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Microbiologia de alimentos fermentados
de biofilmes e, certamente, devido à contaminação cruzada e à falta de refrigeração, em pouco tempo o leite cru armazenado, naturalmente rico em bactérias láticas fermentadoras, deu origem a uma coalhada ácida, a qual, pela dessoragem e posterior retirada do soro, originou uma massa semissólida – uma espécie de queijo primitivo de coagulação ácida. A descoberta da coagulação enzimática por povos nômades se deu pelo uso de estômagos de ruminantes como recipientes para o transporte de líquidos. Quando transportado em estômagos ainda frescos, o leite tornava-se um coágulo comestível. A paixão do homem pela produção de queijos se faz presente em todas as culturas lactófilas, sendo transmitida de geração para geração. Quanto mais afeito ao produto e à cultura produtiva, mais o homem investia no aprimoramento dos processos e, consequentemente, dos produtos. O resultado dessa experiência milenar é notável em nossa atualidade, evidente pela grande e rica diversidade de queijos, sejam eles produzidos industrial ou artesanalmente. No último século, a indústria láctea cresceu e evoluiu muito, gerando riquezas e envolvendo um grande número de pessoas na cadeia produtiva. Cada cultura desenvolveu seus próprios queijos, que são naturalmente contaminados com a microbiota autóctone de cada região – que chamamos de sabedoria ecológica das paisagens. Quanto mais achamos que dominamos a ciência e a tecnologia de queijos, mais descobrimos que há muito ainda para se elucidar. O equilíbrio da microbiota fermentadora é dinâmico. Os estudos baseados em técnicas independentes de cultura, complementados com métodos de cultura dependente, possibilitaram determinar o papel de diferentes gêneros e espécies de microrganismos nas características finais do produto. Com esse conhecimento, pode-se aperfeiçoar os processos e até mesmo inovar, criando-se novos queijos. A diversidade de queijos é, em parte, consequência da variedade de leite de diferentes espécies de mamíferos, como vaca, búfala, cabra, ovelha e camela, que nos entregam uma matéria-prima extremamente versátil e valiosa nutricionalmente. Tal diversidade é complementada pela presença de inúmeras espécies de microrganismos, especialmente bactérias, leveduras e fungos filamentosos. Cabe ao homem se posicionar neste cenário como um gestor, agindo para garantir que animais e microrganismos trabalhem de forma conjunta e sustentável. A diversidade microbiana em queijos decorre de uma série de fatores, entre os quais processos ecológicos diversos, incluindo-se a dispersão, a diversificação, a seleção ambiental e a deriva ecológica. Além disso, é influenciada por fatores tanto bióticos – como fermentação natural, emprego de culturas iniciadoras, microbiota contaminante e metabólitos microbianos – como fatores abióticos – a exemplo dos diferentes tipos de processos tecnológicos e das condições do ambiente em que o queijo é produzido. Juntos, todos esses fatores regem um papel importante na modulação da implantação, do desenvolvimento e da atividade dos diferentes grupos microbianos envolvidos na fermentação do queijo (Figura 7.1). Ao final desse complexo processo, o queijo adquire as características de aroma, sabor, textura e aparência, além dos padrões de qualidade microbiológica tão importantes para sua inocuidade (MAYO et al., 2021).
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