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Nossos destaques: 10 pontos para levar em conta
Nossas recomendações: 10 pontos a considerar
1. Nos centros educativos de primeira infância se expressam múltiplas formas de discriminação.
Quando indagados sobre se haviam sofrido alguma forma de discriminação no exercício do seu ofício, mais da metade, 54% das/os entrevistadas/os disseram que sim. Quando foram indagados sobre se haviam observado alguma forma de discriminação na escola, 61% confirmaram. Finalmente, quando se faz a mesma pergunta com alternativas de respostas, ou seja, diante de uma lista com diversas possibilidades de discriminação, essa porcentagem aumenta até os 78%. Entre as formas de discriminação mais mencionadas se destacam: características não valorizadas pela sociedade, condição social e econômica, raça, orientação sexual, deficiência, localização geográfica, religião, idade, condição de migração e origem indígena.
As crianças mencionaram diversas formas de discriminação. Em suas expressões, sobrepõem-se a percepção, a reprodução, o juízo, mas sempre confirmam a existência de práticas discriminatórias nos seus contextos. Fazem isso de maneira explícita, quando uma criança diz, por exemplo, “não tirei foto dele porque é moreno e não gosto dos meninos de cor”, ou “os meninos de cor (...) muitas vezes são sujos, não tomam banho e são preguiçosos”. Ou, quando um grupo afirma, diante de uma menina com deficiência, que “as pessoas não queriam ficar com ela porque ela estava numa cadeira de rodas, e eles não”.
2. Há uma tendência a negar a discriminação e torná-la invisível como se não existisse.
Isso notou-se de diversas maneiras, especialmente nas relações entre pessoas adultas. Nos contatos iniciais com as escolas, foi possível constatar esse fenômeno, quando seus responsáveis afirmavam que a investigação seria benvinda na escola, mas se poderia procurar outra, já que “ali não havia discriminação”. Nas entrevistas, era comum a prevalência, no início, da ideia “fora existe, mas aqui não muito”. Mas, em seguida a existência se confirmava nas narrativas ou nas respostas ao questionário.
Outra expressão desse fenômeno pode ser vista no aumento do número de pessoas que confirmaram a existência de discriminação no centro educativo. Se, em termos gerais, 61% diziam que sim, já haviam observado discriminação no seu colégio, essa porcentagem subiu para 78% quando os entrevistados e as entrevistadas se viram diante de uma lista de opções com exemplos concretos. Em geral, negam a discriminação quando essa é assim chamada, mas, frente a possibilidades concretas, confirmam a sua existência. Muitas vezes, os entrevistados e as entrevistadas notavam que uma história determinada, narrada com traços claramente discriminatórios, não era incluída pelo entrevistado no questionário como tal. Ou seja, não se fazia de imediato a conexão entre o narrado e uma expressão de discriminação.
Essa mesma tendência é notória em diversos estudos e práticas em América Latina e Caribe. Em nossa região, como dissemos na apresentação deste informe, ainda que as práticas discriminatórias sejam gravíssimas, prevalece uma tendência à invisibilidade e à negação do racismo, do sexismo e das múltiplas formas de discriminação, assim como de suas consequências. A negação desses processos se cruza com o incômodo que gera o reconhecimento de si próprio ou da sociedade em que se vive, como racista e discriminatória. A negação da discriminação também se cruza com o incômodo que cria a noção de conflito, a dificuldade de reconhecer que o conflito é legítimo e a sua resolução não violenta é um desafio, assim como reconhecer a pluralidade e o debate como traços determinantes da democracia.
3. A discriminação por estar fora do que a sociedade considera
“modelo” ou ideal.
Na introdução conceitual desta Consulta, afirmávamos a tendência de homogeneização e criação de um “modelo” que sirva de parâmetro para a sociedade. Uma sociedade que nega a diferença e o plural. Como parte disso, não há espaço para o pensamento crítico, a imaginação, a criatividade. Basta a busca de um padrão pré-determinado. Se alguém não tem esse perfil imaginado, deve se adaptar, deve anular suas diferenças e tratar de ser como o modelo esperado. Esse princípio já estudado por diversos autores, que atenta contra a dignidade humana, confirma-se nesta Consulta. Quando 44% das/os entrevistadas/os dizem que já haviam observado discriminação por características não valorizadas pela sociedade, estão justamente fazendo referência a essas pessoas, cujas diferenças são julgadas negativas.
Outro exemplo é a reação das pessoas adultas diante da frase “Diferenças sim, desigualdades não”. Se é certo que uma porcentagem significativa esteve de acordo (67%), os relatos das/os pesquisadoras/es destacaram a dificuldade que as/os participantes tiveram de entender o que se queria dizer com essa frase. Isso sugere a distância existente entre as/ os entrevistadas/os e os conceitos e debates sobre algo essencial para a superação das discriminações: a celebração das diferenças, a diversidade e o plural.
4. Redistribuição e reconhecimento: um chamado duplo.
Quando apresentadas/os a uma lista de formas de discriminação, 44% das/os entrevistadas/os disseram que já haviam observado discriminação por características não valorizadas pela sociedade, e 43% mencionaram a condição de ingressos e pobreza. Temos a impressão de que a leitura desses dados deve ser feita, considerando-se o enfoque proposto por Nancy Fraser. Segundo a filósofa, a busca por justiça requer tanto a redistribuição, quanto o reconhecimento, articulando as “reivindicações defensáveis de igualdade social às reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença”. Ainda que as lutas pela não discriminação e pelo reconhecimento muitas vezes se contraponham às lutas pela redistribuição, trata-se de uma falsa antítese, e nos parece imprescindível reconhecer que ambas estão intrinsicamente articuladas.
5. As expressões das práticas discriminatórias são muito variadas e incluem diversos aspectos da vida cotidiana escolar e das relações entre sujeitos.
Os instrumentos metodológicos da Consulta captavam pouco a dimensão do acesso à escola, e se concentravam, sobretudo, na percepção dos sujeitos sobre as práticas cotidianas. Assim, as discriminações ganharam forma nas histórias narradas. Indagados sobre as expressões da discriminação, mencionaram, por ordem de citações: humilhações e piadas, insultos, baixa expectativa em relação à aprendizagem, violência física, isolamento, exclusão das atividades pedagógicas. Algumas pessoas adultas entrevistadas confirmaram as preocupações desta Consulta, especialmente com a discriminação étnica, racial ou socioeconômica. Uma entrevistada disse que houve agressões da mãe de uma menina branca a um menino negro.
“Ela o agarrou com violência, foram à delegacia. Mandamos o menino à justiça”. Alguns professores dizem “aquele estudante, além de atrasado, é tonto, também é negro, tinha que ser”. Outra pessoa recordou o caso de uma “mãe de família que não queria que sua filha dançasse com um menino pobre” e, em seguida, que “há meninos e meninas que são melhor tratados por sua roupa, os que estão bem vestidos”.
Os relatos sobre discriminação em razão de identidade de gênero e orientação sexual ganharam grande proporção na sistematização dos dados. Na resposta estimulada, 51% das/os entrevistadas/os reconheceram a existência do fenômeno em sua escola. Um deles ilustrou contando que “o professor chegou e me disse: esse sujeito...que moral vai ter aqui dentro? Eu lhe disse: professor, fora da escola não me interessa sua vida (...) Como a Secretaria nomeia um professor gay?”. Também se relaciona ao tema o fato de que 48% das/os entrevistadas/os concordaram que existem funções e brincadeiras apropriadas para meninos e outras para meninas.
Uma forma não contemplada nas hipóteses iniciais da investigação, e que saiu em várias entrevistas, configurando a primeira resposta à pergunta “você já sofreu alguma discriminação no exercício do seu oficio”, foi a discriminação pelo cargo de trabalho ocupado. 23% mencionaram. Uma das entrevistas explicava: “pessoas que simplesmente estão em um cargo mais alto, sentem-se melhores, superiores. Às vezes, esquecem-se, inclusive, de nos convidar para os eventos que escola promove”. Em geral, reafirmavam essa forma de discriminação cruzada com outras, como por gênero e raça.
Este fenômeno se manifestou em particular nos depoimentos das pessoas que ocupam determinadas funções, como aquelas que realizam serviços de apoio ou limpeza. Os relatórios das/os pesquisadoras/es dão conta de que há pessoas – especialmente mulheres – que por seu papel ou função, são discriminadas de maneira silenciosa. Não é que necessariamente sejam impedidas de fazer algo, ou sejam maltratadas ou insultadas. Simplesmente se age como se elas não existissem. Esse é um aprendizado silencioso que as crianças têm nas escolas, sobre a posição social das pessoas. Internaliza-se como “fato natural” e marca nosso ponto de vista, nossa forma de pensar, de agir.
Entre as crianças, a maneira como mais se manifestam as discriminações é por meio da exclusão ou segregação, especialmente de brincadeiras e grupos de amigos/as. Ninguém quis brincar com o menino “porque os amigos do João são brancos! O branco não joga com negro, porque branco só joga com branco”, disse um grupo. “Futebol é brincadeira de meninos” e “Nunca deixariam as meninas jogarem”, afirmou outro.
A questão de gênero, particularmente chama a atenção entre os meninos e meninas. “As meninas são femininas e os meninos são masculinos, portanto as meninas devem odiar os meninos porque eles não as deixam jogar, e os meninos devem odiar as meninas porque são meninas!”, dizia um grupo. “Isso é brincadeira de homem!”, “elas não sabem jogar”.
6. Meninos e meninas opinam, reproduzem vivências e julgam as situações de discriminação.
Os meninos e as meninas expressam informações, costumes, valores que apropriaram ao longo de sua experiência pessoal e escolar. As vivências em ambiente mais preconceituoso tendem a influenciar seu comportamento, de maneira que reproduzem expressões e fatos discriminatórios, e não é raro que comentem onde os viram. “Mulher tem que brincar com mulher e homem com homem”, pois “a professora disse que não se pode brincar com meninos”, dizia uma menina. O mesmo se observa para situações contrárias à discriminação. “As meninas do meu colégio em São Paulo, todos os dias, queriam jogar futebol, e os meninos não deixavam. Meus companheiros diziam assim: ‘Não, não pode. E eu louco para dizer a eles: Não, não pode? E por que se vê na televisão? As meninas não podem jogar? Sim, podem!”.
Por outro lado, nessa idade já expressam de maneira bastante enfática a capacidade de sensibilizar-se e criar um juízo sobre determinadas situações. Frente às situações de discriminação presentes nas estórias, por exemplo, fazia-se notar a capacidade de colocar-se no lugar do outro, reação presente na grande maioria dos grupos, e expressa com frases como: “Ficou triste, cansado”, ou “sofreu, chorou”, “ele fica triste, é ruim falar assim com ele”, “é feio, porque João não gosta que gritem com ele”, “se sentiria muito mal, ficaria triste, choraria”.
7. A violência física e a violência de gênero estão presentes nos centros educativos.
No capítulo metodológico deste informe, destacamos que a escuta das crianças é importante, não apenas para entender o que opinam sobre os temas que lhes dizem respeito, mas também porque amplia o entendimento de situações, trazendo informações que muitas vezes as pessoas adultas não expressaram ou não perceberam.
Em nossa Consulta, um exemplo desse fenômeno se notou com o tema da violência. As crianças deram informações valiosas sobre a violência física e também a violência de gênero, que apareceram com ênfase nas entrevistas com as pessoas adultas.
Quando contam sobre sua escola e sua relação com os/as amigos/as, as crianças narram situações violentas. Um menino dizia que os maiores não o deixavam brincar e lhe diziam grosserias; as meninas se queixam de que “os meninos batem nelas, e não as deixam fazer suas tarefas”. Por outro lado, a persistência de castigos corporais apareceu nas expressões de meninas e meninos dos três países. No Brasil, uma menina disse que a professora “é boa, não nos bate, não nos coloca muito de castigo”. Na Colômbia, as crianças relataram que, em uma sala que mostraram ao entrevistador, já ficaram trancadas porque haviam se comportado mal. No Peru, um grupo narrou que a professora bate neles se não se comportam bem.
Além disso, foram as mesmas crianças que contaram sobre situações relacionadas com a violência de gênero. “São maus, nos bateriam”; “são tontos”; “agarram as mulheres e batem nelas”, disse uma menina sobre os meninos. Sobre a estória com a menina na cadeira de rodas, mais uma vez, as outras meninas revelaram suas preocupações: “ela tem medo de os meninos correrem e a derrubarem”, ou “ela tem medo de cair da cadeira de rodas e bater a cabeça no chão”, ou outro grupo de meninas que citou o perigo de a personagem ser ferida pelos meninos: disseram que eram maus, que não a ajudariam, e que ela poderia apanhar.
8. Faltam espaços de escuta e participação para as crianças e a comunidade educativa em geral
Em alguns grupos de crianças escutados na Consulta, fez-se evidente a falta de estímulo e, portanto, a baixa habilidade de expressão desenvolvida por elas diante das dinâmicas. Em alguns casos, a escola reproduz a desvalorização das pessoas menores, assunto muito presente de maneira geral na sociedade, o que exclui o ponto de vista das crianças.
Embora 88% das pessoas adultas entrevistadas tenham considerado que as crianças na primeira infância são capazes de expressar sua opinião e interesses, e que os mesmos deveriam ser considerados, nas visitas às escolas, constatou-se a ausência de espaços e estímulos para esse fim. Como se disse anteriormente, não basta concordar com esse princípio. É preciso por em prática estratégias, mecanismos e espaços adequados para que as crianças possam participar e se expressar livremente.
Além disso, os relatos dos/as entrevistadores/as ressaltam a ausência de práticas de escuta para pessoas adultas e para a comunidade educativa em geral. A maior parte dos/as trabalhadores/as da limpeza e da portaria, por exemplo, revelou que estava, pela primeira vez, sendo indagada acerca de sua opinião sobre temas referentes à escola. Docentes, igualmente, reclamaram mais espaços de debate e participação.
9. As crianças valorizam boas relações com seus pares e com o ambiente.
As crianças destacaram traços importantes do ambiente escolar dos quais gostam, sempre relacionados com a amizade, a brincadeira e a convivência: “divertir-se brincando com as amiguinhas de pega-pega, esconde-esconde”, “ela é boa porque gosta de brincar comigo”, “desenhar, pintar, ver filmes, jogar no computador, ver TV”, “ler junto com os companheiros no recreio”. As crianças gostam dos lugares bonitos, com flores e cores, como o jardim, e não gostam de lugares feios, com cadeiras quebradas e mau cheiro, “quando agridem as árvores”, “quando as plantas morrem”; e da relação com a natureza: “nos deixou todos tristes” porque a árvore “é da mãe natureza” e porque “nos deixava felizes, atraia muitas pessoas para brincar”, “brincava aqui”, sobre o corte de uma árvore na escola.
Essas expressões são fundamentais para o desenho dos currículos e de projetos pedagógicos dessa etapa de ensino, o que, como se disse no início, deve valorizar o desenvolvimento de enfoques pedagógicos centrados nos interesses e nas experiências cotidianas das crianças, que busquem fomentar sua participação, iniciativa, criatividade, autonomia e autoconfiança.
10. Pode-se mudar de ideia.
Uma característica muito interessante, que saiu de alguns dos relatos das crianças, foi a possibilidade de rever posições a partir de novas experiências. Foi o que se notou em alguns grupos no transcurso das dinâmicas. Um exemplo ocorreu no caso da menina em cadeira de rodas. Depois de várias negativas por parte das crianças, explicando
que ela não poderia brincar, porque não podia se mover, algumas apareciam com alternativas ou possibilidades. “Ela pode conversar com as companheirinhas”, no jogo de polícia e ladrão, ela poderia ser a delegada, que “permanece sentada vendo a cara dos policiais”. Um menino havia dito que o menino da estória não queria emprestar sua bola à menina porque só os meninos jogam futebol. Depois do diálogo, quis reescrever a continuação do conto, e disse que o personagem havia pensado melhor e mudado de ideia, deixando que as meninas jogassem futebol.
Para a CLADE, assumir a existência de práticas discriminatórias é o primeiro passo para a sua superação. Um dos méritos desta Consulta é justamente ter gerado uma reflexão a partir da qual os mesmo sujeitos a percebessem e expressassem. O próximo passo é justamente o de encontrar formas para superá-las, e esse exercício envolve todos os atores da comunidade educativa, e mais ainda, aqueles dos diversos níveis da política educativa num diálogo.
Concordamos com o professor Peter Moss, ao propor que as instituições de educação na primeira infância sejam também consideradas espaços de prática política, mais especificamente de prática política democrática. No cotidiano, isso se traduz em esforços diários que possibilitem a resolução de problemas, usando variadas competências e oferecendo alternativas, como a convivência entre pares e o convívio intergeracional. Isso se traduz em maior participação das mães e dos pais de família, assim como da comunidade. Traduz-se também em processos verdadeiramente inclusivos, cujas decisões são tomadas a partir do diálogo entre todas e todos.
L., EN (Cartagena)