente?Aplicaçãodoprincípiopoéticodarimaàsformas visuais? As de Mariana, feitas de figuras que secruzam,sãoumailustraçãodessaabordagemdamecânica mentalcomoefeitodamemóriaedodesgaste.Sãoimbróglios de imagens pirateadas com a graça botticelliana.
A série , de Mariana Palma, comunica a sensação que a artista cria em suas telas. Em uma instalação apresentada em um grupo deárvoresemfrenteàentradadoMON para o projeto “MON sem parede”, em 2022, e hoje na escada da torre do museu, o espectador é convidado a participar e se ver em meio às cenas produzidas. Para além das justaposições conseguidas pela composição e pela distância entre os tecidos, o público se torna mais um elemento da obra. O caminho criado poreentreostecidosabrecaminhose convites para acessar novas percepções e visões de uma mesma obra que se mistura com quem a observa e com o espaço.
Na “cachoeira” (de verdade, a artista não nomeou a instalação) que desce em cascata pelos andares da torre do Olho, no espaço central da escada, há umacataratadenaturezas-mortasque desfilam de cima para baixo, criando uma vertigem e contribuindo para o mistério geral dessa exposição. Para confundir ainda mais a questão, a artista extinguiu todas as cores para manter apenas o azul, transformando essa série em um fluxo vertical que parece sugar toda a história da arte e, sem dúvida, como uma piscadela poética e áspera para os efeitos das mudanças climáticas.
Sobre o tema central de sua obra, a artista confidencia: “A natureza sempre foi muito central no meu trabalho, desde o começo. Mesmo quando não estava pintando diretamente flores ou elementos naturais, havia uma relação com o orgânico, com o crescimento, com o corpo como paisagem. Mas foi ali pelos anos 2000, com as aquarelas, que essa presença da natureza se intensificou. Depois, nas fotografias e nas pinturas mais recentes, ela veio com mais força ainda – mas não mais como uma representação literal, e sim como matéria poética. Folhas secas, frutos, animais, líquens, poeira, tudo entra como um repertório que fala da vida e da morte, da transformação.”
ComfortereferênciaaVanitas,umestilodepinturaproduzido entre os séculos 16 e 17, no qual as composições procuravam provar a transitoriedade da vida, misturando símbolos de efemeridade e morte, essa instalação das escadas e as 19 pinturas da sala do Olho de Mariana Palma exploram esse espaço de memória presente e póstuma. Mariana Palma cria espaços pictóricos únicos, construídos pela justaposição de elementos de famílias distantes. Nas grandes telas de cores saturadas,azulejosconvivemcomfolhagens,cortinasdeteatro com flores, tecidos estampados, drapeados e desfiados. Elementos naturais e artificiais geram híbridos improváveis. O
resultado são composições inesperadamente harmônicas e enigmáticas que, ao causar certo estranhamento, convidam o espectadoratomartempoparaaobservação.Acontemplação revela indícios genéticos. O , a dramaticidade, a exuberância emocional, a vitalidade, a construção do movimento e o uso de texturas contrastantes e materiais luxuososrevelamodiálogocomapinturabarrocadosséculos 16 e 17, evocando reflexões sobre a sensualidade, a efemeridade da beleza, o bombardeio de imagens da atualidade. O uso de cores puras remete aos pintores flamengos,enquantoossutisefeitosperspectivossugeremo domínio da lição renascentista.
Chamamos de barroco aquilo que é irregular, singular, bizarro. O artifício ganha uma autonomia quenãotinha.Aoanalisaromodocomoaimagem barroca foi construída, descobrimos não o modo comoarealidaderealmenteaparece,masomodo como todas as imagens das coisas, mesmo as naturais, mesmo as sensoriais, são construídas como conjuntos, segundo princípios que não são os da estrutura da coisa representada, mas os da fabricaçãodeimagens,tantoqueoprópriomundo emquevivemosparecesedissolveremumasérie de imagens que não correspondem a nada para além delas. Essa é uma das sensações que o visitante terá no MON ao visitar essa exposição, que abraça os volumes do Olho e as escadas da torre que a ele conduzem.
Afilosofiabarrocapermiteesseconhecimentodo caráter funda-mentalmente ilusório do mundo, graças ao qual poderíamos perceber racionalmente a necessidade de buscar nossa salvação em um ato que, por sua vez, não admite mais justificação racional.
A crítica barroca das aparências as restitui a si mesmas. Um jogo inteiramente novo se abre, no qual essas aparências produzem seus efeitos, referindo-se perpetuamente umas às outras em seu próprio plano, sem reivindicar o poder de manifestar algo além de si mesmas. São mil possibilidadesdeoutrasaparênciasqueessejogo barroco de imagens evoca com os mil efeitos que seu jogo produz constantemente. Não é esse prazer filosófico de conhecer as aparências por si mesmas, pelo jogo de sua construção, de suas complexas referências mútuas, que, em última análise, caracteriza, concretamente, a obra dos grandes artistas barrocos?
“O universo do Barroco me pegou desde cedo – tanto o europeu quanto o nosso, o mineiro. Sempre me impressionou esse excesso, essa dramaticidade e, ao mesmo tempo, essa delicadeza dos detalhes, da luz, da sobreposição”, completa Mariana, “Minha relação com o Barroco é menos como uma referênciadiretaemaiscomoumaatmosfera.Eumeinteresso por essa construção do excesso, pela tensão entre o visível e oinvisível,entreosublimeeogrotesco.Obarrocomeensinou a pensar a imagem como algo que transborda – que não se contém em si mesma. E isso aparece nas minhas obras nos detalhes, nas camadas, na luz, nos volumes que se insinuam mesmo na bidimensionalidade.”
A exposição , de Mariana Palma, é de tirar o fôlego. A artista explorou os espaços mais desafiadores da arquitetura de Oscar Niemeyer – o Olho, a escada e uma das salas inferiores da curva descendente do Olho – para nos dar uma aula magistral sobre sua visão da natureza, um estilo barroco decididamente contemporâneo que abrirá o mais amplo espaço possível à imaginação dos visitantes.
Marc Pottier é francês, radicado entre o Brasil e a França, é curador internacional de arte contemporânea, especializado em arte em espaços públicos. Ele também está envolvido com plataformas digitais culturais, televisão e webtv. Hoje é curador da Usina de Arte, um parque de esculturas perto de Recife, e da A.Galeria, novo espaço cultural de Florianópolis. Pertence ao Núcleo Curatorial do MON (Museu Oscar Niemeyer) em Curitiba e é o coordenador internacional do projeto do Pompidou-Paraná.
Frank Bowling
“Esta pintura foi inspirada em uma experiência pessoal. Em meados dos anos 1950, eu morava em um porão decadente e caindo aos pedaços em Londres, tentando escrever poesia. Um dia, ouvi gemidos e gritos vindos deumapartamentovizinho,osom de alguém em extrema dor. Fui verificar e encontrei uma mulher em trabalho de parto, prestes a dar à luz. Corri para chamar uma ambulância e, quando eles chegaram, a criança já havia nascido! Durante anos, especialmente no início dadécadade1960,quandoeuestavaprestesametornarpaipela primeira vez, fiquei obcecado por como as crianças vêm ao mundo e por noções de existência em geral. Sentia que isso era algo extremamente importante – você sabe, entrar no mundo dessa forma tão dolorosa e caótica – e eu tentava pintar isso. Asminhasinfluênciasnaépocaeramosgrandesmestres–Goya, Rembrandt,Velázquez–,artistaspreocupadoscomaexperiência humana.Euqueriausarumaabordagemreconhecidamentefísica para fazer pinturas sobre temas concretos. Era amigo de artistas expressionistas baseados em Londres, como Francis Bacon. Admirava o modo como Bacon conseguia movimentar a tinta; dá para ver essa influência na maneira como o trabalho está emoldurado. Foi então que comecei a me voltar para Ticiano, estudando-o intensamente, e, por meio dessa investigação, descobri maneiras de me abrir e encontrar um caminho para pintar uma obra satisfatória. Poucos anos depois, afastei-me deliberadamente da figuração, levando-me a usar estênceis de mapas e serigrafias que também continham referências à minha mãe e a meus filhos, e, eventualmente, a abandonar totalmente o tema em direção à pura abstração.”
“Fiz esta pintura um ano depois de sair do Royal College, quando estava absorvido por noções de existência, dor e sofrimento.Euhaviatestemunhado um cisne morrendo, coberto de óleo, lutando com suas asas, debatendo-se contra a água do rio. Tentei pintar isso repetidas vezes. Gosto de inventar as coisas “golpe a golpe” – é assim que trabalho – e suponho que esse tenha sido o processo de inspiração para essa obra. Sempre vivi perto do rio Tâmisa, e os cisnes eram muito característicos de Londres. Na época, Kenneth Noland e outros estavam fazendo essas telas em formatos diferentes. Eu fiz isso apenas devido aos cisnes. Queria estruturar a pintura de um modo que o cisne agonizante pudesse ser expresso dentro da geometria da forma em losango, edescobriqueopadrãoemchevroneracomoumaexpressãodo voo. Um amigo meu, o fabricante de chassis Ben Davis, trabalhou comigo para criar o formato da tela. Ele calculou as medidas e
como aquilo poderia funcionar. Ele fez tudo paratornarpossível,eesse é o resultado.
Dividi a tela de várias maneiras usandoinstrumentosmatemáticos, fosse régua ou outro recurso. As penas dessapinturaestavamporperto;euasvianasmargensdoTâmisa, onde costumava caminhar. Pintei o pescoço do cisne e as curvas com muita precisão, e essa precisão também se estendia à forma como trabalhava com as cores – vermelho, amarelo, verde e tons mais escuros. Eu estava muito envolvido nisso na época, e ainda estou. Uso a cor de acordo com as medições e faço referência ao op art, de Bridget Riley, nas seções vermelha e verde. Também usei fita adesiva para criar linhas rebaixadas. Vejo a parte à direita como uma mistura: o interior do cisne. Há muita diferença nessa pintura em termos de separação entre modos distintos de pintar; o branco do cisne se destaca completamente do fundo, e o que está dentro do cisne é algo totalmente diferente. Quando você pinta, as coisas surgem de surpresa.”
“Fiz esta pintura no Salão da Igreja de St. Anselm, que era o ateliê que eu tinha em Kennington, a partir de 1975. Eu usava um aquecedor a gás enquanto estava lá, o que ajudava a secar as pinturas em que trabalhava - era bastante perigoso,masfizalgunsexperimentosarriscados juntocomcoisascorriqueirasnaépocaparaobter esses resultados únicos. O ambiente ao meu redor acabava se misturando às pinturas. O rosa nessa pintura se parece com os tons de rosa que uso nas obras de hoje. Durante os anos 1970, tudo girava em torno das pinturas vertidas, e aqui a cor não vem do pincel - eu usava uma espátula que carregava comigo. Aplicava a tinta diretamente, em sulcos, espremendo-a sobre a tela de certa altura, e depois inclinava a superfícieparadistribuí-la.Essa pintura é um bom exemplo de como eu vertia tinta manualmente e de como ela se movia. Para mim, essa é a inspiração: o movimento da tinta pela tela e as possibilidades disso. A obra ganha vida dessa maneira, consistente com o método. Costumo trabalhar nesses retângulos altos porque, estruturalmente, é algo que me interessa muito. Mazaruni é um rio, e, na Guiana, "tank feet" significava alguém com elefantíase - era apenas o modo como falávamos sobre isso. Tudo isso coexistianatela-eusempregosteidetrocadilhos ("feet"vira"feat"notítulo).Aspessoasacabavam com elefantíase porque praticamente viviam dentro da água e deviam contrair essas doenças transmitidas por ela. Conceitualmente, achei interessante tentar articular isso, e esse é o processo resultante: essas pernas inchadas.”
“O título vem de Crab Island, um lugar no rio Berbice aonde íamos quando crianças. Não era usado para nada, ninguém morava lá, excetoPedro,ocaseirodailha,dequemtínhamosmedo.Eletinha um cachorro que soltava atrás da gente, e o bicho nadava como um demônio, de verdade – podia até vir atrás de você na água. Fiz essa pintura na Maclise House, em Pimlico, onde tive um ateliê no início dos anos 1980. Era um espaço pequeno, e essa obra era bem grande, eu mal conseguia trabalhar nela. Usava pedaços de madeiraqueconseguianodepósito–tinhaunsseis,queespaçava e pregava no chão do estúdio, de modo que qualquer tela que eu estendesse não ficava esticada, mas sim caída ao invés de tensionada,permitindo-meusarpedaçosmaioresdetecido,eisso ajudava a lidarcomo espaço.Há uma parteà esquerda emquese pode ver onde usei a madeira; cria uma espécie de borda. A tinta preta foi algo que despejei depois que a pintura estava pronta, e minha esposa, Rachel, ficou um pouco assustada com o que eu faria com tanto preto. Isolei uma seção – algo que tentavafazerjáhaviamuitotempo–, tentando aplicar o preto daquela forma. Provavelmente usei aquecedores nessa pintura. Tambémaindaeraocomeço dasexperiênciasdecolocar espuma nas telas – tentei pela primeira vez na obra Serpentine,em1982.Larry Poons me aconselhou sobre como colar espuma natelae,em , usei gel acrílico para fixar as tiras de espuma na tela, enquanto ela estava no chão. A espuma vinha do mercado de Lymington, onde as pessoas a compravam para encher almofadas. Cortávamos os pedaços com tesouras de picote para criar essas tiras, e daí surgem os relevos.”
“Na época em que estava trabalhando nisso, Howard Hodgkin disse que não faria pinturas grandes demais para caber em um táxi de Londres. Eu, por outro lado, estava fazendo quadros enormes, como a série . Em resposta ao que Hodgkin disse, decidi criar essa grande pintura em múltiplos painéis. Era uma única tela que cortei em sete retângulos, que se encaixam exatamente – e o sete é esse número mágico. A tela adicional em volta de cada painel era uma moldura extra que comecei a usar nos anos 1980,poisestavafazendotrabalhos com camadas muito pesadas – mais tarde, Clem (Clement Greenberg) usaria o termo “marouflage” para isso. Naquele momento, eu estava apenas começando a trabalhar desse modo e parecia ser uma invenção minha. Aqui usei gel aplicado em camadas finas; não há adições nem espuma nessa pintura. Fiz em Londres, trabalhandotantonaparedequantonochãoparaobter os respingos e gotejados que buscava. Dei a essa pintura o nome de um príncipe indiano e excelentejogadordecríquetechamadoJamSahib,que atuava nos anos 1900 e acabou sendo uma figura bastante trágica. É difícil saber exatamente por que batizeiaobracomseunome,masoqueseiéqueminha principalposturasemprefoitransformaraçõescomuns em acontecimentos mágicos, sendo bastante romântico por natureza – e tenho certeza de que também vi Jam Sahib dessa forma. Os painéis separadostêmavercomdecisõesquetomoenquanto trabalhoemumapintura,comoqueeusentiaepensava sobre Jam Sahib e sua vida. É assim que essas coisas surgem – você estuda e romantiza essas atividades.”
“
do meio
Acacio Lisboa, Takashi Fukushima e James Lisboa
Ana Harada e Rodrigo Castro e Diná Hatanaka
Roberto Palazzi, Geraldo Martins, Marcos Fontoura e Nathalie Achcar
João J. Spinelli e Berenice Arvani
Adriana Martins, Ana Paula P. Martins e GabrielaTrombelli
Everaldo Serrano
Gilberto Salvador, Mayer Mizrahi e Denise Mattar
Denise Mattar e Marcelo Araújo
Bianca Cutait
Claudio Tozzi
Eduardo Sued
Filipe De Gaspari e Tainá Spuri Iacchini
Alberto Teixeira
Fotos: Leda Abuhab
Fotos: Sonia Balady
Fotos: Denise Andrade
Mayer e Denise Mizrahi
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