36ª Bienal de São Paulo (2025) – Catálogo

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Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

36ª Bienal de São Paulo

Catálogo

36ª Bienal de São Paulo

Desde a sua criação em 1951, a Bienal de São Paulo é marcada pela sua constante renovação. Cada novo capítulo de sua história propõe um modo de existir no tempo e no espaço, sempre em diálogo com o contemporâneo. A 36ª edição do evento, com o título Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, parte de um conceito curatorial elaborado por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Inspirado no poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, o curador geral propõe uma escuta atenta das múltiplas formas de humanidade em deslocamentos, em encontros e em negociações.

A Fundação Bienal de São Paulo entende que sua missão se organiza em torno de um preceito central: a relevância. Isso significa produzir sentido, gerar acesso e impactar de forma positiva o maior número possível de pessoas. Ser relevante é responder às questões mais urgentes do nosso tempo sem deixar de também abraçar as dúvidas e incertezas, isto é, fazer perguntas. Para isso, a seleção curatorial, atribuição de cada nova gestão, é o primeiro passo. Dela se desdobram os artistas e suas obras, escolhidas por sua potência crítica, estética e conceitual, e por sua capacidade de refletir ou tensionar desafios coletivos. Mas nenhuma obra se completa sozinha: é preciso criar condições para que os visitantes se aproximem, interajam e encontrem no evento um espaço para a troca. Essa construção é feita antes, durante e depois da visita, com materiais educativos, conteúdos digitais e publicações inéditas, que juntos ampliam as experiências e fomentam a aproximação com a arte contemporânea, assim como sua pesquisa e a formação de público.

Ser parte do desenvolvimento de uma Bienal é um privilégio. É assistir à história da arte acontecer diante dos olhos – e ver-se dentro dela. Ao acompanhar o nascimento de uma exposição dessa escala, integramos o processo vivo da criação. Desde as decisões conceituais até a desmontagem e os muitos processos de tratamento dos resíduos quando o evento se encerra, cada etapa exige coordenação precisa, diálogo constante e responsabilidade compartilhada entre profissionais de múltiplos campos de atuação.

Esta edição tem ainda uma característica especial: sua duração expandida, de setembro de 2025 a janeiro de 2026, estendendo em um mês sua presença no calendário cultural. Mais do que uma ampliação no tempo, trata-se de potencializar as possibilidades de encontro. E, como sempre, o acesso é gratuito, tanto à exposição quanto à sua programação – um compromisso da Fundação com

a democratização da arte e com a constante construção de um público cada vez mais participativo da cultura.

Nada disso seria possível sem o comprometimento conjunto dos nossos parceiros, em especial os órgãos públicos e as empresas patrocinadoras que acreditam na relevância da arte como forma de criar um futuro melhor para todos. E, claro, também não seria possível sem os profissionais da Fundação Bienal e a grande rede de colaboradores que, com diligência, garantem o cumprimento de prazos exigentes, a execução rigorosa das ações planejadas, a manutenção da saúde financeira da instituição e a boa conservação dessa joia do modernismo que é o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, palco principal de todos esses encontros. É esse empenho que garante a permanência de um projeto histórico que se fortalece há mais de sete décadas – orientado pela certeza da excelência e relevância.

O Ministério da Cultura celebra a 36ª Bienal de São Paulo –Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, edição inspirada nos versos da célebre escritora Conceição Evaristo. Por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, o Governo Federal tem orgulho de ser um dos realizadores deste tão importante evento que reúne grandes artistas de todo o mundo ao redor de questões fundamentais para a contemporaneidade, amplificadas por um programa educativo que é referência internacional.

As artes visuais têm o poder de nos confrontar com os temas mais desafiadores de nossos tempos valendo-se de abordagens poéticas complexas e irredutíveis a simplificações ou respostas fáceis. Mais do que oferecer soluções, a Bienal coloca perguntas e multiplica pontos de vista, estabelecendo contato com o diverso, com outras experiências de vida, distintas formas de estar no mundo. Visitar a Bienal é ampliar repertórios estéticos e éticos com o exercício de empatia envolvido no contato com a obra de arte, essencial para o fortalecimento de uma cultura cada vez mais cidadã.

O Ministério da Cultura tem atuado de forma incansável para fomentar o setor cultural, criando oportunidades para artistas e trabalhadores das mais diversas linguagens e campos da cultura. Por meio de iniciativas como a Lei Rouanet, a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, este Ministério tem tido a alegria de fomentar projetos por todo o país, fortalecendo a economia criativa e trabalhando para a implementação de políticas culturais permanentes e democráticas.

A Bienal de São Paulo promove o encontro com a arte de forma integralmente gratuita, em um esforço de democratização do acesso à cultura aliado às políticas públicas desenvolvidas por este Ministério. A arte e a educação são indispensáveis para assegurar o direito a uma cidadania plena e crítica que cabe a todos os brasileiros e brasileiras. Por isso, o Governo Federal, aqui representado pelo Ministério da Cultura, segue comprometido com o investimento em iniciativas que promovam a vivência cultural plena, para que as gerações presentes e futuras tenham acesso à experiência transformadora que é a arte.

Há mais de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem desempenhado um papel fundamental para a valorização da arte, cultura e educação de uma sociedade complexa e heterogênea como a brasileira. Essa atuação se expande por meio de parceiros essenciais para o desenvolvimento do setor da economia da cultura e das indústrias criativas, como a Fundação Bienal de São Paulo.

O Itaú Unibanco se orgulha de ser o parceiro estratégico da Fundação Bienal de São Paulo – uma parceria de 27 anos, sendo esta a 12ª edição realizada nesse período –, reafirmando o compromisso com a promoção das artes visuais e o seu papel transformador. A Bienal de São Paulo é um importante espaço de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, críticos e público.

Nesse campo, o Itaú Cultural articula ações de fruição, formação e fomento, entre elas, as exposições individuais e coletivas que acontecem tanto na sede na Avenida Paulista, 149 (com entrada gratuita) quanto em equipamentos nas cinco regiões do país. Entre as exposições de 2025, destaque para Carlos Zilio – A querela do Brasil, com curadoria de Paulo Miyada, que trará uma retrospectiva desse artista que, com erudição e irreverência, explorou as tensões da arte brasileira. Também serão dedicadas mostras à artista visual Rivane Neuenschwander e ao curador e crítico Paulo Herkenhoff.

Acesse itaucultural.org.br para navegar pelas exposições virtuais Filmes e vídeos de artistas, com produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Já na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia. itaucultural.org.br) você tem acesso a centenas de verbetes de personagens, de obras e de eventos de artes visuais.

Estar presente na Bienal de São Paulo reforça nosso objetivo de construir vínculos com diferentes públicos, prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades e fomentando o fazer criativo e crítico através da arte e da cultura brasileiras.

Itaú Cultural

A Bloomberg se orgulha de patrocinar a 36ª edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público.

Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, as quais, segundo acreditamos, são um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos.

Bloomberg

Para o Bradesco, um banco brasileiro por excelência e que completou 83 anos, arte e cultura não são apenas elementos fundamentais à formação da identidade de um povo ou à construção de seu patrimônio imaterial, mas também uma jornada de inclusão e cidadania, uma saudável convergência entre diferentes pontos de vista. É, por assim dizer, um caminho em direção ao novo, mas com o cuidado de valorizar aquilo que é especial o bastante para ser história ou tradição.

Portanto, quando se fala em arte e cultura, perdem sentido as fronteiras entre passado, presente e futuro, entre o que é forma ou conteúdo. Tudo vira reflexão e aprendizado, tudo se transforma em provocação e surpresa.

Foi a partir dessa interpretação, combinada à visão positiva do papel das empresas na viabilização do que a sociedade considera importante, que o Bradesco se tornou patrocinador da 36ª edição da Bienal de São Paulo, seguramente um dos principais eventos do país voltados a estimular o circuito artístico, divulgar as diversas expressões de arte e promover o intercâmbio cultural, com tudo de bom que ele agrega.

Ao participar de algo a um só tempo grandioso e de muitos significados, o Bradesco compartilha com a Fundação Bienal de São Paulo – que organiza o evento há mais de seis décadas – o propósito de democratizar o acesso à cultura, multiplicar seu alcance e promover a valorização da arte.

É um caminho sem fim, sem volta, repleto de desafios e ao menos uma certeza: quanto mais gente participando dele, melhor!

Bradesco

A Petrobras possui uma história de mais de quarenta anos acreditando de forma contínua na cultura como elemento transformador e fonte de energia para a sociedade. Apoiando projetos únicos e parcerias de longo prazo, construímos uma relação de respeito e colaboração com realizadores e iniciativas em todo o país.

O Programa Petrobras Cultural tem a brasilidade como elemento norteador, que se materializa nas temáticas, origens, curadoria, história e características de cada projeto que selecionamos. Por meio do incentivo a diversos projetos, colocamos em prática nossa crença de que a cultura é uma importante energia que transforma a sociedade. Acreditamos que, com criatividade e inspiração, promovemos crescimento e mudanças.

A Bienal de São Paulo é um dos mais prestigiosos eventos do setor no país e no mundo. O patrocínio da Petrobras reforça o papel da empresa na promoção da cultura, em suas diversas formas, consolidando a companhia como uma das maiores apoiadoras das artes no Brasil.

Eventos como a Bienal de São Paulo contribuem de forma relevante para a economia, promovendo inovação, criatividade e sustentabilidade à dinâmica econômica. A Petrobras é uma aliada do desenvolvimento do país em seus diversos setores. Investe em muitas formas de energia, e a cultura certamente é uma delas.

A Petrobras tem orgulho em apoiar a cultura brasileira em sua pluralidade de manifestações, levando a arte a todos os públicos, por todo o país. Porque cultura também é nossa energia.

Para conhecer mais sobre o Programa Petrobras Cultural, visite petrobras.com.br/cultura.

Petrobras

O Instituto Cultural Vale acredita no poder transformador da cultura. Como um dos principais apoiadores da cultura no Brasil, patrocina e impulsiona projetos que promovem conexões entre pessoas, iniciativas e territórios. Seu compromisso é tornar a cultura cada vez mais acessível e plural, ao mesmo tempo que atua para o fortalecimento da economia criativa.

Assim, é uma alegria fazer parte da realização desta 36ª Bienal de São Paulo e de seu programa educativo, que experimenta novos formatos e abordagens. Formulado a partir das Invocações propostas pela curadoria – encontros com poesia, música, performances e debates que investigam noções de humanidade em diferentes geografias –, o programa educativo expande a comunicação da Bienal com os diferentes públicos e promove sua difusão para além do espaço e do tempo de exposição, de maneira interdisciplinar.

A cada nova edição, a Bienal nos convida a repensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, conecta-se ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.

Onde tem cultura, a Vale está.

Cultural Vale

Instituto

Há 110 anos, o Citi faz parte da história do Brasil, acompanhando suas transformações e impulsionando seu desenvolvimento. Nossa trajetória se confunde com a do país: somos testemunhas e participantes de um Brasil que se reinventa e que avança.

Mais do que uma instituição financeira, somos uma presença que acredita na força da cultura e da educação como motores de um futuro mais inclusivo, inovador e sustentável. Investir nesses pilares é também valorizar a pluralidade, a criatividade e o talento que definem o espírito brasileiro.

É com esse compromisso que, pela primeira vez, temos orgulho de apoiar a 36ª Bienal de São Paulo – um dos mais importantes espaços de expressão artística da América Latina, onde o Brasil pensa, sente e se reinventa através da arte.

Acreditamos na arte como agente de transformação social. A criação artística tem o poder de provocar diálogos, ampliar repertórios e inspirar novas possibilidades de mundo. Ao patrocinar a Bienal, reafirmamos nosso compromisso com a cultura, com a inovação e com todos aqueles que, por meio da arte, constroem novas narrativas para o presente e o futuro.

Citi

A Vivo acredita na cultura como meio de transformação social e é uma das principais marcas apoiadoras das artes visuais, cênicas e da música no Brasil. A arte, como a tecnologia, cria conexões entre as pessoas e incentiva a busca do equilíbrio entre a história, a natureza e o tempo.

Atualmente, a Vivo é patrocinadora dos principais museus do Brasil, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), a Pinacoteca de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), além do Instituto Inhotim e do Palácio das Artes, ambos em Minas Gerais, e do Museu Oscar Niemeyer, no Paraná.

O Teatro Vivo, localizado em São Paulo, conta com uma curadoria de peças contemporâneas, que promovem reflexões sobre questões atuais e valorizam a diversidade cultural. Além disso, o espaço é totalmente acessível, oferecendo recursos como tradução em libras, audiodescrição e equipe treinada, garantindo inclusão para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Em 2024, recebeu mais de 50 mil pessoas.

A marca também apoia projetos no universo da música que são genuinamente brasileiros e regionais, reforçando a proximidade com a cultura local em eventos icônicos e tradicionais do nosso país, como Festival de Parintins, Galo da Madrugada, Festival Çairé, Lollapalooza, The Town e Vivo Música.

As iniciativas da marca no âmbito cultural ampliam o acesso ao conhecimento com novas formas de vivência e aprendizado, fortalecidas nos aspectos de diversidade, sustentabilidade, inclusão e educação. Todas as informações estão reunidas e são compartilhadas nos perfis @vivo.cultura e @vivo no Instagram.

Vivo

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir processualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos.

O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e sobre ele interferir? Ela nos permite (re)povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas e, assim, talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente com as questões que atravessam a existência.

É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 36ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade.

Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado na promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários, formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante, com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung

Capítulo 1

62 Capítulo 2

Gramáticas de insurgências

64 Suchitra Mattai

66 Ana Raylander Mártis dos Anjos

68 Mansour Ciss Kanakassy

70 Emeka Ogboh

72 Minia Biabiany

74 Forensic Architecture/ Forensis

76 Ruth Ige

78 Theo Eshetu

80 Adjani Okpu-Egbe

82 Noor Abed

84 Aline Baiana

86 Song Dong

88 Theresah Ankomah

90 Olu Oguibe

92 Leo Asemota

94 Capítulo 3

Sobre ritmos espaciais e narrações

96 Tanka Fonta

98 Otobong Nkanga

100 Leiko Ikemura

102 Moffat Takadiwa

104 Cevdet Erek

106 Nari Ward

108 Manauara Clandestina

110 Amina Agueznay

112 Marlene Almeida

114 Tuấn Andrew Nguyễn

116 Christopher Cozier

118 Akinbode Akinbiyi

120 Wolfgang Tillmans

122 Pélagie Gbaguidi

124 Raven Chacon, Iggor Cavalera e Laima Leyton

126 Pol Taburet

128 Cynthia Hawkins

130 Márcia Falcão

132 Sara Sejin Chang (Sara van der Heide)

134 Alain Padeau

136 Capítulo 4

Fluxos de cuidado e cosmologias plurais

138 Laure Prouvost

140 Kader Attia

142 Myrlande Constant

144 Joar Nango com a equipe de Girjegumpi

146 Vilanismo

148 Gervane de Paula

150 Sharon Hayes

152 Trương Công Tung

154 Lidia Lisbôa

156 Hao Jingban

158 Meriem Bennani

160 Juliana dos Santos

162 Sadikou Oukpedjo

164 Olivier Marboeuf

166 Camille Turner

168 Simnikiwe Buhlungu

170 Julianknxx

172 Hamedine Kane

174 Sérgio Soarez

176 Leonel Vásquez

178 Helena Uambembe

180 Ernest Cole

182 Metta Pracrutti

184 Kenzi Shiokava

186 Leila Alaoui

188 Shuvinai Ashoona

190 Myriam Omar Awadi

192 Capítulo 5

Cadências de transformação

194 Antonio Társis

196 Ming Smith

198 Théodore Diouf

200 Berenice Olmedo

202 Hajra Waheed

204 Zózimo Bulbul

206 Nguyễn Trinh Thi

208 Mao Ishikawa

210 Michele Ciacciofera

212 Josèfa Ntjam

214 Lynn Hershman Leeson

216 Richianny Ratovo

218 Cici Wu com Yuan Yuan

220 Laila Hida

222 Korakrit Arunanondchai

224 Maxwell Alexandre

226 Isa Genzken

228 Werewere Liking

230 María Magdalena Campos-Pons

232 Capítulo 6

A intratável beleza do mundo

234 Bertina Lopes

236 Maria Auxiliadora

238 Chaïbia Talal

240 Thania Petersen

242 Hamid Zénati

244 Mohamed Melehi

246 Edival Ramosa

248 Imram Mir

250 Hessie

252 Gōzō Yoshimasu

254 Firelei Báez

256 Farid Belkahia

258 Madiha Umar

260 Ernest Mancoba

262 Moisés Patrício

264 I Gusti Ayu Kadek Murniasih (Murni)

266 Behjat Sadr

268 Forugh Farrokhzad

270 Nzante Spee

272 Huguette Caland

274 Frankétienne

276 Heitor dos Prazeres

278 Adama Delphine Fawundu

280 Aislan Pankararu

282 Raukura Turei

284 Rebeca Carapiá

286 Kamala Ibrahim Ishag

288 Andrew Roberts

290 Alberto Pitta

292 Índice de artistas 302 A expografia da 36ª Bienal

306 Invocações

307 Marrakech

Guadalupe

Zanzibar

Tóquio

318 Afluentes

318 Casa do Povo 320 Marcelo Evelin 322 Boxe Autônomo e Dorothée Munyaneza 324 Alexandre Paulikevitch e MEXA 326 La Cinémathèque Afrique

Nem todo viandante anda estradas Da humanidade como prática

Um conceito em três fragmentos

Bonaventure Soh

Bejeng Ndikung

Fevereiro, 2024

Aviso de isenção:

Esta Bienal não é sobre identidades e suas políticas; não é sobre diversidade nem inclusão; não é sobre migração nem democracia e suas falhas…

Aviso de reivindicação: É sobre a humanidade como verbo e como prática, sobre o(s) embate(s) e as negociações quando do encontro de mundos distintos, sobre desmantelar assimetrias como um pré-requisito para o exercício da humanidade como prática, sobre a alegria e a beleza e suas poeticalidades enquanto forças gravitacionais que mantêm nossos mundos no eixo… pois a alegria e a beleza são políticas. É sobre imaginar um mundo onde enfatizamos nossa humanidade.

Fragmento I – Da calma e do silêncio

Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar, rasgar entre os dentes, a pele, os ossos, o tutano do verbo, para assim versejar o âmago das coisas.

Quando meu olhar se perder no nada, por favor, não me despertem, quero reter, no adentro da íris, a menor sombra, do ínfimo movimento.

Quando meus pés abrandarem na marcha, por favor, não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar, deixem-me quieta, na aparente inércia. Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra.

Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio” 1

1. Conceição Evaristo, “Da calma e do silêncio”, em Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008, p.122.

O conceito da 36ª Bienal de São Paulo é uma proposta para pensar, ouvir, ver, sentir, perceber o mundo do ponto de vista do Brasil – suas histórias, paisagens, filosofias, mitologias e complexidades –, já que a ficção que é o Brasil é o ponto culminante de muitos mundos e suas tangentes. Dito isso, será dada ênfase à escuta como base fundamental para praticar a humanidade. Como escreveu Jacques Attali em seu seminal ensaio Noise: The Political Economy of Music [Ruído: A economia política da música], “há 25 séculos, o conhecimento ocidental tenta ver o mundo. Mas ele não entendeu que o mundo não é para ser contemplado. É para ser ouvido. Não é para ser lido, mas escutado”.2 Aparentemente herdamos um mundo construído por pessoas que tentaram vê-lo e lê-lo. Pode-se dizer que, para conjugar a humanidade como verbo, é preciso aprender a ouvir o mundo, ouvir os campos, ouvir as plantas e os animais, ouvir as pessoas, ouvir as vozes das ondas que acariciam as praias, o murmúrio das águas, os ventos que esculpem a areia e os contornos da terra, ouvir os sussurros das rochas, colinas e montanhas, ouvir a miríade de seres que compõem nossos estuários. Podemos dizer com segurança que há uma correlação entre as impossibilidades de ouvir e a desumanização, além de privação de direitos, apropriação de terras e até destruição do meio ambiente.

Nesta proposta, o espaço físico e filosófico do estuário será usado como metáfora para espaços de encontro, negociações, trocas, convívio, sobrevivência, sustento, luta, desamparo, reparo, reabilitação, necessidades… espaços nos quais as práticas da humanidade poderiam adquirir novos significados.

Dos estuários de Santos e Bertioga, em São Paulo, ao estuário do Capibaribe, em Recife, ou da Lagoa dos Patos, que vai de Porto Alegre à cidade de Rio Grande, o momento em que dois cursos d’água se encontram, como um rio que encontra o mar, é um momento de negociação de assimetrias físicas e químicas que cria um extraordinário ecossistema onde vicejam caranguejos, jacarés, peixes, aves migratórias, manguezais, ostras, fitoplâncton, caramujos, algas, tartarugas marinhas, zooplâncton e até mesmo humanos. Uma característica única de um estuário é sua interdependência. Cada ser tem um papel, um nicho (o nicho das ostras, por exemplo, é a filtragem; cada ostra filtra

2.

Jacques Attali, Noise: The Political Economy of Music. Trad. Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985.

cerca de duzentos litros de água por dia), no sustento de cada espécie, no ecossistema como um todo e na vigorosa biodiversidade, sobretudo graças aos variados níveis de salinidade decorrentes do encontro da água doce com a salgada. Assim, para um amplo espectro de seres, os estuários são importantes como habitat, como fonte de recursos e como um espaço para reprodução ou transição em nossos ecossistemas, e sua existência é crucial para o meio ambiente. Os estuários atuam como sistemas tampão durante períodos de erosão, inundação ou chuvas intensas, e também ajudam a filtrar a água doce. No entanto, em decorrência da intensa urbanização, da dragagem, da pesca predatória, da poluição, da exploração de petróleo e gás etc. em escala planetária, os ecossistemas dos estuários estão perdendo o equilíbrio, assim como a humanidade está perdendo o controle de si mesma e do mundo.3 Ao invocar a pluralidade de seres e suas coexistências e contingências dentro do espaço do estuário como uma metáfora para as relações dos indivíduos entre si e com os outros seres, este projeto remete de forma tangencial à 27ª Bienal de São Paulo, de 2006, intitulada Como viver junto e curada por Lisette Lagnado, bem como à 2ª Bienal, de 1953 (ou “Bienal da Guernica”), em termos de ações e urgências em jogo. Assim, quando Conceição Evaristo escreve, em “Da calma e do silêncio”, que “Nem todo viandante/ anda estradas,/ há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”, pode-se pensar nos estuários como o epítome desses mundos submersos penetráveis pelo silêncio da poesia da natureza e, ao mesmo tempo, como o caminho de coexistência que é tecido quando os diferentes mundos de água doce e salgada convergem, como um caminho que os humanos, enquanto viandantes, podem percorrer. O Brasil nasceu do violento encontro entre povos indígenas, colonizadores europeus e africanos escravizados. Toda civilização se origina de um encontro, independentemente do quão violento ele possa ser, e algumas levam mais tempo do que outras para germinar. Para que a germinação e o cultivo adequado aconteçam, deve-se ter paciência para morder e rasgar as palavras até o tutano dos verbos, perseverança para contemplar o distante de modo que a clareza dos mais ínfimos movimentos ao longe possa ficar impregnada em nossa íris, como Evaristo insinua.

3. Emily Caffrey, “The Importance of Estuarine Ecosystems”, Ocean Blue Project. Disponível em: oceanblueproject.org/ what-is-an-estuary. Acesso: 2025.

Então que caminhos devemos percorrer para praticar a humanidade como verbo? Como nos dar ao luxo de sair dos trilhos, sair da estrada, aceitando a errância, nos perdendo, encontrando outros mundos?

Fragmento II – Une Conscience en fleur pour autrui

Ma joie est de savoir que tu es moi et que moi je suis fortement toi. Tu sais que ton froid dessèche mes os et que mon chaud vivifie tes veines. Ma peur fait trembler tes yeux et ta faim fait pâlir ma bouche. Sans ta force d’être un feu libre ma conscience serait plus seule que la terre morte d’un désert. Ma vie offre des clefs émerveillées à la perception de ta propre essence. Lorsque tu veilles sur ma liberté tu donnes un ciel et des ailes au mouvement de mon espérance.

Mon désir d’être heureux, s’il cessait un instant de compter avec le tien tomberait aussitôt en poussière. Quand tu saignes au couteau mon identité nos consciences vont ensemble à l’abattoir.

[Minha alegria é saber que você é eu e que eu sou fortemente você. Você sabe que seu frio seca meus ossos e meu calor revigora suas veias. Meu medo faz tremerem seus olhos e sua fome faz minha boca empalidecer. Sem sua força de ser um fogo livre minha consciência estaria mais só do que a terra morta de um deserto. Minha vida oferece chaves maravilhosas à percepção de sua própria essência. Quando você zela por minha liberdade você dá um céu e as asas

ao movimento de minha esperança. Meu desejo de ser feliz, se deixasse por um instante de contar com o seu, imediatamente se transformaria em pó. Quando você corta à faca minha identidade nossas consciências vão juntas ao matadouro.]

René Depreste, “Une Conscience en fleur pour autrui” [Uma consciência em flor para os outros]4

O artista Leo Asemota uma vez perguntou: quando você olha no espelho, quem você vê? Ele mesmo se adiantou e respondeu que há, é claro, a possibilidade de só ver a si mesmo, mas, quando ele olha no espelho, ele vê todas as pessoas que vieram antes dele e todos que estão sob seus cuidados. Esse espírito de interligação vertical e horizontal pode ser outro elemento crucial na conjugação da humanidade. Nesta época de profunda crise política e social em que estamos inseridos no mundo, a questão de quem vemos quando olhamos no espelho torna-se ainda mais importante. Ver uma multitude no espelho é reconhecer sua existência, suas preocupações e, finalmente, cuidar de seu bem-estar.

O Estado-nação é um desses construtos que parece ver apenas a si mesmo quando olha no espelho. É por isso que reforçamos nossas fronteiras com muros, travamos guerras, expulsamos imigrantes, destruímos o meio ambiente etc. Será que poderíamos realmente olhar no espelho e ver a humanidade? Em todas as suas formas e cores, com todos os seus defeitos e qualidades, com todos os seus tons de cinza e todas as suas imperfeições? Em sua forma atual, o espelho diante do qual nos movemos está todo quebrado, e, ao invés de um reflexo, parece que estamos vendo refrações infinitas que levam ao esquecimento. Mas até mesmo um espelho quebrado tem conserto. Para se engajar nesse processo de reparo, no entanto, é preciso ser guiado pelas máximas de René Depestre em “Une Conscience en fleur pour autrui” :“Minha alegria é saber que você é eu/ e que eu sou fortemente você”, ou “minha vida oferece chaves maravilhosas/ à percepção de sua própria essência”.

A humanidade é uma prática.

A humanidade é um verbo.

É algo que pode ser conjugado.

4. René Depestre, En état de poésie (Petite sirène). Paris: Les éditeurs français réunis, 1980.

Fragmento III – A intratável beleza do mundo

O que surge do abismo

é um rumor de vários séculos. E é o canto das planícies do oceano.

As conchas sonoras se esfregam contra os crânios, ossos e bolas verdes de canhão no fundo do Atlântico. Nesses abismos há cemitérios de navios negreiros, muitos de seus marinheiros. A voracidade, as fronteiras violadas, as bandeiras, erguidas e tombadas, do mundo ocidental. […] Mas esses africanos deportados quebraram as barreiras do mundo. Eles também abriram, com respingos sangrentos, os espaços das Américas. […]

O que resta desses outrora transbordados, desse lodo do abismo, são todos os velhos mundos que foram esmagados para dar origem a uma nova região. Um mundo arrasou a África. Essas Áfricas impregnaram os mundos de longe. Isso evidencia e nos permite entender o Todo-Mundo, presente em tudo, válido para todos, múltiplo em sua totalidade, cuja base é o rumor do abismo.

Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, “L’Intraitable beauté du monde” [A intratável beleza do mundo]5

O estuário de Recife, em Pernambuco, é um espaço de múltiplos encontros. Não é apenas o ponto onde a água doce se encontra com a salgada, mas foi também o primeiro porto nas Américas em que pessoas escravizadas retiradas à força da África se viram diante do chamado “novo mundo”. Desde sua fundação em 1537 pelos colonizadores portugueses, Recife é um local singular em que aquilo que emergiu daquele abismo, daquele fosso, apesar de violências revoltantes, sempre pôde manifestar sua beleza intratável. Um local onde os rumores advindos das profundezas daquele abismo (ou decorrentes do próprio abismo) ainda ressoam

5. Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, “L’Intraitable beauté du monde”, in Manifestes. Paris: La Découverte, 2021, pp.33-55.

em todas as ondas ávidas e se manifestam como aquela noção de Todo-Mundo.

No Brasil, aquela “intratável beleza do mundo” deu origem a alguns dos mais importantes movimentos culturais e artísticos do século 20, como: o movimento antropofágico dos anos 1920, que moldou e embasou uma vanguarda brasileira e gerou o “Manifesto Antropófago”, além de uma estética e política que Oswald de Andrade chamou de “transnacionalismo canibal” (filosofia que reivindicava a canibalização, a ingestão, a digestão de outras culturas como meio de impor o Brasil diante do domínio cultural durante e após a colonização europeia, como tão bem mostrou a 24ª Bienal de São Paulo, curada por Paulo Herkenhoff com Adriano Pedrosa); o Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento fundado por Abdias do Nascimento em 1944 para lidar com a escassez da presença e da dignidade negras nas artes performáticas brasileiras, dando início a um movimento de dramaturgia afro-brasileira, que também se engajou politicamente ao levar a luta antirracista para a Assembleia Constituinte de 1946 e influenciar “a criação da Lei Afonso Arinos, a primeira voltada a coibir o racismo”;6 a “Eztetyka da Fome” do Cinema Novo, filmicamente formulada por Glauber Rocha em 1965, entendendo o cinema como uma importante ferramenta e arma para a luta revolucionária; o movimento tropicalista de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Torquato Neto nos anos 1960, que, com seu manifesto Tropicália: ou Panis et circencis, defendia um “campo para reflexão sobre a história social” por meio da música, do cinema e de outras expressões artísticas que sincronizavam as culturas da África e do Brasil e encontravam uma voz política no auge da ditadura civil-militar brasileira; ou o movimento manguebit dos anos 1990 no Recife, que pregava uma revolta musical contra a estagnação sociopolítica, econômica e cultural e uma resistência à agenda neoliberal que havia usurpado a maior parte da América Latina, que defendia uma memória cultural que abarcasse todos os atributos mencionados anteriormente (“presente em tudo, válido para todos, múltiplo em sua totalidade”) e que optou por sair do cul-de-sac socioeconômico por meio de uma pidginização de escapes sonoros e gêneros como makossa, rumba congolesa, reggae, coco, forró, maracatu, 6. “O teatro dentro de mim”, Itaú Cultural, 2016. Disponível em: ocupacao.icnetworks.org/ocupacao/abdias-nascimento/oteatro-dentro-de-mim/. Acesso: 2025.

frevo, bem como rock, hip hop, música eletrônica e funk. O cerne do Fragmento III é o movimento manguebit e seu manifesto “Caranguejos com cérebro”, escrito em 1992 pelo vocalista Fred Zero Quatro e pelo DJ Renato L., e trazido à tona por duas bandas lendárias e dois álbuns de 1994 cujos títulos já revelam sua intenção: Samba esquema noise, do Mundo Livre S/A, e Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi.

Em “Manguebit”, primeira canção de Samba esquema noise, o Mundo Livre S/A fala do transistor, de Recife como um circuito e do país como um chip; aborda o manguebit como um vírus que contamina pelos olhos, ouvidos, linguagens, ondas sonoras, e esse vírus é conduzido por UHF com o auxílio de antenas-agulhas através do mangue nos estuários. A banda fala da terra como um rádio e da destruição da terra e dos afluentes. Esse foi um hino para os estranhos tempos de então e de agora.

A primeira música do Chico Science & Nação Zumbi em Da lama ao caos, intitulada “Monólogo ao pé do ouvido (vinheta) / Banditismo por uma questão de classe”, é um intenso hino duplo de provocação. Em “Monólogo ao pé do ouvido (vinheta)”, eles falam do próprio movimento como uma evolução musical para modernizar o passado, de como o medo dá origem ao mal e de como o homem coletivo sente a necessidade de lutar contra o orgulho, a arrogância, a glória, e de como os demônios destroem o poder bravio da humanidade: “Viva Zapata!/ Viva Sandino!/ Viva Zumbi!/ Antônio Conselheiro/ Todos os Panteras Negras/ Lampião”. Já em “Banditismo por uma questão de classe” eles contam uma história sobre bandidos, sobre o discurso da solução e do progresso, e como isso pode ser feito com o assassinato de pessoas inocentes pelas forças da lei e da ordem. Eles falam do banditismo como sobrevivência, como necessidade, como consequência da luta de classes. O fato de essas bandas se referirem a um mundo livre e a uma nação Zumbi em seus nomes não é coincidência. Assim como não é coincidência o fato de elas serem de Recife. Afinal, foi lá que aconteceu o 1º Congresso Afro-Brasileiro, em 1934, incluindo ativistas como Solano Trindade – que, aliás, fazia parte da Frente Negra Pernambucana e do Teatro Experimental do Negro.7 E, ainda mais importante, foi nos estados de Pernambuco e Alagoas que o grande

7. Amurabi Oliveira, “Afro-Brazilian Studies in the 1930s: Intellectual Networks between Brazil and the USA”, Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v.8, n.1-2, 2019.

Francisco Zumbi (1655-1695), de origem congolesa, que entrou para a história como Zumbi dos Palmares, reivindicou seu reino, lutou contra os colonizadores portugueses, resistiu contra a escravização de africanos e libertou seu povo, realocando-o para o reino dos maroons, os quilombos – que posteriormente seriam classificados por Abdias do Nascimento como alguns dos primeiros espaços e estruturas democráticos do que hoje é o Brasil. Os quilombos forneceram a base para a construção de movimentos como o manguebit mais de trezentos anos depois.

O Fragmento III é uma reflexão sobre o movimento manguebit e seu manifesto “Caranguejos com cérebro”, entendidos como uma representação do cérebro social coletivo.

No artigo “Innovation in the Collective Brain”, de 2016, Michael Muthukrishna e Joseph Henrich refletem sobre algo que muitas pessoas em culturas não ocidentais já conhecem desde tempos imemoriais:

Nossas sociedades e redes sociais agem como cérebros coletivos. Indivíduos conectados a cérebros coletivos, transmitindo e obtendo informações seletivamente, em geral bem distantes de sua atenção consciente, podem desenvolver projetos complexos sem precisar de um projetista – assim como a seleção natural faz na evolução genética. Os processos da evolução cultural cumulativa resultam em tecnologias e técnicas que ninguém poderia recriar individualmente em vida, e não exigem que seus beneficiários entendam como e por que elas funcionam. Essas adaptações culturais parecem funcionalmente muito bem desenhadas para atender problemas locais, mas carecem de um projetista.8

Os autores se aprofundam nas origens e maquinações dos cérebros coletivos ao discutirem seus “neurônios” e observarem como os cérebros individuais evoluem de acordo com a aquisição da cultura – os chamados cérebros culturais (cérebros que evoluíram primordialmente para a aquisição de conhecimento adaptativo). Isso quer dizer que “nossos cérebros culturais evoluíram paralelamente a nossos cérebros coletivos”. Muthukrishna e Henrich mostram

8. Michael Muthukrishna e Joseph Henrich, “Innovation in the Collective Brain”, Philosophical Transactions of the Royal Society B, 19 mar. 2016. Disponível em: royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rstb.2015.0192. Acesso: 2025.

como “os cérebros culturais estão ligados a cérebros coletivos que geram invenções e difundem inovações” e examinam as maneiras como “os cérebros coletivos podem se retroalimentar para tornar mais ‘inteligentes’ cada um dos cérebros culturais que fazem parte deles – ou pelo menos mais bem equipados cognitivamente para lidar com os desafios locais”.9

Os fios com que foram trançados o tecido, o cérebro cultural, o cérebro coletivo de Recife, do manifesto “Caranguejos com cérebro”, abrangem tanto o encontro de mundos distintos, cujos caminhos foram forçados a se cruzar há quase quinhentos anos, quanto as diferentes entidades sociais, como a família, as plantations, as escolas de samba, as diversas redes sociais. Como afirmam

e Henrich:

A estrutura mais básica do cérebro coletivo é a família. Aqueles que estão se iniciando no aprendizado cultural primeiro têm acesso a seus pais, e possivelmente a uma gama de aloparentes (tias, avôs etc.). As famílias estão inseridas em agrupamentos maiores, que podem assumir muitas formas, de grupos de caçadores-coletores igualitários a vilas, clãs e sociedades do “grande homem”, de cacicados a Estados com diferentes graus de democracia e de sistemas de livre mercado e bem-estar social, além de grandes sindicatos.10

Além do povo, as referências geográficas e geológicas de Recife também desempenham um importante papel na manifestação daquele cérebro cultural e coletivo que deu origem ao movimento manguebit. A cidade de Recife está situada na confluência dos rios Beberibe e Capibaribe, que avançam majestosamente até desaguar naquela enorme massa de água, o Atlântico Sul, em cujo ventre, em cuja tumba, as vozes ainda cantam. A topografia e o clima também contribuem para a formação do conhecimento. Com sua floresta tropical, seu alto índice pluviométrico, seu clima de monções, seus estuários, sua alta umidade relativa do ar, Recife já foi chamada de filha do mangue, e seu Parque dos Manguezais também empresta o nome ao manguebit. Mas essa riqueza natural e ecológica de 9. Ibid., p.10. 10. Ibid., p.10.

Recife, que poderia ser um sonho para alguns, se tornou um pesadelo para a população da cidade. No artigo “Life Reborn in the Mud”,11 Alice de Souza escreve sobre a Ilha de Deus, que foi amplamente negligenciada e abandonada à própria decrepitude nos anos 1970 e 1980 – não havia água, luz elétrica, nem atenção do governo. Em meio a essas terríveis condições sociopolíticas e econômicas, a ilha era chamada de Ilha sem Deus. Como se o descaso em relação à ilha não fosse suficiente, em 1983 duas fábricas próximas provocaram um desastre ambiental ao despejar na água dejetos da produção de sabão, contaminando peixes e plantas aquáticas, que eram os principais meios de subsistência na região. Isso levou à fome e ao êxodo em massa dos habitantes da ilha, que foram em busca de campos mais férteis. Ao mesmo tempo, o índice de criminalidade disparou na ilha, que se tornou local de esconderijo para gangues. Mas essa situação não se restringia à Ilha de Deus, uma vez que a construção desenfreada em Recife, a contaminação do meio ambiente pelas indústrias, o lançamento de dejetos nos rios e a destruição de vidas nos manguezais da cidade (que haviam ficado supersaturados de plástico e outros resíduos) levaram a uma autossufocação. Se os rios e estuários de Recife eram as veias e artérias do lugar, então a cidade estava sofrendo de uma terrível trombose.

Em meio a esse cenário, o movimento manguebit surgiu como uma revolução cultural nos anos 1990, basicamente para dizer “Chega!”, ao lado de diversos grupos ambientais voltados ao reflorestamento nos manguezais, que pretendiam arregaçar as mangas e entrar na lama até os joelhos a fim de retirar o plástico dos estuários.12 Esse novo movimento chegou com um novo som: o manguebit. O Fragmento III desta Bienal faz um tributo ao movimento manguebit como um descendente de todos os grandes movimentos que já surgiram no Brasil. Conforme afirma Melcion Mateu em seu ensaio “Nação Zumbi: Two Decades of ‘Crabs with Brains’ (and Still Hungry)”:

O termo “manguebit” é, em si mesmo, uma palavra-valise, híbrida, que faz referência a um cenário local (“mangue”) e à tecnologia global (“bit” ou dígito binário, como na ciência da computação):

11. Alice de Souza, “Life Reborn in the Mud”, Believe Earth, 17 nov. 2017. Disponível em: believe.earth/en/life-reborn-in-themud/. Acesso: 2025. 12. Ibid.

um movimento enraizado em seu próprio ambiente, mas conectado à tecnologia global […]. Uma antena parabólica inserida na lama se tornou a imagem conceitual para descrever um movimento que almejava conectar a cultural local à cena mundial.13

Ou seja, o manguebit é um paradigma conceitual que concilia as noções de maternidade, fertilidade, diversidade, produtividade com a noção de uma tecnologia, mídia digital ou computação que pode facilitar o sincretismo, que pode criar uma ponte não apenas através do Atlântico, mas entre aqueles que sobreviveram em terra firme e aqueles que ainda estão presos no abismo. A tecnologia nesse contexto tem um duplo propósito de conectar e subverter. O manguebit também deve ser entendido como a possibilidade de criar tecnologias, ciências e artes que não apenas reflitam o cotidiano, mas que também sejam fundamentais para a subversão dos terrores da normatividade. Dessa forma, as tecnologias e ciências que foram criadas para desprivilegiar as massas são reapropriadas e destituídas de seus propósitos originais no que podemos chamar de armas de subversão em massa.

O manifesto “Caranguejos com cérebro” se relaciona diretamente com a população de Recife, à qual muitos se referem coloquialmente como caranguejos que moram no mangue. Os caranguejos, assim como as lagostas e os camarões, são conhecidos por serem mestres da navegação em seus territórios e até mesmo em territórios desconhecidos, pois são donos de uma memória sofisticada. Descobriu-se que eles têm uma capacidade cognitiva para aprendizado complexo, apesar de seus cérebros rudimentares. No artigo “Clever Crustaceans”, Erica Westly afirma que caranguejos “podem se lembrar da localização de um ataque de gaivotas e aprender a evitar aquela área. Entre os mamíferos, esse tipo de comportamento envolve múltiplas regiões do cérebro, mas um estudo publicado na edição de junho do Journal of Neuroscience sugere que o caranguejo C. granulatus pode se virar bem com poucos neurônios”.14 Experimentos feitos por neurocientistas da Universidade de Buenos Aires para testar a capacidade de memória dos caranguejos mostraram que eles podem

13. Melcion Mateu, “Nação Zumbi: Two Decades of ‘Crabs with Brains’ (and Still Hungry)”, Crítica Latinoamericana, 5 dez. 2012.

14. Erica Westly, “Clever Crustaceans”, Scientific American Mind, v.22, n.5, nov. 2011, p.14.

reter informações por mais de 24 horas, que é o parâmetro clínico para a memória de longo prazo na maioria dos animais, incluindo os humanos. E mais: eles demonstraram a capacidade de aplicar o conhecimento adquirido para seu próprio bem-estar e sobrevivência. Os pesquisadores atribuíram esse comportamento aos neurônios lobulares gigantes dos caranguejos, que aparentemente conseguem armazenar informações sobre diferentes estímulos. Sabe-se que os caranguejos aprendem a partir de seus erros, que são ambidestros, que têm um senso de compaixão que os leva a proteger seu território e que as mães-caranguejo são muito zelosas, chegando a colocar conchas de caramujo em volta de seus filhotes para que eles absorvam mais cálcio. Este é um convite para que artistas, intelectuais e pessoas das mais variadas camadas sociais reflitam sobre o cérebro social e cultural do coletivo, que exprime o ambidestrismo, a inteligência e a prudência dos caranguejos como uma forma de ser no mundo, como uma forma de ser um humano melhor. Este é um convite para que artistas, intelectuais e pessoas das mais variadas camadas sociais ponderem sobre espaços como os estuários e os manguezais, que são uma evidência de solidariedade, de coexistência de uma variedade de seres, plantas, animais e micélios que, em sua maioria, ajudam na subsistência uns dos outros, quando abandonados pelos humanos. Portanto, se essas criaturas que têm o que nós, humanos, chamamos de “cérebros primitivos” podem fazer um uso tão competente de sua memória e ter tanta compaixão, por que os humanos não podem? Ou será que eles podem?

A relação entre caranguejos e humanos, tão importante no movimento manguebit, já tinha sido descrita no romance seminal de Josué de Castro, Homens e caranguejos, lançado em 1967. Na época, Josué de Castro era conhecido por sua pioneira obra ecológica sobre a política da fome, Geografia da fome, publicada em 1946. Médico em Recife, Castro havia conduzido estudos com trabalhadores e declarado que a “doença basal” deles era a fome, que se manifestava clinicamente como anemia, desnutrição calórico-proteica e muito mais. Ele estabeleceu uma relação entre a realidade socioeconômica da população de Recife e sua manifestação biológica da fome. Em Homens e caranguejos, seu trabalho posterior, escrito durante o exílio em Paris, ele conta uma história ficcional de pobreza relacionada a sua infância, narrando a trágica vida do jovem João Paulo.

O autor entrelaça a história das lamentáveis condições de vida de todas as pessoas ao redor do garoto com a narrativa do padre Aristides, que tem um desejo insaciável pelo caranguejo conhecido como guaiamum. Naquele espaço de exílio e desesperança, Castro deu de presente ao mundo um livro que pinta a realidade dos “condenados da terra”. Não chega a surpreender que o personagem principal, João Paulo, desapareça durante uma trágica enchente que literalmente apagou toda a aldeia. Mas, como escreve Castro, o que levamos conosco são “seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama”.15

Essas relacionalidades entre os seres da terra e das águas, aqueles nos pântanos, colocadas em evidência pelas bandas Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi de forma tão descontraída e crítica, essas relacionalidades entre gêneros diferentes, entre deuses e seres humanos e outras existências apresentadas por Mário de Andrade, essas relacionalidades propostas por Castro, essas relacionalidades que fazem a mediação entre os rumores de vários séculos atrás e os de hoje, que estabelecem uma negociação entre as vozes advindas do fosso e as vozes daqueles que ainda sobrevivem… Todas essas relacionalidades dialogam com um cérebro abrangente e resiliente: o cérebro do mangue. O primeiro manifesto do mangue, “Caranguejos com cérebro”, foi estruturado em uma trilogia: “Mangue, o conceito”, “Manguetown, a cidade” e “Mangue, a cena”… Agora podemos imaginar “Mangue, a exposição”. Uma exposição que nega a noção darwiniana de sobrevivência do mais apto e prega a coexistência, a interdependência, o amor, a alegria, a beleza como base para a intratável beleza do mundo.

15. Josué de Castro, Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967.

Estrutura

Exposição/Manifestação: esta mostra reúne artistas das Américas, da África, da Ásia, da Europa e da Oceania que trabalham em diferentes disciplinas e fazem experimentações em forma e conteúdo para ter suas obras expostas no Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Será dada uma ênfase especial a práticas sonoras.

Invocações/Afluentes: mantendo-nos fiéis à metáfora do estuário, evocamos aqui o conceito de afluente para conotar os espaços por meio dos quais um corpo d’água flui em direção a outro. Neste projeto, os Afluentes são programas desenvolvidos com instituições culturais em São Paulo e ao redor do mundo – formatos discursivos e performativos do projeto (palestras, oficinas, leituras de poesia, música, instalações, performances). Os programas que acontecem no período que antecede a exposição da Bienal são chamados de Invocações, e aqueles que ocorrem em paralelo são chamados de Afluentes. As reflexões proporcionadas pelas Invocações servem de base para as manifestações no Pavilhão Ciccillo Matarazzo e no Parque Ibirapuera. Elas são uma referência tangencial à 32ª Bienal de São Paulo (2016), com curadoria de Jochen Volz, na qual foram organizados Dias de Estudo em quatro cidades ao redor do mundo.

Programa público: o programa público é composto de uma série de performances, gestos sônicos, sessões de contação de histórias e palestras. No cerne do programa público estará a “Radio du conte vivant”, que remete ao projeto Mobile Radio da 30ª Bienal de São Paulo (2012), com curadoria de Luis Pérez-Oramas e intitulada A iminência das poéticas. A “Radio du conte vivant” se inspira na seminal palestra de Patrick Chamoiseau,16 “Circonfession esthétique –Le conteur, la nuit et le panier” [Circonfissão estética – O contador de histórias, a noite e o cesto], em que o autor discute a importância da “oralitura” como uma estratégia narrativa essencial nas culturas caribenhas, utilizando “fábulas, jogos de palavras, rimas, adivinhas, canções, uma filosofia popular transmitida por meio de provérbios […]”. Ele acrescenta que “a transmissão é, portanto, feita essencialmente sem muitas palavras, por meio de proximidade, observação, imitação, sensação, humildade e aquela dose de inconsciência necessária para que se busque ser um mestre da palavra”.

16. Patrick Chamoiseau, “Discours inaugural de la Chaire d’écrivain en résidence”, Sciences Po, Paris, 27 jan. 2020.

Programa educativo: a contação de histórias como prática para conjugar a humanidade será o modus operandi do programa público e do programa educativo, e isso está alinhado com o que Chinua Achebe disse quando lhe perguntaram, durante uma entrevista de 1998, “qual é a importância das histórias?” Ele respondeu:

Bem, contar histórias é o que nos torna humanos. E é por isso que insistimos. Sempre que estamos em dúvida sobre quem somos, recorremos às histórias porque é o que fizemos na raça humana. Não há grupo que não faça histórias. Contar quem nós somos – e deixar que as histórias nos lembrem disso –parece ser um ponto determinante da própria natureza, da própria constatação de nossa humanidade. Pois haverá dias em que não teremos tanta certeza de que somos humanos ou, o que é ainda mais comum, de que outras pessoas são humanas. É nas histórias que entendemos a continuidade dessa afirmação de que você é humano e de que sua humanidade depende da humanidade de seu vizinho.17

Coro: uma parte importante tanto do programa público quanto do programa educativo é a criação do coral “The Tout Moun Choir” para a 36ª Bienal de São Paulo, bem como colaborações com corais locais. O nome do coral vem da máxima da revolução haitiana “Tout Moun Se Moun”, que declara que todos os seres humanos são iguais, que todo humano é um humano e, portanto, tem o direito de ser tratado como tal com o devido respeito e dignidade. Os corais são o epítome da interdependência coletiva.

Adoção de obras: os cidadãos são convidados a adotar obras de arte para promover a exposição. Ao fazer isso, eles se aproximam dos artistas e podem servir como mediadores entre as obras e o público.

17. “Nigerian Author Chinua Achebe in 1998”, New York State Writers Institute, out. 1998. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=vKDupjm2fU8. Acesso: 2025.

Capítulo 1 Frequências de chegadas e pertencimentos

A exposição se inicia com um conjunto de obras que conecta o visitante aos sons, imagens, texturas e energias do Parque Ibirapuera. As obras neste capítulo tematizam a generatividade e a agência do solo e da terra, nosso enraizamento na terra e a relação de dependência que a humanidade mantém com ela. O mesmo solo que nos constitui e ao qual inevitavelmente retornaremos. Nesta era de extrativismo, refletir sobre o solo e a terra em sua totalidade torna-se urgente, sobretudo quando a humanidade tem sido protagonista na destruição de territórios e do meio ambiente. Imagine percorrer essas paisagens sonoras, olfativas, táteis e visuais ao som de “O serpentear da natureza”, de Mateus Aleluia (do álbum Fogueira doce), ou “Into the Woods” [Na floresta], de Büşra Kayikçi (do álbum Places [Lugares]). Conjugar a humanidade significa necessariamente curar a terra, reparar nossa relação com ela e coexistir de forma plena com a natureza. Enquanto conflitos pelo direito à(s) terra(s) assolam o mundo, precisamos reconhecer que não somos seus donos, é ela que nos possui.

Essa mudança de perspectiva revela o humano como parte ínfima do pluriverso, chamado a se relacionar com outros seres em harmonia, não em competição. As obras deste capítulo também abordam o anseio por referenciais físicos, sociais, culturais e

psicológicos, que definem nossos pertencimentos. Pertencer a lugares, comunidades e estruturas sociais que transcendem o Estado-nação. Pertencer uns aos outros e ao mundo. A escuta surge aqui como uma prática fundamental, pois conjugar a humanidade exige ouvir com atenção não apenas nossos pares, mas todos os seres. Pertencer mutuamente demanda engajamento profundo que transcende palavras. Neste capítulo, ouvir se torna um ato visceral que requer presença total. Para conjugar nossa humanidade compartilhada, precisamos sintonizar não apenas as vozes ao nosso redor, mas também os ritmos silenciosos de todos os seres com quem coexistimos. Uma escuta que nasce no corpo, que exige nossa presença total, a capacidade de sentir a energia de um espaço e reconhecer os diálogos não ditos que habitam nossos lugares em comum. Escuta como pré-requisito para qualquer ato de libertação, como alicerce do quilombismo, como catalisadora do estar-em-relação.

A exposição se configura aqui como espaço em diálogo ativo com o Parque e com todas as vibrações que emanam dele.

Precious Okoyomon

Como seriam os momentos de quietude e calmaria em meio ao burburinho de um evento como a Bienal de São Paulo? Que espaços de repouso coletivo poderíamos imaginar, e como eles transformariam a experiência do público enquanto seus corpos se movem pelos corredores repletos de obras?

Em diálogo com a proposta curatorial desta edição, Precious Okoyomon, artista dos Estados Unidos com ascendência nigeriana, apresenta Sun of Consciousness. God Blow Thru Me – Love Break Me [Sol da consciência. Deus sopra através de mim – o amor me quebra] (2025), instalação que ressignifica parte do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Com obras ousadas e monumentais, Okoyomon transita entre poesia, comida e instalação, combinando elementos sonoros com materiais orgânicos em constante transformação – pedras, plantas, árvores e musgos. Transitando sem esforço entre várias disciplinas, assume com naturalidade os papéis de artista visual, poeta, chef, cineasta e de quem compõe músicas, tendo a poesia e a palavra poética como fios condutores. Como revela em entrevistas, muitos de seus poemas germinaram antes dos objetos, tornando-se sementes de suas criações visuais.

the sun eats her children [O sol devora os filhos dela], 2023. Vista da instalação na Sant’Andrea De Scaphis, Roma. Foto: Daniele Majoli. © Precious Okoyomon. Cortesia: artista, Sant’Andrea De Scaphis e Gladstone Gallery.

Ao destacar a vulnerabilidade humana e nossas relações complexas e intrínsecas com o não humano, Okoyomon, nesta obra comissionada, dirige seu olhar metafórico para o Cerrado e seu ecossistema aparentemente caótico e frágil, traçando paralelos entre um dos maiores biomas do Brasil e a sociedade. Aqui o caos, frequentemente atribuído tanto à natureza quanto à humanidade, não remete a cacofonia ou desordem. Refere-se antes às relações simbióticas e imprevisíveis que emergem dos múltiplos encontros interdependentes entre seres animados e inanimados, formando igualmente a espinha dorsal do Cerrado e de nossas sociedades. Aquilo que Édouard Glissant denomina de Chaos-Monde1 em reflexão sobre os choques e encontros culturais. Ecoando o provérbio em pidgin “Bodi no be fayawood” [O corpo não é lenha para queimar], a obra Sun of Consciousness. God Blow Thru Me – Love Break Me enfatiza a necessidade de acolher o descanso e o refúgio como espaços produtivos, especialmente num mundo em constante transformação e ritmado pela lógica capitalista.

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

1. Entrevista com Yan Ciret publicada em Chroniques de la scène monde. Paris: Éditions La Passe du Vent, 2000.

ONE EITHER LOVES ONESELF OR KNOWS ONESELF [Ou se ama ou se conhece], 2025. Vista da exposição individual the world requires something of me and I’m looking for a place to lie down no Kunsthaus Bregenz. Foto: Markus Tretter. © Precious Okoyomon, Kunsthaus Bregenz.

To See The Earth Before the End of the World [Ver a Terra antes do fim do mundo], 2022. Vista da instalação na 59ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia, The Milk of Dreams, 2022. Foto: Clelia Cadamuro. Cortesia La Biennale di Venezia.

Gê Viana

No cruzamento entre fé, sonoridade e pertencimento, Gê Viana investiga as vibrações que sustentam comunidades negro-indígenas, nas quais a música não é apenas expressão cultural, mas inscrição histórica carregada de insubmissão. Sua pesquisa parte da experiência e desdobra-se como uma narrativa viva, conectando corpos, territórios e afetos ao entrelaçar memórias reais e fictícias. Assim, a artista desmonta cenas cristalizadas na historiografia oficial e amplia leituras sobre as heranças culturais no Brasil. Articulando uma arqueologia visual e sonora que remonta pedaços de registros – dentro do discurso hegemônico ou no imaginário popular –, ela cria obras que se tornam símbolos de resistência.

Ao desafiar narrativas coloniais, Viana resgata a dignidade de populações marginalizadas e elabora uma prática afetuosa que transita entre o analógico e o digital. Suas obras deslocam marcas da violência racial e instauram sentidos de libertação imaginativa, algo que Édouard Glissant chamou de “superação do trauma colonial”. As radiolas do Maranhão, as batidas do reggae e os tambores dos terreiros emergem como camadas sensíveis em suas produções, ressoando memorações que desafiam o silenciamento histórico. A tradição do reggae maranhense, captada pelos sentidos da artista, revela-se como um gênero que, embora marginalizado, construiu um território próprio, enraizado nas diásporas negras e na luta pela permanência. Potentes sistemas de som e ritmos ancestrais estruturam sua obra, em que ruídos, ecos e pulsações atuam como forças insurgentes que entoam celebrações comunitárias, formando uma tessitura que transcende a experiência estética: são rastros de uma trajetória coletiva que desafia o esquecimento.

Mastro do Divino Espírito Santo – Festa de Pai Honório, Casa Nossa Senhora de Sant’Ana, Paço do Lumiar, MA, 2025. Fotografia em preto e branco.

Para além do impacto harmônico, sua prática carrega um compromisso político inegociável. Suas imagens evocam o passado das diásporas, mas sem fixar esses corpos na dor – pelo contrário, ela os insere em universos poéticos de fabulação, resistência e futuridade. Suas criações operam como portais nos quais os tempos se confundem, e os ecos de outras histórias ainda podem ser escutados.

A fusão entre arquivo e criação especulativa revela uma busca por continuidades interrompidas, por narrativas soterradas que insistem em emergir. A cada justaposição de imagens, a cada deslocamento de uma fotografia antiga para um novo suporte, a artista constrói uma cartografia em que todos os tempos vibram juntos, e na qual o futuro não é apenas uma espera, mas um chamado à invenção. Seja na reconfiguração imagética ou na amplificação de frequências seculares, sua poética constrói um espaço onde continuidade e ruptura coexistem. Suas obras não apenas documentam, mas abrem caminhos para que as sonoridades visuais permaneçam como matéria pulsante, promessa de futuro e convite à escuta de sussurros antigos que nunca deixaram de vibrar: a melanina, o amor, a fé, a luta, a invenção e a comunidade.

Quilombo Santa Rosa dos Pretos – Festa da Cabocla Tereza Légua na crôa da mãe Severina Silva em homenagem a São Sebastião e obrigação de ano do serviço de dois filhos de santo “cavaleiros” do Caboclo Roxo e Caboclo João da Mata, Itapecuru Mirim, MA, 2024. Fotografia em preto e branco.

Nádia Taquary

Em suas esculturas, Nádia Taquary evoca o poder feminino por meio da fundição do bronze. Ao transmutar o metal e moldá-lo, a artista imprime um refinamento técnico que remete à suntuosa produção milenar africana. Sua obra ressignifica tradições de matrizes africanas, trazendo à tona tecnologias, narrativas e estéticas que foram historicamente ignoradas ou apropriadas pelo Ocidente.

A partir de seus estudos sobre a joalheria afro-brasileira, Taquary mergulha na história ancestral, religiosa e afro-feminina. As joias, como as pencas de balangandãs que adornavam as cinturas de mulheres negras no período escravagista, são símbolos de força e poder. Ao expandi-las para o tridimensional, a artista desconstrói narrativas impostas pelo colonialismo e pela própria história da arte.

Mulher Pássaro, 2021. Bronze.

185 × 55 × 75 cm. Menina Pássaro (Areyegbó), 2023. Bronze.

155 × 55 × 45 cm. Foto: Thales Leite.

Na instalação Ìrókó: A árvore cósmica (2025), criada para a 36ª Bienal de São Paulo, a artista aprofunda sua relação com os materiais e com a forja do bronze. Utilizando fibra de vidro, esculturas em bronze representando as Ìyámis (entidades femininas ancestrais) e fios de contas nas cores da divindade Ìrókó, a obra evoca o conhecimento ancestral por meio do ciclo da vida. Ìrókó, orixá senhor do tempo e da ancestralidade, passou a ser cultuado no Brasil por meio da gameleira – árvore presente nos terreiros de religiões de matriz africana, sinalizada por uma bandeira branca. Ìrókó é o antídoto para os males, a calma após a tempestade, a inevitabilidade da vida. Foi a primeira árvore plantada e, segundo a tradição, foi por ela que os orixás desceram à Terra, e sobre ela pousaram as feiticeiras Ìyámis.

Obaluaê (série Dinka Orixás), 2018. Miçangas de vidro, búzios, cobre, cabaças e palha-da-costa. 160 × 40 × 12 cm. Foto: Sérgio Benutti.

Mundo, 2012. Ferro, búzios, palha e colares de madeira. 108 × 45 × 45 cm (esfera); 100 × 100 cm (base). Foto: Beatriz Franco.

Madame Zo

Sem título (Style Déménagement) [Estilo mudança], 2013. Fibra de bananeira, carretel e grama. 216 × 118 × 1 cm. Foto: Nicolas Brasseur, ADAGP, Paris, 2023. Cortesia Fondation H, Antananarivo.

Conhecida como Madame Zo, seu nome artístico, Zoarinivo Razakaratrimo (1956-2020) foi uma figura importante na cena artística malgaxe, famosa por suas obras que constantemente borravam os limites entre arte e artesanato. Formada em tecelagem e tingimento têxtil, Madame Zo se inspirava em técnicas e padrões tradicionais malgaxes, produzindo obras abstratas únicas e características, carregadas politicamente devido à sua capacidade de elaborar questões sobre temas ambientais e sociopolíticos em Madagascar. Em um esforço consciente para repensar os limites das práticas de tecelagem convencionais, Madame Zo integrou objetos atípicos e inesperados aos seus tecidos, complementando os materiais usados tradicionalmente, como algodão e seda. Com frequência oriundos do cotidiano, esses recursos, para além de sua estética ou mera funcionalidade, forneciam informações sobre o processo criativo da artista e seu profundo engajamento com seu meio e as pessoas que o constituíam. No contexto da 36ª Bienal de São Paulo, uma seleção de suas obras proporciona um vislumbre em profundidade da prática de Madame Zo, que se estendeu por quase cinco décadas. Tecidas com fios de cobre, ervas, madeira, plástico, pedaços de comida e fitas magnéticas, só para mencionar alguns exemplos, as escolhas e o uso de cada material por Madame Zo chamam nossa atenção para algumas das urgências específicas que ela buscou abordar. O cobre, que aparece de modo predominante em seus trabalhos,

L’Éclair [O relâmpago], 2015. Linha, jornal recortado e fita magnética. 229 × 192 × 1 cm. Foto: Nicolas Brasseur, ADAGP, Paris, 2023. Cortesia da Fondation H, Antananarivo.

Sem título, 2019. Cavacos de madeira, tecido, filme 16 mm e linha de algodão. 111 × 77 cm. Foto: Nicolas Brasseur, ADAGP, Paris, 2023. Cortesia da Fondation H, Antananarivo.

poderia ser lido como uma referência às tecnologias de comunicação, mas também à cura, devido à sua capacidade de conduzir energias – o que Bonaventure Soh Bejeng Ndikung chamou de os aspectos “técnico-espirituais” do cobre em um texto escrito sobre as obras de Madame Zo.1 Além disso, materiais como ervas ou papel, sobretudo na forma de recortes de jornal, referem-se ao seu engajamento com práticas terapêuticas alternativas e a disseminação de informações, respectivamente.

No que poderia ser lido como uma retrospectiva, a constelação de obras apresentada no Pavilhão Ciccillo Matarazzo alude, antes de tudo, a uma retrospecção – uma recontextualização de cada obra, particularmente na medida em que elas dizem respeito ao tema da Bienal deste ano e convidam a conjugar a humanidade em suas múltiplas manifestações.

1. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, “Spacemaking and Shapeshifting in Mme Zo’s Weaving Practice”, em Madame Zo. Bientôt je vous tisse tous. Paris: Fondation H, 2024.

Frank Bowling

Agnes, 2025. Acrílica, gel acrílico sobre tela com objetos encontrados e marouflage. 193,5 × 280,2 cm. Foto: Anna Arca. © Frank Bowling. Todos os direitos reservados, DACS 2025.

Pouring Over 2 Morrison Boys & 2 Maps I [Debruçando-se sobre 2 garotos Morrison e 2 mapas I], 2016. Acrílica e gel acrílico sobre tela com marouflage. 293 × 183 cm. Foto: Jess Littlewood. © The Frank Bowling Foundation. Todos os direitos reservados, DACS 2025. Cortesia The Frank Bowling Foundation.

A prática de Frank Bowling inspira-se na pintura de campo de cor e no expressionismo abstrato. A prioridade que dá ao processo e às propriedades da tinta é fundamental em suas obras. Combinando abstração, paisagens e cartografia, sua produção caracteriza-se por uma relação experimental e espontânea com a forma, a cor e a estrutura. Com uma prática em constante evolução, Bowling começou a sua carreira com uma pintura mais figurativa antes de passar para a abstração pura na década de 1970, enraizando o seu trabalho numa convergência de técnicas e estilos que permanece evidente em sua obra até os dias de hoje.

“A negritude não é mais bem expressa no sentido literal pela pintura de um rosto negro do que o é por uma linha negra”,1 escreveu Frank Bowling em 1970. Não existe um símbolo que represente a experiência da negritude mais do que outro símbolo. A abstração é tão eficaz quanto a figuração na construção do significado negro, talvez porque

nenhuma das duas seja eficaz. Os símbolos nas pinturas de Bowling são uma coleção de significantes iconográficos que o artista organiza em séries temáticas. Apoiando-se na abstração, Bowling cria arranjos composicionais que mantêm-se como vestígios opacos de massas terrestres e formas. Sul-americano, nascido na Guiana, Bowling passou sua carreira de mais de seis décadas vivendo entre Londres e Nova York. A escolha do artista de representar as formas dos continentes e ilhas reflete uma eliminação das relações assumidas entre cor e identidade, nação e personalidade. Formas que antes pareciam representativas, como continentes e ilhas, são abstraídas para revelar que mesmo a ilusão da forma tem uma grande influência na mensagem extraída da pintura. Para Bowling, “o tema da pintura é a tinta”, afirmou o filho do artista, Ben Bowling, em 2024.2 A ilusão de significado tem sua base na percepção dos elementos formais pelo olho humano. Comprometidas com o processo, as composições de Bowling também questionam a política da cartografia, um motivo onipresente em sua obra. Na série Map Paintings [Pinturas de mapas] (1967-1971), o continente sul-americano começa como um contorno formal atribuído às fronteiras cartográficas, tornando-se depois um resquício de uma forma para além da cartografia. O motivo é abstraído à medida que o continente se torna uma amalgamação de retângulos e, mais tarde, linhas verticais que se estendem do topo de uma pintura até a parte inferior. Em abstrações que parecem retratar horizontes ou paisagens, encontramos motivos de continentes e linhas longitudinais que parecem revelar-se novamente. A ideia de forma, horizonte, atmosfera, fronteira e costa, no entanto, é apenas uma ilusão visual.

Margarita Lila Rosa Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

1. Frank Bowling, “Silence: People Die Crying When They Should Love”. Arts Magazine, v.45, n.1, set.-out. 1970, p.32.

2. “‘The Subject of Painting Is Paint’: On Frank Bowling”, The Nation, 10 jan. 2024.

Esta participação é apoiada por: British Council, como parte do Ano da Cultura Brasil/Reino Unido 2025-2026

Dancing [Dançando], 2023. Acrílica e gel acrílico sobre tela com marouflage. 413,2 × 197,5 × 4,3 cm. Foto: Anna Arca. © The Frank Bowling Foundation. Todos os direitos reservados, DACS 2025. Cortesia The Frank Bowling Foundation.

Sertão Negro

O Sertão Negro é uma proposição estética e política, uma iniciativa que tensiona fronteiras – entre arte e vida, entre comunidade, autonomia e organização coletiva, pertencimento e deslocamento. Fundado por Ceiça Ferreira e Dalton Paula, o projeto se inscreve como um território de criação que respeita a individualidade dentro de uma atuação conjunta, na qual a arte não se restringe à produção de objetos, mas se desdobra em um modo de habitar o mundo. Sediado em Goiânia, o Sertão Negro abriga um ateliê, residências para artistas nacionais e internacionais, cineclube, grupo de capoeira, cozinha ativa, hortas, jardins e viveiros que não são apenas metáforas de resistência, mas instrumentos concretos de busca por soberania e autodeterminação, evocando práticas quilombolas e de resistências indígenas, de antes e de agora. Ali, cultivo e criação se entrelaçam, tornando as noções de cuidado e continuidade em mais que palavras: o que se planta no Sertão é um modo de fazer e de pensar que transborda para além de seus muros.

Cineclube Maria Grampinho. Foto: Ceiça Ferreira.
Visitas mediadas. Foto: Jhony Aguiar.

Formado por cerca de trinta pessoas – incluindo artistas residentes, pesquisadores, cozinheiras, educadoras, curadores e integrantes do Sertão Verde, núcleo voltado à agroecologia e à soberania alimentar –, o grupo promove debates e trocas de experiências em meio a um modelo alternativo de intercâmbio, em que os processos, sempre múltiplos, importam tanto quanto a produção artística em si. A base do projeto está fincada nos quilombos e nos terreiros – espaços de resistência e conhecimento –, bem como nas técnicas ancestrais de construção e nos saberes da terra.

Na 36ª Bienal de São Paulo, o Sertão Negro se manifesta como espaço ativo e expandido. Em colaboração com a equipe de educação da Fundação Bienal, o grupo propôs uma programação pública com oficinas, ateliês abertos, cineclube e ações no Parque Ibirapuera. Dentro do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, o trabalho se organiza em torno de dois círculos de pedra, inspirados no espaço do Sertão Negro onde se tomam decisões coletivas. As pedras, emprestadas pelos Guarani do Jaraguá, representam um gesto que respeita a relação com o tempo da terra. Duas paredes compõem o espaço: uma apresenta a história do projeto por meio de fotos e documentos; a outra projeta as atividades e processos em curso. Há também um balcão de taipa, construído com saberes ancestrais, onde acontecem oficinas de botânica e práticas de cozinha. Essas ações são ferramentas para imaginar e construir outras formas de estar no mundo, num campo de experimentação coletiva em que a arte se dá como processo em fluxo, em diálogo com múltiplas temporalidades e territórios.

Sertão Verde – Agroecologia Lab Inhotim. Foto: Jhony Aguiar.

Sallisa Rosa

Sallisa Rosa trabalha com a memória, formada em peças de barro, desenhos, instalações, fotografias, entre outros meios. Há mistérios encarnados que experimentamos no contato com os objetos e os espaços que ela produz. Nossa presença sensível encontra outras, que ali permanecem há mais tempo, e a história se faz num diálogo em atraso. A coleta é um procedimento central em sua obra. Para seus objetos ou instalações, a artista recolhe o barro de diversos territórios. Pergunto-me se a terra teria uma memória própria – de seus usos e, consequentemente, dos abusos que sofreu. Então, tomo o barro como uma memória ancestral, como o sedimento da história.

A memória também é atributo das plantas, dos animais, dos rios e de outros seres. Todos registram sua trajetória, a absorção do tempo e as transformações do lugar. Galhos, por exemplo, revelam as formas com que uma árvore responde à escassez ou abundância de água, às mudanças no solo, ao ar, às interações com outros corpos. Ao lidar com essa matéria, Sallisa Rosa atua com um material histórico. Quando coleta elementos para suas obras, talvez esteja recolhendo documentos de uma história ainda não contada, elaborada pelos gestos de construir. Questiono-me se seria possível herdar gestos ao manusear uma matéria carregada de tempo, como uma memória dos toques. O gesto é a expressão de um corpo que, a cada instante, lida com o conjunto de memórias inscritas nele. Com esses gestos, a artista ergue objetos que crescem como corpos ocos ou seres compostos por fragmentos suturados. Ergue paredes, inventa novos lugares, novos territórios. Com os gestos que herda, ela toma parte no uso da terra.

Sua prática se ancora também na coletividade, quando reúne um grupo de pessoas para trabalhar, estar, comer, plantar, pensar e sentir juntas. Nesses momentos, o trabalho de arte nasce da partilha de saberes sobre construção, materiais, modelagem, queima de cerâmica, entre outros. As formas de fazer narram esses encontros e condensam o saber específico de um grupo – sua maneira de lidar com a vida. Com a memória da matéria organizada pelos gestos de quem trabalha, a obra de Sallisa Rosa constrói uma narrativa em que o tempo tem a forma de seu labirinto: há várias entradas e saídas, e os caminhos são espiralados. Fora da linearidade, é possível retornar por onde se veio para experimentar odores, sons, temperaturas. No labirinto, o corpo avança por intuição, arrisca perder-se apenas para ver o que há do outro lado de um muro. Há sempre outros lados – e cada caminho leva a outro.

Topography of Memory [Topografia da memória], 2023. Fotos do processo e vista da instalação na Collins Park Rotunda, Miami, comissionada por Audemars Piguet Contemporary.

Carla Gueye

Sisters and I [Irmãs e eu], 2023. Cal e areia. Dimensões variáveis. Foto: Ibra Wane.

Carla Gueye, em sua prática multidisciplinar, investiga as noções de intimidade e transculturalidade, explorando como essas questões se manifestam e reverberam no contexto familiar. Suas obras propõem reflexões sobre as complexidades da identidade, das relações afetivas e das experiências que emergem dos encontros e tensões entre diferentes culturas. Ao se aproximar da alteridade, seu trabalho revela também dimensões emocionais, artísticas e socioecológicas. Ao empregar materiais como cal e barro, Gueye não apenas explora suas propriedades físicas, mas também constrói narrativas que reconfiguram saberes e imaginários culturais. Temas como a memória, a figura feminina e os processos enraizados na escavação e reapropriação de narrativas parcialmente confiscadas atravessam sua produção, que se torna, simultaneamente, uma forma de reinscrever

e compreender sua própria história. O trabalho manual que permeia sua poética estabelece uma relação íntima, quase doméstica, com os materiais, evocando, de modo metafórico, a ideia de construção, tanto em sua dimensão social quanto humanista. Assim, suas obras se configuram como espaços sensíveis de diálogo e reflexão sobre cultura, identidade e as complexas tramas que moldam a experiência humana.

Cabinet of Invisible Desires [Gabinete dos desejos invisíveis] (2025) é uma instalação interdisciplinar que explora as dimensões sensoriais, simbólicas e culturais da intimidade por meio de uma releitura contemporânea de rituais femininos de sedução, especialmente aqueles associados ao dial diali, a arte wolof da sedução. O projeto utiliza uma linguagem híbrida que combina escultura, tecido, vídeo e composição olfativa para propor uma estética do desejo enraizada em gestos invisíveis do cotidiano, em saberes vernaculares e nos arquivos sensíveis do corpo.

Ana Paula Lopes

Esta participação é apoiada por:

Institut français, através do programa

IF Incontournable

Malika Agueznay

Pintora, escultora e gravurista, Malika Agueznay é uma mulher pioneira na arte moderna e contemporânea marroquina. Estudou na Escola de Arte de Casablanca entre 1966 e 1970, durante a era de ouro e a revolução pedagógica liderada por Farid Belkahia, Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa. Agueznay é uma das poucas artistas mulheres que estudaram nesse período da Escola de Casablanca e que seguem em atividade até hoje. Sua trajetória se entrelaça com a de outros nomes fundamentais como Abdallah Hariri, Houssein Miloudi e Abderrahmane Rahoule. Tornou-se conhecida por seu padrão icônico de algas, que se desdobra em diversas técnicas, da gravura à pintura (com ou sem relevo) e à xilogravura. O tema atua como estruturas celulares que crescem e proliferam organicamente em paisagens abstratas – um padrão polimorfo e fluido, usado tanto como estratégia visual quanto associado a textos caligráficos, entre arborescências botânicas e evocações antropomórficas femininas. Suas composições aquáticas ou atmosféricas, que fundem oceanos, constelações e sóis, podem ser lidas como uma resposta decorativa e feminina à arte cinética e minimalista ocidental.

Entre as diversas plataformas da Escola de Casablanca, Agueznay destacou-se no Festival Cultural Moussem de Asilah, onde artistas eram convidados a pintar murais desde 1978. Atuou especialmente no ateliê de gravura. Desde a primeira edição do festival, ela assumiu um papel importante na oficina de Roman Artymowski antes de estudar gravura com Mohammad Omar Khalil e Robert Blackburn em Nova York. Agueznay, que assumiu a liderança do ateliê de Asilah quando Khalil o deixou, é a primeira mulher gravadora do Marrocos.

Em 1981, integrou um grupo de artistas e ativistas (incluindo Melehi, Chabâa e Chaïbia Talal) convidados pelo psiquiatra Abdellah Ziou Ziou para organizar um programa artístico-colaborativo que incluía pinturas murais e cinema, envolvendo o hospital de Berrechid. O projeto visava reabilitar o papel da psiquiatria e dos pacientes na sociedade marroquina, evitando sua marginalização. Agueznay colaborou com a historiadora da arte e antropóloga Toni Maraini no programa dedicado às mulheres internadas. Suas abstrações orgânicas têm múltiplos pontos de origem dentro de uma mesma cosmogonia ou sistema de signos.

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Arab Fund for Arts and Culture

Le Soleil [O sol], 1970. Acrílica sobre madeira. 54 × 54 cm. Cortesia da artista e Amina Agueznay.

Oscar Murillo

The flooded garden [O jardim inundado], 2024. Vista da exposição na Tate Modern, Londres. Foto: Tim Bowditch. © Oscar Murillo.

The flooded garden [O jardim inundado], 2024. Atividade na Tate Modern, Londres. Comissionada como parte do programa Uniqlo Tate Play. Foto: Sophie Shaw. © Tate. Cortesia do artista e Tate.

Oscar Murillo apresenta A Song to a Tearful Garden [Uma canção para um jardim que chora] (2025), uma pintura coletiva e site-specific no Parque Ibirapuera. Os visitantes da Bienal encontrarão estruturas curvilíneas de andaimes dispostas em ambos os lados do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, cada uma com telas em branco e materiais artísticos para que o público crie uma série de pinturas em grande escala. Semanalmente, as intervenções do público formarão camadas sobrepostas de tinta, criando um espaço de reflexão em contraste com a energia cosmopolita da cidade ao redor. Nessa dualidade entre natureza e modernidade urbana, as telas testemunham a ideia de uma escuridão que assombra superfícies aparentemente harmoniosas. Essa é uma preocupação frequente na obra de Murillo, que aqui dialoga com a biografia de Claude Monet e suas famosas Ninfeias (1920-1926), pintadas enquanto o artista lidava com a catarata e a perda progressiva da visão. No Parque, essas telas colaborativas tornam-se uma ode ao entorno: uma canção para um jardim que chora.

Antes da instalação, Murillo convidou amigos, familiares e público para criar a camada base das pinturas, em sessões de desenho em diversas partes do mundo. As telas viajarão para São Paulo atravessando o Atlântico, passando por África, América Latina e Caribe, celebrando um espírito coletivo ancorado no exercício do gesto pictórico, processo que o artista chama de mapeamento social. Os resultados, com suas marcas acumuladas, encarnam a passagem do tempo, o fluxo de pessoas e os marcadores geográficos que nos conectam. As próprias estruturas evocam o poder do coletivo em espaços comuns, usando gestos, repetição e transbordamento de traços para ativar tanto espectadores quanto participantes.

Essa energia coletiva ecoa na instalação Mesmerizing Beauty [Beleza hipnotizante] (2025), apresentada dentro do Pavilhão. A obra reúne paisagens marinhas pintadas a óleo sobre caixas de papelão, onde ainda vislumbramos vestígios de sua vida anterior como embalagens comerciais sob as pinceladas gestuais de Murillo. Apoiadas em hastes de madeira e presas a cadeiras plásticas descartáveis, as peças manifestam uma dissonância que dialoga poeticamente com a participação pública ocorrendo do lado de fora. O artista colaborará com a equipe de educação da Bienal, convidando instituições culturais e educacionais a contribuir com essa obra coletiva, abraçando o conceito curatorial de refletir sobre a humanidade, ocupar espaços e fomentar encontros.

Texto fornecido pelo artista Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Masses [Massas], 2024. Vista da exposição individual no WIELS, Bruxelas. Foto: Reinis Lismanis. © Oscar Murillo.

Capítulo 2 Gramáticas de insurgências

Ser humano é resistir a todas as formas de desumanização. Nossa história é marcada por incontáveis exemplos de humanos desumanizando outros. Histórias, presentes e futuros das resistências assumem formas e matizes diversos, tornando-se o cerne deste capítulo.

Das resistências contra apropriação de terras, extrativismo, apagamento cultural, escravidões variadas até a oposição à exploração predatória da natureza.

As obras deste capítulo, embora situadas em contextos de violência ou colapso, não se deixam dominar por um mundo em ruínas. Há necessidade de denúncia, mas as gramáticas dessas resistências se manifestam em gestos sonoros ou espirituais, em esforços educativos e econômicos, em métodos físicos e psicológicos de enfrentamento, e muito mais. Emancipação (social, econômica, cultural e política) e soberania são pilares do chamado de Peter Tosh por direitos iguais e justiça.

Ser humano é desafiar a colonialidade do poder denunciada por Fela Kuti em “Colonial Mentality” [Mentalidade colonial], é transcender a monocultura da economia de plantation, as tendências autocráticas, a guerra como estratégia política e as hierarquias de poder, abraçando modos democráticos e plurais de habitar o mundo com responsabilidade e respeito.

Suchitra Mattai

to leave a trace [deixar um rastro], 2024. Saris usados, tecido, miçangas, grama seca e bustos esculturais de deusas. Cortesia Tampa Museum of Art.

Suchitra Mattai é uma artista e contadora de histórias indo-caribenha radicada em Los Angeles. Navegando de forma poética entre as águas do Caribe e do oceano Índico, Mattai entrelaça materiais e camadas inesperadas que (re)configuram e criam fricções críticas a partir das histórias e práticas de seus antepassados da Índia e da Guiana, cujas narrativas sussurram nos cantos da história. Explorando a oralidade e os arquivos familiares sobre as migrações oceânicas, ela tensiona e questiona, a partir de seu legado ancestral, o período do trabalho colonial por contrato, que promoveu a imigração de comunidades asiáticas (principalmente da Índia e da China) como substitutas da mão de obra no Caribe após a “abolição” da escravidão. Seu trabalho com materiais antigos e em desuso, por meio de práticas ancestrais como o bordado e a tecelagem em elementos têxteis associados ao cotidiano doméstico, transforma-se em um ritual que estabelece um diálogo entre tempos e espaços com suas criadoras originais e com as épocas em que esses objetos ainda tinham valor. Assim, ela ressignifica práticas e materiais antes considerados obsoletos.

Esse ritual se torna um ato de reivindicação, empoderamento e resistência, honrando o trabalho árduo e resiliente

Pappy’s House [A casa de Pappy], 2024. Saris usados, tecido, franjas e miçangas.

305 × 548 × 274 cm. Foto: Nicholas Lea Bruno. Cortesia ICA San Francisco.

becoming [tornar-se], 2024. Saris usados, tecido, aço inoxidável polido espelhado. Vista da instalação no Socrates Sculpture Park, Nova York. Foto: Scott Lynch.

das mulheres. Um gesto que acolhe outras possibilidades, distantes das lógicas ocidentais que monopolizam o discurso sobre questões contemporâneas de gênero e trabalho, abrindo assim um espaço equitativo de celebração e cura, tanto coletivo quanto individual.

É a partir dessas possibilidades que Mattai tece um universo ideal, onde se inserem outras consciências radicais: aquelas que se (re)escrevem como revoluções “silenciosas”, próprias das outras histórias do Caribe. Histórias que não se afogam, mas flutuam sobre as águas, alcançam as margens e narram múltiplas experiências a partir de outras cosmogonias, de modos de vida de mulheres e pessoas racializadas. Como mulher indo-caribenha, Suchitra Mattai as prestigia diretamente.

Mario A Llanos

Traduzido do espanhol por Sylvia Monasterios

Ana Raylander Mártis dos Anjos

A prática de Ana Raylander Mártis dos Anjos se desenvolve por meio de projetos de pesquisa de longa duração. Na obra de grande escala A casa de Bené (2025), Raylander volta seu questionamento investigativo para si mesma e seu núcleo familiar: “Estes fragmentos são o que sobrou da casa do meu bisavô, todos usados ou feitos por ele: um pedaço de cipó com uma base; um isqueiro em forma de bala; um cesto de bambu; uma cabaça; varas compridas e curtas de pau-mulato; e uma pequena caixa de madeira”.

A partir de um conjunto de objetos remanescentes da casa de pau a pique construída por seu bisavô Benedito Cândido, posteriormente demolida, Raylander constrói uma instalação que busca reconhecer a influência criativa do bisavô em sua formação política e poética. A artista ergue os alicerces da casa de Bené no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, trabalhando com materiais já recorrentes em sua prática – esculturas de colunas totêmicas têxteis, compostas de amarrações de tecidos obtidos de fibras naturais, tricôs de lã, camisas de algodão e tiras de couro –, ao mesmo tempo que incorpora novas técnicas e materiais. Entre esses novos elementos estão cestos de latão, esculturas e os objetos herdados da casa do bisavô, procurando resgatar a memória da família. Entre os itens efêmeros da instalação está um esboço da planta baixa da casa de Bené, desenhado por Efigênia, avó da artista, reforçando o compromisso de Raylander em explorar as possibilidades de reconstrução das histórias pessoais.

Arranjo 1 da série Sepulcro caiado, 2024. Cesto de cipó rústico e teresas brancas. Foto: José Pelegrini.

Distribuída pelos três andares do Pavilhão e disposta de maneira calculada e orgânica, a obra investiga as estruturas familiares como instituições duradouras, impostas tanto na memória quanto na forma. Sua importância é elevada pelo uso do bronze e pela presença simbólica das colunas, que representam os nove filhos do bisavô de Raylander. Os conjuntos de cestos metálicos remetem ao contexto local: a pequena cidade de Bela Vista de Minas (Minas Gerais), onde a atividade mineradora convive em contraste com práticas tradicionais como a cestaria. Desses cestos emergem esculturas têxteis que serpenteiam pelo espaço, funcionando como um cordão umbilical que conecta toda a instalação. Os sete objetos originais estão dispostos individualmente em alguns dos cestos, enquanto os demais contêm carvão, pedra, terra, minério, tabaco e outros materiais orgânicos que fazem parte da ecologia e da história daquele território e da família de Bela Vista de Minas. A totalidade desses elementos se entrelaça para tecer narrativas sobre história familiar, lugar, nação e pertencimento.

Nkule Mabaso

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Tobacco Studies [Estudos do tabaco], 2024. Vista da instalação na Galeria Luis Maluf, São Paulo. Foto: Estúdio em Obra.

Mansour Ciss Kanakassy

Há mais de duas décadas, Mansour Ciss Kanakassy, artista senegalês que vive em Berlim, vem desenvolvendo um conceito artístico e intelectual chamado Laboratoire de Déberlinisation [Laboratório de Desberlinização] para questionar e transcender os limites mentais impostos ao continente africano e a seus povos durante a conferência de Berlim de 1884-1885. Com ênfase posta na necessidade de repensar identidade, migração e diversidade cultural, o Laboratório de Desberlinização tem, de forma continuada, defendido e facilitado diálogos e trocas entre diversas comunidades ao redor do globo. Como resposta à proposta curatorial desta edição da Bienal de São Paulo, Mansour Ciss Kanakassy propôs uma obra multiformato intitulada Gondwana la fabrique du futur [Gondwana, a fábrica do futuro] (2025). O projeto toma seu nome do supercontinente Gondwana – às vezes referido como Gonduanalândia. Seguindo o exemplo do quilombismo, conceito filosófico desenvolvido por Abdias Nascimento, Gondwana la fabrique du futur é concebida como um lugar independente e emancipatório do discurso e da resistência, que fortalece os laços entre o continente africano e suas diásporas ao mesmo tempo que aborda fundamentalmente as suas condições sociais. Concebida como uma intervenção espacial, a instalação consiste

Afro, United States of Africa [Afro, Estados Unidos da África], 2021. Projeto para o Laboratoire de Déberlinisation.

em grandes telas produzidas em técnica mista e desenho, retratando cartografias diversas, e uma infraestrutura bancária – o Quilombo Bank [Banco Quilombo] –, que nos remete à longeva prática de Kanakassy de criar sucursais monetárias nas diversas geografias onde é possível encontrar o Laboratório de Desberlinização. Produzidas para a ocasião da Bienal, cédulas especiais – conhecidas como Afro-Quilombo, com design que homenageia resistentes quilombolas – são postas em circulação, e os visitantes podem adquiri-las no Quilombo Bank em troca de reais ou dólares estadunidenses. Para além do seu simbolismo, esse gesto é político, pois alude a uma moeda futurista, independente e livre dos mercados globais de câmbio internacional, normalmente determinados por especulações de demanda e oferta e regulados por fatores econômicos como inflação, taxas de juros e eventos geopolíticos. Ele permite a livre circulação de moedas, ao menos ao longo da Bienal. Na sua abordagem central, Gondwana la fabrique du futur se situa contra estruturas hegemônicas estabelecidas, como as dos Estados-nação, e seus mecanismos viciados, como os regimes de visto e fronteira, provendo assim um espaço no qual a liberdade pode ser praticada.

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Billy Fowo

do inglês por Gabriel Bogossian

Projeto da instalação Quilombo Central Bank, 2025.

Emeka Ogboh

The Way Earthly Things Are Going [O rumo das coisas terrenas], 2017. Vista da instalação no Conservatório de Atenas (Odeion). Foto: Mathias Voelzke.

The Way Earthly Things Are Going II (Mother Earth’s Lament) [O rumo das coisas terrenas II (Lamento da Mãe Terra)] (2025) é uma instalação sonora e objetual concebida para a 36ª Bienal de São Paulo. Alinhada ao tema curatorial do evento, que propõe a humanidade como prática ética e ativa, a obra reflete sobre o profundo e muitas vezes violento entrelaçamento entre progresso humano e colapso ecológico. Partindo do desmatamento como eixo, a instalação combina a força emotiva da rapsódia popular, estruturas sonoras contemporâneas alimentadas por dados e um ambiente multissensorial, criando uma experiência imersiva que reflete sobre a interdependência entre humano e meio ambiente.

Em ressonância com o “Fragmento I” do conceito curatorial da Bienal, que nos convoca a escutar o mundo e dialogar com a natureza como forma de praticar a humanidade, a obra reativa nossas capacidades auditivas, visuais e olfativas diante da devastação ambiental. A instalação se alimenta de pesquisas ecológicas, narrativas orais e cantos tradicionais de luto e reverência à natureza. Esses elementos são recompostos numa obra contemporânea em forma de coro que dá voz ao sofrimento da Terra e à fragilidade dos ecossistemas que continuamos a erodir.

A letra da obra estrutura-se na tradição do lamento folk: simples, direta e emocionalmente ressonante. Essa abordagem lírica amplia a acessibilidade e a profundidade do trabalho, convidando a uma conexão íntima por meio de

Ámà: The Gathering Place [Ámà: O lugar da união], 2021. Vista da instalação no Gropius Bau, Berlim. Foto: Luca Girardini.

imagens poéticas, repetição e canto responsorial. Os versos descrevem a dor da Terra em linguagem vívida, enquanto o refrão ancora o panorama emocional no luto coletivo. A ponte acentua a urgência, apontando para catástrofes ambientais causadas pelo ser humano, enquanto a conclusão se dissolve em silêncio, um último suspiro que deixa para trás uma ausência perturbadora. Essa estrutura se adapta naturalmente ao formato multicanal a cappella da instalação: conforme as vozes do coro emergem individualmente de alto-falantes esculpidos em tocos de árvore, harmonias sobrepostas enriquecem a simplicidade do folk, criando um lamento espacial que ecoa no tempo. Os cantos populares, veículos de memória cultural, guardam em si o conhecimento ancestral e a sabedoria vivida de comunidades que cultivaram a coexistência com a terra. Em The Way Earthly Things Are Going II, essas canções são reinterpretadas por um coro contemporâneo de mulheres e incorporadas a vestígios escultóricos do mundo natural – tocos de árvores que outrora ressoavam com vida. Mediante esse gesto, a instalação une sabedoria ancestral a urgência ecológica contemporânea, transformando cada toco num corpo ressonante que chora seu próprio desaparecimento. As canções do cancioneiro popular perduram não pela grandiosidade, mas pela honestidade. Falam diretamente ao coração, transcendendo barreiras culturais ou linguísticas. Em The Way Earthly Things Are Going II, a forma do folk torna-se veículo para um lamento planetário e, talvez, para um chamado à atenção antes que o silêncio se instale.

Texto fornecido pelo artista

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Minia Biabiany

A prática de Minia Biabiany entrelaça questões de habitat, corpos humanos e mais-que-humanos e linguagem. Ela cria ambientes imersivos poéticos que convidam o público a ler e sentir as camadas das histórias coloniais e seus legados, questiona as relações com os espaços, tanto mentais quanto físicos, e reapropria os métodos de aprendizado e cura como ferramentas. Ao desenterrar vestígios do sistema colonial de plantations e assimilação que ainda impacta o arquipélago de Guadalupe, usa plantas como guias para observar silêncios, conhecimentos perdidos ou fragmentos esquecidos. Percorrer suas instalações é um convite para se engajar e projetar fios narrativos pessoais e coletivos, mantidos parcialmente abertos. Biabiany constrói “coreografias para os olhares”, exigindo presença e uma mudança em nosso ritmo de percepção e atenção. Suas diversas instalações são pensadas como frases que continuam um mesmo canto.

No crioulo de Guadalupe, zyé an kann, ou “olho da cana”, refere-se aos nós que marcam o caule da cana-de-açúcar, de onde novos brotos podem nascer. Biabiany joga com esse ditado popular e, sem caules, transforma os nós da cana em 400 olhos que nos observam enquanto rasgam folhas secas de cana. Esses olhares possibilitam ver e ser vistos pelos homens e mulheres escravizados, forçados a cultivar canaviais, mas também conectam-se com ancestralidades e memórias transmitidas. Trabalhando há anos em sua

the sky with rooted-eyes [o céu com olhos enraizados], 2025. Vista da instalação na Galerie Imane Farès, Paris. Foto: Tadzio.

the length of my gaze at night [a extensão do meu olhar à noite], 2024. Vista da instalação na exposição Siluetas sobre maleza, Museo Jumex, Cidade do México. Foto: Ramiro Chavez.

conexão com a linhagem feminina, Biabiany propõe aqui o que chama de “pontuações”, pequenas cerâmicas suspensas que operam como metáforas ou citações relacionadas a objetos, figuras, emoções e histórias das mulheres que a precederam. Sua verticalidade dialoga com recipientes horizontais de água que refletem o teto. Esses círculos de água negra são portais para que se possa olhar de diferentes perspectivas, mas também integram nossa imagem ao que nos rodeia. O solo está acima de nós, próximo, falante, mas sussurrante. Junto a todos esses elementos, o som da instalação é uma colaboração com o designer sonoro Thierry Girard (Thyeks), estruturado em três movimentos, como um ciclo natural: o chamado inicial (despertar dos vivos, ressonâncias profundas e lentas); a migração (texturas em transformação, movimento fluido); e a dispersão (fragmentação e propagação no espaço, com ecos imprevisíveis).

Não é um jardim florescente que nos recebe, mas a prática extrativista da monocultura. Introduzida durante a era colonial, essa prática do cultivo e colheita monocultural de cana-de-açúcar, algodão e banana provocou a erosão e destruição dos solos. O canavial não é definido apenas pelo confinamento e extração, mas também por momentos de opacidade escolhida, em que figuras desafiam a visibilidade. Evocando cenas de fuga, marronagem e ocultação, esses olhos desencarnados e as vozes que os seguem simbolizam a opacidade intencional do espaço rural negro.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Texto fornecido pela artista Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Forensic Architecture/ Forensis

É sabido que os colonizadores europeus esgotaram os recursos culturais e naturais da África Ocidental, assim como suas populações. Mas uma história menos contada é como esse saque histórico prenunciou a extração contemporânea de recursos, acelerando o colapso ecológico. A Forensic Architecture/Forensis traz suas ferramentas de visualização para essa narrativa, partindo da invasão de 1897 do “Reino da Floresta” de Benin, executada pelos britânicos.

Desafiando os contextos legais ocidentais, nos quais o testemunho é um ato institucionalmente regulado e limitado, The People’s Court I [O Tribunal do Povo I] (2025) propõe um testemunho transgeracional imersivo e emergente, probatório e generativo. Por meio de depoimentos ao vivo e gravados, testemunhas ocupam um espaço dentro de reconstruções digitais dinâmicas de ecologias transatlânticas que foram arrancadas e erodidas ao longo do “continuum do extrativismo”.

If toxic air is a monument to slavery, how do we take it down?

(RISE St. James) [Se o ar tóxico é um monumento à escravidão, como podemos derrubá-lo? (RISE St. James)], 2021. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 35’03’’. Vídeo: Bron Moyi para a Louisiana Bucket Brigade.

German Colonial Genocide in Namibia: The Hornkranz Massacre [Genocídio colonial alemão na Namíbia: o massacre de Hornkranz], 2024. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 32’02’’.

The People’s Court I é a primeira fase de Delta-Delta, uma investigação plurianual sobre o complexo petroextrativista transatlântico que ocupa terras e comunidades no chamado Cinturão Verde Transatlântico, termo especulativo para uma floresta outrora contínua na Pangeia, há muito dividida pelas placas tectônicas em uma “diáspora ecológica”. Seus vestígios se estendem desde os bosques sagrados do delta do Níger até os cemitérios arborizados dos povos escravizados da Louisiana. Agora, comunidades dos deltas do Níger e do Mississippi se unem no Brasil, terceiro ecótono, para testemunhar a morte e a ruptura transtemporal exportadas de “pontos sem retorno”, e para celebrar a resistência intergeracional que tece visões reparadoras do futuro.

The People’s Court I nasceu de um diálogo com Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, inspirado na canção homônima de Mutabaruka, e foi concebido por Tobechukwu Onwukeme e Imani Jacqueline Brown. Entre os parceiros estão Uyilawa Usuanlele, Institute for Benin Studies, Home of Mother Earth Foundation e Museum of West African Art (Nigéria), Rise St. James e Descendants Project (Estados Unidos).

Texto fornecido pelos artistas

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Cloud Studies [Estudos de nuvem], 2021. Vista da instalação no Manchester International Festival. Foto: Michael Pollard.

Ruth Ige

Dancing Beneath the Morning Sun [Dançando sob o sol da manhã], 2023. Acrílica sobre tela. 152 × 122 cm. Cortesia da artista e Stevenson Gallery.

O tempo não se comporta de forma comedida na obra de Ruth Ige. Ele é suspenso, dobrado e acumulado. Nessa lógica de estuário, o tempo torna-se um meio de coexistência, um corpo ouvinte no qual convergem memória, mito e ser especulativo. Suas figuras, encapuzadas e sem rosto, não se oferecem ao reconhecimento. Elas permanecem contidas, míticas, suavemente monumentais. O que emerge não é um retrato, mas uma presença – uma forma de ser que detém seu próprio poder.

Ige aprofunda essa visão por meio do uso de materiais com ressonância cultural: pó de baobá, índigo, folhas secas nigerianas, argilas brasileiras, espirulina azul. Não se trata de adornos estéticos, mas de agentes de memória e conhecimento – conectando práticas culturais iorubás e igbos com a vida diaspórica no Brasil, em Aotearoa e em várias partes do mundo. Suas telas operam como estuários antropológicos, contendo heranças ecológicas, espirituais e ancestrais em seu próprio pigmento. As pinturas assumem uma qualidade lenta e sedimentar – como se fossem formadas ao longo do tempo, em vez de feitas de uma só vez. Seu engajamento com o cânone da história da arte não consiste em uma recusa, mas em uma reconfiguração. A prática do retrato, se permanece alguma, é remodelada por meio da abstração e da especulação imaginativa, oferecendo outras maneiras de conhecer e recordar.

Formalmente, as obras se estendem para além do chassi. Algumas pairam no ar, outras vão até o chão ou se desdobram em estruturas imersivas. Uma convida o espectador a caminhar pelas laterais de uma vasta tela, semelhantes a

And You Stood in Your Power [E você permaneceu em sua força] (detalhe), 2025. Bastões a óleo, tinta acrílica, massa de madeira de pinho, aglutinante acrílico, pigmento de índigo da África Ocidental (Philenoptera cyanescens), e folhas secas de ugu, uziza e utazi sobre madeira compensada. 153 × 98 cm. Foto: Cheska Brown. Cortesia da artista e McLeavey Gallery.

She Lived Beyond the Borders of Time (Immortal) [Ela viveu além das fronteiras do tempo (Imortal)], 2022. Acrílica sobre tela. 122 × 122 cm. Cortesia da artista e Stevenson Gallery.

cortinas, entrando no que parece ser um portal do tempo. Cada decisão espacial brinca com a pintura como um lugar de criação de mundos, ecoando formas têxteis, transmissões imateriais e futuros imaginados. As obras não direcionam o espectador tanto quanto o envolvem – limiares suaves entre reinos, nos quais a orientação se afrouxa e o tempo linear se dissolve. O espectador se torna um visitante em um mundo já em movimento. O tempo, nesse espaço, é cíclico – uma força ativa que retém, lembra e transforma. Ancestrais, espíritos, mortais e seres futuros coexistem nos mundos pintados por Ige – não como sujeitos a serem vistos, mas como agentes de algo maior, mantido em movimento silencioso.

Cameron Ah Loo-Matamua

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Esta participação é apoiada por: Creative New Zealand

Theo Eshetu

The Garden: Ode to Courage [O Jardim: Ode à Coragem], 2025. Stills do vídeo. Instalação de vídeo multicanal, cor, som. Design de som: Keir Fraser.

A montagem, o ritmo entre imagens, sons e histórias, está na trama da pesquisa estética de Theo Eshetu. Uma experimentação que, como a própria imagem técnica – eletrônica e digital –, se manifesta no tempo, seja ele manipulado, invertido, fragmentado, repetido, espelhado, orquestrado, sem esquecer que ele também é espiralado. Eshetu é figura-chave de uma cena que uma vez foi conhecida como videoarte, uma trajetória poética que nos move para os anos 1980, quando o artista fotografou a cena musical e experimentou com a arte em composições de múltiplos monitores, nas quais questões da história, da ciência, da natureza, temas sociais, iconográficos, rituais e espirituais eram remixados, oferecendo uma percepção nova de mundo. As múltiplas operações que Eshetu criou com o monitor – empilhando-o até ele se tornar uma parede, arranjando-o em diagonais, suspendendo-o no teto de um museu ou mesmo acoplando-o a diferentes dispositivos estruturais e instalativos – faz do artista um manipulador da linguagem audiovisual como um sistema cultural de significados ou mesmo como uma técnica cultural. Técnica cultural exatamente no sentido de que ela pressupõe uma noção de culturas plurais, que exterioriza e materializa imaginários, crenças e declarações, envolvendo um contínuo trabalho simbólico.

A reflexão tecnocultural de Eshetu para a 36ª Bienal de São Paulo opera sobre a natureza da vida vegetal. Não tanto como jardim que administra a natureza para a apreciação humana, mas sim o jardim como uma ambientação filosófica anterior à intervenção humana – “uma leitura contemporânea do papel da Natureza como um aspecto integral da Humanidade”, nas palavras do próprio artista –e que estabelece situações de convivência entre natureza, vida e humanidade. Imagens de flores, plantas, biomas e ecossistemas tornam-se videoclipes caleidoscópicos sobre a natureza da humanidade. E, na medida em que tal esforço não é feito em silêncio, o componente sonoro do jardim de Eshetu é igualmente importante. Uma trilha sonora que circunda e envolve a obra é poeticamente composta pela mixagem de vozes de figuras como Maya Angelou e outras que refletiram sobre resiliência, a força da humanidade e a consciência das plantas.

Adjani Okpu-Egbe

A obra de Adjani Okpu-Egbe, artista e pesquisador britânico nascido em Camarões, é multifacetada, interdisciplinar e profundamente envolvente. O artista infunde sua experiência pessoal em cores expressivas e harmônicas, simbolismos inventivos, um uso expandido de materiais e uma autenticidade enraizada em uma pesquisa rigorosa. Conhecido por sua linguagem visual estratificada e por figuras abstratas que chama de “manimals” [fusão das palavras “homem” e “animal” em inglês], Okpu-Egbe atua de forma abrangente na formação intercultural do pensamento. As três obras apresentadas como uma constelação na 36ª Bienal de São Paulo marcam um momento decisivo em sua trajetória. Com um estilo descrito pela primeira vez como “shelving” [“colocar em prateleiras”] pelo curador geral da Bienal, esses motivos expandem a técnica do artista e incorporam objetos escultóricos carregados de histórias. Eles complementam os painéis de portas – jogando com a ideia de portas “abertas” e “fechadas” em nossas vivências cotidianas – como uma metáfora poderosa daquilo que arquivamos, compartilhamos ou descartamos. A obra Fortitude (2018-2024) se posiciona contra o apagamento ao dispor, em forma de prateleira, livros escritos por mulheres negras, em especial a educadora afro-brasileira Conceição Evaristo, cujo poema “Da calma e do silêncio” inspirou o título da Bienal. Por meio desse gesto, Okpu-Egbe encarna os temas centrais do evento e propõe um cânone diversificado em lugar do repertório dominante, enganoso, patriarcal, colonial e branco.

Fortitude, 2018–2024. Painéis de porta, prateleiras e objetos encontrados customizados. 198 × 222 × 29 cm. Foto: Deniz Güzel.

An Allegorical Conglomeration of Origins and Inevitabilities [Uma conglomeração alegórica de origens e inevitabilidades], 2024. Painéis de porta, prateleiras e objetos encontrados customizados. 198 × 292 × 29 cm. Foto: Deniz Güzel.

O trabalho Premonition of Ngarbuh [Premonição de Ngarbuh] (2020-2024), produzido em resposta ao massacre de Ngarbuh ocorrido em 2020 em Camarões, confronta os horrores da violência estatal, em que mulheres e crianças são as maiores vítimas enquanto a “comunidade internacional” permanece em silêncio. Angustiante e emocionalmente contundente, a cena mostra figuras fantasmagóricas em meio a uma paisagem carbonizada – com crianças brincando de pular corda, cercadas de animais estranhos –, evocando uma sensação perturbadora de insegurança. Os objetos dispostos em prateleiras falam de perda, profanação espiritual e resiliência. Ao documentar esse trágico fracasso dos processos de descolonização e o conflito armado esquecido que assola as regiões anglófonas do país desde 2016, Okpu-Egbe ecoa Guernica (1937), de Picasso, e faz uma contribuição urgente à história da arte – um gesto que atende ao chamado por um intelectualismo público. Exibida ao lado está a obra An Allegorical Conglomeration of Origins and Inevitabilities [Uma conglomeração alegórica de origens e inevitabilidades] (2024), baseada na imaginação de futuros negros. Sua densa estratificação – uma tapeçaria de conteúdos autobiográficos que fundamentam a prática narrativa do artista – inclui símbolos como limões em rama, tranças, relógios e lampiões. Esses elementos refletem sobre inevitabilidades projetadas para moldar o que o artista descreve como “consciência negra em futuros negros” (BCBF, na sigla em inglês).

Billy Fowo em colaboração com o artista Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Premonition of Ngarbuh [Premonição de Ngarbuh], 2020–2024. Painéis de porta, prateleiras e objetos encontrados customizados. 198 × 222 × 29 cm. Foto: Deniz Güzel.

Noor Abed

A obra de Noor Abed evidencia uma relação profunda entre corpo e memória. Em seus trabalhos, a dança e o canto são não apenas formas de expressão, mas dispositivos encenados para a transmissão de histórias coletivas. A interseção entre realidade e magia em sua abordagem cinematográfica permite que suas obras criem atmosferas carregadas de simbolismo, nas quais o tempo parece se desdobrar na infinita regeneração dos mitos.

a night we held between [uma noite que tivemos entre], 2024. Stills do filme. Filme em 16 mm, cor, som; 30’.

No filme our songs were ready for all wars to come [nossas canções estavam prontas para todas as guerras do porvir] (2021), a artista compôs uma afirmação de vida e uma reinvenção de tradições, criando uma paisagem sonora e um desenho coreográfico intimamente atrelados ao contexto sociopolítico palestino. Optando pelo formato analógico do filme, Abed inaugura imagens partindo do documentário, mas com uma temporalidade específica em que o mágico e

our songs were ready for all wars to come [nossas canções estavam prontas para todas as guerras do porvir], 2021. Stills do filme. Filme em Super 8 mm, cor, som; 20’.

o imaginado atravessam a gestualidade ancestral performada, bem como as relações entre os indivíduos que dançam e cantam e que, de muitos modos, traduzem no cotidiano dos seus corpos as ideologias incorporadas. Tal investigação dos gestos retorna em a night we held between [uma noite que tivemos entre] (2024), segundo filme apresentado. Nesse mergulho sonoro, o cântico é um lamento, uma pergunta e uma prece de afastamento da guerra. Das cavernas de onde os sons são captados, as imagens são imersas ao lado dos arquivos fotográficos e da repetição gestual da dança ainda mais sublinhada em torno do fogo e das mulheres. Essa investigação sonora ganha ainda mais centralidade na performance Nothing Will Remain Other Than the Thorn Lodged in the Throat of This World [Nada restará além do espinho alojado na garganta deste mundo] (2025), com Haig Aivazian, que também está presente na 36ª Bienal de São Paulo. O uso de captações sonoras a partir do local em que a artista filma reforça uma dimensão sensorial da memória e da experiência coletiva. Ao situar as narrativas nas cavernas, entradas e buracos seculares, que também é sua paisagem natal, Abed como que encena as transformações dos rituais, reinventando formas de resistência, em que a permanência dos corpos no território se torna o ponto de convergência de luta e sobrevivência.

Esta participação é apoiada por: Mondriaan Fund

Aline Baiana

A obra de Aline Baiana, interessada em investigar os conflitos entre o Norte e o Sul globais numa perspectiva de justiça social, denuncia o impacto ambiental do processo de industrialização. Seu trabalho se junta aos depoimentos de pescadores, marisqueiras, artesãos e aliados da luta quilombola, amplificando a voz dessas narrativas de resistência.

Ouro negro é a gente (2025), filme apresentado nesta 36ª Bienal de São Paulo, expõe as contradições da lógica desenvolvimentista a partir da extração do petróleo no Brasil e o seu rastro de violência ambiental contra as populações quilombolas nos territórios explorados. Na ilha de Maré, na Baía de Todos-os-Santos, a comunidade busca manter seu modo de vida em defesa do ecossistema local, ao passo que vem sendo gravemente afetada pela industrialização e pelo chamado “progresso”. Ao mesmo tempo que as grandes obras de infraestrutura, como a refinaria de Mataripe e o porto de Aratu, são celebradas como símbolos de avanço, elas são reveladas como fontes de destruição e de racismo ambiental para as comunidades tradicionais, que têm visto seu território sendo degradado de modo sistemático.

Ao questionar o conceito de “riqueza”, a artista reflete sobre os valores que sustentam o modelo de desenvolvimento imposto pelas elites. A imersão nos depoimentos dos que lutam por sua sobrevivência diante de um sistema que os marginaliza revela uma dura crítica à forma como o capitalismo perpetua a desigualdade e a exploração. O filme, assim, reatualiza uma história de luta, na medida em que lança um questionamento radical sobre as narrativas oficiais de progresso e desenvolvimento.

Ouro negro é a gente olha além das promessas de modernização e reflete sobre as consequências sociais, ambientais e culturais de um modelo que continua a marginalizar aqueles que, historicamente, têm sido deixados para trás. O filme nos desafia a repensar o significado de riqueza e a quem ela realmente serve.

Ouro negro é a gente, 2025. Stills do vídeo. Vídeo full HD, cor, som, 52’.

Song Dong

Um nome destacado na arte contemporânea chinesa, Song Dong narra suas histórias de expressão pessoal, reconciliação familiar e realidades vividas nos cenários de uma China em constante transformação. Com uma obra densa que abrange escultura, instalação, performance, fotografia e vídeo, seus trabalhos frequentemente são compostos de objetos cotidianos e efêmeros, aludindo à impermanência da mudança enquanto questionam hierarquias materiais em relação a temas pessoais e globais. Formado em pintura a óleo pela Faculdade de Belas Artes da Universidade Normal de Pequim em 1989, Song desconstruiu gradualmente as convenções de sua pintura, rompendo com ela antes de se voltar para formas de arte experimental e vanguarda após seu casamento com a artista Yin Xiuzhen em 1992. Entre seus projetos notáveis estão Water Diary [Diário de água] (1996), no qual registrou sua prática diária de escrever com água sobre pedra e observar sua evaporação, e a série Eating the City [Comendo a cidade] (2003-2006), realizada em diversas metrópoles, na qual instalações comestíveis destacavam a urbanização acelerada e o consumismo obsessivo da China.

A Quarter [Um quarto], 2021–2024. Aço, espelhos, objetos do cotidiano e móveis coletados de diferentes residências, luminárias, banquetas, tapetes. 697,4 × 2.564 × 1.310 cm.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, Song desdobrou suas indagações poéticas em torno do conceito de “emprestar”, como forma de refletirmos sobre nossa existência transitória e criarmos conexões em um mundo globalizado. Inspirada nos labirintos de espelhos comuns em Parques de diversões e no método tradicional chinês do feng shui, que usa espelhos e janelas para expandir o espaço interior ao trazer o mundo externo, Borrow Light [Emprestar a luz] (2025) é uma instalação espacial participativa que busca criar um vazio simbólico, enfatizando as conexões ilimitadas entre as pessoas enquanto evoca a fugacidade de nossa presença. As diversas cadeiras e luminárias da instalação, todas emprestadas de residências particulares, servem como lugares de pausa e iluminação que facilitam momentos efêmeros de contemplação. Brincando com elementos fluidos, como luz, reflexo e ilusão, a obra de Song mergulha o público em um universo infinito, onde nossas imagens e pensamentos se entrelaçam em uma luz prateada e brilhante.

Hung Duong

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Independent Curators International

Vista da exposição Quarter and Moment no Ennova Art Museum, Langfang (abril –setembro 2024).

Theresah Ankomah

A prática artística de Theresah Ankomah reivindica o saber artesanal tradicional não como herança estática, mas como prática dinâmica, hereditária e linguagem comunitária.

A ressignificação é um tema central em sua obra, instaurando um diálogo constante que se manifesta tanto em suas pinturas quanto em suas instalações imersivas. Seu uso do kenaf para a produção de cestos de cebola – itens outrora essenciais nos mercados de Gana – chama atenção para o cenário geopolítico em que o artesanato tradicional é ofuscado pela chegada de bens produzidos em massa.

No centro de suas instalações mais recentes está o uso de folhas de palmeira provenientes de Dabala, na Região do Volta, em Gana. Elas são tingidas por meio de um processo colaborativo com famílias especializadas no tratamento e tingimento desse material. Essas colaborações são vitais para sua prática, não apenas por sua contribuição técnica, mas também pela sabedoria que carregam. Por meio dessas trocas intergeracionais, Ankomah reconstrói a tecelagem como um ato tanto material quanto político, questionando o lugar do “artesanato” nas narrativas sobre comércio, geopolítica e capitalismo. Suspensas no espaço como tecidos drapeados ou peles arquitetônicas, suas instalações têxteis transformam formas domésticas em gestos monumentais. A folha de palmeira – humilde e abundante – torna-se um recipiente de memória ancestral, trabalho paciente e identidade coletiva. Ao mesmo tempo escultóricas e performáticas, essas obras desestabilizam as hierarquias que há muito separam as belas-artes do artesanato.

Memories of the Present [Memórias do presente], 2020–2021. Cestos de kenaf tingidos e não tingidos dispostos em dobras. Cortesia Nubuke Foundation.

Na instalação What Do You See [O que você vê] (2025), no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, tiras de folhas de palmeira trançadas se derramam sobre a fachada modernista do edifício, evocando tanto um tecido protetor quanto uma fronteira efêmera. Tingida em tons que remetem à terra e ao sol, cada tira carrega as marcas das mãos – da artista e de suas colaboradoras em Dabala. Seu trabalho é um gesto para uma ecologia mais ampla, na qual arte, natureza e comunidade estão intimamente entrelaçadas. Partindo da noção de fragmentos – ou “detritos” – como ponto de partida conceitual, Ankomah apresenta uma instalação escultórica que aborda a mercantilização e a fragmentação de bens e corpos sob regimes pós-coloniais e os efeitos persistentes que ainda ecoam em nossos tempos contemporâneos.

Texto fornecido pela artista

Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Olu Oguibe

Olu Oguibe é um renomado artista interdisciplinar e intelectual, cuja obra investiga, por meio da arte contemporânea e de forma potente, questões de identidade, migração e justiça social. Seu trabalho entrelaça narrativas pessoais com questões históricas e sociopolíticas mais amplas, cativando públicos globais.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, Oguibe apresenta um monumento em três cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Belém, com o objetivo de destacar as injustiças contínuas sofridas pelas comunidades indígenas no Brasil e no mundo. A presença do monumento serve como um reconhecimento visível dessas lutas, abordando, sobretudo, a invasão persistente de terras indígenas por conta de interesses agrícolas, madeireiros e minerários, além da violenta repressão enfrentada por ativistas indígenas.

Estudos da obra comissionada do artista para a 36ª Bienal, com proposta de instalação no Minhocão, São Paulo.

Conceitualmente, Oguibe imagina o monumento como um grande painel instalado no frontão de um edifício, visível à distância no horizonte urbano e nas áreas ao redor. Cada painel exibe em destaque uma pergunta provocadora, “VOCÊ PRECISA LEVAR TUDO O QUE PERTENCE

AOS POVOS INDÍGENAS?”, traduzida em nheengatu, português e inglês. Com essa manifestação multilíngue, Oguibe reforça a ressonância internacional e a urgência da luta pelos direitos indígenas.

O projeto integra ativismo e diálogo para documentar e disseminar as lutas indígenas atuais, promovendo maior conscientização e solidariedade. O monumento-mural exemplifica o compromisso constante de Oguibe com a arte enquanto veículo de reflexão social, transformação e empoderamento, destacando sua dedicação em confrontar questões globais urgentes por meio de uma expressão artística transformadora.

Naiomy Guerrero

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Leo Asemota

Dentro do continente africano e de sua diáspora, é uma prática comum honrar os ancestrais quando as pessoas se reúnem. Esse gesto, que pode tomar a forma de uma oferenda, como partir e compartilhar uma noz-de-cola ou derramar uma bebida alcoólica no chão em forma de libação, muitas vezes ambos, reforça um parentesco e um legado que transcendem fronteiras geográficas e identidades nacionais. Essa invocação serve tanto para reconhecer os descendentes quanto para louvar e expressar gratidão. No âmbito da 36ª Bienal de São Paulo, Leo Asemota, natural do Reino do Benim, no Estado de Edo, Nigéria, e atualmente radicado em Londres, apresenta uma obra que se inspira nessa prática de libação. A obra sem título, derivada do Kissi penny [centavo de Kissi], consiste em peças fundidas em liga de cobre e estanho, cada uma propositalmente trabalhada para ser única.

Observational 4

[Observacional 4], 2025. Cortesia do artista e EoTLA.

Observational 3 [Observacional 3], 2025. Cortesia do artista e EoTLA.

O Kissi penny foi, nos séculos 19 e 20, uma moeda de circulação ampla entre os povos Kissi, Loma e Bandi, que viviam nas regiões fronteiriças da atual Libéria, Serra Leoa e Guiné. Acredita-se que essa moeda possuía alma: era feita de uma haste de ferro torcida e alongada, com uma extremidade em forma de orelha (nling) e outra em forma de pé (kodo). Mesmo após ser desvalorizada pelos franceses e britânicos no final do século 20, nas respectivas colônias africanas, o penny manteve seu valor cerimonial e espiritual em muitas sociedades indígenas.

Como descreve Asemota, e seguindo o costume das libações, a essência está no ato de proferir a(s) palavra(s) que acompanha(m) cada oferenda — neste caso, um Kissi penny oferecido a cada artista vivo participante da Bienal —, e não apenas na estética ou na forma das obras (de arte).

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Capítulo 3 Sobre ritmos espaciais e narrações

Este capítulo reflete sobre as interações entre humanos e fenômenos espaço-temporais. Encontros entre humanos, animais, vírus, arquitetura, natureza e cultura geram ritmos diversos. Aqui, artistas exploram práticas narrativas sobre esses modos de encontro e os padrões rítmicos que deles resultam. Com a urbanização acelerada e a gentrificação, questões de espacialidade, moradia e abrigo tornaram-se cruciais. A forma como nossos corpos navegam pelos espaços depende tanto da arquitetura e do planejamento urbano quanto de aspectos temporais, como horários de trabalho/descanso, festividades, movimentos políticos e interações humanas.

Os artistas deste capítulo investigam padrões de movimento ou de existência em diferentes espaços e geografias, tematizando padrões rítmicos e arrítmicos de vida, ritmos circadianos e estabelecidos que regem nosso cotidiano. Como subverter esses ritmos e estruturas que impõem, em nossos corpos e espaços, tempos padronizados e noções de normatividade?

As migrações através de fusos horários e espaços geográficos possibilitam novos encontros. As negociações de tempos e lugares, o choque de culturas, religiões e filosofias e os medos decorrentes dele definem a política em nossa era marcada por deslocamentos. Ao transpor limiares espaciais e temporais, como conjugar nossa humanidade para coexistir com dignidade e graça nesses mundos em constante mutação? Como compor, narrar, cantar e articular esses novos mundos e os encontros que os moldam?

Tanka Fonta

Within the Universal Fields of Perception (Beyond the Frontiers of Consciousness) [Dentro dos campos universais da percepção (além das fronteiras da consciência)], 2024. Acrílica sobre tela. 140 × 160 cm.

Philosophies of Being, Perception, and Expressivity of Being [Filosofias do ser, da percepção e da expressividade do ser] é um projeto multidimensional do filósofo-artista-compositor Tanka Fonta, que integra um mural visual de grande escala, uma instalação sonora em três partes com três partituras orquestrais, leituras poéticas e um roteiro performático. Partindo das filosofias da humanidade e das variadas cosmologias das culturas humanas, Fonta apresenta o conceito de “perceptividade intercampos” – em que campos de percepção se sobrepõem nos âmbitos molecular, sonoro, intuitivo e filosófico. O Brasil é apresentado não como um cenário local, mas como um espelho da condição humana, convidando o público a uma reflexão poética e imersiva sobre a existência, as inteligências e a natureza expressiva do ser.

A dimensão sonora imersiva é central na obra, composta de três peças orquestrais organizadas em sete movimentos, gravadas pela Orquestra do Theatro São Pedro, em São Paulo, sob a regência do maestro Carlos Moreno. Apresentadas por meio de uma instalação com fones de ouvido em três estações de escuta, essas composições funcionam não apenas como acompanhamento, mas como componentes fundamentais da estrutura e da profundidade sensorial do projeto. Sua presença na 36ª Bienal marca uma colaboração histórica e se alinha ao foco curatorial em formatos expandidos e encontros transdisciplinares. O mural, embora concebido como parte do campo visual do projeto, emerge de dentro das estruturas já compostas –sonoras, poéticas e filosóficas. Não deve, portanto, ser

The Invocatory Calls I (The Chants & Themes of the Numinous) [As chamadas invocatórias I (os cantos e temas do numinoso)], 2024. Acrílica sobre tela. 140 × 160 cm.

descrito como uma obra estática ou finalizada, mas como uma linguagem visual viva e responsiva, que evolui a partir da escuta profunda e da ressonância conceitual. Estruturada em torno de seis constelações temáticas, a obra convida a uma experiência imersiva que encoraja a percepção para além dos constructos sociais e se envolve com a natureza sagrada de toda a existência. Esse ato de percepção ecoa os escritos do filósofo africano Anton Wilhelm Amo (1703-1759), que definiu o ato de sentir como “uma disposição do nosso corpo orgânico e vivo, por meio da qual o animal é afetado por coisas materiais e sensíveis que estão imediatamente disponíveis a ele”.1

The Exaltation Dances II (Within the Oceans of Transformation) [As danças da exaltação II (nos oceanos da transformação)], 2024. Acrílica sobre tela. 140 × 160 cm.

A obra inclui ainda um roteiro de apresentação que dramatiza um diálogo entre inteligências humanas e vegetais, expandindo ainda mais o alcance poético, ecológico e filosófico do projeto. Esse roteiro integra a programação pública da Bienal, enquanto o projeto mais amplo foi formalmente convidado pela equipe de educação da Bienal a fazer parte de sua série de publicações educativas, distribuídas a escolas e instituições culturais. Em vez de apresentar cosmologias ancestrais como referências fixas, Fonta as posiciona como correntes ressonantes dentro de um projeto planetário que busca articular a expressividade do ser por meio de processos contínuos de sentir, refletir, compor e tornar-se.

Billy Fowo em colaboração com o artista Traduzido do inglês por Rafael Falasco

1. Justin E. H. Smith, Stephen Menn (orgs.), Anton Wilhelm Amo’s Philosophical Dissertations on Mind and Body. Oxford: Oxford University Press, 2022.

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA, Santa Marcelina Cultura e Cultura Artística

Otobong Nkanga

Otobong Nkanga é uma aclamada artista visual e performática cuja prática expansiva aborda questões ambientais, identitárias, históricas e as dimensões sociopolíticas da exploração global de recursos. Utilizando diversos meios – incluindo desenho, instalação, escultura, performance e, de modo notável, tapeçaria tecida –, Nkanga examina as relações intrincadas entre pessoas e paisagens, interrogando as dinâmicas complexas da extração, comércio, migração e memória. Sua abordagem multidisciplinar e reflexiva a consolida como voz essencial na arte contemporânea, ecoando profundamente em públicos diversos ao redor do mundo.

A trajetória de Nkanga reflete um escopo internacional enriquecido por experiências e trocas interculturais. Formada inicialmente na Obafemi Awolowo University, na Nigéria, e posteriormente na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris, aprimorou sua visão artística com estudos de pós-graduação no DasArts, em Amsterdã. Sua jornada profissional incluiu residências em instituições prestigiadas como a Rijksakademie van beeldende kunsten, em Amsterdã, e o programa DAAD, em Berlim, experiências que contribuíram significativamente para sua abordagem globalmente consciente.

Unearthed – Sunlight [Desenterrado – Luz solar], 2021. Vista da instalação na Kunsthaus Bregenz. Foto: Markus Tretter.

Unearthed – Twilight [Desenterrado – Crepúsculo], 2021. Tapeçaria tecida com fios de trevira, elirex, polipropileno para áreas externas, multifilamento, mohair, monofilamento, fulgaren, elirex, sidero, algodão, acrílico e viscose. 350 × 600 cm. Foto: Markus Tretter.

Suas tapeçarias, parte integral de sua prática, representam narrativas estratificadas, combinando poesia visual com críticas contundentes à exploração ecológica e social. Esses têxteis intricados não apenas demonstram sua habilidade técnica e sofisticação estética, mas também funcionam como metáforas visuais para os fios interconectados das experiências humanas e realidades ambientais. Nkanga insere corpos na paisagem, apresentando-os como parte do rastro de destruição deixado pela exploração ambiental. Suas tapeçarias retratam paisagens abstratas e formas orgânicas entrelaçadas com referências simbólicas, convidando o espectador a contemplar a interdependência de histórias, economias e ecologias globais.

Na 36ª Bienal de São Paulo, Nkanga apresenta obras da série Unearthed [Desenterrado] (2021), que sintetiza sua investigação contínua sobre a relação da humanidade com os elementos naturais e o meio ambiente. Esses trabalhos oferecem uma reflexão crítica sobre as tensões ecológicas e geopolíticas contemporâneas, manifestando o compromisso da artista em destacar vulnerabilidades ambientais e as responsabilidades compartilhadas de preservação e sustentabilidade.

Esta participação é apoiada por: Flanders State of the Art

Naiomy Guerrero Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Leiko Ikemura

A obra de Leiko Ikemura reflete a trajetória singular de uma artista universal que, nascida na província de Mie, no Japão, construiu uma poética marcada pela experiência do deslocamento e pelo diálogo constante entre culturas. Radicada na Europa desde os anos 1970, a artista estudou na Facultad de Bellas Artes da Universidad de Sevilla e passou temporadas na Suíça e na Alemanha, onde atualmente reside. Essa vivência transnacional lhe permite escapar tanto de uma identidade rigidamente japonesa quanto de uma adesão automática aos cânones da arte ocidental. Sua produção delineia um campo próprio, em que se entrelaçam ecos da pintura barroca espanhola e do neoexpressionismo europeu – como o movimento Junge Wilde – com fundamentos do pensamento estético japonês, como o respeito à matéria e à natureza, a valorização do gesto e a aceitação da imperfeição.

Esse trânsito entre referenciais torna-se especialmente evidente na série Girls [Meninas], em que Ikemura desmonta tanto a estética kawaii 1 quanto o olhar masculino tradicionalmente projetado sobre o corpo feminino. Suas meninas não buscam agradar: são figuras difusas, por vezes espectrais, cujos corpos e rostos parecem emergir da névoa, carregando uma delicadeza inquieta e uma humanidade transbordante. Com olhos grandes e traços simplificados, essas figuras revelam fissuras internas. Algumas ocultam os olhos ou a boca, outras parecem em dissolução. Para a artista, essas zonas do corpo funcionam como “feridas” que conectam o eu ao mundo exterior. Ao se distanciar de um olhar nipo-centrado, Ikemura consegue reposicionar a figura da menina e devolvê-la como sujeito, não como ideal. Dessa forma, seu trabalho evidencia a complexidade psicológica da transição entre infância e idade adulta, período em que o corpo e a identidade passam por seus momentos mais frágeis e turbulentos.

Girl Dancing [Garota dançando], 2010–2011. Óleo sobre juta. 170 × 90 cm. Cortesia da artista e Philipp von Matt.

A mesma ambiguidade vital atravessa suas obras mais recentes, reunidas em um conjunto de três pinturas que apresentam seres verdes em diferentes estágios de mutação. Essas figuras híbridas – parte vegetal, parte ancestral –interrogam a condição humana e evocam uma interdependência profunda com os demais seres vivos. Nas palavras da própria artista, elas “emergem da natureza e da crença no poder dos ancestrais”, apontando para uma convivência regenerativa entre mundos e espécies. Já nos desenhos das séries Red Scape [Paisagem vermelha] e Sea Division [Divisão do mar], traço e cor atuam como registros de um gesto sensível que aproxima a escrita da paisagem – herança visível tanto da caligrafia japonesa quanto da prática do sumi-ê. Com linhas rarefeitas e atmosferas vibrantes, essas imagens condensam a tensão entre presença e esvanecimento. Em Ikemura, os elementos da tradição não são citações formais, mas forças vivas que atravessam uma prática artística em constante metamorfose.

Leonardo Matsuhei

1. Na cultura japonesa, kawaii não significa apenas “fofo”, mas expressa um ideal estético e afetivo ligado a inocência, modéstia, vulnerabilidade e delicadeza emocional. Presente em esferas que vão da arte à conduta social, kawaii comumente opera como forma de controle simbólico, especialmente sobre corpos femininos e jovens. Sharon Kinsella Insella, “Cuties in Japan”, in Women, Media, and Consumption in Japan. Honolulu: University of Hawai’i Press, 1995, pp.220-254.

Trees Out of Head (Big) [Árvores saindo da cabeça (grande)], 2015–2023. Bronze patinado. 55 × 67 × 41 cm. Cortesia da artista e Philipp von Matt. Girl with a Baby [Garota com um bebê], 2021. Têmpera e óleo sobre juta. 124 × 104 × 5 cm. Cortesia da artista e Philipp von Matt.

Moffat Takadiwa

Just Delete [Apenas delete], 2024. Teclas de teclado de computador e calculadora em plástico, fivelas de cinto, escovas de dentes e etiquetas de roupa. 230 × 540 × 10 cm. Foto: Sebastiano Pellion di Persano. Cortesia Semiose, Paris.

Através de suas peças têxteis, Moffat Takadiwa tece vínculos estreitos entre a crítica ao consumismo e a desigualdade, por meio da coleta e organização de resíduos pós-industriais e das tradições culturais africanas –particularmente do Zimbábue, seu país de origem. A partir da reunião e classificação de fragmentos de produtos descartados de uso cotidiano, embalagens e fios de materiais diversos, Takadiwa cria objetos multicoloridos cujas formas por vezes evocam organelas celulares, fungos ou micro-organismos agigantados, e outras vezes sugerem, por sua beleza e exuberância no tratamento minucioso dos bordados sobre a trama, artefatos rituais, totens ou símbolos. Em seu projeto concebido especialmente para a 36ª Bienal de São Paulo, Takadiwa amplia significativamente a escala de seu trabalho, recorrendo à força simbólica da arca de Noé para comentar os ciclos de destruição do mundo e o imperativo de sua reconstrução após o cataclisma. Se a arca foi, para Noé, abrigo e instrumento de preservação das espécies para a restauração e o repovoamento do mundo pós-dilúvio, a estrutura imersiva da obra, que envolve o público em uma manta têxtil revestida de resíduos plásticos

e metálicos, apresenta-se como uma nave destinada ao transporte do sujeito para um futuro regido por um novo ciclo cósmico. Ao substituir o modelo da arca, destinado ao armazenamento, pelo modelo do portal, destinado à delimitação de espaços de funções diferentes, Takadiwa põe ênfase na ideia de atravessamento, de trânsito, de passagem. O som da mbira, instrumento musical de caráter idiofone composto por lamelas metálicas de tamanhos variados, difundido em diversos países da África Subsaariana, inspira a energia da transformação e os conhecimentos da natureza, necessários para a cura da terra arrasada pelos traumas coloniais (simbolizados pelos fragmentos de objetos descartados).

A obra é um convite a um exercício de reflexão sobre a inseparabilidade entre capitalismo, racismo e colapso ambiental, sobre os mecanismos de produção de desigualdade no contexto pós-independência dos países do Sul Global, em particular aqueles do continente africano, e sobre a ressignificação aspectual da matéria rejeitada (o lixo) em material estético (o objeto artístico). Na mesma medida, ela evidencia os desafios contemporâneos para o enfrentamento da crise climática e sugere, através da filosofia ubuntu, uma transição para o futuro baseada na sustentabilidade e no cuidado. Presente em diversas línguas bantu de origem nigero-congolesas, ubuntu consiste em um sistema de pensamentos e práticas que valorizam a redistribuição de recursos, a coletividade, a cooperação e a interdependência entre as pessoas.

Renato Menezes

The Brain Drain [A drenagem cerebral], 2022. Teclas de computador, calculadora e telefone em plástico e cortadores de unha. 220 × 270 × 10 cm. Foto: A. Mole. Cortesia Semiose, Paris.

Cevdet Erek

A prática de Cevdet Erek surge na interseção entre som, ritmo e experiência espacial, em que gestos mínimos carregam uma complexidade ressonante. Com a sensibilidade de um arquiteto e a precisão de um percussionista, Erek orquestra instalações que reconfiguram de forma sutil nossa percepção de espaços e ambientes arquitetônicos. Por meio da interação entre elementos visuais e sonoros aparentemente simples – como réguas, tambores esquemáticos ou partituras diagramáticas – ou entre construções em escala quase arquitetônica integradas a sistemas de som, ele cria cenários imersivos nos quais o corpo todo se torna instrumento de percepção. Suas obras evocam uma atenção silenciosa, direcionando nosso olhar para os ritmos da vida cotidiana, os movimentos corporais, as rotinas institucionais e as histórias latentes inscritas nas estruturas arquitetônicas.

Projetos anteriores como Room of Rhythms [Sala de ritmos] (2012) e ÇIN (2017) ilustram a capacidade de Erek de produzir ambientes imersivos ao cuidadosamente calibrar som, arquitetura e movimento. Mais do que impressionar os visitantes, essas instalações guiam com delicadeza percursos e encontros pessoais, permitindo experiências individuais de espaços. Estruturas arquitetônicas simples, como escadas, rampas ou demarcações espaciais mínimas, tornam-se estruturas pelas quais o som interage com o movimento humano, dissolvendo as distinções claras entre observador, arquitetura e performer. Da mesma forma, em obras como SSS – Shore Scene Soundtrack [Trilha sonora da costa] (2006), Erek transforma materiais cotidianos (tapetes, manuais, diagramas) em instrumentos que convidam o público a participar ativamente da construção de paisagens acústicas.

Para a obra apresentada nesta Bienal, Rampa rítmica/ Rhythmic Ramp (2025), Erek criou uma coreografia espacial na rampa externa do icônico edifício modernista de Niemeyer, conectando os diferentes andares e capítulos da exposição uns com os outros, usando intervenções rítmicas que mediam as fronteiras arquitetônicas. Esta obra site-specific trabalha com elementos sonoros e geométricos meticulosamente articulados, usando a temporalidade

Room of Rhythms [Sala de ritmos], 2012. Intervenção arquitetônica, som multicanal, gráficos, réguas, objetos e performances. Vista da instalação na Documenta 13, Kassel, 2012. Foto: Maria Rosa Rühling.

ÇIN, 2017. Intervenção arquitetônica e som em 35 canais. Madeira, andaimes, ferro, cerca de arame, rede de tecido, alto-falantes direcionais, computador e iluminação. Dimensões e durações variáveis. Vista da exposição no Pavilhão da Turquia, 57ª Mostra Internacional de Arte –La Biennale di Venezia, 2017. Foto: Ali Kabas.

do som e sua disposição arquitetônica como ferramentas para ressignificar o espaço. O elemento central dessa experiência é a rampa – espaço cotidianamente utilizado por transeuntes e corredores fora do período da Bienal –, que se transforma em um território onde elementos rítmicos ressoam entre si, com a arquitetura e com o entorno. Seu universo sonoro incorpora padrões extraídos da música underground, tanto da Istambul natal de Erek quanto das paisagens rítmicas vernaculares de São Paulo. A obra evoca associações sobre os movimentos pelo espaço – de subida e descida – que conectam mundos sonoros e arquitetônicos, assim como as ascensões e quedas presentes nos fluxos e nas histórias.

Cameron Ah Loo-Matamua

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: SAHA

Nari Ward

Nari Ward reúne histórias de objetos e lugares, transformando-os em narrativas poderosas. Os materiais que ele escolhe – sejam eles carrinhos de bebê descartados, cadarços de sapatos, mangueiras de incêndio usadas ou bolas de algodão – carregam histórias em camadas e ecos de experiências vividas. Como um arqueólogo do cotidiano, Ward escava resquícios da cultura de consumo, traumas sociais e histórias diaspóricas, expondo tensões entre memória e esquecimento, identidade e pertencimento. Por meio de sua prática multidisciplinar e inventiva, ele converte essas relíquias abandonadas em espaços de reflexão e recuperação, unindo memória pessoal e coletiva, histórias privadas e públicas, e abordando questões de justiça social, poder e histórias negligenciadas.

Spring Seed [Semente da primavera] (2025), seu novo projeto para a 36ª Bienal de São Paulo, traça os emaranhados culturais e comerciais intangíveis da Jamaica – onde Ward nasceu e cresceu antes de migrar para Nova York, aos doze anos de idade –, do Brasil e do Japão, por meio da trajetória do café, uma mercadoria profundamente ligada às economias trabalhistas, ao consumismo global e às histórias coloniais, mas igualmente associada ao desejo e ao lazer. No centro da instalação, uma arena fechada feita de molas de cama abriga um novo vídeo que entrelaça imagens das viagens de Ward, desde o bairro da Liberdade, em São Paulo, onde se concentra a comunidade nipo-brasileira, até a Bahia e a região cafeeira de Blue Mountain, na Jamaica. Símbolo de luxo e exclusividade, o café Blue Mountain é cultivado em pequenas quantidades; a maior parte de sua

Nari Ward: Ground Break. Vistas da exposição na Pirelli HangarBicocca, Milão, 2024. Foto: Agostino Osio. Cortesia do artista e Pirelli HangarBicocca, Milan.

produção é exportada para o Japão, onde é valorizado pela raridade e refinamento. Dentro desse espaço íntimo, no qual os espectadores precisam entrar, um sistema de alto-falantes semelhante ao de um altar, coberto com capas de algodão engomado infundido com grãos de café Blue Mountain, funciona como um elemento escultural e multissensorial, sobrepondo gravações sonoras da Capela de Nossa Senhora das Almas dos Aflitos, em São Paulo – construída em um túmulo ancestral de pessoas negras e indígenas. Essas texturas sonoras e visuais fazem eco a trabalhos anteriores de Ward, como Spellbound [Enfeitiçado] (2015), que explorou as histórias conturbadas de escravidão, colonialismo, resiliência e emancipação da cidade de Savannah, na Geórgia.

Por meio de suas montagens carregadas, Ward não apenas recupera materiais descartados, mas também reimagina o potencial que eles carregam. Spring Seed amplia essa exploração contínua da coletividade, mapeando fluxos e trocas invisíveis e complicando as narrativas dominantes. Ao entrelaçar a linguagem visual, o som e o aroma, e ao empregar imagens em movimento – um meio inerentemente capaz de atravessar o tempo e o espaço –, Ward adota uma abordagem não linear que ativa a imaginação dos espectadores, revelando as energias e as forças ocultas que moldam um senso de comunidade e pertencimento. Ao fazer isso, ele cria um espaço onde a memória resiste ao apagamento e o passado fala poderosamente ao presente – tal qual uma semente que brota para a vida.

Roberta Tenconi Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Manauara Clandestina

TRANSCLANDESTINA 3020 (2025) resulta de um acúmulo de histórias e processos que evocam múltiplas linguagens, nas quais Manauara Clandestina vem desenvolvendo sua pesquisa nos últimos anos. Têxteis, vídeo, fotografia e performance compõem esse trabalho multilinguagem, marcado por anseios proféticos originados em sua formação neopentecostal, recusando, porém, o fatalismo apocalíptico. Para Manauara, germinar novos caminhos é a única saída viável diante de um presente permeado pela violência. Sua prática transcende essa condição, abrindo espaço a possibilidades que insistem em existir. Embora presentes ao longo da história humana, ancestralidades travestis raramente encontram destaque nas tecnologias habituais da memória, tradicionalmente centradas em trajetórias cisheteronormativas. Reconhecendo-se parte de um passado por vir, Manauara projeta o futuro como plataforma de enunciação, no qual, mesmo sob constante perseguição, rotas de fuga e alianças inesperadas seguem determinando possibilidades de existência.

O desejo de fuga nasce justamente da imaginação que permite visualizar outras realidades possíveis. O trabalho já está em marcha; sua presença na 36ª Bienal de São Paulo convoca-nos a acolher as muitas Ícas que já existem e as que ainda estão por vir. Como as rainhas formigas e as vespas-do-figo, que abdicam das asas para garantir a continuidade da vida, também somos instigados a repensar o desejo de voo, metáfora persistente do progresso. Voar não é imperativo quando os pés tocam com firmeza o chão. Mesmo sem asas, o voo persiste como gesto de seguir adiante.

Sem título, 2024. Estrutura em trama de arame galvanizado com base de concreto armado, têxtil, objetos do cotidiano e de consumo bordados e cabelos orgânicos. 126 × 125 × 31 cm.

Desde que chegou a São Paulo – desprovida de privilégios para facilitar sua transição –, Manauara sempre acionou sua criatividade para construir rotas capazes de levá-la além da realidade imposta como impossível. Sua migração revelou-se potência, abrindo-lhe portas para novos mundos e expandindo sua prática e comunicação. Oferecendo uma miração mil anos à frente, sua viagem interior afirma que o futuro não precisa ser idílico, mas deve assentar-se em solidariedade e compartilhamento. A nova obra de Clandestina, TRANSCLANDESTINA 3020, comissionada para a 36ª Bienal, é um projeto multidisciplinar. Ela se baseia na colaboração de um grupo diverso de profissionais das áreas da moda, da música e do cinema. Juntos, criaram uma nova linha de roupas a partir da transformação e reutilização de uniformes de trabalho, um desfile de moda e uma instalação escultórica com as peças, culminando na realização de um filme que documenta todo o processo criativo do grupo. Seus colaboradores e protagonistas surgem como arquétipos evocando a colaboração como tecnologia fundamental para ultrapassar a temporalidade linear e tornar todas as transições possíveis.

O beijo, 2024. Estrutura em trama de arame galvanizado com base de concreto armado, têxtil, objetos do cotidiano e de consumo bordados e cabelos orgânicos. 50 × 75 × 69 cm.

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Aldones Nino

Amina Agueznay

Amina Agueznay desenvolve uma prática artística profundamente enraizada no saber artesanal e nas histórias humanas que o moldam. Seu trabalho parte de uma abordagem de campo que privilegia a imersão, a troca e o compartilhamento de habilidades com artesãos de diversas regiões do Marrocos. Há quase três décadas, ela tece um diálogo entre técnicas vernaculares e formas contemporâneas, explorando as dinâmicas de transmissão e transformação que estão no centro das práticas tradicionais. A experimentação constante com materiais é o cerne de seu processo. Lã, hena, prata, pedra e fibras vegetais são vetores de uma reflexão sobre memória, lugar e transformação. Por meio desses materiais vivos, Agueznay questiona gestos herdados, reconfigura-os e os converte em formas que dialogam com o espaço. As obras modulares, muitas vezes concebidas como conjuntos, refletem um desejo de continuidade e metamorfose. Cada instalação e cada objeto encarnam um equilíbrio delicado entre o respeito pelo legado técnico (ou conhecimento ancestral) e sua reinvenção dentro do contexto contemporâneo.

– Variation #1, 2024. Lã não tingida fiada à mão, cola, fio de metal e metal galvanizado pintado. 150 × 100 × 20 cm. Foto: Ayoub El Bardii. Cortesia da artista e Loft Art Gallery, Marrakech.

Vista parcial de Graines Perles, 2024. Prata, esmalte, fórmica, madeira, chifre, coral, sementes de tâmara, argan e damasco, conchas. Dimensões variáveis. Conta esmaltada pela artesã Mina Kharbouch (Tiznit, Marrocos). Realizado com o apoio de ourives de Tiznit. Azulejos produzidos em colaboração com Soufiane Tygliene. Foto: Ayoub El Bardii. Cortesia da artista; Loft Art Gallery, Marrakech; e Société de Développement Régional du Tourisme Souss Massa.

Chouk

Vista da exposição FIELDWORKS – Amina Agueznay, Loft Art Gallery, Marrakech (outubro 2024 – fevereiro 2025).

Foto: Ayoub El Bardii. Cortesia da artista; Loft Art Gallery, Marrakech; e Société Générale.

As interações de Agueznay com artesãos vão além da produção de obras – representam uma pesquisa coletiva em que a expertise não é apenas valorizada, mas também questionada e expandida. A transmissão torna-se um ato criativo, uma troca que transcende o ateliê ou a cooperativa e abre espaço para reflexões mais amplas sobre o papel da tradição em nossas sociedades contemporâneas. Suas instalações modulares, têxteis, escultóricas ou ornamentais exploram a temporalidade e a flexibilidade. Elas são montáveis, reconfiguram-se e se reinventam, como uma paisagem em transformação perpétua. Agueznay brinca com a escala e o volume, alternando entre a monumentalidade e a intimidade, a estrutura e o detalhe, criando ambientes imersivos que envolvem física e sensorialmente o espectador no material e em seu potencial narrativo. Ela concebe a arte como um espaço de experimentação em que a tradição e a inovação coexistem. Seu trabalho celebra tanto a excelência do artesanato quanto a força de um propósito comum, afirmando a importância de um diálogo contínuo entre passado e presente, entre a mão que molda e a mente que imagina. Para além da forma e do material, a prática de Agueznay é uma meditação sobre o humano como força dinâmica, engajada na interação e na busca incessante. Por meio de encontros e trocas, suas obras desconstroem assimetrias, convidando a um mundo onde a transmissão não é um ato estático, mas uma negociação viva entre saber, experiência e sensibilidade. Nesse espaço de cocriação, a alegria e a beleza não são apenas enfeites: são forças gravitacionais, atos políticos que sustentam o equilíbrio de nossos mundos. Amina Agueznay nos convida a imaginar um futuro ancorado em nossa humanidade compartilhada, tecido a partir da tradição e do devir, da matéria e da memória, do indivíduo e da comunidade.

Esta participação é apoiada por: Arab Fund for Arts and Culture

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Marlene Almeida

Marlene Almeida é uma artista cuja obra se constrói na interseção entre matéria e território. Nascida em Bananeiras, no Brejo paraibano, e formada em filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, sua trajetória artística se estende por mais de cinquenta anos, impulsionada pela observação atenta das paisagens da Paraíba e de outras regiões. Seu trabalho combina arte, ciência e filosofia, desafiando os limites convencionais da prática artística e propondo uma reflexão sobre os ciclos da natureza e os vestígios do tempo. Para a 36ª Bienal de São Paulo, Marlene apresenta Terra viva (2025), uma instalação que sintetiza décadas de pesquisa e criação. Dividida em duas vertentes complementares, a obra articula o rigor técnico e a potência poética. A dimensão técnica se manifesta em um espaço de estudos que exibe amostras de solos brasileiros, resinas vegetais, minerais, equipamentos laboratoriais e cadernos de campo. Já a poética se traduz em uma instalação composta de pinturas expandidas em têmpera fosca, aplicadas sobre faixas de algodão cru. Essas superfícies, penduradas no teto e prolongadas até as paredes, evocam as trilhas percorridas pela artista ao longo de suas investigações, incorporando rochas naturais que dialogam com as camadas cromáticas utilizadas.

A obra dá continuidade a trabalhos anteriores, como Terra-Devir (2024) e Vermelho como terra (2024), que reafirmam sua pesquisa sobre os processos de sedimentação, apagamento e permanência. Na instalação, Marlene trabalha com uma paleta que vai do branco do caulim puro aos tons profundos da hematita e da pirolusita, compondo uma cartela cromática que revela as variações geológicas do Brasil. O jogo de sombras projetado pelas faixas de tecido e pela iluminação reforça a passagem do tempo, funcionando como um marcador visual que remete aos relógios de sol. Para além de seu caráter estético e experimental, Terra viva carrega um pensamento político e ecológico. O trabalho questiona as noções de propriedade e extração, problematizando a relação entre território e exploração. A artista não apenas recolhe e transforma materiais naturais, mas

propõe um diálogo no qual a terra não é um objeto inerte, e sim um organismo vivo, dotado de agência. Seu uso de pigmentos naturais e técnicas de baixo impacto ambiental reafirma um compromisso com a sustentabilidade e com modos de criação que respeitam os ciclos da natureza. Marlene Almeida desafia as fronteiras entre arte e ciência, técnica e intuição, tradição e experimentação. Sua obra não apenas representa a terra, mas a escuta e a traduz, transformando sua materialidade em narrativa. Terra viva se inscreve como um testemunho daquilo que a terra guarda, revela e resiste a esquecer – um arquivo sensível no qual a passagem do tempo se faz visível, e onde a paisagem, em sua infinita transmutação, continua a contar suas histórias.

Ariana Nuala
Obra em processo para a exposição Terra agônica, Walter & Nicole Leblanc Foundation, Bruxelas, 2025. Foto: Adriano Franco.

Tuấn Andrew Nguyễn

A prática artística de Tuấn Andrew Nguyễn gira em torno da memória e da narrativa. O artista vietnamita-estadunidense desconstrói a historiografia oficial ao dar voz a micro-histórias, juntando lembranças pessoais dos envolvidos com relatos recontados e mitologias. Por meio de instalações, esculturas, materiais de arquivo, vídeos e práticas colaborativas, seus trabalhos iluminam e amplificam histórias apagadas, silenciadas ou esquecidas sob o peso do colonialismo e seu legado persistente. Esse método singular de narrar histórias transformou-se em uma poderosa estratégia de resistência, cura, empoderamento e solidariedade.

Amongst the Disquiet [Entre o desassossego], 2024. Em colaboração com THAO e Marion Hoàng Ngọc Hill. Instalação de vídeo em dois canais. Vídeo, cor, som; 53’. Comissão da Prospect 6, New Orleans, com apoio adicional de produção de Duettist e do New Orleans Tourism and Culture Fund. © Tuấn Andrew Nguyễn 2024. Cortesia do artista e James Cohan, Nova York.

Na 36ª Bienal de São Paulo, o artista apresenta sua instalação em vídeo de dois canais Amongst the Disquiet [Entre o desassossego] (2024), criada em colaboração estreita com a artista Thảo Nguyễn, além de Marion Hoàng Ngọc Hill e a comunidade vietnamita de Nova Orleans, originalmente comissionada para a trienal de artes Prospect 6 (2024). O filme narra os laços de uma família multigeracional de origem vietnamita, explorando como se entrelaçam migração e memória, lar e história, terra e água. Através de vinhetas que se mesclam a diálogos e canções, a obra percorre os desafios, anseios e paisagens emocionais complexas dos diferentes membros da família – e o caminho a seguir é permanentemente moldado pelos fantasmas do passado. Ao adotar perspectivas de várias gerações, inclusive dos que já partiram, o filme investiga: o que constitui um lar quando ele foi deixado para trás? Onde fica o lar quando os entes queridos já não estão? O lar vive dentro de nós? Ou está no lugar onde enterramos nossos mortos?

Anna Roberta Goetz

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Christopher Cozier

Christopher Cozier é um artista, escritor e curador trinitário cuja obra examina criticamente os efeitos persistentes do colonialismo e da globalização no Caribe. Atuando em diversos meios artísticos, como desenho, instalação, vídeo e performance, seus trabalhos criam espaços de diálogo para explorações poéticas (e às vezes irônicas) do mundo e do cotidiano a partir de uma perspectiva caribenha.

Com raízes profundas no desenho, elemento central de sua prática, suas peças frequentemente se assemelham a storyboards ou ensaios visuais que, observados de perto, revelam composições de muitas camadas, sugerindo movimento no tempo e no espaço e referenciando tanto a história quanto o presente. Funcionando simultaneamente como espelho e mapa, refletindo as complexidades da existência caribenha enquanto traçam novos caminhos para o pensamento e a ação, as obras de Cozier convidam o espectador a confrontar histórias incômodas, questionar narrativas herdadas e imaginar futuros alternativos ancorados na autodefinição e crítica cultural.

Home/Portal [Casa/Portal], 2017–2023. Instalação multimídia com artistas residentes em diferentes locais. Vista da instalação em St. Ann’s, Porto da Espanha. Foto: LeXander Bryant.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, o artista apresenta uma nova obra intitulada After the Appeal Will Come the Next Delivery [Após o apelo virá a próxima entrega] (2025). Inspirada nas transmissões de críquete que ouvia na infância, a peça consiste em diversas bandeirolas, cada uma carregando um signo ou padrão. Reconhecível entre os inúmeros desenhos está o gesto de “apelo”, também chamado de “howzat ”, realizado por um jogador de campo em direção ao árbitro durante uma partida de críquete. Referindo-se a um processo crucial de decisão, o apelo geralmente simboliza o momento decisivo antes que um rebatedor seja declarado “out ” ou não, permitindo que o jogo continue. Particularmente sugestiva, a obra transcende sua estética para servir como metáfora, estabelecendo paralelos entre aspectos do jogo e os mecanismos que definem e regulam as interações sociais, como injustiças e dinâmicas de poder. Além disso, aparecem símbolos característicos da linguagem visual desenvolvida por Cozier ao longo dos anos (figuras humanas e fragmentos de textos), inscritos principalmente em bandeirolas vermelhas, verdes e pretas, cores que remetem aos movimentos de libertação no continente africano e no Oriente Médio.

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Turbulence (Version 2) [Turbulência (Versão 2)], 2021. Nanquim sobre papel, ripas de madeira. Vista da instalação no Stavanger Art Museum. Foto: Markus Johansson.

Akinbode Akinbiyi

Em uma tarde de sexta-feira de Carnaval, Akinbode Akinbiyi caminhava pela rua Três Rios quando se sentiu intrigado por um emaranhado de cabos em um poste de eletricidade. Além do peso da fiação, o poste sustentava uma placa indicando a direção de duas regiões de São Paulo: o parque Dom Pedro, no centro histórico, e o Canindé, bairro retratado por Maria Carolina de Jesus em Quarto de despejo e atualmente bom retiro da comunidade boliviana. Essa partícula de vida cotidiana daquela rua chamou sua atenção, fazendo-o registrar o momento com uma câmera fotográfica Rolleiflex, sobre o que depois comentou: “Thank you for waiting, André”. Essa é uma das primeiras imagens do ensaio fotográfico de Akinbode Akinbiyi comissionado para a 36ª Bienal de São Paulo. Uma rua que se diz o encontro de três rios é o estuário que o viandante Bode escolheu circum-navegar durante seis semanas na cidade. Esse encontro de ruas, pessoas, experiências e expectativas é o principal vetor de conexão de Akinbode com as cidades que habita, visita e fotografa. É isso o que faz dele essencialmente um “street photographer”, disposto a captar na película sensível da fotografia analógica as particularidades desse acordo de milhões de pessoas em viver umas com as outras em uma megacidade. Uma prática fotográfica que Akinbode realiza desde os anos 1970; um processo lento e contínuo que já percorreu Lagos, Cairo, Berlim, Dacar, Joanesburgo, Chicago, Bamako e outras – e agora São Paulo.

Casa do Povo, Bom Retiro, São Paulo, 2025. Filme analógico médio formato impresso em Textile Decor Blockout frente e verso. 200 × 200 cm.

e verso.

No encontro dos rios, a Casa do Povo. A velocidade do funcionamento de uma metrópole e o tempo detido do pensar e fazer fotográficos poderiam ser opostos, mas evidenciam os ritmos da cidade e de suas populações. Como uma experiência de ampliar o tecido social de São Paulo, Akinbode Akinbiyi conviveu e acompanhou as atividades dos muitos grupos, associações e coletivos que atuam no centro cultural Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro. O clube de xadrez, os ensaios do coral em ídiche, os treinos de boxe, o parquinho gráfico…

O que esperar do ensaio fotográfico sobre os povos de São Paulo? O que essa cidade insana, conservadora e diversa ofereceu ao fotógrafo? Ou o que se recusou a mostrar a ele, ingenuamente acreditando esconder a sua particular dinâmica urbana do olhar generoso de Akinbode? Essas perguntas surgiram ao perceber que, enquanto a fotografia do poste da rua Três Rios era feita, ela permanecia virtual, em potência, e seria atualizada no espaço expositivo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, provavelmente no momento em que você lê este pequeno texto. A fotografia do encontro dos três rios estava lá?

André Pitol

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen – IFA e British Council, como parte do Ano da Cultura Brasil/Reino Unido 2025-2026

Casa do Povo, Bom Retiro, São Paulo, 2025. Filme analógico médio formato impresso em Textile Decor
Blockout frente e verso. 200 × 200 cm.
Casa do Povo, Bom Retiro, São Paulo, 2025. Filme analógico médio formato impresso em Textile Decor Blockout frente
200 × 200 cm.

Wolfgang Tillmans

A fotografia de Wolfgang Tillmans, nascida de sua capacidade de capturar o efêmero, o pessoal e o político com uma intimidade natural, carrega uma qualidade poética singular. Trabalhando entre grandes impressões, fotografias em pequeno formato, objetos escultóricos, projeções em vídeo e projetos editoriais, suas imagens vão além do documental; elas criam espaços de intimidade e conexão. A câmera de Tillmans eleva momentos cotidianos e seus vestígios – uma sala após uma festa, a vista da janela de um avião, dobras em um papel –, transformando-os em poesia visual.

Venus Setting Four Days Before Conjunction With the Sun [Vênus se pondo quatro dias antes da conjunção com o Sol], 2025. Cortesia do artista; David Zwirner, Nova York/Hong Kong; Galerie Buchholz, Berlim / Colônia; Maureen Paley, Londres.

Iguazu, 2010 Cortesia do artista; David Zwirner, Nova York/Hong Kong; Galerie Buchholz, Berlim/Colônia; Maureen Paley, Londres.

Sua prática é uma contínua exploração das capacidades técnicas e artísticas da fotografia, movida pela curiosidade, por uma perspectiva compassiva sobre o ambiente ao seu redor e pela relação que constrói com seus retratados. Seus temas – sejam pessoas, paisagens ou naturezas-mortas –são capturados de maneira a resistir a significados fixos. As imagens sugerem em vez de ditar, permitindo ambiguidade, interpretação e ressonância emocional. Através de seu olhar, tanto a imediatez do presente quanto os sutis fluxos subterrâneos da existência moderna estimulam uma proximidade interpessoal, em que reconhecimento, empatia, companheirismo e solidariedade tornam-se possíveis entre histórias individuais e narrativas coletivas.

Nkule Mabaso

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Nile [Nilo], 2018. Cortesia do artista; David Zwirner, Nova York/Hong Kong; Galerie Buchholz, Berlim/Colônia; Maureen Paley, Londres.

Pélagie Gbaguidi

No encerramento de um de seus ensaios fundamentais, “People as Infrastructure: Intersecting Fragments in Johannesburg” [Pessoas como infraestrutura: fragmentos que se cruzam em Joanesburgo], o sociólogo AbdouMaliq Simone discute o aprofundamento da miséria urbana africana, destacando as colaborações econômicas e culturais entre moradores aparentemente marginalizados pela vida nas cidades.1 Tomando Joanesburgo como estudo de caso para refletir sobre a precariedade enfrentada por populações em metrópoles em expansão global, AbdouMaliq descreve a situação como “real e alarmante”, acrescentando que para “um número crescente de africanos urbanos, suas cidades já não oferecem perspectivas de melhoria em seus meios de vida ou em formas modernas de existência”.2 Seja nas cidades de Dacar, Joanesburgo, São Paulo –ou na Europa –, somos constantemente confrontados com a precariedade e a fragilidade de nossos corpos no espaço público. Por meio de sua nova obra comissionada, Guardians of Cosmos [Guardiões dos cosmos] (2025), a artista Pélagie Gbaguidi nos convida a refletir sobre essas questões urgentes por meio de um prisma arquitetônico e urbanístico. A instalação é composta de estruturas semelhantes a tendas, que remetem aos abrigos improvisados que brotam nas cidades em rápida expansão ao redor do mundo, causados por uma série de males, entre os quais se destaca a crise habitacional desenfreada. Com frequência construídos com materiais reciclados ou encontrados, esses abrigos – inicialmente pensados como soluções temporárias – acabam se tornando permanentes, empurrando seus habitantes para uma espécie de “provisoriedade permanente”.

Care [Cuidado], 2019–2020. Saco de farinha plástico, lona, vigas de madeira, bordado com lã e algodão. 243,5 × 175 cm. Foto: Peter Cox. Cortesia da artista e Kanal Pompidou, Bruxelas.

The Post-Traumatic Patriarchy [O patriarcado pós-traumático] (detalhe), 2024. Pigmento e técnica mista sobre algodão. Foto: Kristien Daem. Cortesia da artista; Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo / Rio de Janeiro; e Goodman Gallery.

Espalhadas por todo o espaço, as estruturas em forma de tenda são feitas com armações de madeira que sustentam pinturas sobre tela. As telas são dupla-face: no verso, encontram-se plantas baixas e mapas desenhados à mão de casas típicas da África Ocidental, assim como, em uma delas, a transcrição do preâmbulo da Constituição Brasileira, que consagra a moradia como um direito fundamental. Esses versos se desdobram como uma cartografia composta do habitat coletivo – simultaneamente imaginado e herdado – que ecoa arquiteturas tradicionais da África Ocidental, como explorado em Habiter un monde [Habitar um mundo] (2005), de Jean-Paul Bourdier e Trinh T. Minh-ha. Esse gesto nos instiga a refletir sobre a interseção entre os direitos humanos fundamentais e as realidades espaciais vividas, inscritas em diversos marcos legais e improvisações cotidianas.

Numerada até cinco, em referência aos dedos de uma mão, a instalação evoca de forma metafórica a ideia de estender a mão a quem precisa, confrontando o público com a insensibilidade e a falta de cuidado dispensadas a uma esfera específica da sociedade nas paisagens urbanas –uma esfera constantemente relegada às margens e, em certa medida, invisibilizada pela normalização de suas condições precárias.

Billy Fowo

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

1. AbdouMaliq Simone, “People as Infrastructure: Intersecting Fragments in Johannesburg”. Public Culture, v.16, n.3, 2004, pp.407-429. 2. Ibid.

Raven Chacon, Iggor Cavalera e Laima Leyton

Da série For Zitkála-Šá [Para ZitkálaŠá], 2017–2020. Litografia. 27,9 × 21,6 cm.

Whitney Museum of American Art, Nova York; aquisição com fundos da O’Grady Foundation. © Raven Chacon. Cortesia do artista e Crow’s Shadow Institute of the Arts.

Ao contrário da liturgia de uma missa tradicional, Voiceless Mass [Missa sem voz] (2021) não é centrada na voz humana. A obra, que consagrou Raven Chacon, artista nascido na Nação Navajo Diné, como o primeiro compositor indígena norte-americano a receber o Prêmio Pulitzer de Música, tem como elemento central a catedral de São João Evangelista, em Milwaukee, e seu órgão de tubos. O edifício, com sua arquitetura acústica imponente e seus simbolismos, torna-se ele próprio um sutil corpo ressonante dos conflitos que por séculos perpetuou. Como afirma Chacon, “essa peça tem sido uma espécie de metáfora para a inacessibilidade das vozes ao longo da história da Igreja – e também da história da colonização para a qual a Igreja contribuiu. E, no caso dos povos indígenas, isso levou à perda da própria linguagem”.1

Há quase trinta anos, a presença da voz indígena como expressão das forças insurgentes na história brasileira ganhou corpo no álbum Roots [Raízes] (1996), da banda Sepultura. Nas faixas “Ratamahatta” e “Itsari”, os cantos do povo Xavante atravessam a paisagem sonora do heavy metal, rompendo com as estéticas dominantes do gênero e aproximando uma geração de fãs das lutas dos povos originários por seus territórios e modos de vida. É do encontro entre as trajetórias de Raven Chacon, Iggor Cavalera, ex-baterista e fundador do Sepultura, e Laima Leyton, produtora

Da série For Zitkála-Šá [Para Zitkála-Šá], 2017–2020. Litografia. 27,9 × 21,6 cm. Whitney Museum of American Art, Nova York; aquisição com fundos da O’Grady Foundation. © Raven Chacon. Cortesia do artista e Crow’s Shadow Institute of the Arts.

musical radicada em Londres, integrante do duo Mixhell e atuante nas interseções entre performance, pedagogia e ativismo sonoro, que nasce o projeto a ser apresentado na 36ª Bienal de São Paulo. Ao lado de músicos Xavante que participaram da gravação de Roots e com a articulação local do cacique Cipassé Xavante, da aldeia Wederã (Canarana, Mato Grosso), os artistas desenvolvem uma composição multicanal que, de forma poética, desfaz os ritmos dos motores da cidade (“… undo the urban motor-rhythms of São Paulo”) para fazer emergir a pulsação da terra e das vozes a ela conectadas.

A crítica à linguagem como estrutura de poder – iniciada em Voiceless Mass e expandida no diálogo com Roots – se aprofunda ainda mais na abordagem de Chacon à própria escrita musical. O direito à própria voz e linguagem é um exercício de humanidade. Assim como as línguas indígenas foram suprimidas pela imposição dos idiomas europeus, a história da música consagrou a partitura tradicional como a forma legítima de escrita sonora. Em For Zitkála–Šá [Para Zitkála-Šá] (2017-2020), Chacon homenageia treze artistas indígenas e mestiças por meio de partituras gráficas que funcionam como retratos sonoros, compostos por símbolos, formas e instruções abertas à interpretação. Ao trabalhar com outras formas de notação, performance e registro musical, Chacon evidencia que a sistematização e a metodologia de ensino ocidental constituem apenas uma entre inúmeras possibilidades – e que essa nem sequer é adotada pela maioria das pessoas que exerce a música no mundo.

1. Entrevista de Raven para ¡COLORES!. Disponível em: <www.youtube.com/ watch?v=5ryWiAEKdzI&t=205s>. Acesso: 2025.

Pol Taburet

Elephant [Elefante], 2024. Bronze. 260 × 145 × 100 cm.

Foto: Gui Gomes. © Pol Taburet. Cortesia Studio Pol Taburet.

São muitos os fatores que nos forçam a adaptar o olhar diante da atmosfera enigmática das obras do francês Pol Taburet. A começar pelas referências sincréticas do artista, que perpassam as mitologias caribenhas, os filmes de terror e até versos de trap e hip-hop. Isso tudo inclinado sobre o plano da história da arte ocidental, resultando em uma atualização munida de jovialidade para nossa cultura visual contemporânea. Mas, além de seu repertório pessoal, difícil de ser notado de primeira, Taburet trabalha respeitando seus instintos criativos. Talvez por isso consiga nos aproximar e nos repelir ao mesmo tempo desse universo liminar que cria no calor do momento, sem receio de nos proporcionar sensações que oscilam entre medo, estranheza e curiosidade.

Seu universo é habitado por seres-espíritos de intenções misteriosas. Feitos a partir de aerografia, o acabamento de seus corpos, geralmente disformes, revela texturas hipnóticas que beiram o sobrenatural. Desfigurados, fantasmagóricos, porém humanoides, esses seres em estado de profunda mutação performam situações por vezes delirantes. O ambiente em volta parece um substrato ainda mais aterrorizante dos chamados liminal spaces [espaço liminar]. Famosos nos subgrupos da juventude

Soldier [Soldado], 2025. Bronze. 148 × 35 × 30 cm.

Foto: Vincent Blesbois. © Pol Taburet. Cortesia Studio Pol Taburet.

Coffin [Caixão], 2025.

Bronze. 120 × 64 × 63 cm.

Foto: Vincent Blesbois. © Pol Taburet. Cortesia Studio Pol Taburet.

cronicamente online, são lugares de transição nos quais não estabelecemos relação de pertencimento direto. No entanto, evocam sentimentos ambíguos de medo e familiaridade. Em resposta a essa demanda sentimental da geração Z, da qual o artista inclusive faz parte, suas ambientações emulam salas e corredores que só existem na liminaridade entre o que reconhecemos brevemente e o que só provém de um lugar oculto.

Essa esplêndida combinação de fatores está em fricção com as referências ligadas à pintura ocidental, como os acenos aos trabalhos de Francis Bacon. No entanto, Taburet nunca deixa esse diálogo se perder na cronologia evolutiva da história da arte. Não se compromete, também, em representar o teor espiritual de suas obras de maneira explicativa. Ao invés disso, faz dos seus sujeitos seres de significados momentâneos, sem ceder detalhes sobre os rituais e cerimônias que parecem exercer. Nós, enquanto testemunhas, estamos condenados a tatear esse universo em busca de respostas, porém na incerteza de encontrá-las.

Wes Chagas

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Cynthia Hawkins

A pintura de Cynthia Hawkins é um caso profundo de experimentação na arte, manifestada de um modo particular em cada um de seus trabalhos, igualmente diferentes e diversificados em sua unidade criativa, como um exercício que se realiza continuamente a fim de, talvez, desenvolver habilidade ou criar repertório e vocabulário daquilo pelo qual se tem interesse. Movimento e processo de evolução são dois processos que guiam a artista de modo contínuo, desenvolvidos desde os anos 1970. O interesse da artista é, principalmente, pela abstração –não apenas pela prática da pintura abstrata, mas pela abstração em si. Essa relação é longeva, sendo também um ato de resistência, na medida em que a abstração, para ela, requer um olhar demorado e atencioso por parte do espectador.

Com uma produção artística que abrange mais de cinco décadas, Hawkins vivenciou um período do contexto artístico estadunidense no qual “a abstração realizou um

Living Spare [Vida reduzida], 1975. Óleo sobre papel. 127 × 127 cm.

1 Darby English, 1971: A  in the Life of Color University of Chicago Press, 2016, p.8.

Menagerie of Players [Conjunto de tocadores], 1975. Óleo sobre tela. 116 × 206 cm.

trabalho crucial dentro e sobre os fluxos da cultura negra, ao abri-la à mesma contingência que fragmentava a cultura do modernismo, provendo-a de linguagens visuais e verbais para desvios – linguagens que se distanciavam de referências tangíveis identificáveis com a política de massa”.1 Sua produção e sua própria atuação nesse cenário podem ser consideradas em um ambiente maior de abstração, comunidade e negritude.

Os elementos que compõem as pinturas de Hawkins –linhas, formas, cores – foram e ainda são desdobramentos vivos de desenhos anteriores, como notações matemáticas e referências algébricas, praticadas na superfície da tela. Com o tempo, foram transformando-se em outras situações e campos perpassados pela abstração – como a ciência, a literatura, a filosofia e a música –, sempre em direção à abstração geométrica e orgânica.

Não é à toa que trabalhos históricos como Air Smart (1975) e Stars that Fell into the Sea [Estrelas que caíram no mar] (1975) tenham sido assim intitulados. Tal noção de abstração geométrica vem do trabalho com a matéria da pintura, no sentido de investigação, por exemplo, da profundidade da tela, em que o peso e a leveza dos elementos posicionados tanto se adensam quanto flutuam.

1. Darby English, 1971: A Year in the Life of Color. Chicago: University of Chicago Press, 2016, p.8.

Márcia Falcão

A produção artística de Márcia Falcão explora a pintura como protagonista, tomando o corpo como ponto de ruptura e distensão da figuração. Por meio de gestos expressivos e densos, sua obra revela uma investigação profunda sobre o meio pictórico, na qual o corpo aparece não apenas como motivo, mas como campo de tensão e experimentação.

A artista é reconhecida por suas obras de grande escala, em que combina, com precisão, componentes figurativos e abstratos. Seu processo criativo parte de um elemento central que orienta a construção dos planos e da composição. Sua paleta é marcada por cores intensas e vibrantes, como vermelhos, pretos e diversas tonalidades de marrom, que não apenas expressam a diversidade dos corpos e como a corporeidade deles opera no espaço, mas também ganham força com o uso de camadas espessas de tinta a óleo, bastão, pastel e carvão. Esses materiais conferem profundidade e textura às obras, levando as formas corpóreas ao limite do figurativo.

Posição 3 da série Ioga psicológica, 2022. Óleo sobre tela. 120 × 100 cm.
Foto: Eduardo Ortega. Cortesia da artista e Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo / Rio de Janeiro.

paleta alta,

tela.

As pinturas de Falcão evidenciam um domínio notável da cor, utilizada para construir camadas e representar uma ampla gama de tonalidades de pele. A artista demonstra controle refinado da luz e da sombra, destacando detalhes corpóreos que orientam o olhar do espectador. Longe de se limitar à representação realista, Falcão explora as expressividades do corpo, distorcendo-o e fragmentando-o para revelar as histórias e complexidades que o atravessam. Suas pinceladas marcantes e expressivas tornam visível o gesto, conferindo textura, densidade e movimento às obras. Embora as formas corpóreas ainda sejam reconhecíveis, elas se situam em um estado liminar, dissolvendo-se em volutas e massas pictóricas que desafiam definições fixas. Essa abordagem tensiona não apenas a percepção do público, mas também os signos imagéticos e compositivos da própria pintura.

Ana Paula Lopes

Ginga da série Capoeira em
2024. Carvão, óleo e bastão oleoso sobre
160 × 120 cm. Foto: Paul Salveson. Cortesia da artista e Night Gallery, Los Angeles.
Passinho: memória radical, 2024. Óleo e bastão oleoso sobre tela. 152 × 145 cm. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia da artista e Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo / Rio de Janeiro.

Sara Sejin Chang (Sara van der Heide)

As obras de Sara Sejin Chang (Sara van der Heide) operam no campo da cura, do pertencimento e da reparação histórica na medida em que esmiúçam os sistemas eurocêntricos de categorização e racialização, bem como a penetração destes em diversos níveis da sociedade ocidental contemporânea. Por meio de trabalhos em diferentes mídias, como vídeo, escrita, instalações imersivas e pinturas, a artista produz espécies de evocações espirituais que comunicam o imaterial e dão a ver dimensões políticas e de memória muitas vezes sobrepujadas pela colonialidade. Em Dismemberment [Desmembramento] (2024), os ideais iluministas e modernos europeus são personificados na figura de uma galerista, chamada Europa, interpretada pela atriz alemã Susanne Sachsse. Seu comportamento e suas falas expõem, de maneira perspicaz, as violências que estruturam esses princípios. Chang, no trabalho, representa a si mesma montando a instalação na galeria da personagem de Sachsse, e suas interações demonstram a normalização da persistente racialização dentro da sociedade europeia, que mantém as hierarquias coloniais. Os abusos e desequilíbrios expostos por essa interação culminam em um ritual no qual as divindades que acompanham a artista se revelam no espaço expositivo. Os deuses coreanos Daesin Halmeoni, o Grande Espírito Avó, e Sansin, o Deus da Montanha, realizam uma cura por meio de Chang no corpo da Europa doente. O ritual é inspirado na prática tradicional do Ssitgimgut, em que a pessoa é desmantelada pelas divindades, e tudo o que

Dismemberment [Desmembramento], 2024. Instalação fílmica (vídeo, 45’), objetos (rituais) e pinturas. Vista da instalação no Kunstinstituut Melly, Roterdã.

já não lhe serve – como a ganância, a arrogância, o abuso ou a doença – é removido, permitindo o renascimento. Dismemberment trabalha com as linhas invisíveis que conectam ancestralidade e espiritualidade à produção artística de Chang, mas também com as linhas que conectam as pessoas imersas no processo de deslocamento de seus territórios de origem para a Europa. Texto e imagens se sobrepõem em uma anamnese da genealogia e do assentamento de gerações de mulheres que vivem sob a hegemonia europeia, enunciando um possível fim dos ciclos de violência que afligem esses corpos.

Dismemberment [Desmembramento], 2024. Instalação fílmica (vídeo, 45’), objetos (rituais) e pinturas.

Esta participação é apoiada por: Mondriaan Fund, Centro Cultural Coreano, Berlin Artistic Research Grant Programme e Kunstinstituut Melly

Em vez de se concentrar no deslocamento ou na busca de espiritualidade, Dismemberment apresenta uma alegoria xamânica e política, na qual os ideais do Iluminismo –há muito utilizados para justificar a dominação colonial –são personificados na figura da galerista Europa. A obra desloca o olhar etnográfico em relação àqueles que foram racializados e examina, em seu lugar, as estruturas e mentalidades daqueles que racializam. A instalação é composta de dois espaços interconectados: uma sala de projeção e uma sala que espelha a galeria exibida no vídeo. Esse espaço funciona ao mesmo tempo como uma galeria de arte –criando um jogo com o olhar etnográfico – e como sala ritual, onde o público se depara com objetos de arte xamânica coreana, como um grande leque, pinturas, formas fálicas e preces em papel, criando um ambiente ritual que borra os limites entre ficção e cerimônia. Por meio dessa metaestrutura e do ritual de Ssitgimgut, que é o ponto alto da obra – em que a Europa doente é desmembrada e purificada por espíritos ancestrais –, a instalação encena uma cura simbólica do corpo colonial e propõe a possibilidade de sua transformação.

Alain Padeau

Calliphora Gold, 2020. Escultura performativa com mecanismo ativado por movimento, cartas de amor e rosas vermelhas. 210 × 380 × 120 cm.

Foto: Jacques Kuyten.

Moka BOB Sound System (2025) nomeia uma pesquisa sonora de Alain Padeau que resulta em um instrumento musical de caráter escultórico, produzido a partir da associação de arcos, cordas metálicas e câmaras acústicas em formato de esfera perfeita. A arquitetura geométrica do icosaedro truncado fornece ao artista a possibilidade de trabalhar a escala da câmara acústica, transformando um objeto de fatura artesanal em uma obra de arte cuja configuração e ativação evocam outros instrumentos congêneres.

O sistema de propagação do som a partir da estrutura do fio estendido nas extremidades de um arco conjugado a uma câmara acústica de formato esférico se inscreve na genealogia dos instrumentos de corda pinçada, que têm no mvett, encontrado entre os Fang, Béti e Bulu – grupos culturais de língua banta distribuídos entre o Gabão, a Guiné Equatorial e Camarões – um de seus principais predecessores. Dezenas de instrumentos similares, como o ngoni, o gurmi, o goje, o guembri, o masengo, o bolon, o kora, entre outros, variam o mesmo modelo de construção do mvett, ganhando formatos por vezes mais islâmicos – isto é, mais semelhantes ao alaúde –, mas sempre preservando na câmara acústica a função originalmente exercida pela cabaça. É desse sistema que deriva o berimbau, instrumento fundamental na prática da capoeira, arte do corpo que mistura luta, jogo e dança, combinando ritmo e agilidade dos membros, desenvolvida no Brasil por africanos escravizados e seus descendentes. Dele deriva também o bobre, instrumento utilizado na Ilha da Reunião muitas vezes para ritmar o canto, a dança e a música do maloya, gênero

resultante da interação entre o patrimônio musical africano e francês, com prevalência da cultura rítmica e linguística oriunda da África Oriental. O bobre integra, portanto, um aparato diaspórico complexo, que, como a capoeira, tinha por finalidade garantir proteção e mitigar o sofrimento do corpo explorado pelo trabalho escravo. De origem reunionense, Alain Padeau retoma os efeitos terapêuticos do bobre, não somente através de sua morfologia ancestral, remontando ao mvett africano, mas também através da imersão no mistério do som melódico e hipnotizante do instrumento de uma corda só. No uso do Moka BOB Sound System, o artista combina os princípios da corda pinçada e da corda percutida, já que a mão que normalmente sustentaria o instrumento fica livre, e o corpo do instrumento se apoia de forma autônoma em um suporte ou diretamente sobre a câmara acústica.

A prática de arpejar sobre cordas metálicas, herdada da experiência com a guitarra, intensifica o contato tátil e sonoro com a vibração das cordas. Soltas ou abafadas nesse novo instrumento, as cordas pinçadas possibilitam o trânsito da monodia à polifonia – pois instrumentos monocordes, por natureza, são monódicos. Moka BOB Sound System, assim, trabalha novas faculdades de percepção do som por meio da incorporação do imprevisto e do improviso na transformação do som em arranjo musical.

Renato Menezes

Le collier d’esclave (Mémorial Abolition de l’esclavage – 20 décembre) [O colar de escravo (Memorial da Abolição da Escravidão – 20 de dezembro)], 1999. Aço corten. Place du Débarcadère, Saint-Paul. Foto: Alain Padeau.

Capítulo 4 Fluxos de cuidado e cosmologias plurais

Questões sobre cuidado e nutrição dentro e além de nossa espécie e culturas são os fundamentos deste capítulo. Se existimos de maneira interrelacional em uma vasta ecologia de seres, nossa vida depende da coexistência com outros, animados e inanimados. As interações colaborativas entre espécies e seus ambientes formam, dentro de certas ecologias, tecidos vitais para a sobrevivência não apenas de organismos isolados, mas da ecologia como um todo. Este capítulo explora possibilidades, filosofias e práticas de cuidado decididamente não patriarcais, generosas, recíprocas, não exploratórias, matriarcais, como cantam Amina Claudine Myers em “African Blues” [Blues africano] ou Elza Soares em “A mulher do fim do mundo”. Gentileza consigo e com os outros, apesar da lógica

do mundo capitalista que herdamos e perpetuamos. As obras deste capítulo também tratam de mitos e mitologias múltiplas, de corpos e espíritos, de histórias e línguas, destacando a fabulação como chave para a existência humana e para sustentar relações entre humanos e outros seres em diferentes ecologias e cosmologias. Por meio de cantigas, contos populares, cultura pop, depoimentos pessoais, entrevistas, práticas rituais, atividades comunitárias, simbolismos e outros, as obras, direta ou indiretamente, manifestam, discutem, criticam e comentam relações colaborativas ou competitivas, simbióticas ou predatórias entre humanos, assim como entre humanos e animais, clima, terra, água e nossa biosfera como um todo.

Laure Prouvost

from Below,

Laure Prouvost é uma contadora de histórias. A artista desenvolveu sua prática partindo do cinema estrutural até chegar a uma forma única e sensorial de cinema expandido, testando de forma constante o potencial da imaginação na percepção da realidade e questionando convenções herdadas e dominantes de percepção. Seu trabalho combina desenho, escultura, imagem em movimento e recorrentes reinvenções das convenções dos meios que utiliza.

Ela emprega tecnologias de mídia de forma inventiva, atribuindo-lhes traços humanos, como sensações emocionais ou sensuais, e incorpora materiais orgânicos, como plantas, assim como elementos altamente industriais, criando instalações multimídia imersivas que estimulam a percepção e a imaginação do visitante por meio de uma experiência multissensorial. A artista explora as relações delicadas entre a percepção humana e as vastas forças – invisíveis, na maioria das vezes – que moldam nossa existência: forças mais-que-humanas que se estendem do nível subatômico da mecânica quântica às dinâmicas cósmicas e planetárias, expansivas e em constante transformação. Para a Bienal, Prouvost montou uma nova instalação multimídia cinética e delicada, semelhante a um lustre, concebida especificamente para o espaço central do Pavilhão, conectando os níveis arquitetônicos e conceituais da exposição. A instalação é inspirada no poema de

Pulled
C’Est la Mer à Boire [Puxado de baixo, difícil como beber o mar], 2021. Vista da instalação na Galerie Nathalie Obadia, Bruxelas.

WE FELT A STAR DYING [Sentimos uma estrela morrer], 2025. Vista da instalação no Kraftwerk Berlin. Comissionada pela LAS Art Foundation e co-comissionada pela OGR Torino. Foto: Andrea Rossetti.

Hovering Caress Amère [Carícia amarga flutuante], 2022. Instalação apresentada como palco e obra autônoma na exposição The Act of Breathing, Horst Arts & Music Festival, Vilvoorde. Foto: Eline Willaert.

Conceição Evaristo e em seu convite para que se explorem outros caminhos e modos de ver, perceber, pensar, mover-se e, em última instância, de existir e de ser guiado por todos os sentidos. Seu componente central é uma planta trepadeira, incentivada a crescer livremente e encontrar seus próprios caminhos ao longo da duração da exposição, cujos sons de crescimento são amplificados no espaço. Como é característico de Prouvost, esse núcleo vivo é complementado por outros materiais orgânicos, como plantas secas encontradas e sementes – que podem cair sobre os visitantes enquanto percorrem a Bienal e ser carregadas para fora da exposição e espalhadas pelo mundo. Essas sementes naturais se juntam a materiais inorgânicos, incluindo seus icônicos seios de vidro, para seduzir e estimular a imaginação do público.

Seguindo ideias em torno da “ultrapassagem de limites”, a instalação explora noções de controle, sensualidade e o vasto campo do possível.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa

IF Incontournable

Deliasofia Zacarias

Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Kader Attia

Kader Attia é um artista multidisciplinar franco-argelino cuja abordagem investigativa tem sido fundamental para as estratégias decoloniais, como um contraponto à história colonial e aos museus. Seus interesses e temas encontraram um ponto de virada quando passou a se dedicar à criação de ferramentas de reparo e cuidado, seja em relação a objetos, corpos, representações ou memórias. La Valise oubliée [A mala esquecida] (2024) entrelaça histórias individuais e coletivas da guerra da Argélia (1954-1962), conflito que matou centenas de milhares de argelinos. Nessa recente obra em vídeo, Attia utiliza a mala como metáfora dinâmica tanto do passado revelado quanto do futuro por editar, brincando com as potencialidades de uma narrativa inacabada. O artista abre três malas, três histórias pessoais que tecem os fios de nossa história coletiva: do artista francês e simpatizante da causa argelina Jean-Jacques Lebel, da pensadora feminista decolonial Françoise Vergès e da própria mãe de Attia. Os objetos retirados das malas evocam memórias intensas, por vezes traumáticas: de uma carta secreta de um membro da Frente de Libertação Nacional argelina (entregue a Lebel) até um álbum de fotos pertencente ao polêmico advogado Jacques Vergès (tio de Françoise), que defendeu militantes argelinos durante a guerra, passando por fotografias da mãe do artista. Ao justapor diferentes níveis narrativos, Attia conta tanto a história de sua família quanto a dos incontáveis homens e mulheres anônimos que resistiram e se organizaram nas sombras contra o colonialismo. Como é frequente na obra de Attia, a tomada de consciência sobre a imensidão da destruição colonial (seja ecológica, arquitetônica, econômica) vem acompanhada da

La Valise oubliée [A mala esquecida], 2024. Stills do vídeo. Vídeo, cor, som, 25’. Produção: Le Fresnoy – Studio national des arts contemporains.

experiência traumática de contar, reencenar e arquivar os mortos e as feridas. Daí emerge uma memória fantasmagórica habilmente encenada em suas instalações e vídeos, como exercícios de exorcismo.

Criado entre a França e a Argélia, Kader Attia utiliza sua própria experiência transcultural (incluindo a condição neocolonial da classe trabalhadora suburbana) como pesquisa introspectiva que se transforma em ferramenta contra estruturas de poder neocoloniais. Desde The Repair of Occident to Extra-Occidental Cultures [O reparo do Ocidente pelas culturas extra-ocidentais] (dOCUMENTA (13), Kassel, 2012) até a recente Un descenso al paraíso [Descida ao paraíso] (Muac, Cidade do México, 2025), a arte do reparo de Attia caminha na linha tênue entre desmembrar e rememorar.

Montazami Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Myrlande Constant

Lakou Zanj Yo, 2025. Miçangas e lantejoulas sobre tecido. 121,9 × 132,1 cm. Foto: Armando Vaquer. © Myrlande Constant. Cortesia CENTRAL FINE, Miami; e El-Saieh Gallery, Porto Príncipe.

Os dons espirituais dos Iwa de Myrlande Constant ganham forma em lantejoulas, adornos, contas e tambores decorativos, refletindo o papel desses espíritos em nossas vidas cotidianas. A artista afirma ser guiada por seus Iwa, entidades espirituais mediadoras, na composição de suas obras. Na juventude, Myrlande Constant dedicou-se a uma forma tradicional de arte haitiana conhecida como drapo, que representa os Iwa em estandartes, linguagem que se tornaria a base de sua prática artística. Se a arte original abordava o plano espiritual, Constant conecta esse universo ao cotidiano, enfatizando a interação entre sagrado e terreno. Esta é sua primeira participação na Bienal de São Paulo.

Suas composições exuberantes criam paisagens de cenas históricas e espaços espirituais fabulatórios. Inovando no método, enquanto o drapo tradicional usa apenas lantejoulas e têxteis, Constant privilegia contas e tambores em obras ricamente elaboradas. Esses elementos permitem gravar minúcias nas figuras, expandindo as capacidades narrativas das cenas adornadas. Suas composições geralmente envolvem uma moldura com pontos de tambor, que

Ossangnegouéguimalor (after Duval-Carrié) [Ossangnegouéguimalor (após Duval-Carrié)], 2006. Miçangas e lantejoulas sobre tecido. 109,2 × 127 cm.

representam símbolos, oferendas e objetos sagrados. Uma figura ou cena central domina a obra, enquanto o olhar que a percorre descobre uma sequência infinita de símbolos dispersos em volta.

Para criar essas obras complexas, Constant estica o tecido sobre um bastidor e borda com a peça invertida, sem ver o progresso até virar o trabalho. Sente as lantejoulas apenas com as pontas dos dedos. Considerando o tamanho de muitas das composições, algumas peças são realizadas por equipes com mais de dez artistas trabalhando simultaneamente. Ainda assim, seus drapo destacam-se na tradição por trazer um olhar feminino a uma prática antes quase exclusivamente masculina. Myrlande Constant torna-se assim veículo, teórica e historiadora, articulando narrativas entre dimensões. Suas obras espelham cosmologias, visíveis e invisíveis, que fundamentam a vida espiritual haitiana.

Margarita Lila Rosa

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Foto: George Echevarria. © Myrlande Constant. Cortesia
CENTRAL FINE, Miami; e El-Saieh Gallery, Porto Príncipe.

Joar Nango com a equipe de Girjegumpi

Joar Nango é um artista e arquiteto do povo Sami –indígenas que habitam o território hoje dividido entre Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. O modo de pensar a construção de espaços, evidenciado em suas obras, revela um conhecimento enraizado em práticas entrelaçadas com a vida cotidiana, em oposição ao saber técnico e formal. A arquitetura proposta por Nango provém de uma relação prolongada com os ambientes e de sabedorias impregnadas no modo de vida Sami.

Pautadas pela apropriação e pela hibridização, as estruturas efêmeras e nômades dos povos Sami fazem uso de materiais e técnicas tradicionais, como peles de animais, tecidos e madeira natural, assim como de elementos industriais e sucata, adaptados às necessidades de cada contexto. O uso dessas soluções arquitetônicas na obra de Nango revela uma tradição viva, semelhante a um curso d’água em movimento: molda-se às variações do terreno, mistura-se a outros corpos d’água, mas mantém um fluxo contínuo. Denominada pelo artista a partir do conceito de engenhosidade indígena –indigenuity, que funde Indigenous [indígena] e ingenuity [engenhosidade] –, essa inteligência arquitetônica desmantela dicotomias entre progresso tecnológico e conhecimento ancestral, ao mesmo tempo que reivindica a criatividade prática e o saber tradicional como formas legítimas e sofisticadas de construção do mundo.

Skievvar (Window Made from Fish-Guts) [Skievvar (janela feita de tripas de peixe)], 2019. Vista da instalação na Bienal de Arquitetura de Chicago. Foto: Cory Dewald.

A House for All Cosmologies [Uma casa para todas as cosmologias], 2022. Vista da instalação no terraço do Museu Nacional da Noruega, Oslo. Foto: Museu Nacional da Noruega.

Esta participação é apoiada por: Office for Contemporary Art Norway, Embaixada da Suécia no Brasil e Embaixada Real da Noruega em Brasília

Para a 36ª Bienal de São Paulo, Nango apresenta um desdobramento do projeto Girjegumpi, desenvolvido há quase dez anos. Trata-se de uma biblioteca de arquitetura Sami, um espaço nômade de convívio e colaboração que reúne publicações sobre arte, arquitetura, design, ativismo, teorias descoloniais e saberes Sami. Incorporando elementos do contexto local, a obra agrega conhecimentos, bibliografia e técnicas construtivas de povos indígenas, quilombolas e do manguebeat, além de materiais coletados nos arredores do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. O espaço, de caráter permeável, tátil e voltado à convivialidade, é composto de estantes que abrigam livros sobre direitos territoriais, tempo animal e saberes ancestrais, construídas com materiais em diálogo direto com os conteúdos que sustentam. Ao articular tradição e contemporaneidade, o artista contesta os paradigmas da arquitetura formal e industrial, propondo, em seu lugar, uma lógica de adaptação, reaproveitamento e apropriação como ferramenta política. Sua obra subverte os rejeitos e a lógica de consumo ocidental em engenhosas soluções, por meio de uma estratégia de resistência que lança mão da incorporação e readequação dos materiais, símbolos e signos das culturas dominantes.

Vilanismo

O Vilanismo é uma irmandade de artistas negros formada no final de 2021 com o propósito de desafiar o sistema ocidental das artes visuais, tensionando raça, gênero e classe em suas produções artísticas.

O termo “vilão” carrega múltiplos significados, entre eles o de maldade ou de alguém desprovido de riquezas, historicamente associados à figura do homem negro. É a partir dessa carga simbólica que se constitui o Vilanismo. Entre os elementos que compõem seu arcabouço conceitual estão a figura do malandro e do MC, ao lado de referências como a periferia, o mutirão, os movimentos de luta negra e outras figuras negras das artes visuais. Essas referências colaboram na construção estética e política da irmandade, tensionando os modos como as subjetividades masculinas negras foram sistematicamente negadas, desumanizadas e reduzidas à condição de coisas. Essa imagem foi moldada por um projeto humanista que, embora tenha proclamado ideais de igualdade e progresso, contribuiu ativamente para a exclusão e a violência.

Cortejo Negro, 2024. Foto: Rodrigo Zaim.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, o Vilanismo expande e ressignifica a ideia de espaço de trabalho, direito à terra e de conspiração ao apresentar a instalação Os meninos não sei que juras fraternas fizeram (2025) – título emprestado do conto “A gente combinamos de não morrer”, escrito por Conceição Evaristo.1 A proposta convida o público a mergulhar em uma subjetividade marcada pela expressividade artística e intelectual, na qual o ateliê se materializa nos mobiliários, nas produções e nos diálogos, estimulando a imaginação e nos levando a experienciar o universo do Vilanismo. Na instalação, os “vilões”2 – como se autodenominam – articulam sistemas, saberes, ações e lutas simbólicas por meio da produção artística. A irmandade, assim, revela e reconfigura novas possibilidades de masculinidades negras e de humanização, trazendo à tona intelectualidade, fragilidade, diferenças, falhas e a possibilidade de um amor historicamente negado.

Ana Paula Lopes

1. Conceição Evaristo, Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

2. Atualmente, o Vilanismo é composto por Carinhoso, Daniel Ramos, Denis Moreira, Diego Crux, Guto Oca, Rafa Black, Ramo, Renan Teles, Robson Marques e Rodrigo Zaim.

Esta participação é apoiada por: The Order of New Arts

Foto: Jardiel Carvalho.

Gervane de Paula

Cuiabrasa a caminho do sol, 2025. Óleo sobre tela. 350 × 165 cm. Foto: Marcus Mesquita.

Gervane de Paula desenvolve sua produção artística com acentuado caráter gráfico em múltiplas plataformas, como pinturas, desenhos, fotografias, instalações e objetos. Sua produção detém potente clamor ecológico, alternando entre tonalidades melancólicas e uma contundente carga denunciatória. Suas cenas de festividade em seu bairro em Cuiabá, por exemplo, complementam a realidade específica do cerrado ao também abordar com veemência os desastres socioambientais promovidos pela agropecuária latifundiária, pela mineração irregrada e pelos seus indissociáveis lastros de violência. O artista se abastece e opera uma estética pautada pelas imagens do consumo de massa e pelo uso de materiais cotidianos no Centro-Oeste do Brasil, além de recorrer a citações assertivas à história da arte. Integrante da Geração 80, De Paula esteve ao lado de artistas como Leonilson, Leda Catunda, Beatriz Milhazes e Luiz Zerbini na defesa de uma pintura vibrante e provocadora, em contraste com o hiperintelectualismo da arte conceitual brasileira dos anos 1970.

Bacia hidrográfica, 2016. Aço e óleo sobre tela. ø 80 cm. Foto: Fred Gustavos.

Droga de arte, 2018. Pintura sobre madeira. 130 × 48 × 55 cm. Foto: Jaime Acioli.

Em seus trabalhos, De Paula cria narrativas pseudoficcionais que retratam a hostilidade de latifundiários e defensores do agronegócio desenfreado quando confrontados com os questionamentos críticos da arte. Ao compreenderem os trabalhos do artista como vozes de denúncia política e ambiental que os impediriam de exercer atividades ilícitas, agem com atroz represália no cume de seus privilégios de poder. De Paula, entendendo a arte como armadilha, frequentemente retrata espingardas, artistas mortos, rios de sangue e placas que homenageiam ativistas político-ambientais, persistindo corajosamente nos poderes denunciadores e críticos da figura da pessoa que produz arte. Além dos crimes ambientais, como os desmatamentos quilométricos, a poluição e a extinção de diversas espécies de fauna e flora, De Paula aborda a criminalidade social causada pelas dinâmicas do agronegócio, do tráfico de drogas na fronteira entre o Mato Grosso e a Bolívia, do racismo estrutural, do autoritarismo policial e da corrupção política. Em alguns momentos, de forma sarcástica, inclusive transpõe certas dinâmicas de poder e hostilidade para as relações vivenciadas no mercado de arte. O artista sempre foi vítima de um isolamento geográfico: por viver em Cuiabá, longe do eixo sudestino onde os hegemônicos agentes mercadológicos e críticos da arte operam, teve sua carreira de mais de quatro décadas por muito tempo invisibilizada e subestimada. Sua produção, entretanto, não esmoreceu, mantendo-se incessante e pungente.

Mateus Nunes

Sharon Hayes

O documentário Comizi d’amore [Comícios de amor] (1964), de Pier Paolo Pasolini, desdobra um mosaico de verdades psicológicas capturadas por meio de perguntas diretas e sem rodeios feitas nas ruas da Itália. O filme expõe a complexidade das atitudes do público em relação à sexualidade e a tensão incômoda entre tradição e modernidade. Ao abordar o desconforto em torno de temas íntimos porém públicos, revela ansiedades e conflitos morais profundamente arraigados no cotidiano. Mais de cinquenta anos depois, Sharon Hayes retoma e expande o estilo interrogativo e as composições de cena de Pasolini e entrevista indivíduos e grupos para sua série de vídeos Ricerche [Investigações] (2019-2024). Nessa obra, a artista propõe uma reflexão instigante sobre o poder da conversa pública, utilizando diálogos espontâneos e não roteirizados para explorar as interseções entre experiência pessoal, discurso político e normas sociais. Por meio desses encontros, Hayes desvela a complexa rede de verdades não ditas que moldam relações humanas e identidades. Hayes entrelaça camadas complexas de intimidade, política e identidade por meio de formas documentais e performativas. Em Ricerche, ela se envolve profundamente com a linguagem, usando-a como ferramenta para criar uma estética da tensão entre palavra e silêncio, entre esferas públicas e privadas, entre vivência individual e história coletiva.

Ricerche: four [Investigações: quatro], 2024. Vista da instalação na Whitney Biennial 2024: Even Better Than the Real Thing, Whitney Museum of American Art, Nova York (março – agosto de 2024). Foto: Ron Amstutz. Cortesia da artista; Whitney Museum of American Art, Nova York; e Tanya Leighton, Berlim e Los Angeles.

Há um ritmo subjacente em seu trabalho, uma cadência que desafia e expande a percepção do espectador sobre tempo, significado e experiência, elevando o mundano ao terreno do profundo. Ao longo da série em quatro partes, Hayes redesenha as fronteiras do documentário e da performance, oferecendo um olhar cru sobre a humanidade. Em uma era na qual entrevistas de rua são frequentes nas plataformas digitais, o processo meticuloso de arquivamento e as conversas francas de Hayes questionam os limites do amor, da intimidade e das políticas em torno da sexualidade, convidando o público a confrontar as contradições de seus próprios desejos e estruturas sociais. Ricerche nos permite testemunhar a complexidade da experiência humana, em que cada palavra e silêncio carregam o peso do individual e do coletivo, do privado e do público. Em sua ambiguidade poética, Hayes nos convida a refletir sobre como falamos, amamos e lembramos, deixando no ar uma pergunta persistente: como navegamos os espaços entre nós?

Deliasofia Zacarias

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Ricerche: two [Investigações: dois], 2020. Still de vídeo. Vídeo em HD 3.2K, cor, som; 38’47”. Retratadas (da esquerda para a direita): Ken Gabriel, Courtnei “Luckey” Townson, Charise “CJ” Blacksher (no microfone), D’Angela Marie “Deezy” Ricks. Cortesia da artista e Tanya Leighton, Berlim e Los Angeles.

Ricerche: three [Investigações: três], 2013. Still de vídeo. Vídeo em HD, cor, som; 38’. Pessoas retratadas (da esquerda para a direita): Jasmine Brown, Laakan McHardy, Paola Lopez, Anarkalee Perera, Zehra Ali Khan, Sara Amjad. Cortesia da artista e Tanya Leighton, Berlim e Los Angeles.

Trương Công Tùng

A obra de Trương Công Tùng resiste a qualquer finalidade transparente. Seu conjunto diversificado de trabalhos em mídias variadas – vídeos, instalações e pinturas em laca – cultiva narrativas não lineares que se desdobram em múltiplos espaços. Forma um ecossistema sinérgico que se posiciona contra visões monolíticas da história, enquanto o artista contempla a atmosfera que envolve um grão de terra ou investiga os interstícios entre pixels. Sua estética se constrói na justaposição e na dissolução, articulada por esse tendão metafórico que costura camadas fragmentadas de memórias, seja de uma paisagem, de uma pessoa, de um objeto. A instalação de Trương para a 36ª Bienal de São Paulo representa um momento pivotal em sua prática, ao incorporar elementos sonoros. Ele cria uma paisagem etérea composta de colmeias de madeira resgatadas de apiários nas Terras Altas Centrais do Vietnã, sua terra natal, e embute sensores nos objetos, criando híbridos entre materiais orgânicos e dispositivos tecnológicos. Espalhados pelo chão, objetos encontrados e ressignificados da região: vasos laqueados, tecidos em tons de ocre tingidos com areia de basalto vermelho, instrumentos musicais feitos de cabaça e um cupinzeiro recoberto de ouro.

When Nothingness Becomes an Echo of Something and Something Is an Echo of Nothing… (Seven Breaths) [Quando o nada se torna um eco de algo e algo é um eco do nada... (Sete respirações)], 2025 – em andamento. Instalação de técnica mista no ateliê do artista STUDIO AS A LIVING GARDEN. Caixas de abelhas, cogumelos, contas de borracha, cabaças laqueadas, seiva, solo, areia, pedras, som, seda, aço, sensor, água, ar, luz, cinzas, poeira, maquinaria, tempo, temperatura... Foto: Truong Minh Tu. Cortesia Trương Công Tùng Studio.

Enquanto o público percorre esse locus amoenus criado por Trương e observa sua coleção de artefatos colhidos, convém abrir os ouvidos para acolher uma orquestra espectral. O estalido de uma língua invisível? O gorjeio de pássaros desconhecidos? Gotas de água da chuva? Ou talvez os sussurros dos espíritos das montanhas. Inspirando-se na cosmogonia indígena das Terras Altas Centrais, onde exploradores da selva podem ser enfeitiçados e desviados por sons de entidades não humanas, o artista recria saberes ancestrais através de um convite sensorial: à medida que os visitantes se movem, sensores detectam a presença e emitem sons em resposta. Ao colocar a escuta como meio de conexão equivalente à visão, a instalação brinca com o conceito do encontro fortuito, em que os sons não apenas evocam a presença elusiva de seres fantasmagóricos, mas também despertam nossa imaginação primordial. Assim, a obra de Trương questiona a fixação contemporânea da humanidade no visual como método de percepção do mundo e sintoniza novamente nosso subconsciente com a presença espontânea e instigante dos sons.

Hung Duong

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Tanoto Art Foundation

Lidia Lisbôa

Da série Tetas que deram de mamar ao mundo, 2022. Crochê em tecido. Foto: Filipe Berndt.

É preciso criatividade para cozinhar, trabalhar, namorar, viver. Lidia Lisbôa nasceu na Vila Guarani, uma comunidade no interior do estado do Paraná, próxima à cidade de Terra Roxa, e desde então se reinventa. Também é preciso ser criativo para fazer nascer. Sua pesquisa artística frequentemente se desdobra em uma reconstrução sensível da memória e de um corpo anterior ao momento presente, explorando múltiplos suportes, como escultura, desenho, instalação e performance, em um entendimento ampliado do que é a costura.

O nascimento e a transformação são temas recorrentes em seus trabalhos, cujos títulos caminham por palavras como “útero” e “casulo”. Na série Tetas que deram de mamar ao mundo (2015-2025), Lisbôa homenageia, com gigantescos monumentos à maternidade em si, as mulheres que amamentam. Peitos fartos, de diferentes cores, nos quais a humanidade se reencontra. São volumosas peças em crochê que estabelecem um território de acolhimento ativo, de onde a vida continua a jorrar: forte, quente e outra. As Tetas que deram de mamar ao mundo são, enfim, também corpos múltiplos e estranhos que excedem a si mesmos. Membros indissociáveis do mundo. Os retalhos emergem e mergulham novamente em uma rede de nós próximos, feitos para serem vistos. O remendo aqui é destaque. Mais do que isso, tal como a mãe doa o leite ao bebê e assim partilha com ele a vida em sua essência, o remendo aqui é motivo e origem de todo o trabalho.

Da série Tetas que deram de mamar ao mundo

Da série Tetas que deram de mamar ao mundo, 2020. Crochê em tecido. 185 × 183 × 114 cm. Foto: Filipe Berndt.

Impossível saber onde termina um tecido e começam os outros, mas existem diferenças entre eles. As faixas coloridas em tons de pele – amarelo-ovo, laranja e marrom cor de barro, prata, vermelho-sangue, rosa cor de carne – sustentam suas diferenças, amarram-se. Sustentam e formam o peito pelo qual escorre em direção à terra um fio de si, que chega a tocar o chão, e outros quatro, que permanecem suspensos.

A naturalidade com que a artista expande o tecido da matéria evidencia, em seu gesto, a dimensão de uma experiência cotidiana que ela articula de maneira singular. Ao tecer histórias em vez de narrá-las linearmente, Lisbôa reverbera anseios, medos e desejos comuns, muitas vezes ocultos ou escamoteados pela sociedade. Assim, faz da costura uma escolha – uma estratégia de sobrevivência, de recuperação de si mesma e de construção de memórias. Seja nas instalações, em cerâmicas ou nos desenhos, as obras de Lisbôa insistentemente prolongam seu próprio corpo político, sensual e artístico, constituindo uma presença que se dissemina e ocupa, sem reservas, o espaço ao seu redor.

, 2018. Crochê em tecido. Vista da instalação na exposição Nascente, Solar dos Abacaxis, Rio de Janeiro. Foto: Renato Mangolin.

Hao Jingban

O vídeo I understand [Eu entendo] (2020), de Hao Jingban, começa com uma mensagem simples: “Para meu amigo”, gravada com a própria voz da artista. Essa dedicatória íntima estabelece o tom para todo o filme de 21 minutos, que se desdobra em imagens de arquivo, reportagens e trechos de redes sociais de um passado recente tão turbulento quanto instigante, levantando questões sobre como nos comportamos e, sobretudo, como agimos diante de uma violência iminente e generalizada. O documentário funciona como uma espécie de testemunho. No auge da pandemia, inúmeras tensões sociopolíticas se desencadearam, e as desigualdades de classe e raça ficaram escancaradas. Em meio à crise, o movimento Black Lives Matter eclodiu, e Hao incorporou em seu trabalho imagens de arquivo de protestos nos Estados Unidos. Os ensinamentos, conflitos e pontos de consenso do movimento são apresentados e compartilhados com o público de forma empática. Essas imagens se entrelaçam com uma gravação de Max Roach e Abbey Lincoln interpretando a canção “Tears for Johannesburg” [Lágrimas para Joanesburgo], além da célebre declaração de Nina Simone de que “o dever do artista é refletir os tempos”; duas articulações distintas da busca por liberdade e fraternidade.

A obra foi criada durante uma residência artística que Hao realizou em Berlim no primeiro ano da pandemia de covid-19. I understand surge como um resultado direto de sua experiência como uma artista chinesa enfrentando a intensa discriminação racial do Ocidente contra cidadãos chineses. Hao encontrou solidariedade ao se juntar a um movimento que se manifestava contra a segregação e o racismo, fazendo com que I understand ecoasse diversos outros projetos de colaboração e união entre artistas negros e asiáticos em momentos históricos críticos do século 20.

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

understand

I
[Eu entendo], 2020. Stills do vídeo. Vídeo HD, som, cor; 21’. Cortesia da artista e Blindspot Gallery, Hong Kong.

Meriem Bennani

Meriem Bennani formou-se em Belas Artes pela Cooper Union (Nova York) em 2012, após concluir seu mestrado em animação pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (Paris) em 2011. Transitando entre a estética dos reality shows e imagens documentais combinadas com animações pós-internet e efeitos visuais, seus vídeos e instalações abordam experiências diaspóricas, hibridização cultural e fronteiras linguísticas. Seus trabalhos dramatizam e ressignificam símbolos e tendências neo-orientalistas, como o Caftan, a Chicha ou a dança oriental, reinterpretados por uma diversidade de personagens (inspirados tanto na realidade quanto em universos digitais), através de referências às redes sociais, à ficção científica e a um forte senso de absurdo e ironia. A abordagem de Bennani na criação de instalações é profundamente experimental e improvisada, privilegiando a espontaneidade e o lúdico, pois se fundamenta em uma experiência multissensorial para o espectador, que se torna parte ativa da instalação ao atravessar camadas de imagens e sons, em uma vivência caleidoscópica. Funcionando como catalisadores multimídia da cultura neopop digital contemporânea, suas instalações nos conscientizam sobre nosso papel e agência diante do consumo passivo na era das redes sociais e da imediatez.

Life on the CAPS [Vida em CAPS], 2018–2022. Stills do vídeo. Vídeo, cor, som; 75’. Cortesia da artista; François Ghebaly, Los Angeles / Nova York; e Lodovico Corsini, Bruxelas.

Típico de sua prática, Mission Teens [Missão adolescentes] (2019) levanta questões críticas sobre o neocolonialismo francês e seu soft power no Marrocos através do sistema educacional. Misturando referências da cultura pop e casas antropomorfizadas de bairros gentrificados, Bennani acompanha um grupo de adolescentes marroquinos de Rabat que frequentam a escola francesa, refletindo sobre a influência da França em suas vidas.

Já Life on the CAPS [Vida em CAPS] (2018-2019), uma instalação em oito canais, transporta-nos para um futuro absurdo em que a imigração se limita a uma ilha no meio do oceano Atlântico, onde uma nova sociedade começa a se formar. A ilha dos CAPS torna-se uma metáfora performativa de como pensamos os movimentos diaspóricos.

A questão mais prolífica de Bennani talvez seja: como superar a política binária de identidade, entre assimilação e pertencimento, experimentando um terceiro espaço, um entre-lugar que mistura e traduz culturas e geografias.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Life on the CAPS [Vida em CAPS], 2018–2022. Stills do vídeo. Vídeo, cor, som; 75’. Cortesia da artista; François Ghebaly, Los Angeles / Nova York; e Lodovico Corsini, Bruxelas.
Esta participação é apoiada por: Mondriaan Fund

Juliana dos Santos

A pesquisa de Juliana dos Santos é movida por sua curiosidade sobre a inter-relação entre a cor azul da flor Clitoria ternatea e a experiência negra e afrodiaspórica no Brasil. Seu trabalho é impulsionado pelo desejo de desafiar as tradições eurocêntricas limitantes sobre percepção e representação, por meio da exploração de expansões sensoriais. O azul surgiu para a artista durante uma meditação em um templo budista, onde viu o chakra ajña, conhecido como “terceiro olho”. Essa visão, entretanto, não aconteceu de forma retiniana, mas sinestésica, enfatizando a possibilidade de visualização de algo que não passa pelos olhos, mas que se estabelece a partir de uma experiência sensível. O azul, usualmente associado a estados de elevação, beleza e intangibilidade em determinados contextos culturais, está presente nos trabalhos da artista a partir de complexas etapas de processamento da flor Clitoria ternatea, cultivada por uma família de São Félix, no Recôncavo Baiano, com quem colabora há anos: Nilton Cesar dos Santos e Edilene Costa de Jesus dos Santos. Esses processos se colocam análogos às tradições de tintura com índigo e tingimento de têxteis no continente africano, ou mesmo à história do blues: a manifestação musical de experiências negras no contexto estadunidense. Assim como a imaterialidade e a impermanência são fundamentais para Dos Santos, a blue note é central para o blues: é uma nota dissonante, considerada desafinada ao desafiar a rigidez da escala pentatônica, propositalmente utilizada para amplificar a emoção e a expressividade da música.

Experiência azul, 2022. Pétala de flor de Clitoria ternatea sobre papel de algodão. 30 × 56 cm.

Dos Santos experimenta a manifestação de linguagem aquosa ao soprar grânulos das flores torradas e moídas sobre um plano úmido que as absorve, papel ou tela. Embora guarde a gestualidade da artista, essa topografia azul é formada também pela agência da própria flor pulverizada e dos ventos que a distribuem pela tela, agregando múltiplas ações aos resultados artísticos. Dessa forma, a flor não desempenha apenas potencialidade de cor a serviço das vontades plásticas da artista, uma autonomia pictórica. Dos Santos não extrai um pigmento da flor, mas processa a flor inteira em pó, fazendo com que a obra seja mais uma impressão botânica que questiona definições categóricas do que uma pintura.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, planos complexos em tons de azul envolvem o espectador, criando uma atmosfera imersiva. Essa experiência se assemelha à visão sinestésica da cor azul que a artista tem durante a meditação. Ela colabora, nessa obra, com sua mãe, Eliana de Oliveira, que há anos desenvolve complexos trabalhos de patchwork na construção de padronagens têxteis. A união de diversos tecidos obedece a interesses que sua mãe tem pela matemática aplicada, pautando ritmos e composições próximos a lógicas euclidianas que contrastam com as geometrias botânicas propostas por Dos Santos. Esse diálogo enfatiza fluxos de transmissão de conhecimento, revisões hierárquicas e práticas transdisciplinares.

Mateus Nunes

Como terminar uma tese: o tempo da cor, 2024. Pétalas de flor de Clitoria ternatea sobre lona de algodão. Vista da exposição individual na GDA – Galeria de Artista, curadoria de Khadyg Fares. 500 × 400 × 300 cm. Foto: Ana Pigosso.

Sadikou Oukpedjo

As obras de Sadikou Oukpedjo parecem administrar o tempo por conta própria. A autonomia delas está manifestada na singularidade do tratamento dado às figuras, sobretudo nos gestos e expressões primordiais, dignos de uma vontade arqueológica, interessada mais pelo comportamento das formas do que pela exatidão anatômica. Ao mesmo tempo, não é raro observar na produção de Oukpedjo símbolos contemporâneos capazes de traduzir os conflitos geopolíticos ligados ao poder dos países imperialistas. Uma metralhadora de guerra e uma bandeira dos Estados Unidos sugerem contextualização crítica da atualidade. Esse cruzamento complexo entre passado e presente eleva sua produção ao estado de suspensão cronológica, confrontando e desafiando noções quaisquer de temporalidade. No entanto, ainda existe outro tópico de sua produção comprometido com a revisão das regras terrenas: a força mágica que o artista representa e da qual é intérprete. Foi após a sua participação na Biennale de Dakar em 2014 que ele iniciou sua série de obras nas quais desenha figuras teriantrópicas, híbridos de animal com humano, muito comuns no imaginário que se criou sobre as pinturas rupestres.

Sept milliards de témoins [Sete bilhões de testemunhas], 2024. Técnica mista sobre tela. 259 × 347 cm. Cortesia do artista e Galerie Cecile Fakhoury, Abidjan.

Sadikou esquematiza esses corpos colossais em profunda transmutação, à maneira de entidades. Afastados da categoria humana, eles são desenhados como forças superiores em constante duelo entre si. Ainda que suas silhuetas e semblantes sejam representados de forma introspectiva, simulam frequentemente confronto direto, quando não estão fundidos em combate como se já estivessem imobilizados. Suas referências evocam mitos e seres fantásticos de diferentes culturas performando ações mundanas em um panteão ilustrado por cores etéreas e em situações envolvendo seres animalescos que beiram a fábula. Igualmente, sua prática com esculturas em madeira, iniciada ainda antes, no final dos anos 1990, opera na dicotomia tempo ancestral e contemporâneo. E sugere, uma vez mais, corpos-entidades sempre confortáveis com seu estado físico, ainda que sob agigantamento das formas. Diferente dos trabalhos bidimensionais, no entanto, o híbrido de animal com humano aparece de forma mais tímida. Ao descentralizar seus estudos da perspectiva do conhecimento humano, encontra no mundo espiritual outras possibilidades de leitura da realidade. Escolhe acessar o sensível através de outras cosmogonias a serviço da interpretação da psique humana, mas também das relações políticas inerentes à humanidade.

Wes Chagas

Nouvelle mythologie #3 [Nova mitologia #3], 2019. Técnica mista sobre tela. 284 × 353 cm. Foto: Issam Zeljy. Cortesia do artista e Galerie Cecile Fakhoury, Abidjan.

Olivier Marboeuf

Olivier Marboeuf é um artista, contador de histórias, curador independente, teórico cultural e produtor de cinema. Na década de 1990, fundou, ao lado do artista e escritor

Yvan Alagbé, a editora de quadrinhos Amok. Entre 2004 e 2018, atuou como diretor artístico da Espace Khiasma, um espaço dedicado ao fomento das artes visuais e da literatura. Com trânsito por múltiplos campos de criação, dedica-se também ao audiovisual, com a produção de filmes e documentários.

Em suas práticas artísticas, Marboeuf explora temas como o imperialismo, a servidão e as consequências da opressão racial, que alimentam o seu trabalho, caracterizado por ser um espaço de reflexão e de debate social e político, sempre ancorado em teorias pós-coloniais, ferramenta indispensável para se colocar em práticas estratégias emancipatórias. Trata-se de uma abordagem que busca não apenas revisitar o passado, mas também abrir caminhos para novas formas de narrar e representar a história.

La Ronde des vies bonnes [A ronda das vidas boas] (2025), instalação site-specific para a 36ª Bienal de São Paulo, é um afresco efêmero em que a água e a liquidez se tornam mais do que metáforas para as culturas negras e indígenas diaspóricas das Américas. Fluidos corporais, represas, entidades aquáticas e redes urbanas de água, oceanos

Peyi en retour [País em retorno], 2024-2025. Detalhe da produção no Centre Pompidou Metz. Giz sobre parede azul ultramarino, instalação sonora.

Peyi en retour, 2024-2025. Detalhes da produção no Centre Pompidou Metz. Giz sobre parede azul ultramarino, instalação sonora.

e mares, deltas, bancos de areia, continentes móveis de poluição e sargaço – todos estes são locais de memória, de luta e arquivos vivos de metamorfoses caóticas. São espaços animados onde corpos-paisagens transplantados se entrelaçam.

É esse processo de tornar-se humano, além da catástrofe, ao mesmo tempo monstruoso, interdependente e coletivo, que dá vida à instalação. Uma constelação de vias possíveis – e boas – povoa a obra, na qual o azul adquire um novo significado, a cor de uma história que excede a negritude e o desaparecimento, que transcende as fronteiras entre os vivos e os mortos. Evoca a cor dos precedentes, resistentes, recorrentes, reincidentes, sob a forma de alucinações visuais e auditivas, a palavra “azul” presente no início de blueprints, termo em inglês para projetos, mapas e precedentes.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Camille Turner

Afrofuturismo, fabulação crítica e pesquisa histórica se entrecruzam no trabalho de Camille Turner para desestabilizar narrativas coloniais e construir novas possibilidades de existência. Em DreamSpace [Espaço de sonho] (2025), que ela estreia na 36ª Bienal, a artista propõe uma instalação sonora imersiva que conduz o público a um estado meditativo e fabulatório. O trabalho se ancora na metodologia afronáutica desenvolvida por Turner, que propõe caminhar, sentir, imaginar e responder aos vestígios da história. A obra ativa um espaço onde a memória ancestral não é apenas evocada, mas experimentada como pulsação e fluxo, atravessando corpos e tempos.

A condução da meditação não se limita à introspecção, mas sugere um deslocamento perceptivo: um canal que amplia a presença e transforma as relações com o tempo e o espaço. O ato de sonhar, entendido aqui como matéria, altera o que parecia estável e modifica a própria respiração do mundo. A instalação opera como um portal, guiando os participantes a uma experiência na qual as fronteiras entre passado, presente e futuro são continuamente

Pods for Dreaming [Cápsulas para sonhar], 2024. Som multicanal, vídeo, iluminação ambiente e materiais diversos. Criada com o apoio do Art Museum at the University of Toronto e da AbTec Gallery (Aboriginal Territories in Cyberspace). Foto: Toni Hafkenscheid.

redimensionadas. Ela nos diz: “Lembre-se do futuro”. Há uma voz e também um som que nos guiam, os quais conduzem quem escuta a uma viagem não menos abstrata do que a própria criação do negro. A fabulação aqui não é apenas narrativa, mas vibração e deslocamento. A escuta se torna matéria flexível, um campo de forças em que memórias são criadas, o corpo se reorganiza e o tempo se dobra sobre si mesmo.

DreamSpace convida a um movimento invertido: é do presente que se emite uma transmissão. Nessa obra, habitamos um mundo em que a opressão foi superada e o sonho da libertação se realizou – um mundo moldado por sonhadores que são, eles próprios, projeções de sonhos. Assim, somos chamados a transmitir esse sonho coletivo àqueles que ainda lutam no passado e a comunicar aos sonhadores do futuro que a libertação não é apenas possível, mas iminente. Sonhar é o caminho.

O refúgio, longe de significar uma fuga, manifesta-se como uma tecnologia de permanência, uma forma de preservar e prolongar existências que, de outra forma, seriam apagadas. Em DreamSpace, a composição sonora não apenas conduz, mas reformula a relação com o presente, criando fendas pelas quais o impossível pode se insinuar. Como um chamado que reverbera além do tempo, a obra nos lembra que a imaginação não é apenas um motor de transformação do real, mas um campo onde futuros são moldados, inscritos e continuamente cultivados.

Esta participação é apoiada por: Canada Council for the Arts

Simnikiwe Buhlungu

long time lung time continuuuum!!! (A conversomething) [continuum de longo tempo pulmão tempo!!! (um conver-algo)], 2024. Conver-something (com participação de Juno-6, Pamela Z, Valie Export, Ventilated Pipe Progenies), tubos de aço, máquinas de ventilação, exibição de filmes, peça sonora, espaço para encontro e ressonância. Vista da instalação no Kunst im Tunnel, Düsseldorf, curadoria do Inter Media Arts Institute. Foto: Ivo Farber.

Simnikiwe Buhlungu é uma artista de Joanesburgo que atualmente vive e trabalha em Amsterdã. Interessada na produção de conhecimento – como ele é gerado, por quem e de que maneira se dissemina –, ela investiga fenômenos sócio-históricos e cotidianos ao navegar por essas perguntas e suas infinitas possibilidades de resposta. Valendo-se de metodologias baseadas em pesquisa, trabalha com som, texto, instalação e publicações, mapeando pontos de cognição que situam camadas diversas de consciência como ecologias em reverberação.

Em projetos recentes, ela tem se debruçado sobre a questão de como saber se algo invisível está presente entre nós. Essa reflexão surge de uma investigação em torno da pesquisa (i)material, desenvolvida em diálogo com um microbiologista e químico, buscando compreender como instrumentos científicos podem se tornar metodologias para perceber o que não é visível, mas existe no tempo, atravessando narrativas geo-históricas e genealogias. Buhlungu foi residente na Rijksakademie van Beeldende Kunsten, em Amsterdã, entre 2020 e 2022, e formou-se em Belas Artes pela University of the Witwatersrand em 2017.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, ela apresenta Ventilated Pipe Progenies in Another Elsewhere [Progênies de tubos ventilados em outro alhures] (2025), uma adaptação site-specific do projeto long time lung time continuuum!!! (a conver-something) [continuum de longo tempo pulmão tempo!!! (um conver-algo)], realizado em 2024 no Kunst im Tunnel (KIT), em Düsseldorf. Essa iteração revela uma unidade de parentesco composta de tubos de ventilação, que se

estendem a partir do teto do Pavilhão e descem até abaixo dele, conectando-se aos mecanismos circulatórios do edifício, cuja ventilação permite que diversas formas de encontro, percepção e escuta ocorram dentro de sua arquitetura. Além disso, esses tubos metálicos remetem à consciência e ao funcionamento de uma estrutura física, bem como à sua capacidade de falar, questionar, propor ou existir em zonas de ambiguidade. Aqui, os tubos não apenas inalam e exalam ar como um sistema pulmonar estrutural, mas também redirecionam espacialmente o ar em loops de assobios, sopros, bufos e gestos sonoros tonais. Cada tubo mantém um diálogo com seu irmão, trocando de forma simultânea o ar circulado pelos visitantes; no conjunto, sincronizados em uma respiração sincopada.

Agradecimentos: Salmo Albatal, Stephan Kuderna (Metal Workshop, Rijksakademie van Beeldende Kunsten), Stefano Rattini (Organista Trentino), Leonardo Ciarleglio, Barbara Cappello e Maurizio Zelada.

Texto fornecido pela artista

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

hygrosummons (iter.01), 2024. Bambu, cabaça, ráfia, componentes robóticos, baldes plásticos e tubos de PVC. Vista da instalação na Chisenhale Gallery, Londres. Produzido pela Chisenhale Gallery; comissionado pela Chisenhale Gallery, e Kunstinstituut Melly, Roterdã. Foto: Andy Keate.

Esta participação é apoiada por: Mondriaan Fund

And The Other Thing I Was Saying Was (A Conver-something) [E a outra coisa que eu estava dizendo era (Um conver-algo], 2022. Instalação sonora com teremins e alto-falantes. Comissionada pela 59ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia para a mostra principal The Milk of Dreams. Foto: Roberto Marossi.

Julianknxx

A obra de Julianknxx não se fixa – ela se move. Seu trabalho atravessa geografias, línguas e gestos, construindo um arquivo em trânsito no qual cada voz ressoa como parte de um grande coro. Pensar seu trabalho é pensar diretamente nas raízes culturais da África Ocidental, especialmente Serra Leoa, país de origem do artista. Em filmes, instalações e performances, o artista não busca um testemunho único, mas um tecido de memórias e presenças que escapa às narrativas coloniais. Seu olhar não coleciona, mas escuta.

A noção de deslocamento é constantemente presente. O mar, as cidades portuárias, os corpos em espera ou em trânsito – todos atravessam sua obra como vestígios de um passado que nunca cessou de se movimentar. O oceano não é apenas cenário, mas personagem: um arquivo líquido que guarda traumas e possibilidades, que apaga rastros e, ao mesmo tempo, transporta-os. A Europa, em sua filosofia, não é um espaço fixo, mas uma paisagem instável, onde corpos negros reinventam o que significa pertencer. Julianknxx se interessa tanto pela história do mundo como pela história cotidiana das pessoas que o compõem, interesse que tece o pano de fundo de sua narrativa. O coro, a palavra falada, a performance que se torna matéria – o artista entende a música como resistência, mas também como vestígio de algo maior: o som de quem nunca parou de se mover. Sua obra se inscreve na tradição oral de uma África viva e nos leva à seguinte questão: o que significa pertencer a um lugar quando os lugares são sempre atravessados por outras histórias?

Shifting Spirit Time [Tempo do espírito em transição], 2025. Stills do vídeo. Exibido no Buro Stedelijk, Amsterdã. Cortesia do artista e Studioknxx. © Studioknxx.

ɔl bɔdi na sta, 2024. Still do vídeo. Cortesia do artista e Studioknxx. © Studioknxx.

On Freedom of Movement (wi de muv) [Sobre a liberdade de movimento (wi de muv)], 2022. Still do vídeo. Cortesia do artista e Studioknxx. © Studioknxx.

A escrita de poemas é uma parte fundamental de seu processo criativo, uma ferramenta que não apenas embasa sua obra, mas a forma enquanto ele articula suas experiências e observa as realidades do mundo, transformando fragmentos de memória em novas formas de resistência. Sua prática desafia as hierarquias do arquivo ocidental, modificando a escuta em método radical e a fragmentação, em forma. O que importa não é apenas o que é dito, mas também o silêncio que alerta: o cansaço também pode ser resistência.

Julianknxx propõe uma escuta radical. Em sua obra, o passado e o presente friccionam-se, e a história não se revela como um relato estático, mas como algo que pulsa, que se refaz a cada canto. No cruzamento entre arte e política, suas imagens e sons nos lembram que nossas histórias nunca foram apenas as narrativas coloniais que nos contaram – elas também são aquilo que seguimos cantando, mesmo quando ninguém parece estar ouvindo.

Hamedine Kane

Tomando a forma de um pontão, Les Ressources: Acte-#2 [Recursos: Ato-#2] (2025) é uma instalação monumental de tipo escultural realizada pelo artista Hamedine Kane e seu colaborador Boris Raux (da School of Mutants) e desenvolvida a partir de pesquisas conduzidas em São Paulo e Salvador. A escultura opera como uma embarcação que carrega objetos encontrados, como pedaços de madeira, cordas e galões, evocações dos barcos que navegam em mar aberto e, por extensão, de atividades pesqueiras. Coletados de diversas áreas do litoral brasileiro, esses materiais compõem o cerne de grandes pinturas e formam uma colagem, apresentada ao lado de relatos de comunidades pesqueiras, obtidos a partir de trabalho de campo.

Trois Américains à Paris [Três americanos em Paris], 2024. Vista da instalação na exposição individual Salesman of Revolt, Auto Italia, Londres, 2024. Foto: Studio Daniel Browne. Cortesia do artista e Selebe Yoon, Dacar.

Les ressources [Recursos], 2024. Vista da instalação na Selebe Yoon, Dacar. Foto: Morel Donou. Cortesia do artista e Selebe Yoon, Dacar.

Home to Home [Casa a casa], 2024. Foto: Tom Carter. Cortesia do artista e Selebe Yoon, Dacar.

Les Ressources: Acte-#2 é continuação de uma obra semelhante, apresentada anteriormente em Dacar, Senegal, e se inscreve na investigação em processo realizada por Kane sobre a extração abusiva de recursos, particularmente de espécies marinhas nas costas do Senegal e do Brasil. Por meio de uma documentação textual e visual meticulosa desses processos, o artista apresenta um material instigante, que aborda a destruição gradual da biodiversidade nessas regiões. De acordo com pesquisas conduzidas por diversos jornalistas que cobrem pautas ambientais, a pesca predatória dizimou populações de peixes da costa brasileira, levando à quase extinção de certas espécies. Possibilitadas por uma regulação fraca, a sobrepesca e a extração ilegal de espécies marinhas por companhias multinacionais que exploram a costa brasileira exauriram ecossistemas e prejudicaram os padrões de vida de comunidades locais, forçando o deslocamento de pequenos pescadores que dependiam do mar. Essas ações também impactaram significativamente a segurança alimentar e o equilíbrio ambiental. Além disso, a instalação destaca a competição desproporcional estabelecida contra comunidades locais de pescadores artesanais, vítimas diretas de tal exploração de recursos abusiva e extrativista.

Apresentada em São Paulo no contexto da Bienal, Les Ressources: Acte-#2 é de enorme relevância para o momento atual, uma vez que fornece uma plataforma de interlocuções cruzadas que lança luz sobre as lutas compartilhadas de comunidades pesqueiras no Senegal e no Brasil – e também sobre as ressonâncias geográficas e epistemológicas que ocorrem nos dois lados do Atlântico, entre a costa oeste da África e a América do Sul.

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable, Villa Medici, e Instituto Sacatar

Sérgio Soarez

A partir de esculturas e desenhos, Sérgio Soarez propõe uma cuidadosa investigação da complexidade ontológica iorubá e das religiões de matrizes africanas na Bahia. Sistemas linguísticos da África Ocidental, mais especificamente do golfo da Guiné, são somados à profusão do afro-barroco baiano produzido durante o período colonial, desde suas volutas e espirais ornamentais à intensa iconografia da diáspora africana, muitas vezes incorporada em intercâmbios culturais que não negam a violência dessas trocas. Objetos recolhidos e ressignificados, muitos encontrados em ferros-velhos, feiras de antiguidade ou no passeio público, são seus focos de interesse. Através da assemblage, o artista faz com que objetos de ferro – chaves, facas, brocas, alicates, ferramentas ou armas enferrujadas – e de madeira – peanhas, rocalhas, tábuas simples ou adornos –coabitem, alinhando diferentes vidas, tempos e usos cujos vestígios estão marcados em seus corpos. Desse modo, Soarez nos instiga a enxergar esses pareamentos como a congregação de encontros análogos às miscigenações e aos sincretismos resultantes da diáspora africana.

Ìyámi (detalhe), 2019. Madeira, búzios, cocos de dendê, balança antiga, porcelana, tinta. 143 × 69 × 26 cm. Foto: Giovane Sobrevivente.

Mão nas cadeiras, 2011. Madeira e aço inoxidável.

75 × 17 × 26 cm. Foto: Giovane Sobrevivente.

Oxaguian, 2011. Madeira, miçangas, ferro e campana de instrumento. 134 × 20,5 × 23 cm. Foto: Giovane Sobrevivente.

A conexão da linguagem geométrica como referente de repertórios religiosos afro-brasileiros saúda oráculos, orixás, sistemas divinatórios – como o merindilogun – e armas espirituais. Ao citar o ofá, arma sagrada composta de um conjunto de arco e flecha usada por Oxóssi – também utilizado por alguns outros orixás e voduns Jeje-Maí de ímpeto caçador em meio à mata –, o artista também remete a valores imbuídos nesses instrumentos, como precisão, foco, sabedoria e estratégia.

A produção de Soarez possibilita traçar diálogos com expoentes e sucessores do afromodernismo brasileiro. A lógica da representação totêmica e simbólica dos orixás a partir de uma geometria sagrada relaciona-se com os legados de Rubem Valentim, Mestre Didi e José Adário dos Santos –com peculiaridades para o uso de guias com contas e o protagonismo da materialidade do ferro nos dois últimos, respectivamente. Aproximações também acontecem com as esculturas de Emanoel Araujo, sobretudo nos relevos predominantemente monocromáticos de madeira laqueada com cores vibrantes feitos por Soarez.

Mateus Nunes

Leonel Vásquez

Water Temple: Bogotá River [Templo da água: rio Bogotá], 2023. Vista da instalação na NC Arte, Bogotá. Foto: Andrés Brand. Cortesia do artista e Casa Hoffmann, Bogotá.

Leonel Vásquez, artista colombiano, investiga o som como força vibracional e meio de transformação sensorial. Em suas pesquisas mais recentes, Vásquez tem se dedicado a práticas de escuta relacional voltadas a nichos de vida e agências sônicas mais-que-humanas – como a água, as árvores, as pedras e outras matérias vivas e vibrantes –, orientando-se pelo estudo das cosmorressonâncias como contribuição à inteligência sistêmica e ao bem-estar planetário.

O som, nossa primeira conexão com o mundo – presente antes mesmo de abrirmos os olhos para a luz da vida –, manifesta-se como vibração em movimento, despertando outros estados de atenção. Compreender a escuta como fundamento das relações e dos acordos entre seres vivos é a essência de Templo da água: rio Tietê (2025). O primeiro Templo da água criado por Vásquez foi realizado em colaboração com o rio Bogotá, na Colômbia, explorando a escuta como forma de reconexão com os fluxos naturais. Ao ser transportada para o contexto de São Paulo e do rio Tietê, essa reflexão ganha novas camadas de sentido. Historicamente, o Tietê teve papel fundamental na formação da cidade, estruturando os modos de vida de seus primeiros habitantes. No entanto, com o avanço do modelo de urbanização, São Paulo progressivamente rompeu seus vínculos com os rios, optando por canalizá-los, poluí-los e afastá-los da paisagem e da vida cotidiana. Ainda assim, vestígios dessa presença persistem: o próprio

Parque Ibirapuera, onde se localiza o Pavilhão da Bienal, é atravessado pelo córrego do Sapateiro – um pequeno curso d’água que nasce no Parque e se conecta ao Tietê –, lembrando-nos da teia de águas invisíveis que continua a sustentar a cidade.

Water Temple: Tyne River [Templo da água: rio Tyne], 2023. Vista da instalação na exposição Stepping Softly on the Earth, Baltic Centre for Contemporary Art, Gateshead. Cortesia do artista e Baltic Centre for Contemporary Art.

A instalação é projetada como um espaço intimista e meditativo. Seu formato circular favorece a ressonância coletiva – não apenas como experiência sensorial, mas como um gesto de reconexão com o rio, com os outros e consigo mesmo. Longas flautas de cobre conectadas a bulbos de vidro são suspensas e animadas por um sistema mecânico que faz com que o conjunto mergulhe em uma bacia de água. O enchimento e o esvaziamento do bulbo criam uma dinâmica de pressão de ar que, por sua vez, ativa o som no tubo, remetendo, de certa maneira, à tecnologia hidráulica dos vasos silbadores desenvolvidos por diversas populações da região andina, como os povos Quimbaya do vale do Cauca, na atual Colômbia.

As águas cristalinas do alto curso do Tietê, coletadas para a obra, são permanentemente oxigenadas e atravessadas pelas frequências emitidas pelas flautas, criando uma paisagem sonora que evoca o fluxo cíclico da vida. Ao redor, bancos de pensamento convidam os visitantes à imersão na ressonância do rio, transformando o ato de escutar em um gesto de cura tanto pessoal quanto ambiental. Findada a 36ª Bienal de São Paulo, essas mesmas águas serão devolvidas para o Tietê.

Esta participação é apoiada por: Embaixada da Colômbia no Brasil e Casa Hoffmann

Helena Uambembe

Em Long Long Long Ago [Muito, muito, muito tempo atrás] (2025), Helena Uambembe imagina a ruptura catastrófica de um tempo de equilíbrio, harmonia e ocultismo há muito esquecido. Trata-se da cisão de duas entidades paralelas, dois iguais e opostos – nêmesis. Neste caso, irmãos gêmeos gigantes que travam uma batalha constante apesar de suas semelhanças. Sua rivalidade violenta, que parte a terra, obscurece aqueles que mais sofrem com essa fratura, como as pequenas criaturas que vivem entre eles, cujo esforço é quase invisível. Seus alertas sobre os perigos causados pelos gigantes não são ouvidos nem levados em consideração.

Comissionada para a 36ª Bienal de São Paulo, a obra de Uambembe retorna ao meio familiar do vídeo, onde sombra e luz se entrelaçam com a narração hipnótica da própria artista. A obra é introduzida por uma nova dimensão de sua prática: um mural pintado na entrada da cabine de projeção. Esse meio tem se tornado parte integrante da linguagem visual de Uambembe, marcada por representações de presenças espectrais e zonas de polaridade, expressas por meio de uma combinação precisa de cores ácidas e apagadas, e da integração da repetição e da releitura de arquivos. Para além do conceito de deriva continental, Long Long Long Ago reconta a dramática separação entre duas paisagens espelhadas: o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, e o Morro do Moco, em Huambo, Angola – país onde os pais de Uambembe nasceram e do qual fugiram durante a guerra civil, não rumo à segurança, mas a uma nova realidade traumática. Seu pai estava entre os homens angolanos recrutados em campos de refugiados na Namíbia para integrar o 32º Batalhão da era do apartheid

Toil [Labuta], 2021. Stills do vídeo.

na África do Sul; sua mãe foi uma das mulheres forçadas a casar e constituir família em poucas semanas. Após a Guerra Fria, o batalhão foi transferido para Pomfret, na África do Sul, onde os moradores foram posteriormente obrigados a minerar amianto, sendo deixados em uma cidade em ruínas marcada pela vergonha política e pelo colapso. Essa comunidade – lusófona, isolada e estigmatizada – moldou a prática de Uambembe por meio de uma herança complexa de migração forçada e trauma geracional.

A narração de Uambembe, incorporada à imagem em movimento e introduzida por um mural que atua como um limiar, reconta mitologias gregas e folclores africanos. Mas não se trata apenas de fabulação; a evocação de um equilíbrio há muito perdido fala de uma condição persistente: ciclos de trauma enraizados em conflitos entre forças unidas por uma perigosa semelhança. As ruínas dessa luta são herdadas e revividas – enquanto aqueles que mais sofrem continuam sendo os menos vistos, ouvidos ou reconhecidos.

Lara Koseff

Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Esta participação é apoiada por: Casa Líquida, FAS – Forward Art Stories e Legacy

Blooming in Stasis 25.8230° S, 23.5312° E [Florescendo em estase 25.8230° S, 23.5312° E], 2023. Vista da instalação. Foto: Wolfgang Stah.

Ernest Cole

Heirs of Poverty: “Penny, boss, please, boss, I hungry….” [Herdeiros da pobreza: “Uma moeda, chefe, por favor, chefe, estou com fome…”], década de 1960. Fotografia em preto e branco. © Ernest Cole Family Trust.

Muitas são as notícias na mídia em que celulares, guarda-chuvas e furadeiras foram confundidos com armas de fogo; situações nas quais vítimas inocentes, sobretudo homens de cor, foram assassinadas pela polícia, em uma desculpa com a qual mais a vida e humanidade de um homem de cor (em sua brutal maioria) foi perdida diante de uma sociedade dividida por um pacto ao mesmo tempo invisível, mas também de cor, que segue em uma marcha coletiva, como se nada tivesse acontecido. Para o fotógrafo Ernest Cole (1940-1990), essa situação é mais próxima do que parece: uma câmera na mão teria sido (e foi) o suficiente para colocar sua vida em risco e, caso “confundido”, tivesse sua humanidade capturada por um pacto entre uma minoria branca tão explícito que se oficializou enquanto regime de separação social e política por mais de quatro décadas. Registrando a violência do apartheid na África do Sul durante as décadas de 1950 e 1960, a obra de Cole nos lembra quão próximas são as tecnologias bélicas e fotográficas, por exemplo, nas ações de atirar em alguém e tirar uma fotografia, assim como na engenharia explosiva de impacto para ativar um obturador ou um gatilho. Foi esse sistema de segregação política e imagética que forçou a fuga de Cole para os Estados Unidos, em 1966, deslocamento no

qual conseguiu levar os negativos fotográficos. Permanentemente banido de seu lar e residindo em Nova York, Cole organizou seus escritos e relatos fotográficos em primeira pessoa, dividindo-os em catorze capítulos que carregavam títulos como “As minas”, “Viagens de pesadelo”, “Apenas para brancos”, “Educação pela servidão”, “Herdeiros da pobreza”, “O consolo da religião” e “Classe média africana”. Lá publicou um dos primeiros trabalhos a expor as injustiças do apartheid para o resto do mundo: House of Bondage [Casa da servidão] (1967).

Inicialmente criado como um fotolivro, foi através do toque das mãos ao folhear as páginas e do olhar atento a uma imagem naquele objeto impresso que House of Bondage se espalhou por diferentes públicos, que poderiam seguir a estrutura narrativa do livro ou pular para algum capítulo específico, como os já citados. Mas, à medida que a fotografia de Cole passou a circular em exposições, seu testemunho fotográfico chegou ao público também renovado: no lugar do toque no livro, agora existia a necessidade de o corpo se mover para perto da fotografia pendurada na parede, transferindo a sensibilidade das mãos para os olhos, atentos ao espaço expositivo; e, no lugar da narrativa em capítulos, a história contada pela seleção e organização de alguns dos momentos capturados pelo fotógrafo.

For Whites Only: The infectious spread of apartheid into the smallest detail of daily living has made South Africa a land of signs [Apenas para brancos: A disseminação infecciosa do apartheid nos menores detalhes da vida cotidiana transformou a África do Sul em uma terra de placas], década de 1960. Fotografia em preto e branco. © Ernest Cole Family Trust.

Metta Pracrutti

Mayuri Chari (Metta Pracrutti). Azulejo, 2019. Bordado sobre tecido Manchester. 182 × 91 cm.

Metta Pracrutti é um grupo informal de artistas que se reuniu por ocasião da 36ª Bienal de São Paulo para desenvolver de forma coletiva um projeto que reflete sobre as dinâmicas socioculturais e políticas que moldam as experiências de comunidades marginalizadas.

Embora a Constituição da Índia tenha abolido oficialmente o sistema de castas e a prática da intocabilidade em 1950, a casta continua sendo uma força significativa na sociedade indiana. Apesar desse marco legal, práticas sociais e normas culturais seguem perpetuando a discriminação baseada na divisão, influenciando interações sociais, casamentos e o acesso a recursos. Essa exclusão vai além do campo social, incluindo punições coletivas, como o acesso restrito à água e a imposição sistemática de trabalhos considerados degradantes. A opressão é imposta sem justificativa, tornando-se um crime sem culpa. A verdadeira liberdade, portanto, só pode ser alcançada com o desmantelamento dos fundamentos religiosos que sustentam o sistema de castas. A liberdade legal só se torna significativa quando acompanhada de uma libertação social e cultural, permitindo que Dalits vivam sem discriminação. O título do projeto, Monsoon [Monção] (2025), refere-se aos ventos sazonais que alternam entre períodos de chuva e seca em regiões tropicais e subtropicais. A monção funciona como uma metáfora potente para as transformações intensas, porém interconectadas, que impactam essas realidades. O grupo desafia as estruturas sociopolíticas de segregação na Índia ao mesmo tempo que abraça formas artísticas diversas para promover uma visão holística das experiências vividas por diferentes comunidades.

Prabhakar Kamble (Metta Pracrutti). Utarand, 2025. Pote de terracota, corda de náilon, ferro, cerâmica e índigo. 167 × 20 × 20 cm.

Por meio de obras de artistas distintos, Monsoon explora temas como identidade, resistência e relações de poder. A variedade de técnicas – incluindo vídeos, xilogravuras, bordados, instalações e pinturas – reflete tanto a individualidade de cada artista quanto a unidade de um movimento coletivo em defesa da justiça social e dos direitos humanos. Cada obra carrega uma história de resistência à exclusão e está situada em um contexto mais amplo de questionamento das normas sociais e culturais. A metáfora da monção, que evoca a alternância entre intensidade e calmaria, também espelha a experiência dessas comunidades, que, embora submetidas a ciclos de opressão, seguem demonstrando uma resiliência inabalável.

O grupo é composto por: Abin Sreedharan K P, Bhushan Dilip Bhombale, Kumari Ranjeeta, Malvika Raj, Mayuri Madhu Chari, Mohammed Mukhtar Abdul Rauf Kazi, Parag Kashinath Tandel, Prabhakar Kamble, Rajyashri Rose Goody, Ruivah Shimray Zamthingla, Sagar Kamble, Somnath Baburao Waghamare, Sreeju Radhakrishnan, Sumesh Sharma, Tejswini Narayan Sonawane e Vikrant Vishwas Bhise.

Mateus Nunes

Sagar Kamble (Metta Pracrutti). Rain I [Chuva I], 2020. Técnica mista sobre tela. 122 × 122 cm.

Kenzi Shiokava

Kenzi Shiokava (1938-2021): um nome que, em sua própria grafia, carrega os traços de uma história de diáspora e confluência cultural. A transliteração incomum da sonoridade japonesa para o alfabeto latino, recorrente entre integrantes das primeiras ondas migratórias nipônicas, confere à sua assinatura um sotaque singularmente brasileiro. A essa conexão transcontinental somam-se ainda os Estados Unidos, país que o artista paulista, descendente de imigrantes da província de Kagoshima, escolheu para viver e desenvolver sua trajetória profissional e artística, de 1964 até seu falecimento.

Em Los Angeles, Kenzi Shiokava se estabeleceu e formou-se academicamente no Chouinard Art Institute (atual California Institute of the Arts) e no Otis Art Institute. Nesse contexto, conviveu com artistas como John Outterbridge e Noah Purifoy, com quem partilhou não apenas o interesse pela linguagem da assemblage, já então uma tendência expressiva na cena artística local, mas também uma sensibilidade sobre as identidades racializadas não brancas e uma reflexão mais ampla sobre modos de criação atravessados por experiências interculturais. Como reflexo dessa vivência multifacetada, toma-se como exemplo as formas totêmicas que o artista produziu por grande parte de sua carreira. Esculpidas majoritariamente em troncos ou postes de madeira e eventualmente combinadas com palha, folhas secas, conchas e fios em macramê, essas peças parecem evocar espíritos de tempos remotos. Seguindo princípios estéticos ligados ao pensamento zen-budista de Daisetsu Suzuki, as esculturas de Shiokava se colocam no espaço sem apelar à grandiloquência ou à ornamentação. Suas obras revelam uma prática silenciosa, alimentada por décadas de experiência

Sem título, s.d. Item botânico e madeira. Cortesia do espólio de Kenzi Shiokava e Nonaka-Hill Gallery.

Sem título (série Shaman) [Xamã], 2005. Miçangas, madeira e macramê. 203,2 × 45,7 × 45,7 cm. Cortesia do espólio de Kenzi Shiokava e Nonaka – Hill Gallery.

LA Kachina, 2003. Caixas de madeira de abeto-de-douglas e tinta. 198,1 × 40,6 × 30,5 cm. Cortesia do espólio de Kenzi Shiokava e Nonaka-Hill Gallery.

profissional no ramo da jardinagem que o aproximou do ikebana – arte floral japonesa que valoriza o gesto mínimo e a revelação da beleza natural. Cada corte, pigmentação ou combinação de elementos é realizado com economia e precisão, respeitando profundamente as marcas da passagem do tempo impressas na superfície da matéria e sublinhando sua história e força inerente.

Esta participação é apoiada por: National Center for Art Research, Japão

Para além da influência zen, Shiokava incorpora visões animistas oriundas de distintas tradições espirituais. A cultura kachina dos povos Hopi – que reconhece uma força vital presente em todos os elementos da natureza – dialoga diretamente com o xintoísmo japonês, segundo o qual os kami habitam rios, pedras e árvores. A dimensão espiritual é o grande fio condutor que atravessa a obra do artista. Ao reunir essas matrizes numa síntese não hierárquica, Shiokava inscreve sua produção numa zona de coexistência simbólica entre múltiplas cosmologias.

Leila Alaoui

No Pasara [Não passarão], 2008. Impressão lambda em alumínio. 102 × 73 cm. Cortesia Centre Interculturel Leila Alaoui – CILA e Galleria Continua.

Leila Alaoui (1982-2016) nasceu em Paris, filha de mãe francesa e pai marroquino. Cresceu em Marrakech, no Marrocos, e se mudou para os Estados Unidos aos dezoito anos para estudar na Hofstra University, em Long Island, Nova York, onde obteve um diploma em ciências sociais. Mais tarde, continuou seus estudos na City University of New York e, paralelamente à formação acadêmica, trabalhou como assistente de fotógrafos e cineastas em diversos projetos, como nos filmes Women Without Men [Mulheres sem homens] (2009), de Shirin Neshat, e Inside Man [O plano perfeito] (2006), de Spike Lee. Em uma de suas séries mais célebres, Les Marocains [Os marroquinos] (2010-2014), a artista viaja pelo Marrocos com um estúdio fotográfico portátil, que monta nas ruas de regiões urbanas e rurais, convidando os passantes a serem retratados na hora. Nas imagens, seus perfis se destacam sobre um fundo negro. Apartados de seu contexto, mas secretamente enraizados nele, suas roupas tradicionais tornam-se um convite ao encontro. Nada em suas expressões denota tristeza ou raiva. Pelo contrário, inspiram coragem e afeto no espectador, que, embora detenha o poder de olhar ou desviar-se do marroquino que não o enxerga de volta, percebe-se exposto ao desconhecido.

No Pasara [Não passarão], 2008. Impressão lambda em alumínio. 73 × 102 cm. Cortesia Centre Interculturel Leila Alaoui – CILA e Galleria Continua.

Poucos anos antes, na série

No passara [Não passarão] (2008), a artista registrou jovens que sonham em atravessar o pequeno trecho do Atlântico que separa o norte da África da Europa. São imagens que capturam um desejo em dissonância com a realidade: crianças e adolescentes vivendo em suspensão, aspirando a um horizonte que lhes é proibido, mas que carrega a promessa de um futuro possível. A invisível fronteira entre os países se insinua constantemente nas paisagens – no desfiladeiro da costa, em paredes parcialmente derrubadas, em montanhas de lixo que parecem facilmente transponíveis —, em oposição a suas figuras ainda hesitantes.

Transparece em toda a obra de Leila Alaoui um profundo respeito pelas pessoas que ela fotografava. Através de suas particularidades culturais, a artista divisava e comunicava suas individualidades, a ponto de provocar no público a sensação de uma proximidade inquietante, que coloca em perspectiva tanto a ideia de que alguns possuam direitos negados a outros quanto a própria noção de fronteiras. Para Alaoui, era inconcebível que tantas pessoas arriscassem suas vidas ou sacrificassem suas identidades em travessias que ela mesma poderia fazer com segurança, amparada pelo privilégio de seu passaporte francês. Contratada em 2016 pela Anistia Internacional para desenvolver um projeto em torno dos direitos das mulheres em Burkina Faso, Leila Alaoui foi vítima de um ataque terrorista dias depois de sua chegada na capital, Uagadugu, falecendo com apenas 33 anos.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Shuvinai Ashoona

Sem título, 2008–2009. Lápis de cor e tinta sobre papel. 56 × 76 cm.

Povoada por tradições e histórias de seres míticos, a sociedade Inuit é marcada por uma diversidade linguística que complexifica suas relações com a natureza. Essa rica cultura, própria de um dos povos originários do Ártico, é o alicerce dos delicados e expressivos desenhos da artista Shuvinai Ashoona.

Vinda de uma família de artistas, Shuvinai Ashoona nasceu em 1961 em Kinngait (povoado conhecido, até 2020, como Cape Dorset), no território de Nunavut, no Canadá. Ashoona transforma os seus desenhos em um campo mágico, no qual se entrelaçam cosmologias e representações sociais da vida inuit, ao mesmo tempo que refletem as drásticas mudanças climáticas que afetam nosso planeta. Atuando desde a década de 1990, a artista desenvolve sua produção no Kinngait Studios, uma cooperativa de arte comunitária, tendo como o principal meio de expressão o papel, o grafite e o lápis de cor.

Com contornos nítidos e de traços delicados, o desenho de Shuvinai Ashoona se desdobra em um tempo que escapa à lógica do contemporâneo. As suas obras são impregnadas de memória, narrativas e cosmologias xamânicas ligadas à tradição ártica. Em tons suaves e linhas serenas, seus

Sem título, 2008–2009. Lápis de cor e tinta sobre papel. 56 × 76 cm.

desenhos se constroem em planos, representando desertos árticos e enseadas habitadas por seres mágicos e por seres inuit. Os traços, acompanhados por delicadas hachuras pictóricas, evocam narrativas que atravessam temporalidades cruzadas, habitando a ambiguidade entre passado e futuro. Suas composições revelam forças espirituais e múltiplas narrativas sociais, perceptíveis especialmente na diversidade de representações humanas. O papel se torna, assim, um território povoado por seres fantásticos e questões ecológicas, que aprofundam e reafirmam as raízes culturais da artista.

Esta participação é apoiada por: Canada Council for the Arts

Sem título, 2021. Grafite, lápis de cor e tinta sobre papel. 128 × 249,5 cm.

Myriam Omar Awadi

Guiada pelo corpus poético “Les Feux que vos derniers souffles ravivent” [As chamas que os seus últimos suspiros reacendem], a obra de Myriam Omar Awadi The Smell of Earth After Fire and the Promise of Breaths: For the Obsession With Resonance Spreading Tenderly Our Skin/ Our Bodies O/ From the Incandescent Warmth of the Ashes [O cheiro da terra após o fogo e a promessa de respiros: pela obsessão com a ressonância espalhando ternamente nossa pele / Nossos corpos O / Do calor incandescente das cinzas] invoca uma cartografia de respirações, tecidos e presença ancestral. Em seu centro estão vários shiromani, tecidos tradicionais de Comores obtidos nas memórias espirituais de Koko [avó].

Esses tecidos formam um terreno visual e sônico que oscila entre a ocultação e a revelação. Suspenso dentro de um arranjo de microfones e alto-falantes em forma de árvores –evocando as raízes emaranhadas dos manguezais –, o tecido pende dos galhos oscilantes dessas formas invisíveis. A instalação escultural e sônica evoca a epifania de uma floresta de mangue, com todas as esculturas feitas de madeira. Com base no Debe, uma tradição ritual das ilhas Comores liderada por mulheres, Omar Awadi invoca o bordado não apenas como adorno, mas como uma forma de pontuação – uma maneira de manter o que não pode ser dito. Cada shiromani se torna tanto um objeto ritual quanto um arquivo cultural, carregando a memória por meio de suas dobras, texturas e repetições. Eles retêm não apenas a ressonância pessoal, mas a gravidade do pertencimento coletivo. Concebida em Comores, Mumbai e São Paulo, La Réunion [A reunião] (2025) se desenvolve por meio de redes de cuidados, estendidas pelos continentes, mas ancoradas na colaboração. Os bordados são produzidos em Mumbai em parceria com artesãos que confeccionam cada tecido com cuidadosa atenção. Em São Paulo, bases esculturais de madeira são fabricadas para servir tanto como âncoras quanto como arquitetura acústica. Cada elemento entra em diálogo com o trabalho minucioso desses artesãos, a luz e o som, moldados durante os ensaios com artistas – cada um deles emparelhado com um único shiromani. Esses artistas são guiados pela presença, não pelo espetáculo. Seus

Shiromani, corps protostellaire [Shiromani, corpo protoestelar], 2012. Instalação performática e bordado sobre tecido. Dimensões variáveis; 20’. Foto: Antonio Prianon / RMR / Madoi. Cortesia Frac Réunion.

movimentos são mínimos, sintonizados com a textura, o peso e a respiração. As partituras são escritas não para o palco, mas para a relação – ensaiadas em repetição, luz e audição. A performance se torna um ato compartilhado de orientação e retorno, em que o significado se acumula lentamente por meio do contato e da proximidade. Nesse trabalho, os shiromani funcionam como colaboradores ativos. Bordados e suspensos, cada tecido se torna tanto uma testemunha quanto uma partitura. Suas superfícies cintilantes captam e refletem a luz, evocando a vida e o invisível: olhos observando, memórias vibrando e a energia entrelaçada entre aqueles presentes e aqueles que estão além. O movimento é guiado pela sintonia e não pela coreografia, permitindo que cada artista crie um relacionamento com o espírito do tecido que lhe foi designado. Por meio desse processo, o ritual e a performance são alinhados. Os shiromani carregam as memórias da obra –assim como nossos corpos O, suas vozes, suas formas e seus próprios saberes.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Cameron Ah Loo-Matamua Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Capítulo 5 Cadências de transformação

A mudança é uma constante da existência humana e de toda existência. As leis da física afirmam que tudo está em movimento mecânico e quântico. Assim, somos constantemente confrontados com transformações de diversos tipos, que impactam direta ou indiretamente nossos seres e nossas relações com o mundo. No entanto, deparamo-nos de modo frequente com resistências dogmáticas à mudança em nome da tradição, embora etimologicamente haja uma proximidade entre tradição, tradução (tradire) e traição (trahir).

Este capítulo reúne obras que abordam transformações tecnológicas, materiais e imateriais, sociopolíticas e ecológicas, culturais e psicológicas, químicas e quânticas, explorando como os humanos provocam essas mudanças e são, consciente ou inconscientemente, afetados por elas. São essas as transformações que Zim Ngqawana entoa na canção homônima “Transformation” [Transformação], de seu álbum Zimology [Zimologia], conduzindo o ouvinte por uma experiência sonoro-corporal por meio de distintas cadências de transformação. Artistas dos cinco continentes compartilham conosco mudanças reais e metafóricas, ligadas às complexidades de suas histórias e geografias.

Antonio Társis

Vista da instalação Storm in a Teacup [Tempestade em copo d’água], Carlos/ Ishikawa, Londres (setembro – outubro 2024). Foto: Damian Griffiths. Cortesia do artista; Carlos/Ishikawa, Londres; e Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo.

Antonio Társis é um artista multidisciplinar brasileiro cujas instalações geram ressonâncias porosas entre som, estrutura e o impacto material da pegada ecológica da humanidade. Sobrepondo elementos tangíveis e sonoros, Társis cria uma tonalidade visceral por meio da colagem de memórias visuais, espaciais e materiais. Do atrito da água aquecida aos assobios pressurizados do vapor, passando pelo eco abafado do carvão batendo em atabaques – tambor artesanal de sua comunidade no Cabula, Salvador –, suas instalações evocam paisagens de desordem que revelam extração, consumo e destruição humanos. Artista autodidata conhecido por utilizar caixas de fósforo recicladas, Társis trabalha com materiais encontrados, tanto nas colagens quanto nas assemblages suspensas. Presentes em seus primeiros trabalhos e baseados na experiência vivida em uma favela do Norte do Brasil, caixas de fósforo e lixo eletrônico carregam histórias de trabalho e o peso da experiência humana. Uma caixa de fósforos cheia vira um instrumento: o chacoalhar dos palitos se junta às camadas rítmicas de uma paisagem sonora construída. Materiais como metal, papel, cimento e fogo se encontram para compor um coro cru, bruto e experimental em sua composição. Chamadas pelo artista de “caos coletivo”, essas ativações sonoras emergem de pontos de destruição em estágios mutáveis de início, clímax e, por fim, catástrofe. Ainda assim, em seu cerne, a persistência da vida reverbera em uma sinfonia quase silenciosa, na qual notas pequenas e imperceptíveis sinalizam continuidade frente à ostracização colonial e política.

Radicado em Londres, Társis repensa as implicações das práticas de trabalho internacionais – traçando conexões entre comunidades do Sul e do Norte globais – e sobretudo o legado da mineração. Em sua exposição de 2024 na Carlos/Ishikawa, Storm in a Teacup [Tempestade em copo d’água], a instalação de Társis apontava para a combustão iminente de um império que devora a si mesmo. Complexas e ambíguas, cascas de caixas de fósforo montadas em tons alternados de vermelho e azul flutuavam ao lado de uma bandeira instalada, sem nação e adornada por uma constelação de peças eletrônicas.

Continuando a romper com hierarquias nacionalistas, Társis nos confronta com um deserto sem fronteiras, onde vestígios da ganância humana e da corrupção socioeconômica são revelados em cada item descartado. Nesse ato sinuoso de construção de ambiente, não só o invisível é desenterrado, mas as repercussões sonoras do nosso impacto coletivo se tornam palpáveis.

Starasea Nidiala Camara Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Detalhe de Sem título, 2024. Caixas de fósforos Guarany, madeira balsa, papel e carvão. Foto: Damian Griffiths. Cortesia do artista; Carlos/Ishikawa, Londres; e Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo.

Ming Smith

Symmetry on the Ivory Coast, Abidjan, Ivory Coast [Simetria na Costa do Marfim, Abidjan, Costa do Marfim], 1972. Fotografia em preto e branco.

Pode uma fotografia ser audível? Há na imagem fotográfica propriedades capazes de repercutir ondas sonoras? Toda fotografia tem uma trilha sonora? Se pensarmos na obra da fotógrafa Ming Smith, não teremos dúvida de que é possível e, além disso, aconselhável. A longeva produção dedicada à fotografia de rua, principalmente com imagens em preto e branco, faz de Smith um exemplo dos mais especiais do porquê o ato de pegar uma câmera fotográfica em busca do registro das coisas do mundo, dos sons do mundo, é acompanhado de um sentimento de imensurabilidade e, nesse sentido, também de justiça.

A relação de Ming com a música é múltipla. Evidentes são as imagens em que a fotógrafa nos apresenta a sua proximidade com a cena musical estadunidense, com personagens como Grace Jones, David Murray e James Brown, além de incontáveis concertos de blues e conjuntos de improvisação, incluindo também viagens para Berlim e Cairo. Mas, além de tema, a música é também condutora do próprio processo poético e se materializa na pouca luz de muitas das imagens, assim como no seu desfocado, no sincopado presente na nitidez da cena ou na falta dela em fotografias como aquelas que giram em torno da cena do jazz. Também nos efeitos causados pela trepidação e pelo movimento da fotógrafa em sua observação urbana, o que no fundo faz com que a fotografia e a música se façam presentes como manifestações da transparência e da invisibilidade.

Sun Ra Space II, New York, NY, 1978. Ampliação digital de fotografia analógica, jato de tinta sobre papel. 47 × 72 cm.

Dakar Roadside with Figures [Beira de estrada em Dacar com figuras], 1972. Ampliação digital de fotografia analógica, jato de tinta sobre papel. 24 × 36 cm.

Em Invisible Man [Homem invisível] (1988-1991), o interesse de Ming está na relação que esse título possui com o livro homônimo de Ralph Ellison, especialmente nos elementos que caracterizam a sua personagem, ou seja, a substância, a carne e osso, as fibras e a mente que, de hipervisíveis, invertem a sua presença em invisibilidade. Na série, os elementos sonoros e visuais descritos – o sincopado, o desfocado, a trepidação, a baixa exposição – alcançam o campo do literário, em que cenas da ordem do comunitário, do encontro noturno, da perambulação solitária compõem-se como canções de um álbum duplo, com suas faixas principais, assim como seus remixes e versões. No todo, a experiência afro-americana e negro-diaspórica em Ming Smith se dá, pois, pelo ritmo, pela batida e pelas vibrações da câmera fotográfica em cena, no culto, no show ou no cotidiano da rua.

Théodore Diouf

Segundo a tradição oral e a cosmogonia Sereer, o mundo surgiu de um ser supremo chamado Roog (ou Koox nas línguas Cangin), e sua criação está intrinsecamente ligada ao pântano onde cresceram as primeiras árvores. Símbolos de crescimento e fertilidade, as árvores para os Sereer (e diversas outras comunidades) são consideradas entidades vivas, iguais aos seres humanos, e nossa conexão com elas, e por extensão com a natureza, desempenha um papel fundamental na compreensão do que nos torna humanos. Com uma prática profundamente marcada pela observação atenta da natureza, o artista visual senegalês Théodore Diouf construiu uma obra extensa que evoca nossa relação com o mundo natural. Passando por diversas escolas técnicas e artísticas, incluindo a École des Arts de Dakar no início dos anos 1970, Diouf desenvolveu habilidades em disciplinas como escultura e pintura, consolidando as bases de sua jornada artística. Como ele mesmo relembra em uma entrevista, tudo começou em Bambilor (cidade situada a cerca de 30km da capital Dacar), onde ainda estudante corria para a floresta todas as manhãs, registrando meticulosamente em seu caderno as formas que encontrava em suas caminhadas solitárias.1 Animadas ou inertes, essas formas foram se transformando ao longo do tempo em uma linguagem visual abstrata e poética, espelhando seu entorno imediato e suas raízes.

Les esprits de la nuit [Os espíritos da noite], 2023. Tapeçaria de lã, produzida pelas Manufactures Sénégalaises des Arts Décoratifs de Thiès, edição especial. 175 × 228 cm. Coleção particular, Rio de Janeiro. Foto: Tevin Lima. Cortesia do artista e OH GALLERY, Dacar.

Realizadas principalmente em tela e papel, com tinta e pastel, as obras de Diouf capturam a beleza vívida e a essência da flora senegalesa. Símbolos como o da serpente, representação dos pangool (santos e espíritos ancestrais), reaparecem em algumas de suas pinturas, reforçando suas raízes nas cosmogonias africanas, em especial na tradição Sereer. Consciente dos estereótipos que cercam as artes africanas, tanto no passado quanto no presente, Diouf constrói uma obra que articula, com dinamismo, herança e inovação. Os motivos, simbolismos e técnicas tradicionais presentes na confecção de máscaras, esculturas e têxteis são reinterpretados e fundidos a uma estética modernista, à abstração e a narrativas políticas, criando um diálogo entre passado e presente.

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

1. Trecho do ensaio de Coline Desportes, “Théodore Diouf, cinquante ans de création”. Dacar: OH Gallery, 2023.

Esta participação é apoiada por: Pro Helvetia

Sem título, 2024. Acrílica sobre tela. 151 × 121 cm. Foto: Morel Donou. Cortesia do artista e OH GALLERY, Dacar.
Sem título, 1970–1978. Acrílica sobre papel. 65 × 50 cm. Coleção particular, Nova York. Foto: Tevin Lima. Cortesia do artista e OH GALLERY, Dacar.

Berenice Olmedo

Rutilio, 2024. Ortoprótese em ThermoLyn, hastes intramedulares femorais, parafusos corticais, instrumentos de traumatologia em aço cirúrgico, tubo de alumínio e adaptadores de encaixe para prótese, resina e chumbo. 247 × 60 × 47 cm. Foto: Alum Gálvez. Cortesia da artista e Lodos Gallery, Cidade do México.

“Deficiência não se limita aos fenômenos do corpo; a deficiência é política”. É assim que Berenice Olmedo se posiciona, enquanto “corpo com capacidade”, quando questionada por Jane Ursula Harris no artigo “Berenice Olmedo: The Myth of Autonomy” [Berenice Olmedo: o mito da autonomia], publicado na revista Flash em 2022. Olmedo é uma artista, pesquisadora e contadora de histórias cuja prática questiona as estruturas de normatividade, capacitismo, classe e objetificação como imposições de poder e hierarquia. Seu trabalho foca na deficiência, nas diferenças e na alteridade como métodos para dar visibilidade aos marginalizados e confrontar o apagamento das existências crip. Através de publicações, esculturas, objetos cinéticos e instalações, ela explora a deficiência como antropogênese, as estruturas políticas e sociais de homogeneização e as desigualdades da biopolítica. Suas obras expõem com crueza os medos e aversões sociais às diferenças, investigando o uso da tecnologia como mediação do corpo.

Como voluntária no CRIT (Centro de Reabilitação e Inclusão Infantil Teletón), espaço dedicado a crianças com deficiências neuromusculares, a artista está em sintonia com as vivências, saberes e perspectivas de pessoas com deficiência. Utilizando materiais médicos, órteses e próteses, coletadas em oficinas ortopédicas ou adquiridas no mercado de pulgas do bairro de Iztapalapa, na Cidade do México, Olmedo transforma esses objetos utilitários em esculturas. Nesse processo, pratica a narrativa como ativismo, o que a acadêmica queer e mad racializada Shayda Kafai descreveu em Crip Kinship [Afinidade Crip] como histórias difíceis de digerir e gestos ativistas de recordação. Essa dimensão de memória e celebração é evidente no título de suas obras, especialmente na série Anthroprosthetic [Antroprótese] (2018), na qual os objetos e acessórios, como sapatilhas de balé, recebem o nome dos pacientes infantis que os usaram. Assim, Olmedo honra corpos crip e amplia noções de existência impossíveis de subsistir dentro de uma estrutura capitalista de produtividade ou utilidade. Em entrevistas e textos, Olmedo afirma que “o humano é inteiramente protético” e provoca o público a refletir sobre como habitar e pensar uma existência não normativa. Para sua exposição Eccéite [Hecceidade] (2022), ela escreveu que essa existência dissidente, também conhecida como existência crip, “cria possibilidades que nos permitem pensar em nós [seres humanos] mais como seres viventes do que como humanos”. Se conseguirmos mudar nossa perspectiva para a de seres viventes em sintonia com existências crip, podemos vislumbrar modos radicais de existir que florescem e resistem para além das estruturas capitalistas de normatividade e capacitismo.

Marissa Del Toro Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Olga, 2018. Órtese de quadril-joelhotornozelo-pé, polipropileno, alumínio, velcro, mecatrônica, motores, sensores, microcontroladores. 110 × 30 × 15 cm.

Foto: Paul Schöpfer. Cortesia da artista e Jan Kaps, Colônia.

Hajra Waheed

Studies for a Starry Night 1-94 [Estudos para uma noite estrelada 1-94] (2019) é uma instalação escultórica composta de placas únicas de cerâmica e porcelana esmaltada, moldadas manualmente. A obra amplia com cuidado a exploração do céu noturno que é característica da prática de Hajra Waheed – uma repetição meticulosa de vastidão que permanece central em sua produção artística. Tradicionalmente utilizado como guia para orientação e sobrevivência, o céu se transforma aqui em objeto de estudo silencioso, uma meditação e uma mediação que representam um mesmo firmamento fragmentado em múltiplos pontos de observação.

Tanto Studies for a Starry Night 1-94 quanto The Kamal [O Kamal] (2025) – nova série em papel inspirada no poema homônimo escrito pela artista em 2018 – exploram temas de navegação, deslocamento e memória coletiva. O kamal, também conhecido como khashaba (“madeira” em árabe), é um instrumento de navegação celeste usado para determinar a latitude, tendo permitido algumas das primeiras navegações baseadas em coordenadas. Desenvolvido por navegadores árabes no século 9 e posteriormente adotado por marinheiros indianos e do leste africano, tornou-se amplamente utilizado no oceano Índico, especialmente para estimar a distância até a costa. Seu design dispensava linguagem escrita ou instrumentos avançados, tornando-o acessível a diversas culturas marítimas. Baseado exclusivamente em alinhamento físico e memória, sem usar instruções escritas ou cálculos matemáticos, o kamal pertencia a uma tradição oral e visual, e era repassado entre marinheiros de geração em geração, não por meio de textos ou mapas, mas por transmissão direta: observação, repetição e prática incorporada. Waheed reflete sobre essas metáforas de navegação, sobrevivência e a capacidade de encontrar direção e esperança mesmo em tempos de incerteza. Nascida em 1980 no Canadá e criada na Arábia Saudita, Waheed tem histórias familiares que remontam a Hyderabad, na Índia, com laços ancestrais que se estendem à Turquia e ao Iêmen, refletindo séculos de migrações pelo oceano Índico e pela Ásia Central. Embora situada no interior, Hyderabad foi um centro de comércio, erudição

e intercâmbio cultural historicamente importante, diretamente conectada a redes marítimas e terrestres que ligavam o subcontinente indiano à Ásia Central, África e ao mundo do oceano Índico. Registros cartográficos e relatos históricos documentam seu papel estratégico nessas rotas globais, revelando uma história de encontros e transformações. Esse legado de mobilidade continua a moldar a vida e a obra de Waheed, fundamentando suas explorações a respeito de deslocamento, orientação e memória coletiva em uma linhagem profundamente pessoal e transregional. Sua prática resiste de modo contínuo a fronteiras, encarnando um mundo marcado tanto por rupturas e exílios quanto por conexões e continuidade.

Arthur Gruson

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Hold Everything Dear [Agarre tudo o que é querido], 2019. Vista da instalação na The Power Plant, Toronto (setembro de 2019 –janeiro de 2020). Foto: Tony Hafkenscheid.

Hum II [Zumbido II], 2023. Instalação sonora multicanal, 30’51”. Vista parcial da instalação na Bienal de Sharjah 15: Thinking Historically in the Present (fevereiro – junho de 2023). Foto: Ismail Noor.

Zózimo Bulbul

Zózimo Bulbul (1937-2013) foi diretor de cinema e ator. Interpretou o primeiro protagonista negro de uma telenovela brasileira. Participou do Cinema Novo, atuando em importantes produções da época. Pioneiro em todas as frentes artísticas em que trabalhou, negou-se a interpretar papéis estereotipados, embora o racismo tenha contornado sua carreira e restringido muitos de seus movimentos. Possivelmente, o caso mais emblemático foi o filme Compasso de espera (1969), de Antunes Filho, em que representou um homem negro de classe média que se envolve com uma mulher branca, mantendo uma relação inter-racial desaprovada por todos, inclusive pela censura, que não permitiu a veiculação do filme.

Zózimo é considerado o “criador” do cinema negro brasileiro, não por ter sido o primeiro (antes dele outros diretores negros produziram filmes no país), mas por seu gesto e proposição inaugurais adotados em seu curta Alma no olho (1973). Vale mencionar o experimentalismo do filme, em que o próprio diretor atua, e em que, acompanhado da música de John Coltrane, reconta de forma performática a história do negro no continente americano sob a óptica da negritude. Na obra se formavam as bases do cinema negro de autor no Brasil, fundamentado na concepção de negros dirigirem e roteirizarem suas narrativas para terem impressos seus pontos de vista e histórias.

Em plena ditadura militar, o filme teve inúmeros problemas com a censura. O diretor foi levado a dar depoimentos e questionado acerca de cenas consideradas esquerdistas. Por isso, em 1974, Zózimo decidiu deixar o país, levando uma cópia do filme consigo e apresentando-o internacionalmente. Regressou ao Brasil em 1977. Seguiu na criação de obras ao longo das décadas de 1970 e 1980, produzindo curtas-metragens, em sua maioria. O mais conhecido foi o emblemático Abolição (1988), uma longa narrativa que, por meio de material de pesquisa e depoimentos, tematiza o final da escravidão no Brasil, a exclusão social e a resistência da população negra.

Em 2007, após uma viagem a Toulouse, na França, Zózimo constatou que seria necessário criar espaços próprios de exibição para que seus filmes pudessem ser vistos, uma vez que não havia locais de exibição dispostos a acolher sua obra, estendendo-se a uma preocupação de articular coletivamente formas de promover e popularizar a produção audiovisual negra, africana e diaspórica. Assim surgiu o Centro Afro-Carioca de Cinema, um local de apresentação e de discussão de realizadores negros. Seguindo as preocupações de seu fundador e um devir quilombista, o Centro se constituiu em um espaço de memória e concepção de uma estética negra no cinema brasileiro, responsável pelos Encontros de Cinema Negro –Brasil, África & Caribe, atualmente na 17ª edição. Estima-se que mais de 1.500 obras de cineastas da África, Caribe e Brasil já tenham sido exibidas, com foco na promoção dos filmes, e não na competição.

Retrato do artista em filmagem de Abolição, 1988. Cortesia de Biza Vianna e Centro Afro Carioca de Cinema Zózimo Bulbul, Rio de Janeiro.

Nguyễn Trinh Thi

Nguyễn Trinh Thi trabalha com filme, mas constantemente questiona e resiste às estruturas impostas pela imagem e pela câmera. Em um mundo globalizado onde a cultura ocidentalizada domina visualmente, ela busca uma abordagem mais sensível para perceber o mundo, dando atenção especial às paisagens sonoras. Foi assim que desenvolveu seu interesse pelo trabalho com som, focando na escuta. Em suas obras mais recentes – And They Die a Natural Death [E elas morrem uma morte natural] (2022), apresentada na documenta 15, e Ri s̄eīyng’ [Sem som] (2023), na 3ª Bienal da Tailândia –, ela criou ambientes abertos ao invisível, permitindo que forças imprevisíveis, humanas e não humanas, adentrem, produzam sons e, sobretudo, escutem. Em Ri s̄eīyng’, essa estrutura se materializou em uma série de instrumentos automatizados, ativados por sinais codificados a partir do fluxo das águas do rio Mekong. Guiados por dados em tempo real, os sons gerados pelos instrumentos variavam, exigindo que o público estivesse plenamente presente para experienciar a obra.

Obra em processo com instrumentos de sopro, cordas e percussão no ateliê em Hanói. Foto: Jamie Maxtone-Graham.

Nos sons, é possível perceber uma pluralidade de diálogos entre o humano e o não humano. Para a 36ª Bienal de São Paulo, a artista retomou a estrutura funcional e o potencial sonoro desses instrumentos, transcendendo fronteiras culturais ao incorporar uma variedade de dispositivos automatizados, alguns do Vietnã, outros encontrados localmente. A paisagem sonora, composta por Nguyễn com influências da música do Leste Asiático, está em constante mutação, sendo aleatorizada, interrompida ou silenciada conforme interage com movimentos e vozes no espaço, ou com a intensidade da luz solar na sala, projetada como uma câmera obscura gigante. Ao detectar movimento ou uma voz humana, os instrumentos param de tocar, resultando em silêncio até que a calma seja restaurada. Assim como na floresta, a paisagem sonora de pássaros, animais e espíritos só se revela por completo quando estamos em escuta atenta.

Hung Duong

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Mao Ishikawa

Sem título da série Red Flower – The Women of Okinawa [Flor vermelha –As Mulheres de Okinawa], 1975–1977. Impressão sobre papel de algodão. 38 × 48 cm. Cortesia da artista e POETIC SCAPE, em cooperação com o Okinawa Prefectural Museum & Art Museum.

Em 1972, ainda em meio à Guerra Fria, a ilha de Okinawa foi reincorporada ao Japão após 25 anos de ocupação militar estadunidense. Embora a administração tenha sido oficialmente transferida para o governo japonês, acordos bilaterais de segurança permitiram a permanência das bases militares, consolidando Okinawa como um dos principais postos estratégicos dos Estados Unidos na região do Pacífico. Nesse contexto nasce o livro de fotografias Hot Days in Camp Hansen!! [Dias quentes no Camp Hansen!!] (1975-1977), da fotógrafa Mao Ishikawa, reeditado em 2017 sob o título Red Flower, The Women of Okinawa [Flor vermelha, as mulheres de Okinawa].

As imagens produzidas por Ishikawa são protagonizadas por dois grupos sociais profundamente enraizados no cotidiano okinawano dos anos 1970: os soldados estadunidenses e as mulheres da cidade de Kin, que trabalhavam nos bares ao redor do acampamento Hansen e frequentemente mantinham relações afetivas e sexuais com esses homens. Recusando uma abordagem fotojornalística acusatória ou exotizante, Ishikawa não apresenta uma denúncia ao histórico de exploração perpetrado pelas forças militares. Em vez disso, revela uma complexa rede de afeto e solidariedade entre indivíduos que compartilham sentimentos e uma vida comum – soldados de baixa patente, em sua maioria negros e deslocados de seu país, e mulheres okinawanas em funções subalternizadas, vivendo em um território historicamente marginalizado em relação ao Estado japonês. Mao Ishikawa jamais se colocou como observadora externa ao universo que retratava. Em suas próprias palavras: “Esse não é um relatório de infiltração. Eu não pretendia tirar

Sem título da série Life in Philly [Vida em Filadélfia], 1975–1977. Impressão sobre papel de algodão. 38 × 48 cm. Cortesia da artista e POETIC SCAPE, em cooperação com o Okinawa

Prefectural Museum & Art Museum.

fotografias ‘às escondidas’ a partir da perspectiva de uma espectadora. […] As imagens só começam a acontecer quando eu entro em cena. É, sem dúvida, um documentário – e, ao mesmo tempo, um registro emocional meu. Por isso era importante trabalhar em um bar para soldados estadunidenses. Eu queria me tornar uma mulher Kin eu mesma”.1

Esta participação é apoiada por: National Center for Art Research, Japão

Sem título, da série Red Flower –The Women of Okinawa [Flor vermelha –As Mulheres de Okinawa], 1975–1977. Impressão sobre papel de algodão. 38 × 48 cm. Cortesia da artista e POETIC SCAPE, em cooperação com o Okinawa

Prefectural Museum & Art Museum.

Em sintonia com o espírito contestatório da juventude okinawana dos anos 1970 – influenciada por movimentos anti-imperialistas internacionais, pelos protestos contra a Guerra do Vietnã e pelas lutas por direitos civis nos Estados Unidos –, Ishikawa ultrapassa as fronteiras da ilha e viaja à Filadélfia. Lá, passa cerca de dois meses convivendo com Myron Carr, seu amigo e ex-soldado. Com um olhar radicalmente humano, ela retrata o contexto de origem dos homens com quem compartilhava o cotidiano em Okinawa. Longe do ambiente militarizado, suas fotos capturam cenas de encontros entre amigos e familiares, crianças brincando, conversas descontraídas no sofá e caminhadas pelas ruas da cidade.

1. What Can I Do?. Tóquio: Tokyo Opera City Cultural Foundation, 2023 (catálogo de exposição).

Michele Ciacciofera

Interessado nas múltiplas relações entre humanos e meio ambiente, Michele Ciacciofera investiga as reverberações dessas interações em sistemas mitológicos, históricos e culturais. Seu trabalho privilegia a experiência do sujeito observador, considerando as pluralidades inerentes a cada indivíduo e suas formas de interação com o universo. O caráter ambientalista de sua prática é derivado das preocupações ecológicas desenvolvidas durante sua formação em ciência política e orienta seu interesse por técnicas construtivas tradicionais. Entre elas, destaca-se o Nurago (ou Nuraghe), uma tipologia arquitetônica megalítica característica da Sardenha, no sul da Itália, durante a Era Nurágica (1900-730 a.C.). O estudo aprofundado dessas tradições resulta em esculturas e instalações produzidas por Ciacciofera em colaboração com artistas locais. Em The Nest of the Eternal Present [O ninho do eterno presente] (2025), obra apresentada na 36ª Bienal de São Paulo, Ciacciofera emprega a técnica do pau a pique, um sistema construtivo que se vale de materiais locais, como argila, madeira e cascalho, em um processo artesanal entrelaçado por saberes indígenas, afrodiaspóricos e europeus e amplamente utilizado no período colonial brasileiro.

The Secret Garden of the Stelae [O jardim secreto das estelas], 2014–2022. Vista da instalação sonora. Foto: Aurélien Mole. Cortesia do artista e Passerelle Centre d’Art Contemporain, Brest.
We Are All In This Together [Estamos todos nisto juntos], 2015. Vista da instalação. Foto: Aurélien Mole. Cortesia do artista e Musée d’Art Contemporain de Rochechouart.

The Inner State [O estado interior], 2021. Vista da instalação sonora. Foto: Aurélien Mole. Cortesia do artista e Musée d’Art Contemporain de Rochechouart.

A instalação sonora foi concebida na forma de um concerto eletrônico multidimensional. Suas esculturas, protagonizadas pela cerâmica esmaltada e pelo papel machê, assumem morfologias híbridas e oníricas, evocando fusões entre humano, vegetal e animal. O som, elemento central da obra, é orquestrado pelo artista a partir da manipulação do canto de trinta espécies de pássaros, ampliando as possibilidades de diálogo entre ferramentas tecnológicas digitais e fenômenos naturais. As ondas sonoras acentuam a tridimensionalidade da instalação e convidam o observador a uma experiência imersiva enquanto transita entre figuras dispostas ao redor de um ninho circular de terra.

The Nest of the Eternal Present também evoca o poema persa “A conferência dos pássaros”, no qual aves atravessam vales místicos em busca de autoconhecimento coletivo, ao mesmo tempo que dialoga com a descoberta de ninhos fossilizados de titanossauros em Minas Gerais, estabelecendo uma continuidade simbólica entre passado pré-histórico, espiritualidade e um futuro ecológico em que humanos, animais e paisagens compartilham um destino interligado. A instalação enfatiza a relevância da disposição espacial dos elementos escultóricos e suas inter-relações, evocando tanto a agremiação de formas megalíticas quanto a reunião de indivíduos em congregação espiritual. Ao ativar a potência contida no ato de congregar, Ciacciofera propõe a construção da moradia – e, no caso desta instalação, do ninho – como um exercício essencial de humanidade.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable, e Instituto Italiano di Cultura de São Paulo

Josèfa Ntjam

A era digital e os meios de comunicação são mecanismos da arte contemporânea que Josèfa Ntjam manipula e combina em suas esculturas, filmes, fotomontagens e sons, utilizando-os como ferramentas para refletir sobre a biologia, as narrativas tradicionais africanas e a própria construção da ficção científica.

Ntjam realiza pesquisas minuciosas sobre eventos históricos, conceitos filosóficos e funções da ciência, demonstrando um interesse em desenterrar narrativas ocultas e apagadas como um modo de reinterpretar o conhecimento estabelecido. Com trabalhos que transcendem a fronteira temporal e espacial, a artista cria realidades alternativas e futuros possíveis. Nesses espaços, ela dissolve as categorias e identidades fixas para dar lugar a novas formas de ser, estar e conhecer.

Os filmes de Ntjam, nos quais o público é convidado a explorar um ecossistema complexo de organismo, são tomados de plasticidade, cor e forma, e podem ser comparados a observações via telescópio ou microscópio. Trata-se de uma perspectiva que amplia o nosso discernimento da realidade, realçada por uma profusão de cores e formas orgânicas que coabitam o espaço e resultam em uma criação, expressando uma relação intensa com a natureza da natureza, que está em constante transformação e interconexão.

A música em sua prática exerce um papel fundamental para a narrativa que desafia a linearidade ocidental. Sob a influência do afrofuturismo de Sun Ra e do ritmo do jazz, o som gera uma sensação de ambiguidade e mistério ao público por representar sonoramente tanto um momento pós-apocalíptico quanto o início de uma nova era.

Dislocations [Deslocamentos], 2022. Stills de vídeo. Vídeo HD, cor, som; 18’. Roteiro e direção de Josèfa Ntjam, em colaboração com Sean Hart e Nicolas Pirus. Co-produção de Aquatic Invasion Production, Palais de Tokyo, Paris, e Contemporary Arts Center, Cincinnati. Figurino: Paola Idrontino. © ADAGP, 2025.

Lynn Hershman Leeson

Artista multimídia, Lynn Hershman Leeson se destaca pelo uso de vídeos, performance e criação de avatares para questionar problemas de gênero, vigilância e representação do feminino. Na 36ª Bienal de São Paulo, ela apresenta seu projeto de vida inovador The Electronic Diaries [Os diários eletrônicos] (1984-em andamento), no qual expõe sua própria vida de forma inclemente, tendo como pano de fundo os desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos, questionando repetidamente como esses avanços moldam nossa humanidade, nossas formas de convivência e nossos modos de nos relacionar. Os capítulos desenvolvidos entre 1984 e 2019 são aqui complementados, pela primeira vez, com seu mais recente About Time [Sobre o tempo] (2025). Gravando confissões íntimas ao longo de décadas e abordando temas como trauma e transformação pessoal, em The Electronic Diaries a artista encara a câmera como um espelho confidente, criando um espaço de experimentação narrativa que antecipa discussões contemporâneas sobre autoimagem e digitalização da subjetividade. Em sua obra, Leeson se junta aos meios tecnológicos e inteligências artificiais para, de muitos modos, reivindicar a narrativa de sua própria existência, desestabilizando dinâmicas de dominação e apontando para a possibilidade de negociação com o mundo por meio do autoarquivamento e da mediação digital. The Electronic Diaries cumpre a persistência de um projeto que, por décadas, evidencia a transformação da tecnologia e da própria artista. Ao registrar-se continuamente, Leeson não apenas documenta sua história pessoal,

The Electronic Diaries (1984–2019) [Os diários eletrônicos (1984–2019)], 2019. Vista da instalação na exposição Manual Override, The Shed, Nova York. Foto: Dan Bradica.

mas também antecipa debates sobre a performatividade da identidade na era das redes sociais, da hiperconectividade e da manipulação digital.

Seus diários eletrônicos são testemunhas de um tempo em que a fronteira entre o chamado “real” e o fabricado se dissolve em telas e algoritmos, no qual a identidade parece não ser mais um destino fixo, mas um arquivo em constante edição. Assim, a obra de Leeson inscreve-se na própria pele mutável de nossa era, em que existir é reescrever-se, vez após outra, na memória volátil das máquinas, ao passo que existir é também reelaborar as fugas de uma trama digital cada vez mais policiada e vigilante.

The Electronic Diaries [Os diários eletrônicos], 1986–em andamento. Stills do vídeo.

Richianny Ratovo

Somambisamby, 2023. Tinta, resina e vidro. Vistas da instalação na Hakanto Contemporary, Antananarivo. Foto: Hakanto Contemporary.

Inspirada em técnicas artesanais tradicionais e na cultura material de sua herança malgaxe, Richianny Ratovo desenvolveu uma linguagem estética singular que expande os princípios da pintura e da fotografia clássicas. Trabalhando com materiais diversos como couro, vidro e cortiça, ela transforma seus suportes com alegria na experimentação e uma sensibilidade aguçada para as qualidades intrínsecas de cada matéria. Mistura técnicas de desenho e pintura com métodos escultóricos como gravação e pirografia, explorando noções de presença e ausência, lugar e tempo, e também de memória, de forma poética mas sempre guiada pelo diálogo com o material. Para a 36ª Bienal de São Paulo, a artista criou uma nova série que parte de suas pinturas abstratas anteriores em grandes painéis de vidro suspensos no espaço expositivo. Intitulada Antsoantso (2025), que significa “chamado” em malgaxe, a série se apresenta como um convite firme mas afetuoso, uma voz que nos faz querer escutar e nos agarrar a ela quando tudo ao redor parece incerto; uma voz que serve como guia íntimo. Em Antsoantso, cada tela representa o diálogo silencioso entre nós e o mundo, entre

o que seguramos e o que soltamos, como a respiração, as memórias ou a passagem das estações. Nessas novas peças, Ratovo experimentou com papel de algas e fibras naturais, combinando técnicas têxteis e pictóricas com gravura. Assim como em seus trabalhos anteriores com vidro, os painéis ficam suspensos, permitindo que a luz natural e as sombras dos visitantes os atravessem, refletindo sobre o equilíbrio delicado entre materialidade e leveza, permanência e efemeridade, reflexão e transparência.

Cici Wu com Yuan Yuan

Belonging and Difference [Pertencimento e diferença] (2023) é um curta-metragem e um projeto colaborativo a longa distância entre Cici Wu e Yuan Yuan. Juntas, utilizaram filme 16mm e vídeo digital, com textos escritos em chinês tradicional e inglês, além de uma breve narração em cantonês. A obra começa com imagens captadas no East Broadway Mall, no bairro nova-iorquino de Chinatown, durante a pandemia, onde trabalhadores descrevem tanto suas expectativas em relação às condições de trabalho quanto as circunstâncias reais em um bairro que está gradualmente se esvaziando e se transformando dia após dia. Em seguida, o filme se desloca para Pequim, com imagens registradas por volta do período dos Protestos das Folhas em Branco – antes e depois –, incluindo cenas de quarentena, vida familiar, memoriais do 4 de junho e uma festa queer underground, encerrando com cenas em Hong Kong: o túnel submerso que atravessa a baía, em referência ao cerco à Universidade Politécnica de Hong Kong – uma ferida ainda aberta. No cerne da obra, as artistas investigam como os conceitos de “diaspórico” e “migratório” são indexados, sugerindo o potencial de uma estética migratória – em vez de uma

defesa territorial – como meio experimental de reparação, narrando, expressando, libertando e despertando de forma contínua. Elas percorrem rotas e caminhos diversos em busca de maneiras de negociar a identidade não por meio da geografia ou da nacionalidade, mas por redes flexíveis de pertencimento social e alinhamento político.

Belonging and Difference [Pertencimento e diferença], 2023. Stills do vídeo. Filme em 16 mm transferido para vídeo digital. Vídeo, cor, som; 24’.

Persistem as memórias de isolamento causadas pelo trânsito e pelas viagens entre Pequim, Hong Kong e Nova York em 2022 e 2023. Sometimes you’re ahead, sometimes behind [Às vezes estamos adiantados, às vezes atrasados].

O mundo da vida e o mundo do cinema compartilham o mesmo fluxo temporal, e, como espectadores – entre horizontes, imagens borradas e rupturas inesperadas –, transitamos entre pertencimento e diferença.

“Pertencimento e diferença” são, de fato, a dimensão que molda de forma fundamental o vídeo de Cici e Yuan. Mas, se a ideia de pertencimento pode sugerir uma unidade de grupo ou comunidade, aqui ela está muito mais ligada à diferença – como força produtiva e movimento constante de transformação. A identidade escapa dessa equação. Uma noção alternativa de identidade é posta à prova: porosa e circulante, descontínua e errante.

André Pitol

Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Laila Hida

Into the Maw of the Spectacle [Nas entranhas do espetáculo], 2024.Still do vídeo. Vídeo HD, cor, som; 16’16”.

Em Sange Khara [Pedra dura] (2025), desenvolvida para a 36ª Bienal, Laila Hida apresenta uma paisagem onde a memória não é narrada, mas circundada – hesitantemente, com ternura, carregando a gravidade de algo sagrado e meio esquecido. O projeto configura uma investigação poética em que as imagens parecem emergir de uma memória reconstruída, ancorada por um filme em 16mm e expandida através de uma instalação imersiva. Personagens se cruzam, reunidos por um conjunto de referências iconográficas e cinematográficas: a jovem de The Wanderers of the Desert [Os nômades do deserto] (1984), o casal de The Sheltering Sky [O céu que nos protege] (1990). Dois rapazes pedalam suas bicicletas e posam numa estrada de terra, como se tivessem acabado de ser escalados para um clipe de rap que evoca uma aparição, a construção de uma paisagem, o deserto, o oásis e seus habitantes, filtrados pelo cinema e pela imagem.

O vídeo é um loop de imagens entrelaçadas, cada uma deslizando para a próxima. Transita de uma referência a outra, conectando temporalidades, geografias, estéticas e narrativas. A instalação convida os visitantes a sentar, deitar e fazer uma pausa. Seus elementos cênicos evocam espaços de sombra, arquiteturas desérticas onde cada detalhe cumpre uma função prática enquanto carrega uma estética discreta e deliberada.

Le Voyage du Phoenix: Miracle Springs [A viagem da Fênix: Miracle Springs], 2023.

Sange Khara: Mythology II [Sange Khara: Mitologia II], 2025.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

O trabalho de Hida explora como a memória e o desejo sobrevivem em fragmentos, imagens, objetos e gestos que transitam entre fato e ficção. Aqui, ela constrói um cenário onde os limites entre roteiro, crença e explicação se dissolvem. Restam resíduos sonoros, deriva atmosférica, pistas artesanais. O filme sugere a fabricação de paisagens, travessias transaarianas e imaginários pós-coloniais, mas com uma suave insistência, sem alarde. E a instalação não pede para ser entendida, mas habitada. O significado não é declarado; é encontrado por acaso. Ou talvez, como os círculos na areia, seja algo que só se reconhece ao voltar.

Cameron Ah Loo-Matamua Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Korakrit Arunanondchai

Unity for Nostalgia [Unidade por nostalgia], 2025. Stills do vídeo. Vídeo HD. © Korakrit Arunanondchai, 2025. Cortesia do artista; Bangkok CityCity Gallery; Carlos/ Ishikawa, Londres; C L E A R I N G, Nova York; e Kukje Gallery, Seul.

Korakrit Arunanondchai é um artista visual e cineasta cuja prática se desenvolve entre Nova York e Bangkok, articulando referências da cultura pop, espiritualidades, geopolítica e tecnologia. Sua obra combina pintura, performance e vídeo para construir narrativas híbridas que misturam realidade e ficção, passado e futuro, indivíduo e coletivo. Para a 36ª Bienal de São Paulo, o artista apresenta uma videoinstalação que aprofunda sua pesquisa sobre o uso do gênero de horror asiático como veículo para pensar as relações pós-coloniais e as estruturas extrativistas da arte ocidental.

Em Unity for Nostalgia [Unidade por nostalgia] (2025), Arunanondchai interpreta o papel de um artista que viaja à Tailândia em busca de uma suposta “cultura tradicional” personificada pela figura de um fantasma que precisa de carne humana para continuar existindo. A figura encarna, nesse percurso, a consciência ocidental diante do “Oriente espiritual”. O fantasma, por sua vez, é metáfora viva da persistência de memórias e estruturas apagadas pelas narrativas dominantes da história. A obra recorre à gramática do horror para pensar o apagamento e a extração cultural como formas de violência contínua.

A narrativa se desenrola em dois cenários contrastantes, porém interligados: um palco feito de cinzas, onde o artista atua, e um cinema abandonado tomado por macacos. Esses ambientes são atravessados por ciclos de calor, energia e espírito, sugerindo uma coreografia entre o material e

o imaterial, o dito e o não dito. Como o próprio artista destaca, o horror no Sudeste Asiático opera de maneira análoga à ficção científica – como um campo de projeção de medos, esperanças e fantasmas históricos. Por meio desse imaginário, Unity for Nostalgia cria espaço para encontro e conflito, revelando camadas de memórias e de expectativas que permanecem latentes.

Reconhecido internacionalmente, Arunanondchai já apresentou seus trabalhos em mostras individuais em instituições renomadas. É também idealizador da plataforma GHOST, dedicada à videoarte na Ásia. Sua obra tem sido fundamental para pensar as interseções entre arte contemporânea, espiritualidade e as reverberações do colonialismo no Sudeste Asiático.

Texto fornecido pelo artista Traduzido do inglês por Rafael Falasco

Maxwell Alexandre

Maxwell Alexandre nasceu na Rocinha, uma das favelas mais populosas da América Latina, em uma família evangélica. Foi skatista de rua profissional por muitos anos e também serviu no exército. Teve contato com a arte durante sua graduação em design na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e, logo depois, ingressou no circuito artístico, tornando-se um dos artistas jovens mais proeminentes da arte contemporânea brasileira.

A prática de Maxwell Alexandre por vezes subverte os limites tradicionais da pintura ocidental, algo evidente em sua escolha do papel pardo – frequentemente considerado rudimentar – como principal suporte de trabalho, “enobrecido” por seu gesto. Essa escolha engaja-se politicamente com a polissemia do conceito de “pardo” no Brasil. Suas composições pictóricas enfatizam imagens de personagens negros, reais e imaginários, marcados por sinais de poder e orgulho, visíveis na postura corporal e nas vestimentas –sem deixar de apontar que esses mesmos corpos são alvo de perseguição estatal e violência policial. Com a série Novo poder, o artista ensaiou uma ocupação majoritariamente negra do cubo branco de museus e galerias, espaços dos quais essas presenças foram historicamente excluídas. Ele também se inspira, no seu trabalho, na poesia do rap nacional. Nomes como Djonga, Baco Exu do Blues e BK fazem parte do seu repertório.

Maxwell Alexandre subverte os circuitos institucionais de distribuição e apresenta suas obras em espaços que a arte contemporânea normalmente não alcança – sua própria comunidade, a Rocinha, entre outros. Foi o caso da instalação Encruzilhada (2021), apresentada inicialmente no Paço Imperial e posteriormente no Morro do Santo Amaro, ambos no Rio de Janeiro, onde a obra assumiu uma nova ordem e ativação a partir da comunidade local.

Sem título, 2021. Betume, látex e acrílica sobre papel pardo. 160 × 120 cm. Foto: Thiago Barros. Cortesia do artista e Estúdio Megazord.

Para a 36ª Bienal de São Paulo, o artista apresenta a instalação Galeria 2 (2025), da série Cubo branco, mais uma vez utilizando a polissemia como elemento conceitual que nomeia a obra e propõe uma reflexão sobre uma das ideologias mais poderosas da história da arte ocidental. A obra não é apenas uma instalação, mas um diálogo contínuo com as próprias estruturas que por tanto tempo governaram a narrativa da arte. Para aprofundar essa reflexão, o artista introduz uma pintura conceitual – uma moldura dourada vazia sobre papel pardo – colocada dentro do espaço climatizado normalmente reservado a obras históricas. As molduras que pinta sobre papel e os cubos brancos que constrói abrem espaço dentro da linhagem da história da arte que tradicionalmente representou o belo. A prática de Alexandre redefine o belo como uma força radical – uma que desafia normas históricas e confronta a violência histórica do apagamento na história da arte.

Galeria 1, 2023. Óleo sobre papel pardo. 570 × 240 × 240 cm. Foto: Edouard Fraipont. Cortesia do artista e Estúdio Megazord.

Sem título, 2022. Látex e transferência de xerox sobre papel pardo. 240 × 1440 cm. Foto: Adam Reich. Cortesia do artista e Estúdio Megazord.

Isa Genzken

Schauspieler III, 3 [Ator III, 3], 2015. Nove manequins, técnica mista. 196 × 275 × 268 cm. Vista da instalação no Museum für Moderne Kunst, Frankfurt. Foto: Axel Schneider. Cortesia Galerie Buchholz. © VG Bild-Kunst, Bonn / AUTVIS, São Paulo.

Espontaneidade, incompletude e não convencionalidade caracterizam a prática artística icônica de Isa Genzken, desenvolvida nas últimas cinco décadas. Trabalhando com diversas mídias e materiais ao longo de sua extensa prática, Genzken é conhecida por suas esculturas, instalações e filmes que exploram o realismo contemporâneo. Desde o final da década de 1990, Genzken tem trabalhado com objetos do cotidiano como insígnias do mundo do consumo, combinando-os com materiais decorativos industriais, bem como fragmentos de imagens da mídia popular e de fotografias pessoais. Ela cria montagens exclusivas, peças de parede e cenários tridimensionais em várias escalas a partir do que chama de “materiais do mundo real”, como brinquedos produzidos em massa, bens de consumo baratos, caixas de papelão ubíquas e Mylar brilhante.

Junto com os materiais detríticos presentes em muitas das obras de Genzken, o espaço social e a interação são componentes críticos adicionais de seu trabalho. Espelhos ou superfícies reflexivas permitem que os espectadores se vejam refletidos nas obras. Frequentemente, suas esculturas e instalações estimulam o espectador a se movimentar e se posicionar em relação a elas. Dessa forma, as ações do espectador tornam-se parte da obra e contribuem para a sensação de incerteza e espontaneidade com a qual Genzken brinca modestamente. A sensação de espaço vazio está ligada ao interesse constante da artista por formas arquitetônicas. Criada durante a fase de reconstrução da Alemanha Ocidental no pós-guerra, Genzken utiliza como método em suas obras as ruínas desconstruídas ou reconstruídas da paisagem urbana. Nos últimos anos, Genzken criou cenas em tamanho real com manequins que ela veste com suas próprias roupas usadas, complementadas por roupas de trabalho e de proteção e, por fim, acentuadas com materiais decorativos e tinta spray. Vendadas por folhas refletivas ou silenciadas com fita adesiva colorida, as figuras se tornam autorretratos pungentes e indisfarçáveis da artista. Em sua série Schauspieler [Ator], da qual fazem parte as obras de 2015 apresentadas na Bienal, ela encena seus manequins como “atores” em várias configurações aparentemente baseadas em narrativas para sobrepor questões em camadas, relacionadas a sociopolítica, mídia e corpo. A história dos manequins está sempre mudando e, por um lado, é vinculada e relevante à região e ao período em que é exibida. Geralmente vistos em formações de trupe, às vezes como uma família, esses arranjos de figuras refletem, por outro lado, sobre as constelações básicas de relacionamentos humanos. Retraídas e vazias, elas transmitem uma sensação de incompletude e teatralidade desconcertante. No entanto, sozinhas no espaço, tornam-se parte da arquitetura, funcionando como uma cariátide, erigida como um suporte arquitetônico independente que observa as mudanças atuais do mundo no decorrer do tempo.

Marissa Del Toro

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Werewere Liking

Les Usuriers des Serments 4 – Jurer

Sur Tous les Cieux [Os Usurários dos Juramentos 4 – Jurar por todos os céus], 2020. Acrílica, tela e papéis de cartazes. 122 × 60,5 cm.

A obra de Werewere Liking instaura um campo de poderosas energias, no qual escultura, palavra e mito não apenas coexistem, mas vibram na mesma frequência ritualística. As criações de Liking, compostas de elementos encontrados, reciclados e ressignificados, não são apenas formas que ocupam o espaço: são corpos encantados, inscrições vivas de memória e fabulação. Seus poemas dilatam essa experiência, reconfigurando a relação entre o verbo, a matéria e a espiritualidade, como se cada fragmento falasse a língua secreta do tempo.

Reunir, recompor, reinvocar: esses gestos se entrecruzam como virtuosas práticas contra o esquecimento. Em Liking, a reimaginação do processo criativo é também uma reestruturação da criatividade que pulsa em torno da comunidade, do crescimento coletivo, da construção e da busca de sentido. A artista nomeia esse campo de criação como Ki-Yi Mbock, conceito da tradição bassa, no Camarões, que remete ao conhecimento universal supremo. Nesse território, assim como nos tempos antigos, arte e vida não se apartam: as criações não apenas ocupam o espaço, mas o reorganizam, convertendo experiências em portais de autonomia.

Les Usuriers des Serments 3 – Bouches Fleuries de Serments [Os Usurários dos Juramentos 3 – Bocas floridas de juramentos], 2020. Acrílica, tela e papel. 82 × 60 cm.

Nids Lumineux 2 [Ninhos luminosos 2], 2023. Toco de cocoma e cúpula têxtil extensível colada com neoprene. 94 × 71 cm.

Suas esculturas não são arquivos fixos, mas constelações móveis, em que passado, presente e futuro se emaranham num rizoma de potencialidades múltiplas. Cada peça rompe a linearidade histórica e instaura uma vivacidade expandida e densa, na qual aquilo que é rejeitado é reativado como elaboração de novas cosmogonias, com narrativa e política sobrepostas. Aqui, o mundo não se apresenta como um dado estático, mas como uma entidade de inscrição infinita. A presença de Liking é, antes de tudo, uma força que opera como bússola cósmica, mapa para realidades múltiplas. A feitura que dela parte é pensamento, pulsação, um sopro nobre que tange o sensível. Ela nos entrega campos vibracionais, territórios de cruzo entre o espiritual e o terreno, o movimento da vida reescrita por meio do esculpir de palavras e formas, que, para ela, é como invocar a ancestralidade.

Seu trabalho não está apenas no mundo, mas instaura um modo outro de habitá-lo, tornando-se vestígios de futurações, algo que se afirma como método de uma vida digna, um convite para sentir a essência das coisas de modo agigantado, efeitos esses que frutificam na verve de uma mestra que vive em plenitudes de eterno movimento.

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

María Magdalena Campos-Pons

Dizer o indizível, dar um testemunho e contemplar a verdade estão no centro da trajetória de quarenta anos de María Magdalena Campos-Pons como artista multidisciplinar. Sua prática abrange uma variedade de mídias interligadas, desde instalações, performances e trabalhos fotográficos até pinturas, esculturas e vídeos que abordam questões raciais, históricas, sociopolíticas, de memória, gênero, religião e espiritualidade. Grande parte de seu trabalho é criada a partir de uma narrativa autobiográfica baseada em suas histórias familiares e sua origem como artista cubana descendente de imigrantes hispânicos, chineses e de escravizados nigerianos trazidos para a ilha no século 19. Campos-Pons utiliza sua intersecionalidade como fonte de poder e posição para representar em seu trabalho distintas narrativas, experiências e realidades. Sua identidade e obra artística situam-se em um espaço intangível e intermediário que a artista visualiza através do corpo como sujeito e gesto. O corpo na obra de Campos-Pons é frequentemente encenado, fragmentado, acumulado ou performado para canalizar uma memória coletiva e individual da existência e da resistência.

Em muitas peças, o uso do autorretrato por Campos-Pons transmite o conhecimento espiritual, interno, por ela incorporado das raízes de sua família e da ancestralidade das práticas da santeria. Desenvolvida na Cuba do século 19, a santeria, também conhecida como Regla de Ocha ou lucumí, é uma religião

Procession of Angels for Radical Love and Unity [Procissão de anjos por amor radical e unidade], 2024. Comissionada pela Madison Square Park Conservancy em parceria com o Harlem Art Park. Foto: Argenis Apolinario.

Sem título da série The Rise of the Butterflies [A ascensão das borboletas], 2021. Impressão digital, aquarela, nanquim, guache, goma arábica e papel BFK. Dez painéis de 104,1 × 73,7 cm cada. Cortesia da artista e Galerie Barbara Thumm, Berlim.

sincrética derivada da religião tradicional da África Ocidental, iorubá, e do catolicismo. No ensaio da curadora e estudiosa Carmen Hermo, “María Magdalena Campos-Pons: Behold”, ela observa como Campos-Pons explora “a ênfase da santeria no conhecimento incorporado em práticas como procissões rituais, fitoterapia, canções e cantos, e na crença fundamental do iorubá de que a existência abrange dois reinos: o físico e tangível e o espiritual”. A ênfase no conhecimento incorporado é essencial para a prática de Campos-Pons, na qual ela aborda o legado histórico do colonialismo, o tráfico transatlântico de escravizados, o sofrimento humano e a culpa do sobrevivente, recorrendo à memória coletiva e individual como método de cura e purificação espiritual. O uso das memórias como linguagem artística honra as pessoas, os lugares e os atos de resistência das Américas. Frequentemente, símbolos recorrentes, como olhos, borboletas e romãs, junto com representações de água, fauna, árvores e plantas, funcionam como metáforas e temas ligados à espiritualidade da cura, mas também, de forma simples, como lembrança, resistência, confiança e beleza. Por meio de seu trabalho, Campos-Pons proporciona aos espectadores uma conexão emocional para a contemplação, a força otimista, o poder de sobrevivência e o acesso a uma energia que normalmente não é acolhida pela nossa sociedade contemporânea. Campos-Pons é uma artista que canaliza a energia do corpo negro, das experiências e das realidades como uma forma de comunicação visual, com informações do passado e do presente, mas, acima de tudo, como uma homenagem aos tempos futuros e às possibilidades da existência humana.

Marissa Del Toro

Esta participação é apoiada por: Institut für Auslandsbeziehungen –IFA

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Capítulo 6 A intratável beleza do mundo

Esta Bienal se encerra com a tese inicial deste projeto: a beleza em si é política. Para os despossuídos do mundo, a beleza é resistência; para eles, um pouco de beleza os faria mais humanos. A beleza da qual falamos é aquela que Ben Okri celebra no poema “Musings on Beauty” [Pensamentos sobre a beleza], do livro

A Time for New Dreams [Um tempo para novos sonhos]: “A beleza das superfícies e a beleza das profundezas. Beleza na feiura. Beleza no modo como o tempo resolve o mal. Beleza no nascimento e beleza na morte. Beleza no ordinário. Beleza na memória, nas coisas que se esvaem, nas formas percebidas e imperceptíveis. Beleza no desconforto, no inacabado, no arruinado, no quebrado. Beleza na criação e na destruição. Beleza no tempo e na eternidade. Beleza no infinito que abarca tudo, antes do começo e além do fim”. Uma beleza como a que Bebe Manga carrega na voz na canção “Ami”.

Neste capítulo, essa beleza se encontra no cotidiano, nas representações reais e abstratas das realidades dos artistas, nas cosmogonias iorubá, nguemba, amazigh, caribenhas, cape malay, urdu, maori, árabes, kemética, do candomblé ou da santeria, entre outras cosmogonias, nos cantos e práticas sufis, nos imaginários do Zar, na poesia no, nas lutas indígenas, negras, feministas, queer e tantas outras, em nossas línguas e muito mais.

Este capítulo questiona programas coloniais e capitalistas e seus futuros, propõe outras escritas e outros modos de ler os escritos nas paredes, sugere novas formas de nos relacionarmos com nossas ancestralidades e ascendências e nos situa numa pluralidade de fundamentos espirituais. Além da noção de beleza, o destaque aqui recai sobre a noção de intratável. Sim, há beleza no mundo e na conjugação do humano e precisamos reivindicá-la diante de todas as violências às quais a humanidade e o mundo parecem ter sido reduzidos.

Este capítulo, e a Bienal como um todo, é dedicado a alguém que carregou consigo a intratável beleza do mundo, por dentro e por fora: Madame Koyo Kouoh.

Bertina Lopes

Viagem I, 1972. Óleo sobre tela. 100 × 120 cm.

© Archivio Bertina Lopes. Cortesia Richard Saltoun Gallery, Londres, Roma e Nova York.

Bertina Lopes (1924-2012), nascida em Moçambique, foi uma pioneira do modernismo africano, introduzindo uma fusão de formas que refletiam sua realidade política como mulher negra em meio à guerra e ao exílio. Sua obra é marcada pela subversão de estilos e gêneros, brincando com princípios do surrealismo, cubismo, abstração e pintura gestual, sempre atravessada por uma liberdade estilística que desafia definições. Ela era profundamente ligada aos movimentos políticos moçambicanos, e suas primeiras pinturas revelam um surrealismo melancólico enraizado no anseio pela independência. Esses trabalhos iniciais apresentam uma figuração gestual que evoca o cotidiano sombrio dos moçambicanos sob a dominação colonial.

A abstração da figura já aparecia em sua prática desde cedo. A guerra civil que se seguiu à independência de Moçambique, em 1975, só reforçou as referências de Lopes à abstração modernista, e suas composições ganharam perspectivas dinâmicas e maior carga simbólica. Exilada em Roma durante grande parte da vida, a artista manteve um compromisso inabalável de explorar a identidade moçambicana sob regimes políticos opressivos.

Sem título, 1977. Óleo sobre tela. 140 × 200 cm.

© Archivio Bertina Lopes. Cortesia Richard Saltoun Gallery, Londres, Roma e Nova York.

Esse diálogo com o simbolismo e a identidade cultural africana, apesar da distância física do continente, manifesta-se, por exemplo, na presença de totens de comunidades africanas em sua obra, colocando a contribuição de sua terra natal no centro de uma produção marcada por um caráter vanguardista.

Lopes sempre esteve um passo à frente dos movimentos modernistas. Ela trabalhou com elementos do impressionismo e do cubismo, estilos outrora considerados europeus. Ao desconstruir, borrar, abstrair e ressignificar os arquétipos do simbolismo africano, sua obra permanece enigmática, desafiando as categorizações rígidas do formalismo, como se pode ver nas pinturas expostas na 36ª Bienal de São Paulo.

Essa não é a primeira vez que Bertina Lopes é convidada a participar da Bienal. Ela foi incluída na 7ª edição, em 1963, mas recusou-se veementemente a participar sob a representação nacional de Portugal, o país colonizador. Essa postura firme ecoa agora em sua atual participação, a maior exposição da artista já realizada no Brasil.

Margarita Lila Rosa

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Maria Auxiliadora

Maria Auxiliadora (1935-1974) foi a quarta filha de uma família de agricultores, composta de dezoito irmãos, originária de Campo Belo (Minas Gerais), que se mudou para São Paulo quando ela tinha três anos. Residiram em diversas regiões da cidade, incluindo a Casa Verde, um conhecido bairro de sambistas. Auxiliadora começou a trabalhar muito jovem, por volta dos doze anos, o que a impediu de continuar seus estudos. Foi babá, copeira, cozinheira e também bordadeira, até conseguir se dedicar exclusivamente à pintura.

Como muitos outros artistas negros, Auxiliadora não estudou formalmente arte, embora tenha crescido em uma família profundamente artística – entre os seus estavam escritores, pintores e músicos. Comenta-se que sua mãe, artista que esculpia figuras em madeira e vendia na praça da República, foi quem a incentivou a pintar. Seu envolvimento profissional com as artes ocorreu em 1968 e durou até 1974, quando faleceu aos 39 anos em decorrência de um câncer. Nesse breve intervalo de tempo teve uma intensa produção e circulação, além de frequentar o grupo liderado pelo poeta Solano Trindade em Embu das Artes. Conheceu críticos e colecionadores, o que permitiu a divulgação de sua obra, embora classificada quase sempre como primitiva ou naïf, uma fixação simplista e elitista que não reconhecia as qualidades formais de seu trabalho. Em 1971, conseguiu sua primeira exposição individual na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, em São Paulo.

Capoeira, 1970. Técnica mista sobre tela. 69,5 × 75 × 1,5 cm. Coleção MASP. Cortesia Pedro Ivo Silva e MASP.

Velório da noiva, 1974. Óleo e massa de poliéster sobre tela. 50 × 100 cm. Coleção MASP. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia Pedro Ivo Silva e MASP.

Em termos formais, Auxiliadora desenvolveu uma técnica própria de pintura. Entre suas inovações estava o preparado de gesso que aplicava nas pinturas, o que conferia uma tridimensionalidade ao trabalho. Sua técnica evidencia detalhes meticulosos, particularmente nos rostos, mãos e vestimentas, conferindo um sentimento de intimidade e autenticidade. Sua paleta de cores vibrante realça a vitalidade dos personagens, enquanto a composição sublinha os pormenores que humanizam e realçam cada pessoa retratada. Essa atenção aos pormenores e às cores indica um cuidado estético que intensifica a narrativa de valorização da cultura e da subjetividade de pessoas negras. O elemento têxtil e a relação com a moda se destacam; a presença constante do bordado a singulariza. A artista exibe uma estética que conjuga elementos de realismo com componentes de confabulação, presentes sobretudo nos trabalhos em que a temática das religiões afro-brasileiras é abordada. Auxiliadora criou uma poética da intimidade negra que recompôs “universos de subjetivação artificialmente rarefeitos e re-singularizados”.1 Seu trabalho, formado a partir da predominância em suas pinturas de uma semântica notadamente centrada na intimidade, é nutrido por um repertório visual que celebra a criação de beleza e intimidade através de cenas cotidianas, familiares, íntimas, religiosas, laborais, festivas e alegres de sua comunidade, com obras que expressam um sentimento de pertencimento capaz de simbolizar uma existência coletiva.

Raquel Barreto

1. Conferir Félix Guattari, Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1993, p.31.

Chaïbia Talal

Chaïbia Talal (1929-2004) foi uma pintora marroquina nascida em Chtouka, um pequeno vilarejo próximo a El Jadida, no Marrocos. Ela se casou aos treze anos, e logo teve um filho, mas ficou viúva aos quinze. Sua própria história conta que seus sonhos a salvaram quando, aos 25 anos de idade, alguns estranhos apareceram para ela e lhe ofereceram canetas e folhas para desenhar. Imediatamente inspirada, ela assumiu sua vocação como pintora e acabou sendo a primeira artista marroquina a fazer carreira internacional, impulsionada especialmente por um encontro com o curador francês Pierre Gaudibert, em 1965. Artista autodidata, suas pinturas são cruas e imprevisíveis, coloridas e neoexpressionistas, com alguns ecos de Asger Jorn e do movimento de pintura CoBrA. No início, seu trabalho não foi bem recebido no Marrocos, pois ela era vista como tributária da arte naïf e folclórica, em um cenário artístico dominado por homens (embora artistas da Escola de Arte de Casablanca, como Mohamed Melehi e Farid Belkahia, defendessem-na como uma artista respeitável). Em 1966, depois de mais de uma década pintando, a carreira de Chaïbia realmente decolou quando ela foi apresentada em uma exposição no Instituto Goethe, em Casablanca, obtendo reconhecimento internacional. No mesmo ano, ela mostrou seu trabalho na Galerie Solstice e no Salon des Surindépendants no Musée d’Art Moderne de Paris; e, nas duas décadas seguintes, na Dinamarca, Alemanha, Espanha e Holanda. Em sua paisagem onírica de cores vivas e figuras animadas, que parecem estar ora saindo do quadro, ora se dissolvendo, mulheres, crianças e casais,

Couple [Casal], 1967. Óleo sobre tela. 71 × 90 cm. Cortesia MACAAL Fondation Alliances.

bem como tecelões, adoradores e enlutados, coexistem em rituais agitados e em estranha harmonia. Totalmente incorporada pela artista, cujas roupas e pinturas corporais simbolizam sua intimidade com o espiritual, sua arte também fala sobre sinais e crenças populares e esotéricas. Ao contrário do que alguns preconceituosamente podiam pensar, Chaïbia não estava isolada do restante do cenário artístico marroquino, pois participava regularmente de exposições coletivas e nacionais; foi especialmente convidada a criar murais em grande escala para o Festival Cultural Moussem de Asilah e fez parte do grupo de artistas convidados a colaborar com os pacientes do hospital psiquiátrico de Berrechid (tudo isso no início da década de 1980). Antes de falecer de um ataque cardíaco em 2004, Chaïbia Talal recebeu a medalha de ouro da Sociedade da Academia Francesa de Educação e Incentivo.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Femme et enfant [Mulher e criança], 1974. Óleo sobre tela. 122 × 121 cm. Cortesia MACAAL Fondation Alliances.

Thania Petersen

RAMPIE & LAYER, 2023. Linha de bordado de seda sobre popelina de algodão costurada sobre linho. 187,9 × 170,1 cm.

Minha jornada em direção à libertação começou ao seguir os rastros da música sufi – o som como memória, o som como liberdade. Fui atraída por essa música como um arquivo vivo, uma força que transcende fronteiras, na qual o tempo se dissolve e a comunidade se torna o único compasso. No início, concentrei-me em mapear rotas fixas, linhas que ligavam a Cidade do Cabo à Ásia e de volta à África, traçando o oceano Índico como um caminho de retorno. Acreditava que, ao reconstruir essas rotas históricas, poderíamos reunir o que o colonialismo havia separado. Mas após cinco anos de escuta profunda e viagens para estar com diversos grupos sufis pela Ásia e África, comecei a ouvir de outro modo. Percebi que essa música não está presa ao tempo linear. Talvez eu estivesse escutando do lugar errado o tempo todo. E se esse som, esse ato de libertação, não vier do passado, mas do futuro? E se ele for uma tecnologia futura, chamando-nos para a frente, e não para trás?

Colocamos um peso imenso sobre o passado para nos libertar, pedindo que nossos ancestrais nos carreguem, sem jamais permitir que descansem. Mas e se as próprias tecnologias que os guiaram não eram do passado, mas daquilo que ainda está por vir?

Essa mudança redefiniu tudo para mim. Num mundo que frequentemente desafia a razão, precisamos permitir-nos pensar de forma radical, até mesmo irracional. A verdadeira libertação exige que reimaginemos nossa relação com o sagrado, com o que sobrevive e persiste além da violência e da opressão.

Para mim, essa é a essência da libertação sonora. A palavra “dhikr” significa “lembrança”. Meu filme pergunta: o que estamos sendo chamados a recordar? Em sua repetição e ressonância, há não apenas memória, mas um

Drowned Bodies Never Die I–III [Corpos afogados nunca morrem I–III],

futuro à espera de ser ouvido. Imagino a história do dhikr como uma tecnologia de libertação enviada do porvir. Nossos filhos são os verdadeiros guardiões do tempo. Eles não esperam que os alcancemos; já estão nos observando a partir do que está adiante. Neles, nós já existimos, e eles carregam a memória do que nos tornaremos.

Nossos filhos já viram este mundo. Conhecem suas fraturas, sua violência, sua beleza e seus fantasmas. Porque já passaram por ele, enviam-nos o que precisamos para sobreviver: a lembrança.

Isso, acredito, é o dhikr. Não é apenas um canto ou repetição. É uma frequência que desbloqueia. Um ritmo que desmonta o medo. Uma vibração que nos lembra quem somos quando nos despimos de tudo o que nos foi imposto.

Estou tentando imaginar como o dhikr se manifesta. Será que se parece com nossos filhos (aqueles que ainda não conhecemos) nos guiando de volta ao ser?

Dhikr não é história. É profecia. Não é um retorno. É uma chegada. Não pede que façamos sentido, pede que sintamos. Que nos entreguemos a um ritmo que vem de além do tempo linear. Estou me lembrando constantemente que a libertação não é algo que herdamos. É algo que somos chamados a recordar. E, ao recordar, tornamo-nos livres.

Texto fornecido pela artista

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

WAAR WOLKE HUIL, 2025. Têxtil com bordado manual, apliques e miçangas de vidro costurados sobre algodão. 225 × 404 cm.
2022.

Hamid Zénati

O artista como suporte, s.d. Fotógrafo desconhecido. © Espólio de Hamid Zénati.

A obra do artista argelino-alemão Hamid Zénati (1944-2022) é definida por uma variedade infinita de formas, padrões e combinações de cores, materiais e técnicas. Suas composições cheias de energia incluem obras têxteis, em cerâmica, objetos e mobiliário, bem como fotografias performáticas, borrando os limites entre arte, moda, design, performance e decoração. Embora fosse conhecido entre amigos e familiares pelas camisetas e suéteres criados para eles, Zénati permaneceu grandemente desconhecido além desse círculo ao longo de sua vida.

Como artista autodidata que trabalhou como professor, tradutor e fotógrafo, Zénati produziu composições poderosas e lúdicas usando o estêncil que era sua assinatura, o qual ele descrevia como princípio “all-over” [por toda a parte]. Essa abordagem permitia-lhe incorporar em suas obras estímulos variados. Seu processo criativo se inspirava nos elementos visuais de diferentes culturas, movimentos artísticos, técnicas e suportes, que ele reinterpretava de maneiras surpreendentes, desenvolvendo sua linguagem única. Música, literatura e ciência influenciaram sua arte, assim como sua fascinação pelo mundo natural, particularmente plantas e animais. Ele admirava a infinita variedade de formas encontradas na natureza e com frequência assistia a filmes sobre o meio ambiente enquanto trabalhava. Sua extensa coleção de livros sobre mundos subaquáticos, insetos, pássaros e outros fenômenos naturais contribuiu para moldar um universo próprio, que combinava impressões sobre as ciências naturais com criaturas imaginadas.

Sem título [WVZ 33], s.d. Tinta para tecido sobre material têxtil. 227 × 131 cm. Foto: Maximilian Geuter. © Espólio de Hamid Zénati.

O artista não esticava suas obras em chassis. Preferia dispor as peças espontaneamente em seu entorno ou encená-las em fotografias como esculturas performativas. Indonésia, anos 1990. © Hamid Zénati, Espólio de Hamid Zénati.

Zénati cresceu em Argel durante a guerra argelina de independência (1954-1962), seguida pelos anos de instabilidade política que levaram à Década Sombria (1992-2002). Por muitos anos, ele também enfrentou condições de vida precárias na Alemanha devido ao seu status de residência indefinido. Essa vida diaspórica – cindida entre dois países e existindo em um estado de limbo psicológico e econômico – foi marcada tanto pela hipervisibilidade quanto pela invisibilidade, aspectos determinantes para a história do artista. Embora esses fatores provavelmente tenham influenciado sua carreira, não diminuíram o caráter vibrante de suas obras, caracterizadas por um movimento incansável e anárquico em busca de liberdade e não conformidade. Levado por uma necessidade criativa acachapante, Zénati deixou mais de mil obras para a posteridade.

Anna Schneider Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Mohamed Melehi

Mohamed Melehi (1936-2020) é tido como uma figura importante da arte pós-colonial marroquina e da história do modernismo no Sul Global. Artista multifacetado, pintor, fotógrafo, muralista, designer gráfico e urbano, professor de arte e ativista cultural, lecionou na Escola de Arte de Casablanca durante o período mais radical do instituto, entre 1964 e 1969.

Na arte de Melehi, pode-se sentir o espírito da revolução estética e a exaltação do Marrocos pós-independência, que atravessam a evolução de seu trabalho na década de 1960: das experiências com a abstração em Roma e Nova York até a plena maturação da onda, seu motivo característico, durante a década de 1970 (ele participou da exposição Hard Edge and Geometric Painting [Pintura hard edge e geométrica] do MoMA, em Nova York, em 1963).

Como se pode ver na obra Composition (1970), o processo, ancorado na criação de padrões coloridos, ressoa nos seus murais ao ar livre, especialmente aqueles feitos para o Festival Cultural Moussem de Asilah (norte do Marrocos) a partir de 1978 – onde Melehi coorganizou uma rede artística e um evento tricontinental marcante, um festival organizado até hoje durante o verão.

Composition [Composição], 1970. Acrílica sobre painel. 120 × 100 cm. Cortesia MACAAL – Fondation Alliances. © Melehi, Mohamed / AUTVIS, Brasil, 2025.

A arte de Melehi resiste à divisão entre Oriente e Ocidente que se desenvolveu durante o período da Guerra Fria. Os seus afrescos ondulados levam-nos a uma viagem cosmopolita, unindo o Mediterrâneo e o Atlântico. O seu diálogo com o Ocidente equilibra-se com a paixão por tapetes e joalheria populares Amazigh (que podem ser encontrados em todo o deserto do Saara, tanto nas tradições berberes como tuaregues). Trata-se de uma relação profunda com a arte e o artesanato locais, nos quais essas combinações de padrões (entre linhas retas e onduladas, formas abstratas e figurativas, símbolos femininos e masculinos) podem ser encontradas, fato documentado pelas obras fotográficas de Melehi.

Melehi desempenhou um papel influente no Marrocos no desenvolvimento da pedagogia artística e das práticas experimentais locais. Durante a década de 1960, ao lado de Farid Belkahia, Mohammed Chabâa, Toni Maraini e Bert Flint, participou de um momento decisivo na educação artística desenvolvida no país – conhecida como Escola de Arte de Casablanca.

Como designer gráfico e fotógrafo, Melehi ajudou a moldar a cultura visual das lutas políticas em todo o Magrebe e das redes artísticas pan-árabes. O seu trabalho de design gráfico e edição para o grupo Casablanca e para revistas de vanguarda como Souffles (1966-1969) e Integral (1971-1978) são os melhores exemplos disso.

Em 1987, Mohamed Melehi, ao lado de Farid Belkahia, Mohammed Kacimi, Fouad Bellamine e Abdelkebir Rabi, representou o Marrocos na 19ª Bienal de São Paulo.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Edival Ramosa

Edival Ramosa com escultura sem título. Capa da publicação da Skultura Galeria de Arte, São Paulo, 1985.

A produção artística de Edival Ramosa é múltipla, resultado de diversas viagens realizadas no espaço e no tempo. Viandante nato, o percurso poético de mais de cinco décadas do artista abrange principalmente o período em que residiu em Milão, na Itália, entre 1964 e 1974, momento no qual sua arte tomou forma poética, mas sua circulação alcançou muitos outros lugares, como Egito, Marrocos, a antiga Iugoslávia, Estados Unidos, Suíça, Bélgica e Inglaterra, além de cidades brasileiras como Cuiabá, Cabo Frio, Ribeirão Preto, Brasília, São Paulo e Ubatuba. Seu pensamento geométrico acerca da escultura circular e totêmica é singular, fazendo dele um nome incontornável da produção abstrata geométrica do Brasil. Com Ramosa, prestamos atenção tanto aos elementos abstratos de sua poética quanto à proximidade com inquietações e oportunidades voltadas à produção experimental. De sorte que, quando nos deparamos com um trabalho do artista, possivelmente tenhamos a impressão de já o ter visto em exposições coletivas de arte afro-brasileira, embora não o reconheçamos por completo.

Seus elementos centrais são esferas, colunas, casulos, luas, cometas, flechas e outras “formas-objetos”, como ele caracteriza boa parte de suas obras, cada qual variando em gradações de cores e em formas geométricas. Obras como Caboclo 7 Flechas (1965), Árvore multicor II – Ogum (1966), Toy para Leonardo da Vinci (1968), Estudo para o Sol (1969), Lua (1969) e Cometa (1973) evidenciam as operações poéticas elaboradas por Ramosa, apontando para uma faceta curiosa, na qual um trabalho não figurativo e geométrico estabelece proximidades com realidades cósmicas.

Cenas abstratas tornam-se estrelas e anéis planetários e vice-versa. Em Estudo para o Sol, por exemplo, as linhas circulares, os vazios transparentes e as cores fracionadas ecoam elementos de especulação: a obra seria talvez uma versão em miniatura do trabalho O Sol dos povos de cor (1969), objeto realizado em escala humana, um grande semicírculo formado por discos que se sobrepõem em uma paleta de amarelos, laranjas, vermelhos e roxos, tom sobre tom, com seu diâmetro espelhado em uma base refletora de acrílico. A constelação geométrica de Edival Ramosa orbita em várias escalas, diminutas ou agigantadas, fazendo do artista um viandante cósmico no horizonte da abstração no Brasil.

Título desconhecido [Estudos para o sol], 2004. Acrílico e tinta acrílica. 14 × 23 × 23 cm. Coleção moraes-barbosa. Foto: Estúdio em Obra.

Studi per il Sole [Estudos para o sol], 1969. Madeira e relevo em acrílico. 60 × 60 cm. Coleção Ronie e Conrado Mesquita.

Imram Mir

Sem título (série Twelfth Paper on Modern Art) [Décimo segundo artigo sobre arte moderna], 2013. Acrílica sobre tela. 91,5 × 91,5 cm. Cortesia Irman Mir Art Foundation.

A obra de Imram Mir (1950-2014) é uma oportunidade singular para se discutir os limites do projeto artístico modernista e arquitetônico-moderno, perplexamente ainda tão caro à experiência brasileira. A trajetória que o artista paquistanês trilhou na investigação formal e discursiva do modernismo, da abstração e do minimalismo, em Nova York, Toronto e principalmente em Karachi, permite-nos conhecer uma prática artística não sequestrada pela genealogia ocidental da arte.

Toda a produção artística de Mir desenvolveu-se como uma pesquisa poética contínua e intitulada Papers on Modern Art [Artigos sobre arte moderna] (1976-2014). Cada uma das doze séries criadas pelo artista é numerada e compreende um conjunto determinado de obras, seja pintura, escultura, ou algumas instalações. Ao longo de quatro décadas, Mir dedicou-se a uma experimentação profunda e prazerosa em torno da linguagem abstrata, por meio de formas geométricas. A própria ideia presente no formato do projeto condiz com um sentido que se desenvolve no tempo, um decurso para se materializar em algo novo.

Em Ninth Paper on Modern Art [Nono artigo sobre arte moderna] (1997), por exemplo, temos acesso aos muitos estudos do artista com esferas, órbitas, pirâmides e outras formas que ele empregou em seus trabalhos. No Twelfth Paper on Modern Art [Décimo segundo artigo sobre arte moderna] (2014), a última série realizada, encontramos as maiores peças escultóricas. A escala de sua arte redimensiona as formas geométricas em novas descobertas cinéticas, muitas vezes elementos que se repetem em série, como esferas de metal no espaço ou um grande globo de fibra de vidro. Os papers, ou artigos, não são versões finais,

Sem título (série Ninth Paper on Modern Art) [Nono artigo sobre arte moderna], 2000. Acrílica sobre tela. 122 × 122 cm. Cortesia Irman Mir Art Foundation.

já que um elemento leva à próxima reflexão visual de seu imaginário abstrato.

A curadora Amal Alhaag apontou “como Imran Mir dialogava com artistas no Ocidente, enquanto deliberadamente, ou não, tentava expandir as venezianas do modernismo e da abstração. A provocação reside, talvez, em como se pode desconstruir e libertar conceitos artísticos do aperto opressivo do Ocidente e sua abordagem canônica à arte e à criação de mundos”.1 Em nosso caso, então, reside em como o design das peças coloridas de grande dimensão de Mir pode friccionar o Pavilhão branco de Niemeyer, relacionando contextos históricos coloniais submersos e relacionados, em que “a cor é a mestra da cerimônia na qual as linhas formam um coro”.2

1. Amal Alhaag, “A Note: Navigating Imran Mir’s Cosmos”, em Imran Mir – A World that Is Not Entirely Reflective but Contemplative. Berlim: Archive Books, 2022, p.22 2. Ibid., p.23.

Sem título (série Eleventh Paper on Modern Art) [Décimo primeiro artigo sobre arte moderna], 1996. Acrílica sobre tela. 106 × 304 cm. Cortesia Irman Mir Art Foundation.

Hessie

Nr. 018 da série papiers [papéis], 1970. Colagem de jornal perfurado sobre papel branco. 50 × 65 cm. Foto: Béatrice Hatala. Cortesia do espólio da artista e Galerie Arnaud Lefebvre, Paris.

A prática artística de Hessie (1933-2017) redefiniu as fronteiras entre o bordado e a colagem. Ela trabalhou principalmente com materiais muito simples, como tecidos de algodão ou embalagens de diversos tipos. Notoriamente minimalistas e abstratos, eles eram transformados pela artista em composições geométricas surpreendentes, vívidas e animadas, apresentando uma linguagem poética única desenvolvida ao longo do tempo. Com um amplo corpo de obras dividido em diversas séries, como Boutons [Botões] (1974-1975), Trous [Buracos] (1973), Végétations [Vegetações] (déc. 1970) e Déchets collages [Colagens de detritos] (1976), só para mencionar algumas, a habilidade de Hessie para transformar técnicas domésticas em uma expressão artística poderosa a tornou uma figura feminista pioneira, que desafiou a ideia de que atividades

Nr. 241 da série points cousus [pontos costurados], 1975. Bordado com linha sobre tecido de algodão. 57 × 139 cm. Foto: Béatrice Hatala. Cortesia do espólio da artista e Galerie Arnaud Lefebvre, Paris.

atribuídas às mulheres, como costura ou bordado, eram simplórias ou ultrapassadas.

Artista autodidata, ela se inspirava na vida cotidiana e em seus materiais, como botões, pedaços de papel, fios ou objetos encontrados, desafiando noções e definições convencionais de arte e artesanato. Em certos casos, as fronteiras entre arte e ciência eram borradas. Na série Végétations, por exemplo, cujo título é uma referência clara e direta a plantas, a obra da artista aparece cheia de vida por meio da repetição de linhas vermelhas ou brancas, evocações da observação microscópica das células, que, conforme definido por biólogos humanos, são o menor denominador comum da vida, responsáveis por todos os aspectos funcionais de um organismo.

Além da harmonia ou da beleza formal de suas obras têxteis, os trabalhos de Hessie também sublinham o potencial profundo dos tecidos como meio para o comentário artístico ou social. Devido à sua qualidade tátil, cada peça carrega narrativas pessoais e coletivas, oferecendo uma voz profundamente humana e subversiva que aborda temas sociais como trabalho e gênero por meio de um suporte familiar. Além disso, o processo lento e cuidadoso de coser, costurar e furar se opõe à ideia de produção em massa, demonstrando a abordagem consciente da artista em relação a práticas sustentáveis. A questão do tempo e de sua passagem, assim como suas condições de vida, também deixaram marcas em suas obras, como na forma de traços de ferrugem ou água, devidos às condições precárias de acondicionamento em sua casa – um farol no interior da França, no qual ela passou a maior parte de sua vida adulta.

Esta participação é apoiada por:

Institut français, através do programa

IF Incontournable

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Gōzō Yoshimasu

Gōzō Yoshimasu está há mais de seis décadas na vanguarda da poesia japonesa. Experimentando com palavras, tipografia e pontuação, e incorporando fragmentos de línguas estrangeiras e textos encontrados, seus poemas celebram a multiplicidade exuberante da linguagem. Paralelamente, Yoshimasu imprime em suas composições uma urgência transcendente ao relatar suas jornadas físicas e intelectuais. Em “Princess Weaver” [Princesa tecelã], por exemplo, uma visita a uma cidade mineira no norte do Japão inspira a seguinte observação: “Antigamente, parado em meio ao cheiro de centenas de toneladas de cal, flores azuis, conchas também fósseis de peixes também, a Linha Aoume descia a montanha pouco a pouco”.1

A prática criativa de Yoshimasu vai além da página impressa, estendendo-se a performances, fotografia, imagem em movimento e gravações sonoras. Em suas performances, Yoshimasu reinterpreta seus poemas por meio de vocalizações, gestos corporais, operações aleatórias (como pendurar sinos entre seus dentes com uma corda) e colaborações com outros artistas. Em 2006, começou a produzir vídeos com uma câmera digital portátil. Essas obras geralmente apresentam reflexões do poeta sobre arte e vida, em resposta a locais que variam das Watts Towers em Los Angeles à Base Aérea de Yokota do Exército estadunidense, próxima à casa onde cresceu em Tóquio. Muitos de seus trabalhos transitam fluidamente entre diferentes materialidades, como placas de cobre e pergaminhos com palavras e outros

New Dear Monster [Novo querido monstro], 2022. Técnica mista sobre papel. 51 × 45,5 cm. Foto: Kei Okano.
© Gōzō Yoshimasu. Cortesia Take Ninagawa, Tóquio.

Dear Monster [Querido monstro], 2014. Técnica mista sobre papel. 44,5 × 41,5 cm. Foto: Kei Okano. © Gōzō Yoshimasu. Cortesia Take Ninagawa, Tóquio.

motivos inscritos, que se tornam tanto partituras quanto instrumentos em suas performances. Nos últimos anos, Yoshimasu foi profundamente afetado pelo terremoto, tsunami e acidente nuclear de Tohoku em 11 de março de 2011. A catástrofe inspirou o projeto multimídia apresentado na 36ª Bienal, Dear Monster [Querido monstro] (2012-2016), composto de mais de seiscentos textos escritos à mão, com desenhos, marcas e colagens de elementos. A maior parte da obra é dedicada à transcrição dos escritos do poeta e pensador do pós-guerra Takaaki Yoshimoto, mentor de Yoshimasu que faleceu em março de 2012. Manifestando o “dever poético” de um sobrevivente, as transcrições de Yoshimasu remetem ao ato devocional de copiar sutras budistas, ao mesmo tempo que sugerem uma tradução ou renovação do conteúdo original. No entanto, grande parte do texto subjacente torna-se ilegível devido a respingos quase caligráficos de tinta em cores vibrantes, que materializam a convergência explosiva entre criação e destruição, lembrança e esquecimento: em uma palavra, a sobrescrita inerente ao próprio texto. Dear Monster deu origem, por sua vez, aos projetos subsequentes Fire Embroidery [Bordado de fogo] (2016-2018), New Dear Monster [Novo querido monstro] (2016-2022) e Voix [Voz] (2019-2020).

Andrew Maerkle

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

1. Gōzō Yoshimasu, “Princess Weaver”. Bomb, n.16, verão de 1986, p.73. Disponível em: bombmagazine.org/articles/1986/07/01/four-poems-yoshimasu/. Acesso: 2025.

Esta participação é apoiada por: National Center for Art Research, Japão

Firelei Báez

Firelei Báez é uma aclamada artista visual cuja prática complexa e multifacetada aborda histórias diaspóricas, identidades intersecionais e memória cultural. Utilizando pintura, desenho e instalações em grande escala, Báez questiona narrativas históricas e representações visuais, com especial atenção para histórias marginalizadas relacionadas a experiências afro-caribenhas e afrodiaspóricas.

Balangandan (Planisphere 1587) [Balangandã (Planisfério 1587)], 2025. Óleo e acrílica sobre tela impressa com qualidade arquivística e pingentes de azabache aplicados. 254 × 250,2 cm.

Foto: Elisabeth Bernstein. © Firelei Báez. Cortesia da artista e Hauser & Wirth.

O trabalho da artista incorpora pesquisa de arquivo e iconografia, misturando documentos históricos, mapas, simbolismo mitológico e elementos do folclore afro-indígena e da cultura popular. Seus retratos juntam referências visuais de mitologias e rituais locais com imagens da ficção científica e do fantástico; neles, as identidades são fluidas, e as narrativas herdadas se apresentam em contínua transformação. Essa abordagem permite a Báez desconstruir o colonialismo, as dinâmicas migratórias e as construções identitárias raciais, desafiando narrativas convencionais por meio de intervenções visuais vibrantes e impactantes. Seu vocabulário artístico é fortemente marcado por tradições têxteis, ornamentos corporais e elementos da natureza, que ela transforma em símbolos potentes de resistência, hibridismo e resiliência cultural. Uma dimensão importante da prática de Báez é o uso de esquemas cromáticos intensos e técnicas sofisticadas de sobreposição, que materializam visualmente a fluidez e as complexidades da identidade cultural. Suas pinturas dissolvem os limites entre figuração e abstração, evocando diversas camadas de significado que exigem um olhar ativo do espectador. Essa estratégia estética possibilita não apenas a revisão de narrativas históricas dominantes, mas principalmente o florescimento de perspectivas marginalizadas. Ao situar as narrativas afrodiaspóricas em contextos globais mais amplos, Báez realiza um duplo movimento: resgata histórias silenciadas e, ao mesmo tempo, reconfigura ativamente o entendimento contemporâneo sobre hibridismo cultural e memória coletiva.

Naiomy Guerrero

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Farid Belkahia

O pintor e escultor Farid Belkahia (1934-2014) foi diretor da Escola de Arte de Casablanca de 1962 a 1974, um dos pioneiros da arte moderna marroquina e africana e uma figura de destaque para os estudos do Sul Global e a história da arte pós-colonial. Depois que ele viajou pelo mundo – de Paris, onde estudou na École Nationale des Beaux Arts, a Praga, onde conheceu artistas comunistas como Pablo Neruda e Paul Éluard –, seu trabalho tomou um rumo radical em meados dos anos 1960. A partir de então, ele concentrou seus esforços em desmascarar o aparato da pintura ocidental, recorrendo alternativamente ao cobre, a peles de animais e a molduras próprias decoradas. Sua obra combina influências da caligrafia árabe, do alfabeto berbere e de geometrias arquetípicas e multiculturais. Em suas “telas moldadas”, ele usa pele de animal em vez de tela, e hena em vez de tinta a óleo. A profunda ligação de Belkahia com os berberes e as artes populares africanas ressoa em sua declaração de que “a tradição é o futuro do Homem”.1

A profundidade de sua pesquisa e exploração visual, simbólica e semântica nos leva a enxergar sua obra como uma espécie de modernismo esotérico ou talismânico – uma arte de transcrever línguas e pictogramas antigos ou sagrados (com um papel específico para elementos relacionados ao sufismo) em um novo sistema modernizado e de certa forma pan-africano de signos em migração (no qual a influência de Paul Klee e da Bauhaus ainda pode ser decifrada).

A obra Composition [Composição] (1996), apresentada na Bienal, pode ser relacionada a diferentes ciclos de telas moldadas ou pinturas em relevo de Belkahia, mesclando formas antropomórficas e abstratas, como Féminité [Feminilidade] (1980), Transe (1986), Procession [Procissão] (1996) ou Main [Mão] (1980). Como se pode observar, sua linguagem de signos e símbolos assume conotações e formas bastante eróticas e sexuais, como grande parte de suas pinturas sobre peles, passando por um impressionante processo de abstração erotizada e emancipação de um corpo transexual por meio da obra.

Após dois anos como jovem diretor da Escola de Arte de Casablanca, Belkahia expandiu sua visão: entre 1964 e

1965, nomeou Mohamed Melehi e Mohammed Chabâa como professores de artes visuais, juntamente com Toni Maraini e Bert Flint para os cursos de história da arte. Juntos, eles conduziram a revolução pedagógica mais impressionante do período pós-independência do Marrocos, conhecida como Escola de Arte de Casablanca, que hoje recebe grande atenção no campo da história da arte pós-colonial e dos museus globais.

Em 1987, Farid Belkahia representou o Marrocos na 19ª Bienal de São Paulo, ao lado de Mohamed Melehi, Mohammed Kacimi, Fouad Bellamine e Abdelkebir Rabi.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Composition [Composição], c.1980. Pigmentos sobre couro. 159,5 × 157 cm. Cortesia MACAAL – Fondation Alliances. © Belkahia, Farid / AUTVIS, Brasil, 2025.

1. Rajae Benchemsi (org.), Farid Belkahia. Milão: Skira, 2014.

Madiha Umar

Madiha Umar (1908-2005) foi uma artista iraquiana pioneira, cuja fusão inovadora de caligrafia árabe e arte abstrata a consagrou como uma figura fundamental da arte árabe moderna. Nascida em Aleppo, na Síria, filha de pai circassiano e mãe síria, Umar mudou-se para o Iraque durante a infância, onde mais tarde se fixaria como iraquiana naturalizada. Sua formação inicial ocorreu na Sultaniyya School, em Istambul, seguida de estudos na Maria Grey Training College, em Londres, onde se formou em artes e ofícios, em 1933, com mérito. Essa conquista a marcou como a primeira mulher a receber uma bolsa de estudos do governo iraquiano para estudos de arte no exterior.

Ao retornar a Bagdá, Umar assumiu o cargo de chefe do departamento de pintura da Teachers Training College for Women, cargo que ocupou até 1942. Naquele ano, ela se mudou para Washington, D.C., e continuou seus estudos artísticos na George Washington University e, mais tarde, na Corcoran School of Art, formando-se em 1959. O contato de Umar com o trabalho da estudiosa islâmica Nabia Abbott, durante seu tempo em Washington, despertou-lhe o interesse pelo potencial estético da escrita árabe. Entre 1942 e 1944, a artista começou a explorar a integração da caligrafia árabe a composições abstratas, um esforço

The Waste Land [A terra devastada], 1960. Óleo sobre tela. 61 × 117 cm. Cortesia Barjeel Art Foundation, Sharjah.

inovador que a posicionou como precursora do movimento Hurufiyya – um movimento artístico de meados do século 20 em que os artistas incorporavam letras árabes a expressões artísticas modernas.

Em 1949, com o incentivo do historiador de arte Richard Ettinghausen, Umar realizou uma exposição individual em Washington, D.C., tendo apresentado 22 obras abstratas, centradas na representação de letras árabes em formas orgânicas. Essa exposição foi acompanhada de um ensaio no qual ela articulou o caráter dinâmico das letras árabes como desenhos abstratos independentes. A filosofia artística de Umar tornou-se ainda mais evidente após sua participação na exposição Ibn Sina, em 1952, no Instituto de Arte de Bagdá, onde ela apresentou 48 pinturas que integravam letras árabes a obras de arte modernas e seculares. Essa exposição influenciou significativamente os artistas do Oriente Médio e destacou seu papel como pioneira do movimento Hurufiyya.

Em 1971, Umar co-fundou o One Dimension Group, ao lado dos artistas Shakir Hassan Al Said, Jamil Hamoudi e Rafa Nasiri. O manifesto do grupo deliberava sobre a abordagem da abstração nas artes visuais por meio das lentes das escritas árabes locais, com o objetivo de infundir autenticidade na forma da letra sem simplesmente reviver a caligrafia islâmica tradicional. A obra de Umar é caracterizada pela transformação de letras árabes em composições abstratas, refletindo seu profundo envolvimento com o patrimônio cultural e as práticas artísticas modernas. O legado de Madiha Umar perdura por meio de sua síntese inovadora de caligrafia e abstração que influenciou profundamente as gerações seguintes de artistas dedicados a explorar a interseção entre identidade cultural e formas artísticas contemporâneas.

Naiomy Guerrero

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Sem título, 1978. Aquarela sobre papel. 31 × 44 cm. Cortesia Barjeel Art Foundation, Sharjah.

Ernest Mancoba

Sem título, sem data. Óleo sobre tela. 56 × 45 cm. Cortesia do espólio de Ferlov Mancoba.

“Para mim, a arte só pode ser fundamentada na noção única – da qual ela é tanto a confirmação quanto a prova – de que o Homem é Um”, disse Ernest Mancoba (1904-2002) em uma entrevista a Hans Ulrich Obrist.1 Nascido na África do Sul, Mancoba foi um dos pioneiros da vanguarda da pintura gestual e um dos pais do modernismo africano, reconhecido por suas composições abstratas e seu gestualismo lúdico. O começo de sua carreira foi marcado por uma controvérsia, quando ele foi tanto celebrado quanto escarnecido por sua obra Bantu Madonna [Madona Bantu] (1928), uma escultura da Virgem Maria com fenótipo africano, executada em afrocarpo-austral, madeira tradicional daquele continente. Enfrentando as limitações do apartheid na África do Sul, Mancoba foi para a Europa em 1938. Mas logo se viu preso pelos nazistas em Paris e foi colocado em um campo de prisioneiros alemão. Uma vez solto, dois anos depois, começou a fazer experimentações com pintura. Em 1940, Mancoba realizou Composition [Composição], na qual seguiu o formalismo europeu e criou, a partir deste, uma representação gestual de uma máscara africana. Essa pintura marcou o início de seu abandono da figuração, levando a décadas de experimentação e inovação com linhas, figuras e formas. Suas telas traziam composições rítmicas e espontâneas, formas expressivas que refletiam sua recusa em se adequar a uma definição de artista africano, particularmente em um período no qual artistas e curadores europeus e sul-africanos nomeavam abertamente os movimentos sul-africanos do meio do século 20 como “primitivismo africano”, a despeito do claro engajamento do movimento com o modernismo. Buscando constituir uma identidade mais independente, Mancoba se estabeleceu como abstracionista de vanguarda, ligando-se a variados movimentos artísticos ao longo do século 20, embora fosse em geral negligenciado como um

Sem título, 1993. Tinta e pastel oleoso sobre papel.

32 × 50 cm. Cortesia do espólio de Ferlov Mancoba.

Sem título, 1990. Tinta e pastel oleoso sobre papel.

41,7 × 59 cm. Cortesia do espólio de Ferlov Mancoba.

de seus líderes. Com frequência o único artista africano nos coletivos de que fez parte, Mancoba estava determinado a estabelecer sua liberdade pessoal e identidade única – não somente como artista africano, mas como artista de vanguarda na Europa. Lutando por um estilo no qual marcas gestuais são dispostas de maneira lúdica sobre telas de linho cruas, Mancoba resistia a figuras e formas identificáveis, buscando em vez disso criar um corpo de obras que refletisse um anseio por “aquilo que vai além de nós e que não compreendemos”, como ele mencionou em uma entrevista de 1995. Suas pinturas, como muitas de suas viagens, refletiam uma relação profundamente ambiciosa com sua própria autodefinição. A arte de Mancoba era a um só tempo universal e profundamente pessoal – era uma declaração da sua própria liberdade intelectual e da sua identidade.

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

1. Hans Ulrich Obrist, Interviews, Volume 1. Milão: Charta, 2003, p.572.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Moisés Patrício

Moisés Patrício opera na encruzilhada. Como Exu, seu trabalho transita entre tempos, espaços e materialidades.

O orixá, associado à comunicação e à linguagem, é quem rege o artista junto aos preceitos do candomblé, na vida e na arte. Patrício se apropria de linguagens consolidadas na arte contemporânea para propor uma reparação dialógica: ocupar o circuito tradicionalmente branco, trazendo a cosmovisão afro-brasileira para o centro da discussão. Ele define essa operação como seu “lugar exuístico de atuação”,1 um campo de deslocamento e ressignificação no qual o discurso hegemônico é tensionado pelo saber ancestral. Na série Brasilidades (2020-2022), esse embate ganha a forma de esculturas híbridas, em que cubos de cimento, que remetem à lógica construtiva brutalista, engolem objetos cerâmicos litúrgicos do candomblé, como alguidares, quartinhas e vasos de barro. O cimento, material da arquitetura moderna e do planejamento urbano excludente, aprisiona e fossiliza os recipientes, que, em sua maioria feitos em torno, carregam em si a circularidade da forma e do tempo, da transmissão de saberes, da vida em roda. O encontro entre os opostos – o quadrado e o círculo, o duro e o maleável, o retilíneo e o curvilíneo – explicita o apagamento das marcas simbólicas das culturas afro-brasileiras na construção do imaginário do país.

Cruza-Trilha, 2023. Vista da exposição na Verve Galeria, São Paulo.

Na metafísica, a impenetrabilidade é a qualidade da matéria pela qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Em Brasilidades, essa condição ganha uma dimensão política: os objetos incrustados no cimento falam da disputa por território, da violência da colonização e do apagamento dos signos da cultura negra no espaço público. O controle espacial, seja no urbanismo moderno, seja na organização do espaço na arte, é uma estratégia de dominação. Contra isso, Patrício afirma a permanência, o corpo que resiste e insiste em existir. A obra do artista transforma o espaço tridimensional em território, em campo de questionamento, em que formas, materiais e significados se confrontam. Brasilidades não busca síntese ou harmonia, mas explicita as fraturas e contradições que moldam a identidade brasileira. Entre o círculo e o quadrado, entre a tradição ancestral afrodiaspórica e a imposição colonial, Moisés Patrício nos força a encarar a pergunta incômoda: o que é a brasilidade e quem tem o direito de defini-la?

Érica Burini

1. Frase do artista para a série Cada voz (2021), projeto da Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: <youtu.be/7Q-da6pJC6A?si=r1lJegnrCmlivimk>. Acesso: 2025.

Série Brasilidades, 2019. Concreto e cerâmica. 30 × 62 × 40 cm.

I Gusti Ayu Kadek Murniasih (Murni)

Suatu Upacara

Tradisional [Uma cerimônia tradicional], 2002. Acrílica sobre tela.

70 × 70 cm. Cortesia do espólio de I Gusti Ayu Kadek Murniasih e Gajah Gallery, Singapura.

Nascida em Tabanan, Bali, a artista balinesa/indonésia Murni (1966-2006) alcançou reconhecimento internacional recentemente. Estudou pintura com o artista I Dewa Putu Mokoh, com base na tradição local. Originária do vilarejo de Pengosekan, localizado próximo a Ubud, em Bali, essa arte visual narrativa baseia-se em histórias antigas – de textos sagrados hindus e budistas ao antigo folclore balinês e javanês. As pinturas de Pengosekan são caracterizadas pelo uso de cores vibrantes e composições abundantes, condensando cenas da vida cotidiana, ornamentação da fauna e da flora e representações de divindades mitológicas.

A maneira como Murni adotou os códigos da pintura de Pengosekan para melhor se emancipar deles próprios, subvertendo progressivamente a tradição em seu estilo pessoal, desde o início da década de 1990 – com um toque minimalista, bem-humorado e irônico –, é notável. Especialmente se levarmos em conta como ela se tornou uma figura proeminente da arte balinesa/indonésia, ainda mais sendo uma mulher que traçou um caminho independente. De 1995 em diante, a artista participou de diversas exposições coletivas na Indonésia e internacionalmente (Austrália, Itália, Hong Kong…), revelando, nelas, composições impressionantes

que tratam da identidade, experiência e traumas femininos, combatendo muitos dos tabus de uma sociedade patriarcal. De fato, o sofrimento íntimo de Murni não deve ser ignorado quando confrontado com suas figuras aparentemente eróticas e, até certo ponto, sadomasoquistas – pelo menos no que diz respeito a suas imagens sexuais muito explícitas –, pois ela foi vítima de estupro pelo próprio pai quando tinha nove anos de idade. Embora muitas vezes interpretado erroneamente como uma arte naïf ou outsider, seu simbolismo sexual muito contundente (reunindo falo, vagina e orifícios em combinações extravagantes e múltiplas) com cores saturadas e, às vezes, brilhantes prova ser um espaço de exorcismo subjetivo e resiliência; para superar o trauma do passado e reivindicar o direito à existência, apesar do sofrimento íntimo. Os objetos que ela introduz em suas pinturas, muitas vezes vistos como uma ameaça à integridade dos corpos distorcidos – como tesouras, saltos altos etc. –, também aparecem como ferramentas de transformação e capacitação. Ao desafiar o papel e a posição das mulheres no contexto da arte asiática, Murni fez de seu trabalho não apenas uma batalha e terapia pessoais, mas também um caminho feminista destemido para a nova geração de artistas balineses que a seguiram, como Imhathai Suwatthanasilp, Citra Sasmita, entre outros.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Story of Phenomphen [História de Phenomphen], 2003. Acrílica sobre tela. 60,5 × 89 × 1,5 cm. Cortesia do espólio de I Gusti Ayu Kadek Murniasih e Gajah Gallery, Singapura.

Aman Tanpa Kuatir [Segura e despreocupada], 2004. Acrílica sobre tela. 170 × 110 cm. Cortesia do espólio de I Gusti Ayu Kadek Murniasih e Gajah Gallery, Singapura.

Behjat Sadr

Uma das artistas visuais mais influentes e radicais do Irã, Behjat Sadr (1924-2009) foi uma das primeiras artistas e professoras iranianas a se destacar em nível internacional. Em 1962, ela não apenas representou o Irã na Bienal de São Paulo, mas também expôs na Bienal de Teerã, na Biennale di Venezia e no Minneapolis Art Institute. Em 1955, depois de completar sua formação em Teerã, ela foi para a Itália a fim de estudar na Academia de Belas Artes de Roma. Abandonando as estruturas e práticas acadêmicas, ela começou a usar tinta industrial sintética e a trabalhar no chão. Sua “abstração informal”, conforme se vê em Sem título (1956), revela sua fúria expressionista dotada de um desejo irreprimível de abordar a profundidade da pintura; o vazio ou as espirais nas quais a artista pode habitar existencialmente – com clara tendência ao uso da cor preta.

Sem título, 1956. Óleo sobre painel. 50 × 70 cm. Cortesia Behjat Sadr Endowment Fund.

Sem título, ca. 1974. Óleo sobre alumínio. 61 × 102 cm. Cortesia Behjat Sadr Endowment Fund.

Sem título, c. 1987. Óleo sobre papel e colagem fotográfica. 50 × 65 cm. Cortesia Behjat Sadr Endowment Fund.

Sua melancolia durante o exílio a leva a travar amizade com importantes poetas iranianos, como Sohrab Sepehri e Forugh Farrokhzad. Vide o desenho do cadáver de Farrokhzad, de 1967, ano da trágica morte da famosa poeta que apresentou Sadr à poesia moderna. Sadr também colaborou com influentes críticos de arte italianos e franceses (Giulio Carlo Argan, Roberto Melli, Pierre Restany, Michel Ragon…).

O ano de 1967 marca o experimento entusiástico de Sadr em torno da abstração geométrica, da arte cinética e da arte óptica. Como visto em Sem título (1967), a artista criou uma inovação e um dispositivo óptico exclusivo: aplicou folha de alumínio em venezianas e depois as sobrepôs verticalmente em tela pintada ou em madeira. Esse efeito de espelhamento, que multiplica os padrões de pintura, cria uma imagem caleidoscópica, como uma forma de acolher fisicamente o espectador na obra.

Na década de 1970, as obras de Sadr vão para além das estratégias estritamente geométricas. Elas se expandem para visões alucinatórias produzidas pelo efeito da tinta preta na tela de alumínio (como visto em Sem título [1974]), onde a tinta quase parece petróleo. Assim, ao proporcionar reflexos inesperados e efeitos espelhados, essas obras (como Sem título [1977]) destacam o poder deslumbrante de Sadr em multiplicar linhas, orgânica e graficamente, em seu vórtice pós-caligráfico.

Nos anos 1980, enquanto Sadr passava a maior parte do tempo em Paris, na França, sua prática se concentrava em uma série de colagens – ou, como ela as chamava, “pinturas fotográficas”. Esse retorno à paisagem figurativa parece ser um quebra-cabeça atraente feito de recortes de suas memórias e pertences, obtido de suas caminhadas e fotografias –sendo também um espaço de resiliência e meditação após o exílio e a perda da terra natal.

Morad Montazami

Traduzido do inglês por Mariana Nacif Mendes e Nicolas Brandão

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Forugh Farrokhzad

Uma tempestade de emoções cruas e de verdade inabalável, a poesia de Forugh Farrokhzad (1934-1967) se tornou uma força luminosa na literatura do século 20. Sua obra estilhaçou os confins da poesia clássica persa, pondo de lado estruturas tradicionais para falar em verso livre, desnudando as paisagens íntimas do amor, da saudade e da libertação. Íntimos e confessionais, seus poemas são janelas para sua alma, desdobrando camadas de vulnerabilidade, anseios e desilusão silenciosa. Farrokhzad oferece um ousado retrato de uma experiência feminina que muitas talvez já encararam e talvez ainda encarem, tanto em sua beleza incômoda quanto em sua dor silenciosa. Suas palavras pulsam com sensibilidade e ousadia. Sua honestidade nua e desarmada, uma força tanto quanto uma fragilidade, destacava-a, desafiando as convenções de seu tempo.

O estilo de Farrokhzad é marcado por uma imagística vívida e às vezes perturbadora, que comunica seu turbilhão emocional e suas questões existenciais. Com frequência aventurando-se em panoramas surreais e quase oníricos, nos quais a fronteira entre a contenção isolada e a liberdade imaginada se torna fluida, sua obra reflete o vai e vem de sua mente ávida, que se aferrava sem reservas aos limites da existência humana.

Por meio de obras como Another Birth [Outro nascimento] (1964) e The Captive [A prisioneira] (1955), Farrokhzad explorou temas ligados ao confinamento – tanto visto quanto não visto –, investigando as amarras emocionais e sociais que limitavam as mulheres (no Irã e em outros lugares, assim como hoje). Seus poemas se tornaram um hino por liberdade, uma súplica por libertação de conflitos pessoais e do peso da opressão cultural e social. Sua linguagem feroz e delicada entrelaça o firme e o lírico, criando uma tensão que perdura bem depois do último verso. A despeito de seu falecimento súbito aos 32 anos, o legado de Forugh Farrokhzad ecoa muito além das fronteiras da literatura iraniana. Sua poesia permanece um farol de resistência, autenticidade e empoderamento. Suas palavras, antes consideradas poesia de protesto, continuam a falar às lutas e triunfos daqueles que ousam desafiar nossas condições existentes, tornando sua obra não só relevante,

mas essencial nos debates atuais sobre gênero, sexualidade, liberdade e justiça social. Sua voz continua a inflamar movimentos feministas e a inspirar poetas pelo mundo todo. Sua poesia e seus filmes atestam o poder não dito das palavras e a coragem necessária para desafiar o silêncio, erguendo-se acima das limitações sociais e abraçando as profundidades complexas da existência humana. Por meio de sua obra, ela nos convida a levar em conta os desejos do coração e a busca da alma pela autoexpressão.

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

A casa é escura, 1963. Stills do vídeo. Vídeo em preto e branco, som; 22’. Cortesia: Filmicca.

Nzante Spee

Conhecido principalmente por suas obras sobre tela, Nzante Spee (1953-2005) foi um artista cuja prática estava profundamente enraizada nas urgências políticas das condições humanas e mais-que-humanas. Vindo do noroeste dos Camarões, Spee narrou histórias por meio do uso dinâmico de cores, composições ousadas e simbolismos complexos, muitas vezes retratados em um cenário surrealista no qual corpos humanos, plantas, formas geométricas e padrões são fragmentados, tornados abstratos, reconfigurados e transformados em algo novo. Ao longo de sua jornada artística, Spee conjugou universos diferentes e desenvolveu uma linguagem visual única, que ele chamou de Melting Age [Era da fusão]. O termo pode ser entendido como uma referência ao modo como vários mundos entram em contato entre si e à capacidade que o tempo tem de testemunhar as resultantes e múltiplas formas de habitar esses mundos. Na 36ª Bienal de São Paulo, são apresentadas obras produzidas na última década do século 20, que utilizam acrílica ou óleo sobre tela e têm como temas mais recorrentes ecologia, natureza e música. Em obras como The Woodcutter –The Destruction of our Environment Gently Destroys Us Like Every Cigarette We Smoke [O lenhador – a destruição do nosso meio ambiente nos destrói suavemente como cada cigarro que fumamos] (1995), The Wahdoosee Question

The Cora Player [O tocador de corá], 2004. Óleo sobre tela. 61 × 45 cm. Cortesia Aloysius Forsuh Tih.
Hands of the Forest [Mãos da floresta], 2004. Óleo sobre tela. 51 × 70 cm. Cortesia Aloysius Forsuh Tih.

[A questão Wahdoosee] (1994), David and Goliath [Davi e Golias] (1995) e Le Paradis des antilopes [O paraíso dos antílopes] (1994), o artista chama nossa atenção para a relação complexa entre humanidade e natureza e para o impacto que ações nefastas do ser humano, como o desmatamento, têm no meio ambiente e, consequentemente, em todos os seres vivos. Outras obras, como Echoes of Music [Ecos de música] (1994), Music Trio Band [Trio de música] (1995) e The Drummer and the Dancers [O baterista e os dançarinos] (1995), testemunham a paixão de Spee pela música. Realizadas em seu estilo característico de abstração simbolista e surrealista, as cenas retratadas nessas telas remetem às sessões noturnas em espaços locais como bares, casas noturnas ou “circuitos”, como são comumente chamados no inglês pidgin. Trata-se de um reconhecimento desses espaços como vetores e componentes importantes que formam o tecido de várias sociedades, apontando para o desejo do artista de conciliar a arte com vários aspectos da vida, pois “Arte é vida… política é arte, dinheiro é arte e muitas outras coisas o são. Até bruxaria é arte”, como afirmou Nzante Spee.

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

Money Blues [Blues do dinheiro], 2004. Óleo sobre tela. 60 × 88 cm. Cortesia
Aloysius Forsuh Tih.

Huguette Caland

Homage to Pubic Hair [Homenagem aos pelos pubianos], 1992. Técnica mista sobre papel montado em painel. 12,7 × 25,4 cm. Cortesia Studio Huguette Caland.

Compreender as obras de Huguette Caland (1931-2019) é mergulhar em temas relativos a identidade, feminismo e corpo, entrelaçados com a riqueza cultural de sua herança oriental e a ousadia do modernismo ocidental. Transcendendo seus antecedentes pessoais e políticos, a arte interdisciplinar de Caland é inovadora, na qual abstração e figuração dançam juntas, fundindo fluidez e forma para celebrar a sensualidade, o desejo e a autoexpressão íntima.

Seus trabalhos mais antigos, moldados pelas tradições figurativas libanesas dos anos 1950 e 1960 libanesas, estudavam a forma humana, especialmente o corpo feminino. Essas obras iniciais, ricas em emoção e sensualidade, abriram caminho para uma linguagem mais abstrata nos anos 1970, quando ela se mudou para Paris e depois para Los Angeles, no fim da década de 1980. Desde então, sua arte acolheu formas curvilíneas e orgânicas que evocavam o corpo, representado ora de modo mais explícito, ora menos explícito, como em Parenthèse I [Parêntese I] (1971) e Bribes de corpes [Pedaços de corpos] (1973).

Na obra de Caland, a abstração é vista como um receptáculo para o físico, capturando sua essência sem nunca sucumbir ao literal. Sua exploração do feminino era central para sua visão. Ainda assim, suas obras nunca representaram mulheres simplesmente; elas encarnavam um sentido livre e sem restrições da feminilidade. Por meio de linhas amplas e cores vibrantes, Caland pintou não só o corpo, mas a própria essência do desejo, da vulnerabilidade e da força.

Parenthèse I [Parêntese I], 1971. Nanquim sobre papel. 19 × 24,1 cm. Cortesia Studio Huguette Caland.

Desert [Deserto], 1985. Óleo sobre linho. 45,7 × 61 cm. Cortesia Studio Huguette Caland.

Em Homage to Pubic Hair [Homenagem aos pelos pubianos] (1992), ela usa uma linha de lápis para fazer o contorno da forma feminina, particularmente os lábios vaginais, com divertidos redemoinhos pubianos pintados com cores quentes diluídas.

Ela disse certa vez: “A linha é bela… Sou uma pessoa de linhas”.1 Ao longo de sua carreira, a linha teceu seu caminho ao longo de cada canto de sua prática, serpenteando por desenhos delicados e seguindo por pinturas sobre linho, tela e madeira – uma técnica artística de uma jornada ininterrupta, na qual o lápis move-se do topo da página até o seu fim, deixando um traço de continuidade em seu rastro. Seu uso da abstração não era só uma escolha artística, mas um modo de destilar a essência da experiência humana, capturando tanto a fisicalidade de seus objetos quanto sua profundidade emocional.

A 36ª Bienal de São Paulo traz uma seleção do legado de Huguette Caland, que convida o público a se conectar em um nível emocional e imaginativo com as linhas e formas que ela conjurou. Esse equilíbrio delicado entre sugestão e forma imbuiu sua arte de uma ressonância atemporal. Cada obra persegue os sussurros dos momentos mais íntimos com os quais o público pode se identificar.

Deliasofia Zacarias

Traduzido do inglês por Gabriel Bogossian

1. Myrna Ayad, “Huguette Caland: A Life in Lines, Love, and Liberation”. Art|Basel, 13 fev. 2025. Disponível em: www.artbasel.com/stories/huguette-caland-lebanese-madridmuseo-reina-sofia. Acesso: 2025.

Esta participação é apoiada por: Institut français, através do programa IF Incontournable

Frankétienne

Sem título, 2001. Técnica mista sobre placa de fibra de madeira de alta densidade. 61 × 40,6 cm. Foto: Madeline El-Saieh. Cortesia Central Fine, Miami; e El-Saieh Gallery, Porto Príncipe.

Frankétienne (1936-2025), nascido Jean-Pierre Basilic Dantor Franck Étienne d’Argent, foi um artista multidisciplinar haitiano cuja extensa produção abarcou literatura, teatro, música e, especialmente, a pintura. Embora mais reconhecido por suas conquistas literárias, suas pinturas constituem uma dimensão fundamental de sua expressão criativa, capturando com vigor a complexidade, a resiliência e a identidade cultural do Haiti por meio de uma estética abstrata e intensidade temática.

Frankétienne iniciou sua prática artística na pintura em 1973, desenvolvendo uma linguagem visual que dialogava profundamente com os temas explorados em sua obra literária. Sua primeira exposição em Porto Príncipe, em 1974, marcou o começo de uma trajetória artística vasta e impactante. Nas décadas seguintes, produziu cerca de mil pinturas, cada uma marcada por formas dinâmicas e uma paleta vibrante em que predominavam vermelhos e azuis, escolha cromática que evoca deliberadamente o simbolismo da bandeira haitiana. Essas cores funcionam como referências alegóricas à identidade nacional, às complexidades históricas, às lutas sociopolíticas, à intimidade e ao corpo humano.

Uma obra seminal em seu catálogo visual é Désastre (12 janvier 2010) [Desastre (12 de janeiro de 2010)] (2010), uma pintura acrílica criada logo após o catastrófico terremoto que atingiu o Haiti. A composição expressa a profunda devastação emocional e física das vítimas mediante curvas e pinceladas densas e sobrepostas, materializando visualmente temas como caos, tragédia e luto coletivo. Sua exibição pública em 2014 ofereceu um espaço essencial para a

Amour fatal [Amor fatal], 2024. Técnica mista sobre tela. 50,8 × 76,2 cm. Foto: Madeline El-Saieh. Cortesia Central Fine, Miami; e El-Saieh Gallery, Porto Príncipe.

Acrobatie [Acrobacia], 2023. Técnica mista sobre placa. 27,9 × 36,8 cm. Foto: Madeline El-Saieh. Cortesia Central Fine, Miami; e El-Saieh Gallery, Porto Príncipe.

memória coletiva e a reflexão catártica. Essa obra exemplifica o foco temático constante de Frankétienne na resiliência e na capacidade de recuperação inerente à sociedade haitiana. Sua prática visual está intimamente ligada ao espiralismo, movimento literário e artístico que cofundou, caracterizado por narrativas não lineares e complexidade temática. Suas pinturas representam visualmente esses princípios espiralísticos, articulando tanto a particularidade da experiência haitiana quanto temas universais de luta e perseverança humanas.

Ao longo de sua prolífica carreira, Frankétienne alcançou reconhecimento internacional, tendo recebido em 2010 o título de Artista pela Paz da Unesco por seus esforços em promover globalmente a cultura haitiana. Seu legado permanece profundamente influente, situado na interseção entre ativismo cultural e inovação artística, consolidando sua obra no discurso acadêmico sobre arte caribenha e identidade pós-colonial.

Naiomy Guerrero

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Heitor dos Prazeres

Soro da juventude, s.d.

Partitura em nanquim sobre papel. 37 × 23 cm. Coleção Rafael Moraes. Foto: Ricardo Miyada.

Na encruza das artes visuais, samba, moda e macumba, Heitor dos Prazeres (1898-1966) se fez presente nas ruas da “Pequena África” carioca e nos entornos da praça XI, no Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século 20 até o seu falecimento em 1966. Um artista multifacetado que se debruçou sobre a pintura figurativa e compôs canções de samba e cantigas de terreiro, além de ter elaborado figurinos para shows e espetáculos, como o Ballet do IV Centenário de São Paulo em 1954.1

Festejos. Rodas de samba. Mesas de bar. Brincadeiras de bairro. O dia a dia. Suas obras nos convidam a olhar a vida pulsante da população negra carioca daquele tempo, seja no contexto rural, seja nos centros urbanos. A partir da técnica de óleo/guache sobre tela, o artista expressa na maioria das obras a presença de pessoas negras em diversas situações do cotidiano, unindo a paleta de cores diversificadas a linhas bem delineadas e cheias de movimento. “Mano Heitor”, como às vezes era chamado, criou imagens de grande simbolismo e força expressiva. Compositor nato, de letras de samba e marchas de Carnaval, o artista esteve presente na fundação de agremiações do Rio de Janeiro, como Estácio de Sá, Mangueira e Portela. Ele usou de sua intelectualidade no campo da música para desenvolver uma identidade visual singular na pintura. Os gestos pujantes presentes em sua obra pictórica, como é o caso das pessoas retratadas de cabeça erguida e com vestimentas coloridas, levaram-no a expor três trabalhos na I Bienal de São Paulo, em 1951.

O gaitista, década de 1950. Óleo sobre tela. 46 × 38,3 cm. Coleção Almeida & Dale Galeria de Arte. Foto: Fábio Souza. Cortesia MT Projetos de Arte.

“A minha pintura são coisas que passaram por mim e eu passei por elas”, enunciou Heitor dos Prazeres. Por meio de pinceladas bem definidas, o artista (a)firma a experiência negra em sua plenitude do viver. A sensibilidade no olhar de Heitor para com o seu entorno o torna um importante agente da arte afrodiaspórica. Sua pintura rompe com o arquivo da escravidão, desafiando a iconografia colonial produzida sobre o negro, seja pelos artistas europeus do século 19, seja pelos(as) pintores(as) modernistas no pós-abolição.

Sob uma perspectiva radical negra, as obras plásticas e musicais de Heitor dos Prazeres projetam uma arte que não foi circunscrita pela colonialidade e outras normas de exclusão racial. Em diálogo com a escritora Saidiya Hartman, consideramos que o artista narra uma contra-História, ofício este que “tem sido sempre inseparável da escrita de uma História do presente”.2 Em sua época, Heitor foi um multiartista que prenunciou debates da nossa contemporaneidade, ao olhar criticamente para o passado e fabular o porvir.

Guilherme Fernandes

1. O artista produziu a cenografia e o figurino para o espetáculo O guarda-chuva

2. Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”. Revista Eco-Pós, v.23, n.3, pp.12-33, 2020.

Sem título, 1958. Óleo sobre tela. 72 × 83 cm. Coleção Lêo Pedrosa. Foto: Jaime Acioli. Cortesia MT Projetos de Arte.

Adama Delphine Fawundu

A obra de Adama Delphine Fawundu é movida pela vibração das continuidades. Seu gesto não parte de um ponto fixo, mas de um rastro que insiste em atravessar. Corpo, terra e som não se separam; transitam em reciprocidade. A artista se inscreve nessa corrente, tratando o legado como campo de forças; não como arquivo estático, mas como gramática de trajetórias. Na 36ª Bienal de São Paulo, ela apresenta uma instalação imersiva que entrelaça vídeo, ritmo e materiais têxteis, criando um território circular onde o tempo não é fixo, mas se desenrola em espiral dentro de um tecido que pulsa em constante transformação.

Fawundu opera a partir do lukasa e do dikenga, dispositivos simbólicos dos povos Luba e Kongo. O lukasa, sofisticado suporte de memória, não apenas preserva histórias, mas as reativa por meio de suas texturas e relevos. O dikenga, cosmograma bakongo, expressa a ciclicidade da existência, em que matéria e fluxo não seguem a linearidade ocidental, mas se dobram e se desdobram. Como nos lembra Beatriz Nascimento, a permanência dos mundos negros se marca pela invenção de novas territorialidades, lugares onde a experiência é um horizonte em contínua recomposição.

Klin wata no boku, duya, I du so!, 2024. Sachês de água (Serra Leoa), têxteis, conchas (Carolina do Sul e Maine, EUA; Cuba), papel cianotipado, contas de Mardi Gras, ráfia, barba-de-pau, ervas medicinais (Mali) e arroz Carolina Gold (Carolina do Sul). 457 × 203 . Foto: Jenny Gorman. Cortesia da artista e Hesse Flatow, Nova York.

An Offering at Kongo River [Uma oferenda no Rio Congo], 2025. Fotografia de arquivo jato de tinta. 60,9 × 88,9 cm. Foto: Adama Delphine Fawundu.

Suas colagens têxteis, meditações sobre passado, presente e futuro, são construídas com materiais manuseados por comunidades no Congo, Brasil, Nigéria e em sua terra ancestral, Serra Leoa. Seu processo criativo se desdobra no engajamento profundo com arquivos que honram inteligências indígenas e histórias de resistência. Ao transitar entre águas e terras, ela recolhe materiais, cada um carregando sua própria história.

Ibeji, Cosmas and at the Kongo River [Ibeji, Cosme e Damião no Rio Congo], 2025. Fotografia de arquivo jato de tinta. 60,9 × 182,8 cm. Foto: Adama Delphine Fawundu.

Vestígios dessa jornada – sachês de água potável, fragmentos de conversa, conchas e ervas medicinais – são tecidos como testemunhos encarnados de troca, transformados em marcas de evocação e atos de fabricação.

Na Bienal, a artista convida o público a adentrar um espaço meditativo, onde se desdobram camadas de narrativas têxteis e registros audiovisuais. Fawundu colabora com comunidades quilombolas e artistas locais para explorar os modos sutis como os sistemas Luba, Kongo e Iorubá persistem na Bahia. Essas retenções ancestrais se expressam através da incorporação gestual em seus trabalhos em vídeo, revelando camadas de memória cultural e continuidade espiritual. Sua participação na Bienal é um chamado para sintonizar ritmos ancestrais e cósmicos: uma coreografia de forças na qual terra, pulso e trajetória vibram em harmonia.

Ariana Nuala Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Instituto Sacatar

Aislan Pankararu

Os deslocamentos, encontros e distanciamentos são substratos férteis para a obra de Aislan Pankararu. A biografia do artista revela diversos movimentos marcantes: da comunidade Pankararu de Petrolândia, no interior de Pernambuco, para Brasília; e, posteriormente, de Brasília para São Paulo, onde reencontra os Pankararu organizados na comunidade Real Parque. Esses deslocamentos implicam um distanciamento parcial da cultura Pankararu e um posterior reencontro com ela, este atravessado por outras experiências.

Sua produção inicial lida com a prática do desenho e traz representações dos praiás – vestimentas feitas de palha que constituem a manifestação física dos Encantados, entidades cultuadas pelos Pankararu. Essas entidades habitavam as cachoeiras que cercavam o território desse povo, mas que foram destruídas pelas inundações decorrentes da construção da barragem de Itaparica, no rio São Francisco, em 1988. O mistério fundamental para a organização prática e simbólica Pankararu passou a buscar outras manifestações.

Afastando-se da representação figurativa, Aislan pinta formas inspiradas na pintura corporal tradicional de seu povo, utilizando a argila branca sobre o nada convencional papel kraft – um suporte que repõe a relação cromática entre a tinta branca e a pele escura. Bolinhas, formas circulares e cruzes – parte do repertório gráfico da pintura Pankararu – repetem-se em um cosmos próprio. É possível observar e se deixar levar pelos padrões que se formam e parecem movimentar-se sobre a superfície do papel, do algodão, do couro ou do linho.

Água de imbuzeiro, 2024. Acrílica sobre tela de linho cru. 70 × 90 cm. Foto: Ricardo Prado.

A produção artística de Aislan é também uma exaltação do indígena nordestino e de seu território. Isso se revela nas formas orgânicas, pelas ramificações que sugerem florescências, pelas torções e pelas linhas pontiagudas semelhantes a espinhos, que remetem à vegetação da caatinga.

A vivência do artista em aulas e laboratórios de medicina influencia sua visualidade com imagens microscópicas, que dotam os signos gráficos tradicionais de membranas, flagelos e franjas. Além do branco sobre marrom, ele incorpora cores de outros povos, resultando em uma cena complexa, de elementos coloridos e vibrantes em agitação. Mais recentemente, a obra de Aislan se desdobra também no campo tridimensional, com materiais como a palha e a cerâmica, que tomam formas semelhantes às das pinturas.

Sua produção resiste a explicações simples, pois ela instaura uma forte presença e nos obriga a estar junto. Fruto de múltiplos encontros, a obra de Aislan Pankararu sobrepõe experiências e restitui ao espaço da arte um deslocamento para o campo do mistério – frequentemente rejeitado por formas hegemônicas de viver e de pensar.

O encontro da terra seca, água doce e água salgada, 2024. Acrílica e marcador permanente sobre linho cru. 70 × 90 cm. Foto: Ricardo Prado.

Raukura Turei

Timutimu (kōkōwai), 2024. Kōkōwai de Aumangea Bay, kerewhenua e papakura, aumoana de Maraetai, goma arábica, polímero e grafite sobre linho. 60 × 120 × 3,5 cm. Foto: Greta van der Star.

A artista e arquiteta Raukura Turei iniciou sua trajetória expositiva em 2016, ganhando destaque com a mostra The Earth Looks Upon Us: Ko Papatūānuku te matua o te tangata [A Terra nos contempla], com curadoria de Tina Barton, na Adam Art Gallery Te Pātaka Toi, Wellington, em 2018. Para essa exposição, Turei criou Te poho o Hine-Ruhi (2018), usando argila, tinta acrílica e água sobre impressão digital. Obra monumental de 10 × 4 m, não só revelava seu profundo engajamento com o whenua (pigmento terrestre), como também afirmava a escala grandiosa como elemento fundamental de sua prática. Te Ara Uwha, o caminho do sagrado feminino, representa quatro divindades femininas Māori por meio de pinturas em whenua. A partir do Te Ao Māori, o mundo e a cosmovisão Māori, a artista evoca o significado, o mana (prestígio) e o poder das deusas para materializar suas obras. Central nessa cosmologia está a separação entre Papatūānuku, a Mãe Terra e suprema divindade matriarcal, e seu amante Ranginui, a divindade celestial patriarcal. Dessa separação emergiu Te Ao Mārama, o mundo da luz,

narrativa de criação compartilhada por diversas culturas oceânicas como origem da existência humana. Como escreve Turei: “Os Māori têm um provérbio: ‘ko au te whenua, ko te whenua ko au’ [‘Eu sou a terra e a terra sou eu’]. Nossa genealogia remonta a Papatūānuku, a Mãe Terra, e Ranginui, o Pai Céu, cujos incontáveis filhos personificam cada elemento do mundo natural, e cuja essência está impressa em nosso ser, em nosso DNA”. Kurawaka, a região púbica de Papatūānuku e onde a primeira mulher foi criada, é uma terra vermelha sagrada chamada kōkōwai. Na instalação da artista, quatro divindades são representadas por pinturas em grande escala apoiadas por finos pou (postes verticais). Essas obras encarnam: Papatūānuku/ Kurawaka; Hineahuone, a primeira mulher formada da terra vermelha de Kurawaka; Hinetītama, filha de Hineahuone, que por fim se transforma em Hine-nui-te-pō, deusa da morte e guardiã do submundo.

Vistas ou imaginadas de cima, as obras revelam o padrão

Pouhine, desenho têxtil que representa a inversão do Poutama, uma forma tradicionalmente masculina. O Pouhine, estrutura que evoca um receptáculo, homenageia o whare tangata, o útero. Essa configuração traça a linhagem da luz às trevas, do reino dos vivos ao domínio espiritual, onde Hine-nui-te-pō acolhe seus filhos e os guia até Hawaiki, terra ancestral e espiritual dos Māori e povos oceânicos que compartilham esta whakapapa [genealogia].

Nathan Pōhio

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Esta participação é apoiada por: Creative New Zealand Huru manu, 2024. Kōkōwai de Aumangea Bay, kerewhenua e papakura, aumoana de Maraetai, goma arábica, polímero e grafite sobre linho. 91 × 152 × 3,5 cm. Foto: Sam Hartnett.

Rebeca Carapiá

Para as obras expostas na 36ª Bienal de São Paulo, Rebeca Carapiá debruçou-se sobre o estudo da palmeira-andante –também conhecida como paxiúba ou por seu nome científico, Socratea exorrhiza. Essa árvore, presente na bacia do rio Amazonas e na América Central, tem robustas e emaranhadas raízes aéreas que não ficam soterradas, mas expostas sobre a terra, e que, com o tempo, movimentam-se. Elas crescem em direção ao sol e à procura de água e nutrientes, enquanto as raízes que permanecem na sombra apodrecem, morrem e servem de matéria orgânica para a geração de novas tramas. Com significativa imponência visual, a árvore expande suas ramificações pelo espaço e nos instiga a pensar sobre fundações ancestrais que se transformam dinamicamente com o tempo, corporificando resiliência e fundações móveis através de intricada geometria. Os desenhos de suas raízes também se conectam com as formas características da prática de Carapiá, que se concentra na formação e na expansão de linguagens, em que composições abstratas são feitas com cobre, ferro e solda. Suas linhas sinuosas ensaiam e perpetuam trajetos, deambulações e caminhadas, materializando a síntese de uma existência em movimento – e da própria andança como

Apenas depois da chuva, 2025. Vista da instalação comissionada no Instituto Inhotim, Brumadinho. Foto: Ícaro Moreno / Instituto Inhotim.

, 2024.

225 × 305 × 155

metodologia artística, epistêmica e de vida. Evidenciando diálogos usualmente negligenciados, como as percepções sensíveis, a compreensão espelhada e movimentada do presente e o domínio de materiais frequentemente atrelados à masculinidade violentadora, Carapiá enfatiza uma pulsão desejante e libertadora da criação de um corpo filosófico –ou de dotar uma entidade de corpo em pura linguagem.

A artista apresenta suas esculturas como celebrações das etapas que as formaram, desde a produção coletiva e compartilhada até a superação de desafios técnicos e de obstáculos sócio-históricos. Elas acentuam a oscilação ambivalente de, ao mesmo tempo, abrirem-se em floreios e retraírem-se na síntese formal, preencherem o espaço e incorporarem seus vazios, ensaiarem uma leveza de movimento apesar do peso matérico incontornável, ou mesmo habitarem uma zona integradora entre desenho, escultura e instalação – ou entre monumento e filigrana. Carapiá convida a compreender que não há contradição entre estar afincada no chão ancestral e alçar voo.

Mateus Nunes

Flutuantes
Ferro e cobre.
cm. Foto: Estúdio em Obra. Cortesia da artista e Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Kamala Ibrahim Ishag

Desde os primeiros rabiscos da infância até as obras artísticas maduras que marcam sua trajetória artística ao longo das últimas seis décadas, Kamala Ibrahim Ishag, uma das artistas modernistas mais influentes do Sudão, criou obras profundamente pessoais e imersas em ressonância espiritual, que refletem sua linguagem visual única, explorando mundos interiores, conexões ancestrais e a complexa relação entre o visível e o invisível. Inspiradas por práticas espirituais e devocionais, como as cerimônias Zar, suas obras abordam sobretudo a condição da mulher na sociedade. Na Bienal, destaca-se a obra Sem título (Zaar) (1973), que dialoga diretamente com o ritual Zar, uma forma de possessão e cura espiritual praticada por mulheres através de música, canto e dança em estado de transe. Dinner [Jantar] (2022) é uma peça emblemática do interesse de Ishag por rituais domésticos e espaços comunitários. A obra retrata cenas de intimidade entre figuras femininas reunidas ao redor de mesas, destacando que o ato de comer transcende o físico, e pode se tornar uma experiência psíquica e emocional compartilhada. Em People [Pessoas] (2022), a representação das figuras humanas afasta-se do realismo, aproximando-se da abstração e do simbolismo. Os indivíduos não são definidos por traços faciais ou expressões, mas por seus contornos e posturas. Envolvidos por uma forma esférica cercada de árvores, a obra pode ser lida como um compromisso da artista em retratar a alma coletiva, mais do que o eu individual. Faces [Rostos] (2017) aborda a identidade de maneira mais íntima, porém não convencional. Feita em tons cinzentos, a peça apresenta uma multiplicidade de máscaras ou vasos – rostos carregando histórias, espíritos e emoções que espelham as condições tensas e insuportáveis impostas às mulheres em sociedades patriarcais.

Faces [Rostos], 2017. Óleo sobre tela. 170 × 173 cm. Foto: Waleed Shah.

Dinner [Jantar], 2022. Óleo sobre tela. 199 × 339 cm.

Foto: Waleed Shah.

Guarding Angels [Anjos da guarda], 2015. Óleo sobre tela. 134 × 241 cm. Foto: Mohamed Noor Eldin.

Em Guarding Angels [Anjos da guarda] (2015), Ishag apresenta protetores espirituais não como figuras celestiais, mas como presenças etéreas entrelaçadas ao mundo terreno, representado por objetos domésticos como cadeiras e mesas. Esses guardiões parecem sem rosto e sem forma, sugerindo que seu poder reside na influência sutil e na força invisível. Inspirada em grande parte por contos populares narrados pelas mulheres de sua família, a obra propõe que elas, em especial, carregam o duplo fardo e a dádiva da guarda. Por fim, Two Figures in Two Balls [Duas figuras em duas esferas] (2016) pode ser interpretada como uma exploração de temas como dualidade e enclausuramento. Retratando duas figuras isoladas mas conectadas, a obra convida à introspecção. O uso de linhas suaves e cores mescladas cria uma sensação de atemporalidade, como se esses seres existissem em um estado eterno de meditação. Extensa mas não exaustiva, essa seleção revela a profunda sensibilidade de Kamala Ibrahim Ishag frente às dimensões espirituais da experiência humana, desafiando narrativas lineares ao abraçar o poder feminino e a interconexão entre os vivos, os mortos e o mundo natural.

Esta participação é apoiada por: Arab Fund for Arts and Culture

Billy Fowo

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Andrew Roberts

Em sua prática artística, Andrew Roberts trabalha com a materialidade do horror, em uma abordagem multidisciplinar: tão investigativa quanto poética, tão próxima da construção de mundos nos videogames quanto do campo tátil da escultura. Sua ideia de horror é influenciada tanto pelo complexo industrial de Hollywood e dos jogos eletrônicos quanto pelas narrativas vernaculares e sangrentas sobre a violência no norte do México (como as escritas no século 20 por Nelly Campobello) e pela estranha ficcionalização de grandiosos conflitos nacionais nas obras de Fernanda Melchor e Mariana Enríquez. Como explica o filósofo Eugene Thacker, os “demônios” exigem uma “estranha intimidade” que permanece conosco, que satura o sinal com ruído: a anti-mediação da hipercomunicação, que confunde a realidade, misturando o natural e o sobrenatural em nossa percepção do mundo. Para Roberts, isso se mescla ao que ele chama de “realismo espectral”, um interesse aguçado pelos aspectos do horror que se situam além da lógica estruturada da racionalidade humana. Nesse sentido, sua obra trata de substâncias extra-humanas, ou materialidades, cujo comportamento ultrapassa esses limiares. No vídeo, vemos três entidades espectrais, não exatamente fantasmas, que escolhem se manifestar em uma lanchonete, localizada em uma fronteira tão violenta quanto cotidiana. Um ponto de encontro conveniente, com cheiro de hambúrguer, onde famílias divididas, trabalhadores transfronteiriços e estudantes se reúnem. A aparência flutuante desses espectros evidencia sua ingovernabilidade, sua agência entrelaçada: eles assombram e são assombrados. Uma das entidades encarna uma escuridão profunda, pairando e se movendo, indo e vindo, tornando-se uma fronteira visual clara entre o conhecido e o desconhecido. Outra é feita de borracha, matéria-prima de brinquedos, uma parente distante do plástico e do petróleo,

elástica e resiliente, estranhamente maleável e de natureza descartável. A última personifica aquela luz vermelha familiar e, ainda assim, alarmante, tão comum em propagandas quanto nos indícios claros de que um derramamento de sangue se aproxima, como representado nos filmes de terror contemporâneos. A expografia feita para o vídeo replica o mobiliário fixo e utilitário das franquias de fast-food, mas também evoca arranjos carcerários, lembrando-nos daquela outra violência presente em zonas fronteiriças. Seus cantos arredondados também dialogam com as sessões espíritas da modernidade, onde os mortos são contactados e mediados, conjurando também os fantasmas do passado minimalista da arte.

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Haunted [Assombrado], 2025. Stills do vídeo. Animação digital 4K, cor, som; 21’. Cortesia do artista e Pequod Co., Cidade do México.

Alberto Pitta

Alberto Pitta desenvolve há mais de quatro décadas uma produção visual que transita entre os saberes e fazeres de culturas afro-brasileiras, a espiritualidade e a experimentação gráfica. O tecido, suporte primordial em sua obra, apresenta-se como uma plataforma de educação não hegemônica, criando conexões entre arte, história e experiência coletiva. Essa relação se inscreve em sua trajetória como um legado familiar. Filho de Mãe Santinha de Oyá – fundadora do Ilê Axé Oyá, no bairro de Pirajá, em Salvador, além de líder espiritual, educadora e bordadeira –, Pitta cresceu entre as práticas do candomblé, existencialmente artísticas.

Desde os anos 1980, sua atuação consolidou uma linguagem visual própria no Carnaval negro baiano, sublinhada pela criação de estampas e figurinos para blocos como Ilê Aiyê (Band’Aiyê), Olodum, Filhos de Gandhy, Oba Laiyê e o Afoxé Filhos do Congo. Em 1998, fundou o Cortejo Afro, expandindo sua pesquisa estética e reafirmando o têxtil como elemento central de sua prática artística. Um de seus traços mais característicos é o uso do branco sobre branco, embora o entrelaçamento de diversas cores e a sobreposição de camadas e padrões também se façam presentes em suas criações, produzindo ritmos visuais que evocam narrativas em uma esfera comunitária e simbólica.

Vista do ateliê de Alberto Pitta. Foto: Jeferson Lima.

Para além do Carnaval, sua produção borra os limites do design têxtil, fortalecido pelo método de estamparia por serigrafia, dialogando com o campo da arte contemporânea e desdobrando-se entre a pintura e as experimentações escultóricas. Com uma múltipla presença internacional, sua obra circula por diversas instituições de arte, estabelecendo conexões que ultrapassam fronteiras geográficas e conceituais. Seus tecidos, que transitam entre o rito e a arte da memória, fazem parte de um repertório visual que pode ser compreendido como afro-atlântico, no qual padrões, símbolos e gestos mantêm diálogos entre Brasis, Áfricas e suas diásporas.

Parte de um processo de trabalho que se dá no fazer compartilhado, em que a trama do tecido se entrelaça com a da comunidade que o veste, seja no ateliê do artista –espelhado no Pavilhão Ciccillo Matarazzo da 36ª Bienal de São Paulo –, nos blocos afro pelas ruas de Salvador ou nas galerias, os tecidos e as histórias de Pitta seguem narrando – vivos, em movimento, vestindo corpos e atravessando tempos.

Vistas do ateliê de Alberto Pitta. Foto: Jeferson Lima.

Índice de artistas

278 Adama Delphine Fawundu

80 Adjani Okpu-Egbe

280 Aislan Pankararu

118 Akinbode Akinbiyi

134 Alain Padeau

290 Alberto Pitta

84 Aline Baiana

110 Amina Agueznay

66 Ana Raylander Mártis dos Anjos

288 Andrew Roberts

194 Antonio Társis

266 Behjat Sadr

200 Berenice Olmedo

234 Bertina Lopes

166 Camille Turner

56 Carla Gueye

104 Cevdet Erek

238 Chaïbia Talal

116 Christopher Cozier

218 Cici Wu com Yuan Yuan

128 Cynthia Hawkins

246 Edival Ramosa

70 Emeka Ogboh

180 Ernest Cole

260 Ernest Mancoba

256 Farid Belkahia

254 Firelei Báez

74 Forensic Architecture/ Forensis

268 Forugh Farrokhzad

50 Frank Bowling

274 Frankétienne

44 Gê Viana

148 Gervane de Paula

252 Gōzō Yoshimasu

202 Hajra Waheed

172 Hamedine Kane

242 Hamid Zénati

156 Hao Jingban

276 Heitor dos Prazeres

178 Helena Uambembe

250 Hessie

272 Huguette Caland

264 I Gusti Ayu Kadek Murniasih (Murni)

248 Imran Mir

226 Isa Genzken

144 Joar Nango com a equipe de Girjegumpi

212 Josèfa Ntjam

160 Juliana dos Santos

170 Julianknxx

140 Kader Attia

286 Kamala Ibrahim Ishag

184 Kenzi Shiokava

222 Korakrit Arunanondchai

220 Laila Hida

138 Laure Prouvost

100 Leiko Ikemura

186 Leila Alaoui

92 Leo Asemota

176 Leonel Vásquez

154 Lidia Lisbôa

214 Lynn Hershman Leeson

48 Madame Zo

258 Madiha Umar

58 Malika Agueznay

108 Manauara Clandestina

68 Mansour Ciss Kanakassy

208 Mao Ishikawa

130 Márcia Falcão

236 Maria Auxiliadora

230 María Magdalena Campos-Pons

112 Marlene Almeida

224 Maxwell Alexandre

158 Meriem Bennani

182 Metta Pracrutti

210 Michele Ciacciofera

196 Ming Smith

72 Minia Biabiany

102 Moffat Takadiwa

244 Mohamed Melehi

262 Moisés Patrício

190 Myriam Omar Awadi

142 Myrlande Constant

46 Nádia Taquary

106 Nari Ward

206 Nguyễn Trinh Thi

82 Noor Abed

270 Nzante Spee

164 Olivier Marboeuf

90 Olu Oguibe

60 Oscar Murillo

98 Otobong Nkanga

122 Pélagie Gbaguidi

126 Pol Taburet

42 Precious Okoyomon

282 Raukura Turei

124 Raven Chacon, Iggor Cavalera e Laima Leyton

284 Rebeca Carapiá

216 Richianny Ratovo

76 Ruth Ige

162 Sadikou Oukpedjo

54 Sallisa Rosa

132 Sara Sejin Chang (Sara van der Heide)

174 Sérgio Soarez

52 Sertão Negro

150 Sharon Hayes

188 Shuvinai Ashoona

168 Simnikiwe Buhlungu

86 Song Dong

64 Suchitra Mattai

96 Tanka Fonta

240 Thania Petersen

78 Theo Eshetu

198 Théodore Diouf

88 Theresah Ankomah

152 Trương Công Tùng

114 Tuấn Andrew Nguyễn

146 Vilanismo

228 Werewere Liking

120 Wolfgang Tillmans

204 Zózimo Bulbul

Casa do Povo

324 Alexandre Paulikevitch e MEXA

322 Boxe Autônomo e Dorothée Munyaneza

320 Marcelo Evelin

Equipe conceitual

36ª Bienal de São Paulo

Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática

Curador geral

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung é curador, autor e biotecnologista. É diretor e curador geral do Haus der Kulturen der Welt (HKW), em Berlim, além de fundador e ex-diretor artístico do SAVVY Contemporary, na mesma cidade, e diretor artístico do sonsbeek, em Arnhem. É professor e chefe do corpo docente no programa de mestrado em estratégias espaciais da weißensee academy of art berlin. Entre suas obras publicadas estão An Ongoing-Offcoming Tale: Ruminations on Art, Culture, Politics and Us/ Others (2022), Pidginização como método curatorial e As artimanhas do cuidado (ambos republicados no Brasil em 2025).

Cocuradores

Alya Sebti é curadora de arte contemporânea e diretora da ifa-Galerie (Institut für Auslandsbeziehungen), em Berlim, onde criou a plataforma de pesquisa e exposições Untie to Tie – On Colonial Legacies in Contemporary Societies. Foi cocuradora da bienal europeia Manifesta, em Marselha (2020), curadora convidada da Biennale de Dakar (2018) e diretora artística da Marrakech Biennale (2014). Ela desenvolve pesquisas curatoriais por meio de programas de mentoria na residência artística ZK/U (Berlim) e no MACAAL (Marrakech).

Anna Roberta Goetz é curadora e escritora, especializada em estratégias artísticas que desafiam narrativas e estruturas sociais. Ocupou cargos de curadoria no Museum Marta Herford e no Museum für Moderne Kunst Frankfurt, além de ter sido curadora-assistente do Pavilhão Alemão na Biennale di Venezia (2013). Ela realizou a curadoria de exposições panorâmicas de Rodney McMillian, Cinthia Marcelle, Banu Cennetoğlu e Laure Prouvost, além de exposições coletivas como Long Gone, Still Here: Sound as Medium (Marta Herford, 2023) e Genealogies in the Middle East and Latin America (Sharjah Art Foundation, 2021). Em paralelo, lecionou em academias de arte internacionalmente.

Thiago de Paula Souza é curador e educador. Foi cocurador do 38º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2024), da mostra Some May Work as Symbols: Art Made in Brazil, 1950s-70s, no Raven Row (Londres, 2024), do Nomadic Program do Vleeshal Center for Contemporary Art (Middelburg, 2022-2023), da exposição While We Are Embattled, no Para Site (Hong Kong, 2022), e de Atos de revolta, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2022). Foi consultor curatorial da 58ª Carnegie

International (2021-2022), curou a primeira exposição individual de Tony Cokes no BAK (Utrecht, 2018-2019) e fez parte da equipe curatorial da 10ª Berlin Biennale for Contemporary Art (2018) e da 3ª Frestas – Trienal de Artes (São Paulo, 2020-2021).

Atualmente integra o comitê artístico da NESR Art Foundation, em Angola, e é doutorando no programa de artes da HDK Valand – University of Gothenburg.

Cocuradora at large

Keyna Eleison é curadora, pesquisadora e educadora em arte e cultura. Coordenou todos os equipamentos públicos da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde foi também coordenadora de ensino. Foi curadora da 10ª

Bienal Internacional de Arte SIART, na Bolívia (2018), curadora da 1ª Bienal das Amazônias (2023), diretora artística do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2020-2023) e diretora de pesquisa e conteúdo da Bienal das Amazônias.

Consultora de comunicação e estratégia

Henriette Gallus é estrategista cultural e de comunicação, além de editora. Depois de atuar como editora e agente literária a partir de 2005, em 2011 se tornou assessora de imprensa da dOCUMENTA (13) (2012) e, em 2014, diretora de comunicações da documenta 14 em Kassel e Atenas (2017). De 2018 a 2022, atuou como vice-diretora do festival de arte contemporânea steirischer herbst, em Graz, até se tornar vice-diretora

da Haus der Kulturen der Welt (HKW) em 2022, em Berlim. Prestou consultoria a diversas instituições culturais em todo o mundo, entre elas: sonsbeek 20-24, em Arnhem; Rencontres de Bamako, no Mali (2018 e 2022); o Pavilhão da Alemanha na 58ª La Biennale di Venezia (2019); Württembergischer Kunstverein, em Stuttgart (2021), e Castello di Rivoli – Museo d’Arte Contemporanea, em Turim (2017-2023).

Assistentes curatoriais

André Pitol é pesquisador de arte, curador e professor, com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). É docente da École Intuit Lab São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Escreveu ensaios para e-flux, The Brooklyn Rail, Photographies, Mídia Ninja e ZUM. Foi curador de Edival Ramosa – Nova construção totêmica (2024) e curador adjunto de A parábola do progresso (2022).

Leonardo Matsuhei é bacharel e licenciado em artes visuais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Desde 2009, desenvolve projetos na intersecção entre educação, programação pública e curadoria. Coordenou ações educativas nas exposições Gilberto Mendes 100 e Ars sonora – Hermeto Pascoal (Sesc SP, 2022-2024). Foi assistente de mediação e programas públicos do MASP (2016-2019) e colaborou no projeto Encontros Abertos da 31ª Bienal de São Paulo (2013-2014). Desde 2021, integra o coletivo e espaço cultural independente Bananal.

Autores

Aldones Nino é curador, filósofo e historiador da arte. Atua como curador do Collegium, em Arévalo, Espanha. Sua pesquisa investiga as relações entre arte, política e memória, com foco nas perspectivas decoloniais e na revisão crítica da historiografia da arte. É membro do Conselho Internacional de Museus (ICOM) e do Comitê Internacional para Educação e Ação Cultural (CECA).

Amanda Carneiro é curadora no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Integrou a equipe curatorial da 60ª La Biennale di Venezia (2024) e foi editora da revista Afterall. No MASP, organizou as exposições e os catálogos Serigrafistas queer (2024-2025), Abdias Nascimento (2022) e Sonia Gomes (2018), entre outras.

Ana Paula Lopes é graduada em arte: história, crítica e curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Publicou textos na revista Terremoto (México) e em Experiências negras (publicação digital do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo). Atualmente é assistente de curadoria na Pinacoteca de São Paulo.

Andrew Maerkle é escritor, editor e tradutor baseado em Tóquio. Atualmente, é diretor editorial da Art

Week Tokyo. De 2010 a 2024, foi editor adjunto da publicação online ART iT e, de 2006 a 2008, editor adjunto da revista ArtAsiaPacific. Publicou o livro de traduções Kishio Suga: Writings, vol. 2, 1980-1989 (2025).

Anna Schneider é diretora do DAS MINSK, em Potsdam, e membro fundadora do espólio de Hamid Zénati. Com formação em pensamento pós-colonial, sua prática curatorial dedica atenção especial às histórias socioculturais globais e a como elas influenciam a criação, a forma e o significado da expressão artística.

Ariana Nuala é pesquisadora e curadora, e discute poder, diáspora e impermanência com coletivos.

Mestranda em história da arte na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atua no Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, em São Paulo, e já trabalhou na Oficina Francisco Brennand, no Recife. Foi cocuradora do 38º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Arthur Gruson é escritor, pesquisador e tradutor cuja atuação abrange a arte contemporânea e o discurso cultural. Ele também é diretor da mor charpentier, galeria sediada em Paris e Bogotá e dedicada a práticas artísticas politicamente engajadas.

Billy Fowo é curador e escritor, com interesse em diversos campos e disciplinas, como o universo sonoro, a linguística e a literatura. Formou-se no Programa de Curadoria da De Appel, em Amsterdam (2023).

Atua na SAVVY Contemporary –The Laboratory of Form-Ideas, em Berlim.

Bruna Fernanda é pesquisadora, curadora e educadora. Graduada em história, é mestre em estudos brasileiros e doutoranda em estética e história da arte, todos pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, faz parte da equipe de gestão do Ateliê397, espaço independente de arte contemporânea em São Paulo, e do coletivo feminista Vozes Agudas.

Caio Bonifácio é artista, curador, professor e pesquisador. Foi professor de história da arte no Cursinho

Popular da Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores das Universidades de São Paulo (ACEPUSP) e editor da Revista Tonel (publicação independente de arte). Atualmente é curador e pesquisador no Ateliê397.

Cameron Ah Loo-Matamua atua com escrita, curadoria e educação. Atualmente cura projetos especiais na Auckland Art Gallery Toi o Tāmaki –onde cocurou a primeira edição da Trienal Contemporânea Aotearoa (2024) – e já ocupou cargos docentes e curatoriais na University of Auckland e na Auckland University of Technology.

Deliasofia Zacarias é assistente executiva do gabinete da diretoria e bolsista no Los Angeles County Museum of Art (LACMA), onde foi cocuradora da exposição Painting in the River of Angels: Judy Baca and The Great Wall (2023-2024).

Atualmente, integra o conselho da Arts Administrators of Color Network. É mestre em história da arte pela Arizona State University e bacharel em administração de empresas e em arte pela Trinity University.

Érica Burini é historiadora da arte, pesquisadora e curadora. Formada em artes visuais e mestre em história da arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente é curadora do Ateliê397, espaço independente de arte contemporânea.

Gaby Cepeda é escritora, crítica de arte e curadora, e seu trabalho lida com o contra-humanismo, a tecnologia, o feminismo, o aceleracionismo e o trabalho artístico.

Guilherme Fernandes é artista visual, educador e pesquisador. Mestrando em história da arte na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com pesquisa acerca da vida e obra do artista Manuel Messias dos Santos (1945-2001), ele se interessa pela história da gravura, com enfoque no contexto brasileiro da segunda metade do século 20, a partir de uma lente descolonial e afrodiaspórica.

Hanayrá Negreiros é curadora de moda e doutoranda em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Seus trabalhos

entrelaçam moda e artes visuais, explorando abordagens transnacionais e histórias do vestir da diáspora africana no Brasil. Foi curadora-adjunta de moda no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e co-curadora da State of Fashion Biennale 2024 e da exposição Artistas do vestir: uma costura dos afetos, no Itaú Cultural (2024-2025).

Hung Duong escreve de forma independente. Sua crítica à arte contemporânea do Sudeste Asiático se baseia em trocas com artistas da região sobre os papéis versáteis da arte na sociedade. Mantém seu próprio site, sea-through, como um repositório de seus pensamentos em expansão, ao mesmo tempo que contribui ativamente para Artforum, Frieze, ArtAsiaPacific e outras plataformas.

Lara Koseff é art liaison, escritora e profissional criativa, radicada em Joanesburgo. Junto com Londi Modiko e Nthabiseng Mokoena, é diretora fundadora da Independent Network for Contemporary Culture & Art (INCCA), uma organização sem fins lucrativos que apoia práticas culturais independentes.

Lucas Goulart é curador e pesquisador. Bacharel em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), investiga a inextricabilidade entre modernidade e barbárie, com ênfase nos projetos desenvolvimentistas brasileiros e na correlação entre espaço urbano e subjetividade. Fez curadoria e escreveu textos críticos para espaços como Ateliê397 e Museu de Arte Sacra de São Paulo.

Luíza Marcolino é curadora e artista visual. Graduada em artes visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atualmente desenvolve o projeto “A curadoria como lugar de artista”, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Em 2021, realizou a convocatória internacional de arte postal Re-volver, pesquisa premiada pelo Ministério do Turismo e pelo Governo do Estado de Minas Gerais, além de exposição virtual e seminário internacional subsequente, sediado pelo Centro Cultural UFMG.

Margarita Lila Rosa é historiadora pública, curadora e escritora especializada em história do Atlântico Negro e arte contemporânea. Tem doutorado pela Universidade de Princeton (2021) e pós-doutorado pela Universidade Stanford (2021-2023). Em 2024, integrou o programa Arts Leadership Praxis, do Studio Museum in Harlem.

Mario A Llanos é codiretor da Radio Huracán e integra o coletivo Oficina de Situaciones. Seu trabalho explora as redes dentro e fora do Caribe, revelando conexões entre as noções de terra, mar, humano e não humano que nos entrelaçam. Estabelece um vínculo entre processos históricos e paisagens por meio da metáfora da escrita e da inscrição do conhecimento na água.

Marissa Del Toro é diretora assistente de exposições e programas na NXTHVN, em New Haven. Desde 2021, trabalha com o Museums Moving Forward, e já atuou no Phoenix Art Museum; no Santa Barbara Museum of Art; no Getty Research Institute, em

Los Angeles; e na UTSA Art Gallery, em San Antonio.

Mateus Nunes é crítico de arte, curador e pesquisador. Doutor em história da arte pela Universidade de Lisboa, concluiu pós-doutorado em estudos amazônicos na Universidad San Francisco de Quito e na Getty Foundation. Desenvolve pós-doutorado em história da arte e da arquitetura na Universidade de São Paulo (USP), onde é professor convidado. Publica frequentemente textos sobre arte em revistas como Artforum, ArtReview, Frieze, Flash Art e seLecT_ceLeste.

Meriem Berrada é diretora artística, curadora e consultora. Teve um papel fundamental na criação do museu MACAAL, no Marrocos, e contribui para debates globais sobre arte contemporânea africana e árabe. Sua prática curatorial explora criticamente as interseções entre arte e artesanato nas narrativas contemporâneas. Foi cocuradora dos Rencontres de Bamako (2021) e dirigiu a Tasweer Photography Biennale, no Catar (2025).

Morad Montazami é historiador da arte, editor e curador. Após atuar na Tate Modern (Londres) entre 2014 e 2019 como curador para o Oriente Médio e o Norte da África, desenvolveu a plataforma independente de edição e curadoria Zamân Books & Curating, com o objetivo de explorar as modernidades árabes, africanas e asiáticas.

Naiomy Guerrero é curadora e historiadora da arte. Atua como especialista

em estudos latinx no Smithsonian National Museum of African American History and Culture, em Washington, D.C., e é especializada em arte e cultura material modernas e contemporâneas de pessoas negras latinas. Atualmente, é doutoranda em história da arte no Graduate Center da City University of New York (CUNY). Lecionou cursos de história da arte no City College of New York e é bolsista da Posse Foundation no Graduate Center da CUNY.

Nathalia Grilo realiza uma prática multidimensional que intersecciona arte, música e estudos negros, orientada pela perspectiva da imaginação radical negra. Atua como curadora conectando diferentes linguagens artísticas e intelectuais para explorar questões como memória, resistência e espiritualidade.

Nathan Pōhio é artista e curador, atuando a partir do mātauranga Māori (sistemas de conhecimento Māori). De 2002 a 2021, trabalhou na Christchurch Art Gallery Te Puna o Waiwhetū, principalmente como designer de exposições e, a partir de 2015, como curador assistente. Seu trabalho integrou a documenta 14 (2017), em Atenas e Kassel. Em 2022, assumiu o cargo de curador sênior de arte māori na Auckland Art Gallery Toi o Tāmaki.

Nkule Mabaso é diretora da Fotogalleriet, em Oslo, uma kunsthalle de fotografia na região nórdica. É pesquisadora de doutorado na HDK-Valand Academy of Art and Design, da Universidade de

Gotemburgo, e diretora-fundadora do Natal Collective, uma produtora independente dedicada à pesquisa e à apresentação de arte e política contemporâneas de origem africana.

Raquel Barreto é curadora-chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e historiadora. Foi cocuradora das exposições Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros (2021-2023), Heitor dos Prazeres é meu nome (2023), Lélia em nós: festas populares e amefricanidade (2024), Uma história da arte brasileira (2024) e Formas das águas (2025). Em 2024, foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria de artes visuais.

Renato Menezes é historiador da arte e curador. Desde 2022 é curador da Pinacoteca de São Paulo, onde realizou diversas exposições, entre as quais se destacam J. Cunha: corpo tropical (2024), Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana (2024) e Tecendo a manhã: vida moderna e experiência noturna na arte do Brasil (2025).

Rita Vênus é curadora na Oficina Francisco Brennand, no Recife. Sua prática investiga as tramas oraculares nas imagens diurnas e noturnas, sob uma perspectiva cosmológica. Foi curadora da exposição Núcleo Saturno, da residência artística Criação na Olaria, do festival Janela Internacional de Cinema do Recife e do FestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.

Roberta Tenconi é curadora-chefe da Pirelli HangarBicocca, em Milão, onde organizou exposições de artistas como Saodat Ismailova, Petrit Halilaj, Bruce Nauman, Ann Veronica Janssens, Laure Prouvost e Nari Ward, entre outros. Colaborou com instituições ao redor do mundo, incluindo a Gwangju Biennale, a Manifesta e a Fondazione Nicola Trussardi. Integrou as equipes curatoriais da 55ª La Biennale di Venezia e da 4ª Berlin Biennale for Contemporary Art. Atualmente, está organizando uma exposição individual de Nan Goldin.

Starasea Nidiala Camara é curadora e pesquisadora, e sua prática se concentra na produção cultural e artística negras nas Américas. Atua como assistente de curadoria e de engajamento público no Institute for Studies on Latin American Art (ISLAA), em Nova York.

Wes Chagas é curador, pesquisador e podcaster. Formado em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pesquisa temas voltados a sexualidade/gênero no âmbito das artes visuais. É host e cocriador do podcast O conceito.

A expografia da 36ª Bienal de São Paulo

Diagrama cromático espacial do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. A imagem apresenta as cores dos eixos cruzados de orientação vertical e horizontal, que se materializam no espaço expositivo a partir de tecidos e painéis de madeira. Criado por Santiago Rid.

O projeto arquitetônico e expositivo é assinado por Gisele de Paula e Tiago Guimarães. “Inspirado pela fluidez dos rios e pela imagem do estuário presente na proposta curatorial, o espaço expositivo está sendo desenhado como um percurso sensorial, trazendo margens sinuosas que convidam à escuta, ao encontro e à pausa. A proposta valoriza o vazio como força e o espaço como paisagem em constante movimento. Como viandantes, não repete o caminho, mas se reinventa ao seguir num rito contínuo de transformação e presença”, afirmam os arquitetos.

A expografia da 36ª Bienal de São Paulo evoca a natureza fluida e transformadora dos rios. Como um corpo em movimento, que atravessa, contorna e reinventa o espaço, a exposição se constrói em diálogo com a ideia de travessia. Formas orgânicas e estruturas leves compõem uma paisagem sensorial. Mais do que delimitar percursos, a expografia propõe modos de estar e de se mover, entendendo o fluxo como forma de existência. O projeto contou também com consultoria inicial de arquitetura da Agence Clémence Farrell.

Invocações

Como parte essencial de sua proposta curatorial, a 36ª Bienal de São Paulo realizou as Invocações: uma série de encontros com poesia, música, performance e debates que reverberou os conceitos centrais da exposição, investigando e aprofundando noções de humanidade em diferentes geografias. Fruto de colaborações com diversas instituições culturais, essas programações antecederam a abertura da mostra no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, em São Paulo. Além da própria mostra, esses encontros geraram dois importantes desdobramentos voltados ao público: grande parte de seus conteúdos foi incorporada às publicações educativas da Bienal, organizadas em quatro volumes, e os registros em vídeo dos eventos estão disponíveis no canal da Bienal de São Paulo no YouTube, assim como em um espaço dedicado dentro da própria exposição.

Invocação #1

Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa Marrakech, 14-15 nov. 2024

A primeira Invocação trouxe como temas a circularidade e a precariedade da respiração, a música Gnawa como modo de ser, as culturas sufis e a escuta como prática de coexistência, assim como a criação de lugares e espaços.

14 nov. 2024

LE 18

11–12h

Introdução por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, leitura de poesia por Alya Sebti, seguida de sessão coletiva de escuta de poesia e de Maalem guembri

12–13h

Qui est Ahmed Ben Draoui? Leitura performática sobre ficção e representação da origem por Laila Hida com Mourad Belouadi

15–16h30

Palestra de Ghassan El Hakim sobre sua pesquisa contextualizando a prática do mestre Gnawa Maalem Abdellah El Gourd

17–18h

Palestra-performance de Simnikiwe Buhlungu sobre síntese, entonação e looping

18h30–19h

Introdução e exibição do filme La terre en transe, de Taoufiq Izzediou

19h30–21h

Gnawa novamente! Performance de Ghassan El Hakim com mestre Gnawa Maalem Abdellah El Gourd, acompanhados pelo multi-instrumentista Mourad Belouadi

LE 18

10–11h

Leitura coletiva de poemas de Abdellatif Laâbi com Kenza Sefrioui

11–12h

Palestra-performance de Kenza Sefrioui sobre o legado de Souffles

12–13h

Palestra de Fatima-Zahra Lakrissa sobre a revista Maghreb Art

15–16h30

Sessão de escuta por Leila Bencharnia

Fondation Dar Bellarj

17h30–18h30

Fala inaugural de Maha Elmadi e exibição de vídeo de Laila Hida

18h30–19h30

Hadra, performance final com Lalla Khala e as Gifted Mothers of Dar Bellarj

Invocação #2

Bigidi mè pa tonbé! Balança mas não cai! Guadalupe, 5-7 dez. 2024

O conceito central desta Invocação partiu do bigidi, prática fundamentada na dança guadalupense Gwoka. Baseada na improvisação, essa dança alterna momentos de ruptura e continuidade em um constante esforço para manter o equilíbrio.

5 dez. 2024

Lafabri’k

18h–19h

Introdução e boas-vindas por Léna Blou, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e Anna Roberta Goetz

19h–19h30

Performance de dança Gwoka com Raymonde Torin, baseada nas sete danças fundamentais Gwoka

19h30–20h

Performance musical de Fritz Naffer e a banda de Gwoka Foubap

6 dez. 2024

Lafabri’k

10h–11h

“O bigidi, um saber encarnado no ambiente do Lawonn” –

Conferência e oficina de dança por Léna Blou sobre a prática de “Bigidi’art”

11h30–12h30

“Impactos de mudanças climáticas, adaptação e resiliência no Caribe: uma narrativa sobre equilíbrio, harmonia e resiliência do sistema terrestre” – Palestra de Michelle Mycoo

14h30–15h30

“Dans le ventre des oiseaux, dans la bouche des femmes sauvages: une archive déparlante” – Palestra-performance de Olivier Marboeuf

16h–17h

AN SÉ…! Batalha de poesia e instalação visual de Dory

Sélèsprika e Anaïs Verspan

7 dez. 2024

Lafabri’k

10h30–11h30

jwen, sanblé, kontré, uma proposta de performance por Yane Mareine, Minia Biabiany e Santiago Quintana

12h–13h

“Blip e Pi tak: verbos humanos do improvável” – Palestra de Tiéno Muntu (Étienne Jean-Baptiste)

15h–16h

“Mapeando fugas coreográficas: escrita arquipelágica em dança” – Palestra-performance de Lazaro Benitez

16h30–18h

Kalanje, performance de Geordy Zodidat Alexis

19h30–21h

Swaré Lewoz com a banda de Gwoka Foubap

Invocação #3

Mawali–Taqsim: Improvisação como espaço e tecnologia da humanidade

Zanzibar, 11-13 fev. 2025

A Invocação em Zanzibar destacou as dimensões filosóficas e artísticas do taarab, um gênero musical que simboliza a hibridez cultural da ilha e ressoa como um meio profundo de expressão, sentimento e resiliência. A improvisação, elemento fundamental da música taarab, oferece uma metáfora poderosa para a adaptabilidade e a interconexão humanas.

11 fev. 2025

Maru Maru Hotel

19–19h45

Apresentação e boas-vindas por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, Khamis Muhamed (DCMA) e Bernard Ntahondi 20h20–22h

Performance de Siti Muharam

12 fev. 2025

Golden Tulip Stonetown Boutique

10–10h45

Palestra de Thabit Omar Kiringe, responsável pela transcrição da música tradicional taarab para notação no DCMA

11–11h45

Palestra de Rukia Ramadhani, membro de um dos mais antigos grupos de taarab desde 1905

14–15h

“Taarab: Uma experiência de audiência no coração de Zanzibar” – Apresentação de Mohamed Ameir Muombwa

16–18h15

Palestra de Thania Petersen

19–19h45

Performance musical e palestra com a banda DCMA Young Stars

13 fev. 2025

Golden Tulip Stonetown Boutique

10–11h

Palestra de Aisha Bakary (Hijab DJ), explorando sua pesquisa sobre música e identidade

11h15–12h15

Palestra de Tryphon Evarist, diretor artístico do DCMA e premiado artista taarab

16h–16h45

Leitura de poesia por Mohamed Ilyas

17–17h45

Palestra de Bi Mariam Hamdan

19–20h

DJ set por Aisha Bakary (Hijab DJ)

Maru Maru Hotel

20h15–21h15

Performance musical da Uwaridi Female Band

Invocação #4

Bukimi no Tani ( 不気味の谷): O vale da estranheza –A afetividade do humanoide Tóquio, 12-14 abr. 2025

Inspirada no conceito do “vale da estranheza” proposto pelo roboticista japonês Masahiro Mori em 1970, a Invocação refletiu sobre as ambiguidades do humano diante da tecnologia e as questões que emergem na intersecção entre arte, inteligência artificial e corporeidade.

12 abr. 2025

The 5th Floor

16h–20h

Exibição de filmes: Hikaru Fujii, Theresa Hak Kyung Cha, Tourmaline e Yuki Iiyama

16h30–17h

Fala de abertura por Andrew Maerkle, Kanako Sugiyama, Keyna Eleison, Thiago de Paula Souza e Tomoya Iwata

17h–17h30

Leitura de poesia por Sakisaka Kujira

17h30–19h30

触手の約束 �� Tentacle Cross: Sessão de transmissão de rádio por Multiple Spirits (Mai Endo e Mika Maruyama), com MadokaShitone, Marina Lisa Komiya e Shiori Watanabe

13 abr. 2025

Sogetsu Kaikan

11–11h30

Fala de abertura de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung

11h30–12h10

Performance de poesia por Gōzō Yoshimasu e Marylya

12h10–12h30

Sessão de escuta de Rain Dreamed by Sound: Homage to Theresa Hak Kyung Cha, de Cecilia Vicuña

12h40–13h25

“Of Stone and Sand (parables one and two)” – Palestra-performance de You Nakai com Moe Tomita

14h30–14h45

Intervenção de Multiple Spirits

14h45–15h45

Conversa entre Bidou Yamaguchi, Shiori Watanabe e Yukie

Kamiya sobre nô, tecnologias e afetividades

15h50–16h05

Leitura de poesia experimental por Yūki Nagae sobre Conceição Evaristo

16h20–17h20

Oficina de alimentos por Asako Iwama

16h35–17h20

Intervenção de Multiple Spirits

17h25–17h55

Palestra de Hiroshi Egaitsu sobre hip hop no Japão

18h–18h40

Performances de rap por Namichie, Danny Jin e SRCFLP

19h–20h

Iruma River, apresentação de nô contemporâneo por Shiori

Watanabe

The 5th Floor

13h–20h

Exibição de filmes: Hikaru Fujii, Theresa Hak Kyung Cha, Tourmaline e Yuki Iiyama

21 KOMCEE West Lecture Hall, The University of Tokyo, campus Komaba (organizado em parceria com ACUT)

16h–16h15

Fala de abertura por Andrew Maerkle e Kenji Kajiya, diretor do Art Center, The University of Tokyo

16h15–16h30

Leitura de poesia por Takako Arai

16h30–17h15

Conversa entre Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e T-Michael sobre tecnologias de design, diálogos transgeográficos e inteligência emocional

17h25–18h25

Mesa-redonda com Hiroko Kamide, Takashi Ikegami, Yuko Hasegawa e Zai Nomura sobre robótica, mente e arte

18h30–18h45

Leitura de poesia por Natsumi Aoyagi

18h45–20h

Palestra de Tavia Nyong’o e conversa com o público sobre o vale da estranheza e o ciborgue deprimido

The 5th Floor

13h–20h

Exibição de filmes: Hikaru Fujii, Theresa Hak Kyung Cha, Tourmaline e Yuki Iiyam

Afluente: Ensaio geral Casa do Povo

De muitas formas, o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB) é um teatro subterrâneo. Tendo funcionado dos anos 1960 até o final da década de 1990, ele se escondia no subsolo da Casa do Povo, um refúgio clandestino para imigrantes e ativistas judeus, uma fortaleza de resistência durante a ditadura brasileira, um centro de performance experimental e um caldeirão das revoluções artísticas dos decênios de 1960 e 1970. Sua história é rica em teatro político e popular, coral e formas experimentais que sempre desafiaram os limites da performance, entre o amador e o profissional. Depois de uma inundação em 2000, o teatro ficou em silêncio por anos, e suas histórias ficaram submersas.

Ensaio geral é um programa de performance dentro da 36ª Bienal de São Paulo, desenvolvido e enraizado nesse mesmo espaço. O teatro não é apenas uma moldura, mas uma proposição: um convite para questionar e reimaginar o que o teatro pode ser, ensaiando-o em escala real, daí o nome do programa. Reabrir o TAIB não é só um ato de reivindicar o espaço, mas de reacender a pergunta: o que é o teatro e o que ele pode fazer?

Abrigando o legado da Casa do Povo, Ensaio geral se concentra em práticas muitas vezes

excluídas das histórias canônicas do teatro e dos palcos institucionais. O programa mergulha em formas parateatrais, momentos em que o teatro se funde com a performatividade de desfiles, eventos esportivos e a energia subversiva do cabaré. Os artistas convidados trazem suas próprias explorações dessas práticas híbridas.

Cada gesto no programa é concebido como colaboração entre artistas estrangeiros e iniciativas locais, fomentando uma dramaturgia porosa e em evolução. A metáfora do estuário, onde mar e rio se encontram, guia esse retorno. Oficinas e encontros compartilhados com a comunidade permitem que práticas emerjam à superfície, abrindo espaço para novas conexões e trocas. O TAIB se torna um terreno onde práticas, comunidades e temporalidades convergem. Um espaço onde o foco não está apenas no resultado, mas no processo vivo e contínuo da criação. Sempre foi um lugar onde tempo, história e comunidade se encontraram. Aqui, o que passou e o que está por vir se juntam novamente em um momento coletivo. Ensaio geral oferece um espaço para reabrir o teatro, não com formas já escritas em sua história, mas com aquelas que ficaram de fora de seu livro. É a inauguração de um teatro que ainda está por vir.

Benjamin Seroussi é curador, editor e gestor cultural em São Paulo. Atua como diretor artístico da Casa do Povo, um espaço autônomo de arte judaico-brasileiro.

Daniel Blanga Gubbay é curador de artes performativas e escritor. Desde 2018 integra a direção artística do Kunstenfestivaldesarts em Bruxelas.

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Ato I com Marcelo Evelin

O ritmo começa baixo. Um toque na pele, um murmúrio de atrito, depois outro e mais outro. Aos poucos, surge um pulso coletivo sincopado, insistente, impossível de ignorar. Nas mãos de Marcelo Evelin, a batucada não é apenas ritmo. É um encontro, uma convocação, um chamado do corpo que se recusa ao silêncio. Tudo começa na escuridão do TAIB, o teatro subterrâneo da Casa do Povo, suas paredes ainda impregnadas de ecos passados, antes de transbordar para fora em um movimento ao mesmo tempo coreográfico e político. Esse ato inaugural abre o programa da 36ª Bienal de São Paulo na Casa do Povo e reabre o TAIB com um gesto nada contido.

Natural de Teresina, Marcelo Evelin é um dos coreógrafos brasileiros com maior ressonância internacional. Seu trabalho entrelaça performance, ativismo e prática coletiva, partindo do corpo como território de inscrição social e resistência. Em Batucada, criada em 2014 e apresentada em diversos países, Evelin não propõe uma peça fixa, mas uma experiência viva: uma acumulação de ritmos, presenças e gestos que convergem para a desobediência.

Batucada, 2014. Registro do processo de criação do espetáculo na Casa do Povo, São Paulo. Foto: Sergio Caddah.

Não há roteiro nem hierarquia. Batucada é uma partitura porosa, reativada a cada vez por cinquenta participantes locais. Os tambores, às vezes reais, às vezes simulados por mãos, pés, corpos, tornam-se armas de alegria e recusa. A performance cresce não pelo espetáculo, mas por contágio, convidando o público a ouvir não só com os ouvidos, mas com a respiração, com a proximidade do outro. O que começa como um ajuntamento de batidas na escuridão do teatro logo irrompe ao ar livre. Batucada rejeita o teatro como enclausuramento; a obra o propõe não como refúgio do mundo, mas como sua câmara de ressonância. A cidade não fica do outro lado da porta – é a continuação da performance, seu horizonte necessário. Embora Evelin tenha realizado oficinas na Casa do Povo durante o processo de criação de Batucada há mais de uma década, a peça nunca havia sido apresentada em São Paulo até agora. Sua chegada é tanto retorno quanto ruptura. Inaugurar o programa desta Bienal com Batucada é um compromisso. Uma recusa a começar em silêncio. Nesse encontro entre Marcelo Evelin, a Casa do Povo e os corpos e ritmos de São Paulo, Batucada deixa de ser apenas uma performance para se tornar um recomeço.

Benjamin Seroussi e Daniel Blanga Gubbay Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Ato II com Boxe Autônomo e Dorothée Munyaneza

O boxe sempre foi mais do que punhos. Nas mãos de Dorothée Munyaneza e do Boxe Autônomo, ele se torna escuta, linguagem para o não dito, modo de estar junto na tensão e no cuidado. Essa noite compartilhada coloca em diálogo duas práticas distintas, mas sintonizadas – uma nascida da poética diaspórica dos palcos, outra da pedagogia cotidiana da Casa do Povo. No centro está Version(s) [Versõe(s)] (2025), obra da artista ruandesa-britânica Dorothée Munyaneza, criada em conversa com Christian Nka, ex-pugilista dos subúrbios de Marselha, e o músico Ben LaMar Gay, de Chicago. Entre retrato e invocação, a peça navega pelo espaço carregado em meio a sobrevivência e transmissão. No ringue, em movimento, Munyaneza busca o que a história não registrou: gestos passados em silêncio, saberes guardados na memória muscular, as contradições da masculinidade forjada sob pressão. A luta não é encenada – é desmontada, ressignificada, acolhida.

Version(s) [Versão(ões)], 2025. Registros da residência criativa na Maison de la Danse de Lyon. Foto: Maya Mihindou.

Se em Version(s) o ringue vira palco, na Casa do Povo ocorreu o inverso. Desde 2016, o Boxe Autônomo transformou o centro cultural em academia antifascista. Nascido do desejo de resgatar o boxe do machismo e da institucionalização, o grupo surgiu em aulas itinerantes por ocupações e favelas até se tornar parte viva da arquitetura da Casa do Povo, com treinos diários que se mesclam harmoniosamente ao ritmo do prédio, ecoando sua história de pedagogia radical e prática coletiva. O ringue vira espaço democrático: aberto, poroso e autogerido, onde corpos renegociam seu lugar.

O encontro com Munyaneza não busca fundir essas práticas, mas colocá-las lado a lado para observar o que ressoa no silêncio compartilhado antes do movimento, na respiração após o contato. Tudo se desdobrará em alguns dias de oficina e em duas noites em que Version(s) será apresentada em montagem especial, contaminada pelo Boxe Autônomo e seguida de diálogo coletivo. O boxe, tão associado à dominação, transforma-se em outra coisa: território de relação, ruptura e reparo. Entre os subúrbios de Marselha e o bairro do Bom Retiro em São Paulo, entre arte e prática cotidiana, entre história pessoal e reinvenção coletiva.

Benjamin Seroussi e Daniel Blanga Gubbay

Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

Boxe Autônomo. Foto: Pérola Dutra.
Foto: Gustavo Moita.

Ato III com Alexandre Paulikevitch e MEXA

Um ombro gira, deliberado; um olhar prolongado, depois rompido. O cabaré não começa com fanfarras, mas com uma mudança de atenção: para o corpo, seus códigos, sua recusa em se manter na linha. Com frequência menosprezado como forma menor, o cabaré historicamente se tornou território teatral da dissidência, da exploração de gênero e do que não podia ser dito de outro modo. Na Casa do Povo, o cabaré carrega sua própria linhagem, enraizada não só na história do teatro político da casa, mas também nas tradições da diáspora judaica, em que a sátira, o canto e o palco se tornaram formas de sobrevivência e crítica. Nesse encontro singular, Alexandre Paulikevitch e MEXA trazem seu trabalho contemporâneo sobre o cabaré, mantendo a energia dessa forma não como sedução, mas como inquietação.

Paulikevitch, nascido e radicado em Beirute, é um dos poucos artistas homens que trabalham com a tradição do baladi, frequentemente reduzido pelo olhar colonial à “dança do ventre”, fazendo disso um ato de reclamação política. Sua dança é lenta, sinuosa, atenta ao olhar que tenta fixá-la. Por meio de quadris, respiração e repetição, ele desfaz as camadas de orientalismo e homofobia que historicamente tentaram disciplinar sua forma. Seu trabalho abre espaço para a suavi-

Baladi ya wad, 2015. Registros da performance de dança em estilo cabaré. Foto: Tarek Moukadem.
Elghaa, 2013. Registros da performance de dança. Foto: Tanya Traboulsi.

dade como estratégia, a sensualidade como resistência e a ambiguidade como verdade. Assistir a suas performances é perceber o quão profundo é o arquivo do corpo e quanto precisa ser dançado para fora dele.

Nascido das ruas e abrigos de São Paulo, MEXA é um coletivo forjado na urgência. Investigando a criação de ficções a partir de identidades próprias, o grupo composto majoritariamente de pessoas trans e queer foi moldado pela negligência e violência do Estado brasileiro. MEXA cria formas teatrais, na Casa do Povo e em turnês internacionais. Cantando, fazendo playback, encenando, criam reelaborações barulhentas e indisciplinadas de mitos pessoais e coletivos. Neste projeto concebido para a 36ª Bienal de São Paulo, fruto de residência compartilhada, Paulikevitch e MEXA apresentam duas noites de práticas e narrativas entrelaçadas: corpos que se afastam ou insistem em ser vistos; identidades que se transformam em coreografias, improvisadas, relacionais, com a consciência de que o teatro deve permanecer inacabado, poroso ao desejo e ao ruído do presente. Juntos, ressignificam o cabaré como forma nascida à margem das instituições, sempre excessiva, queer e barulhenta demais. Com eles, o cabaré se torna o que sempre ameaçou ser: um ensaio para outro modo de estar juntos.

Benjamin Seroussi e Daniel Blanga Gubbay Traduzido do inglês por Sylvia Monasterios

A última ceia, 2024. Fotografia digital. Foto: Laysa Elias.
Poperópera transatlântica, 2023. Performance, 90’. Foto: Marcelo Mudou.

Afluente: Stream of Images / Imaginaries [Fluxo

de imagens / Imaginários]

La Cinémathèque Afrique

O conceito da 36ª Bienal de São Paulo propõe pensar e perceber o mundo a partir do ponto de vista e do prisma do Brasil – suas histórias, paisagens, filosofias, mitologias e complexidades. O Brasil, como construção ficcional e simbólica, emerge como uma confluência de muitos mundos e suas tangentes. O espaço físico e filosófico do estuário é adotado como metáfora para esta edição da Bienal, evocando uma condição cultural moldada por encontros, negociações e trocas entre diversas zonas de influência. Esses processos deram origem a técnicas e temas que transcendem noções de etnia e nacionalidade.

No contexto da Saison France-Brésil 2025 e em colaboração com a Cinémathèque Afrique, Stream of Images / Imaginaries [Fluxo de imagens / Imaginários] foca na história compartilhada entre o Brasil, o Caribe e a África, e em como essa esfera transcontinental de influência mútua continua a reverberar nas práticas culturais e nos imaginários das comunidades dessas regiões até os dias de hoje. Um comitê de seleção composto de seis especialistas em práticas de imagem em

movimento no Brasil, no Caribe e nas regiões norte e oeste da África – cada um com sua especialidade, como narrativas panafricanas, cinema de arquivo ou vozes queer – desenvolveu de forma coletiva um programa de filmes que coloca obras contemporâneas e históricas em diálogo, estruturado em quatro capítulos: Território e soberania, O que resta de nós, Corpos em movimento: som, luta e espaço social e Era uma vez no futuro. Os filmes destacam a relação entre as pessoas e o território, exploram como fragmentos de histórias e memórias persistem ao longo das gerações e se manifestam em gestos e rituais cotidianos, e mostram como o corpo se torna tanto linguagem quanto campo de batalha. Os quatro programas temáticos serão apresentados no auditório do Pavilhão alternadamente aos domingos e, uma vez por mês, uma das sessões será acompanhada por uma mesa-redonda com membros do comitê de seleção e alguns dos respectivos cineastas. Em paralelo à apresentação na Bienal de São Paulo e no âmbito da Saison France-Brésil 2025, o programa de filmes será também exibido na La Friche la Belle de Mai (Marselha), e posteriormente seguirá para diversos locais no continente africano e no Caribe. Nessas localidades, será apresentado em formato expandido, com conversas envolvendo artistas participantes e representantes do comitê de seleção.

Comitê de seleção: Aude Christel Mgba, Débora Butruce, Elisabeth Gustave, Heitor Augusto, Jihan El-Tahri e June Givanni.

Stream of Images / Imaginaries conta com o apoio do Ministério das Relações Exteriores / Instituto Guimarães Rosa, da Embaixada da França no Brasil e do Institut français, como parte da Saison France-Brésil.

Aparições

Com Aparições, a 36ª Bienal de São Paulo apresenta um novo formato que é ao mesmo tempo digital e site-specific, expandindo ainda mais seu alcance para além dos limites espaciais e temporais da exposição principal no Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Em colaboração com a WAVA – uma plataforma sem fins lucrativos de exposições em realidade aumentada –, obras exibidas no Brasil serão reinventadas como duplos digitais, extensões ou ecos, e aparecerão em locais selecionados ao redor do mundo. Os pontos geográficos, escolhidos pelos artistas e pela equipe curatorial, ancoram as obras em contextos específicos, permitindo que o público local interaja com os trabalhos por meio do aplicativo WAVA, mesclando conteúdo virtual com espaços reais. Embora esse formato híbrido abra novas possibilidades de acessibilidade, participação e ressonância local, ele também convida à reflexão sobre a natureza em transformação da conectividade digital e sobre os limites cada vez mais tênues entre o virtual e o real nos espaços públicos do cotidiano.

Ben Livne Weitzman é curador e escritor radicado em Frankfurt. Ele é CEO e cofundador da WAVA, curador do programa de residência artística Glenkeen Garden, da Crespo Foundation, em West Cork, e editor-at-large da PASSE-AVANT, revista online dedicada à arte contemporânea.

Fundação Bienal de São Paulo

Fundador

Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898-1977 · presidente perpétuo

Conselho de administração

Eduardo Saron · presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente

Membros vitalícios

Adolpho Leirner

Beno Suchodolski

Carlos Francisco Bandeira Lins

Cesar Giobbi

Elizabeth Machado

Jens Olesen

Julio Landmann

Marcos Arbaitman

Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa

Pedro Aranha Corrêa do Lago

Pedro Paulo de Sena Madureira

Roberto Muylaert

Rubens José Mattos Cunha Lima

Membros

Adrienne Senna Jobim

Alberto Emmanuel Whitaker

Alfredo Egydio Setubal

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires

Angelo Andrea Matarazzo

Beatriz Yunes Guarita

Camila Appel

Carlos Alberto Frederico

Carlos Augusto Calil

Carlos Jereissati

Célia Kochen Parnes

Claudio Thomaz Lobo Sonder

Daniela Montingelli Villela

Eduardo Saron

Fábio Magalhães

Felippe Crescenti

Flavia Buarque de Almeida

Flávia Cipovicci Berenguer

Flavia Regina de Souza Oliveira

Flávio Moura

Francisco Alambert

Heitor Martins

Isay Weinfeld

Jeane Mike Tsutsui

Joaquim de Arruda Falcão Neto

José Olympio da Veiga Pereira

Kelly de Amorim

Ligia Fonseca Ferreira

Lucio Gomes Machado

Luis Terepins

Luiz Galina

Maguy Etlin · licenciada [on leave]

Manoela Queiroz Bacelar

Marcelo Mattos Araujo

Mariana Teixeira de Carvalho

Miguel Setas

Miguel Wady Chaia

Neide Helena de Moraes

Nina da Hora

Octavio de Barros

Rodrigo Bresser Pereira

Rosiane Pecora

Sérgio Spinelli Silva Jr.

Susana Leirner Steinbruch

Tito Enrique da Silva Neto

Conselho fiscal

Edna Sousa de Holanda

Flávio Moura

Octavio Manoel Rodrigues de Barros

Conselho consultivo internacional

Frances Reynolds · presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente

Andrea de Botton Dreesmann, Quinten

Dreesmann

Barbara Sobel

Caterina Stewart

Catherine Petitgas

Flávia Abubakir, Frank Abubakir

Laurie Ziegler

Mélanie Berghmans

Miwa Taguchi-Sugiyama

Pamela J. Joyner

Paula Macedo Weiss, Daniel Weiss

Sandra Hegedüs

Vanessa Tubino

Diretoria

Andrea Pinheiro · presidente

Maguy Etlin · primeira vice-presidente

Luiz Lara · segundo vice-presidente

Ana Paula Martinez

Francisco Pinheiro Guimarães

Maria Rita Drummond

Ricardo Diniz

Roberto Otero

Solange Sobral

Equipe

Superintendências

Antonio Thomaz Lessa Garcia Junior · superintendente executivo

Felipe Isola · superintendente de projetos

Joaquim Millan · superintendente de projetos

Caroline Carrion · superintendente de comunicação

Irina Cypel · superintendente de relações institucionais e parcerias

Superintendência executiva assistência

Beatriz Reiter Santos · assistência executiva

Marcella Batista · assistência administrativa

Superintendência de projetos coordenação

Bernard Lemos Tjabbes Dorinha Santos

Marina Scaramuzza produção

Ariel Rosa Grininger

Camilla Ayla · assessoria de conservação de obras de arte

Carolina da Costa Angelo

Nuno Holanda Sá do Espírito Santo

Tatiana Oliveira de Farias Assistência

Fabiana Paulucci

Ziza Rovigatti

Superintendência de comunicação coordenação

Rafael Falasco · editorial assessoria

Adriano Campos · design

Eduardo Lirani · produção gráfica

Fernando Pereira · assessoria de imprensa

Francisco Belle Bresolin · projetos digitais e documentação

Julia Bolliger Murari · redes sociais

Luciana Araujo Marques · editorial

Nina Nunes · design assistência

Marina Fonseca · redes sociais jovem aprendiz

Victória Pracedino

Superintendência de relações institucionais e parcerias assessoria

Luciana Raele

Raquel Silva

Victória Bayma

Viviane Teixeira assistência

André Massena

Jefferson Faria

Laura Caldas Educação gerência

Simone Lopes de Lira coordenação

Danilo Pera assessoria

André Leitão

Renato Lopes

Tailicie Nascimento assistência

Gabri Gregório Floriano

Giovanna Endrigo

Júlia Iwanaga

Leonardo Venâncio Miranda

Vinícius Massimino jovem aprendiz

Lincon Amaral

Arquivo Bienal gerência

Leno Veras coordenação

Antonio Paulo Carretta

Marcele Souto Yakabi assistência

Ana Helena Grizotto Custódio

Anna Beatriz Corrêa Bortoletto

Gislene Sales

Gustavo Paes

Thais Ferreira Dias

jovem aprendiz

Ilana Alionço

Manoel Assis

Administrativo-financeiro

Finanças gerência

Amarildo Firmino Gomes coordenação

Edson Pereira de Carvalho assessoria

Fábio Kato assistência

Silvia Andrade Simões Branco

Gestão de materiais e patrimônio gerência

Valdomiro Rodrigues da Silva Neto coordenação

Larissa Di Ciero Ferradas · gestão de materiais e patrimônio

Vinícius Robson da Silva Araújo · compras assistência

Angélica de Oliveira Divino

Daniel Pereira

Sergio Faria Lima

Victor Senciel

Wagner Pereira de Andrade auxílio

Isabela Cardoso jovem aprendiz

Lucas Galhardo brigada de incêndio / Alpha Secure

Davidson Maninuc de Lima

Denier Moises Ramos

Leandro Silva Meira Corelli

Ricardo de Azevedo Santos consultoria / Sinsmel Engenharia

Manoel Lindolfo

copa / Verzani & Sandrini

Selma Francisca de Sousa Silva limpeza / Verzani & Sandrini

Claudia Rodrigues

Isabel Rodrigues Ferreira

Maria Eliana do Nascimento de Lisboa

Rosana Celia de Souza

Rosangela Silveira Jeronimo manutenção / Verman Engenharia

Manutenção

Alexandro Pedreira da Silva

Cleber Silva de Souza

Edilson de Carvalho Sousa

João Santana de Souza motoboy / Brasil Express

Vanderson Costa Nery portaria / Megavig

Benedita Aparecida da Silva

Celiane Gomes Cardoso

Cicero Quelis da Silva

Cleidston de Oliveira Silva

Harrisson Crislle Lima dos Santos

Pedro Luiz Januário

recepção / Megavig

Gabriele Pires

Planejamento e operações assessoria

Rone Amabile

Vera Lucia Kogan

Recursos humanos coordenação

Andréa Moreira · recursos humanos

Higor Tocchio · departamento pessoal assistência

Matheus Andrade Sartori

Patricia Fernandes

Tecnologia da informação consultoria

Ricardo Bellucci

Júlio Coelho Matheus Lourenço assistência

Jhones Alves do Nascimento

36ª Bienal de São Paulo –

Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática

Equipe conceitual

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung · curador geral

Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza · cocuradores

Keyna Eleison · cocuradora at large

Henriette Gallus · consultora de comunicação e estratégia

André Pitol, Leonardo Matsuhei · assistência de curadoria

Arquitetura e expografia

Gisele de Paula, Tiago Guimarães

Alexandra Souza, Júlia Marquez, Santiago Rid · assistência de arquitetura

Agence Clémence Farrell · consultoria inicial de arquitetura

Identidade visual

Studio Yukiko

Projetos e produção

Cenografia

Mauro Coelho · Cinestand

Adão Siqueira · Metro Cenografia

Conservação coordenação

Patrícia Guimarães dos Reis equipe

Alice Quintella Tischer

Daniel Zuim Mussi

Fabiana Oda

Flávia Baiochi Santos

Gisele Guedes

Thalita Noce

Thaís Ramos Carvalhais

Valerie Midori Koga Takeda

Consultoria acústica

Sresnewsky Consultoria Ltda

Consultoria de audiovisual

Patrícia Mesquita – MIT Arte

Iluminação

Anna Turra Lighting Design · projeto de iluminação equipe

Anna Turra

Camila Jordão

Lucas Cavalcante

Giullia Gonçalves

Andressa Pacheco equipamentos e montagem Belight

Montagem coordenação

Alexandre Cruz

Arão Nunes

Mauro Amorim

Rodolfo Martins equipe

Alexandre Gomes

André Cruz

Ania Sanchez Valle

Bruno Amarantes Abreu de Lima

Cristian Santander

Diego Mauricio Rossi

Edison de Freitas Rocha Filho

Eloi Salvador

Elton Hipólito

Gabriel Rosa

Geraldo Peixoto

Gustavo Lemes Salomão

Hebert Kendy Zamour

Hélio Bartsch

Ítalo Douglas

Jaider Laerdson da Silva Miranda

Juan Lucas Rossi

Luciano Jorge Macovescy

Luis Enrique Silvestre Guerra

Pedro de Castro Layus

Rafael Freire

Raphael Rodrigues de Souza

Rejane Mitiko Nagatomo

Rhaldex Junior

Rodrigo Pasarello

Thiago Strassalano

Tomas Jefferson Silva da Cruz

Vinicius de Assis

assistência

Leny Silva

Logística de transporte

Nilson Lopes · nacional

Waiver Arts · internacional

Produção da programação pública

Helena Prado

Seguro Fine Arts

Chubb Seguros Brasil S.A.

Sonia Sassi · GECO Corretora de Seguros

Comunicação e editorial

Agência de publicidade

Africa Creative

Assessoria de imprensa

Index · nacional

Sam Talbot · internacional

Conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Bruno Fernandes

Duma Hub de Inovação Criativa e Produção

Artística

João Gabriel Hidalgo

Levi Fanan

Martin Zenorini

Design assistência

Aninha de Carvalho Price

Tamara Lichtenstein

Editorial

Bruno Rodrigues · assistência editorial

Cristina Fino · coordenação editorial das publicações educativas #3 e #4

Deborah Moreira · assistência editorial

Tatiana Allegro · edição de texto – catálogo e reader

Vozes Bienal

Adriana Coelho Silva

Ana Carolina Ralston

Alex Atala

Ana Hikari

Astrid Fontenelle

Bárbara Brito

Benedita Casé Zerbini

Camila Fremder

Dandara Queiroz

Djamila Ribeiro

Dione Assis

Didi Wagner

Dudu Bertholini

Fafá de Belém

Fernanda Cortez

Giovanni Bianco

Humberto Carrão

Isadora Cruz

Kevin David

Laís Franklin

Luanda Vieira

Luiza Adas

Luedji Luna

Mauricio Arruda

Maria Carolina Casati

Marina Person

Memphis Depay

Maria Ribeiro

Mel Duarte

Rachel Maia

Regina Casé

Rita Carreira

Stefano Carta

Stephanie Ribeiro

Thai de Melo Bufrem

Taís Araújo

Txai Suruí

Zeca Camargo

Xênia França

Website

Fluxo · desenvolvimento

Laura Trigo · assistência de conteúdo

Relações institucionais e parcerias

Agência de viagens

Latitudes Viagens de Conhecimento

Arquitetura da Varanda Bienal

Denis Ferri Arquiteto

Assistência de produção

Fabiana Farias

Patrícia Rabello

Criação e gestão de conteúdos dos canais digitais

Motiv Design

Parcerias institucionais

Contemporâneo Showroom

Kimi Nii

Livraria da Travessa

Produção de eventos

Patrícia Galvão

Educação

Consultoria em acessibilidade

Mais Diferenças

Interpretação em Libras

AHU Acessibilidade Humanista

Plataforma de agendamento e check-in

Hous 360

Gestão de materiais e patrimônio

Ambulância e posto médico

Premium Serviços Médicos LTDA. ME

Assessoria e treinamentos

Lord Assessoria em Eventos

Assessoria em projetos de segurança

Asegm Construção LTDA

Bombeiro civil

Local Serviços especializados LTDA. ME

Distribuição elétrica

AGR Elétrica LTDA

Internet Wi-Fi

ITS Online

Locação de gerador

CAM Energy Locação de Equipamentos LTDA

Limpeza e conservação

Tia Limpeza e Eventos LTDA

Operações

Denis Jordão · coordenação

Kleber Almeida Gomes · supervisão

Segurança

Megavig Segurança e Vigilância LTDA

Invocações

Marrakech – 14-15 nov. 2024

LE 18 · coorganização

Laila Hida · diretoria do espaço parceiro

Youssef Sebti · produção local

Zora El Hajji · assessoria de imprensa local

Mahacine Mokdad, Sofian Amly, Hamza Morchid, Youssef Boumbarek · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Embaixada do Brasil em Rabat / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações

Exteriores · apoio local

Guadalupe – 5-7 dez. 2024

Lafabri’K · coorganização

Marie-Laure Poitout · presidência do espaço parceiro

Léna Blou · diretoria do espaço parceiro

Hellen Rugard · produção local

Annik Benjamin · tradução simultânea

Cédric Marcellin, Philippe Hurgon · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

Institut Français; Embaixada do Brasil em Paris / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações Exteriores · apoio local

Zanzibar – 11-13 fev. 2025

Bernard Ntahondi · coorganização

Dhow Countries Music Academy (DCMA) · instituição parceira

Halda Alkanaan · diretoria da instituição parceira

Thureiya Saleh · produção local

Raymond Peter, Alex Marcel · engenharia de som

William Chazega Nkobi, Habibu Ramadhani

Diliwa · tradução simultânea

Aden Rajab Said, Ally Nassor, Arafat Khamis Moh’d, Caroline-Jamie Dandu, Gulaam

Abdullah, Venance Leonard, Waleed Khamis

Mohammed · conteúdo audiovisual e registro fotográfico

YAS, Fondation H, Embaixada do Brasil em Dar es Salaam / Instituto Guimarães

Rosa · Ministério das Relações Exteriores · apoio local

Tóquio – 12-14 abr. 2025

Andrew Maerkle, Kanako Sugiyama · coorganização

The 5th Floor; Sogetsu Kaikan; The University of Tokyo (com ACUT) · espaços

Jordan A. Y. Smith · assessoria do programa de poesia

Tomoya Iwata · produção local

Yoshiko Kurata · assessoria de imprensa local Wataru Shoji · engenharia de som

Art Translators Collective · tradução simultânea

Kenji Agata, Naoki Takehisa, Sora Shirai, Takuma Osugi, Yoshikatsu Hirayama · conteúdo audiovisual e registro fotográfico Embaixada do Brasil em Tóquio / Instituto Guimarães Rosa · Ministério das Relações Exteriores; Art Center, The University of Tokyo (ACUT) · apoio local

Agradecimentos

Indivíduos

Acácio Luiz Costa

Ainsley Kass

Aisha Amrin

Akio Aoki

Allison Berg

Aloysius Forsuh Tih

Amalia Spinardi & Roberto Thompson

Ana Celia Biondi

Ana Paula Brasil

Ana Varella

Andrea & Nicholas Kukrika

Arnold Antonin

Brigitte Caland

Bruna Simões Pessoa de Queiroz

Caio Luiz de Carvalho

Catherine Petitgas

Daniella Conceição Mattos Araújo

David Jesus de Almeida

Edir Ramos de Andrade

Edmondo Zanolini

Eduardo de Almeida Navarro

Edward Rawson

Ericka Simony Baihé dos Santos

Esther Constantino

Felipe Dmab

Fred Kachar

Gabriel Rett

Ghita Melehi Sollazzo

Gibran Mir

Giovanni Antonio R. Barile

Hardoz Khadija

Hena Lee

Henilton Parente de Menezes

Hervé Sabin

Iara Cristina Camargo

Ivanilson Machado

Jane Hait

Jaqueline Santiago

Jessica Socorro

Jim Gray

João Camargo

Johnny Saad

José Eduardo Cintra Laloni

Kamal Melehi

Lêo Pedrosa

Leslie Matlaisane

Louloua Melehi

Luis Felipe Leite

Luiza Bernardes

Manzar Feres

Marc Pottier

Marcelo Lopes

Márcia Fortes

Marco Antonio Nakata

Marcus A. Nielsen

Margareth Menezes

Margareth Telles

Maria Angela de Jesus

Maria Claudia Marchetti

Berna Petrarca de Araujo

Maria Cristina Ciampolini de Brito

Maria Ignez Correa C. Barbosa

Mariana Macedo

Marie Andre Etienne

Martin Escobari

Mehak Vieira

Mingus Smith

Moisés Lima

Mujah Maraini-Melehi

Neide Helena de Moraes

Newton Simões Filho

Nighat Mir

Nour Melehi

Paulo Petrarca Araujo

Paulo Saad Jafet

Pedro Barbosa

Pedro Ivo Silva

Philipp von Matt & Leiko Ikemura

Philippe Caland

Pierre Caland

Preston Linck

Rafael Azzi

Rafael Moraes

Rajaa Benchemsi Belkahia

Ricardo Pessoa de Queiroz Filho

Ricardo Saad

Rodney Saint-Éloi

Rodolfo Rodrigues C Pelitz

Rodrigo Cobra

Ronan Grossiat

Rui Villela Ferreira

Sacha Bowling

Sarah Adamson

Sarina Tang

Sergio Gordilho

Sergio Lulia Jacob

Seth Riskin

Soulaimane Belhassan Alaoui

Stephanie Habrich

Teresa Carvalho

Valeria Baronchelli

Youssef Melehi

Yvette Mutumba

Instituições e empresas

A&L Berg Foundation

Acervo Histórico da Discoteca

Oneyda Alvarenga – Centro Cultural São Paulo

Agência Nacional do Cinema –Ancine

Almeida & Dale

Andrew Kreps Gallery

Arnaud Lefebvre Gallery

Arnold Antonin Films

Art Center, University of Tokyo

Associação Beneficente Santa Fé

Barjeel Art Foundation

Behring Foundation

BrazilFoundation

British Council

CARA – Center for Art Research and Alliances

Casa Hoffman

Casa Líquida

Catavento Cultural e Educacional

Central Fine

Centro Afro Carioca de Cinema

Centro Cultural Coreano

Centro de Educação Tecnológica

Centro Paula Souza, Governo do Estado de São Paulo: CPS – CETEC Capacitações –Coordenação de Projetos –Artes Ensino Médio

Centro Universitário Belas Artes de São Paulo

Cinémathèque Afrique

Ck Amorim Comércio de Artefatos de Metais

CNN

Coleção moraes-barbosa

Collection Mitra Goberville-Hananeh

Consulado Geral da República Argentina em São Paulo

Consulado-Geral da República Popular da China em São Paulo

Consulado-Geral do Brasil em Montréal

Consulado-Geral do Reino da Bélgica em São Paulo

Consulado-Geral do Reino dos Países Baixos em São Paulo

Cristina Picazo – CHRUM

Cultura Artística

Effie Gallery

El-Saieh Gallery

Embaixada da Finlândia no Brasil

Embaixada da República da Colômbia no Brasil

Embaixada da Suécia no Brasil

Embaixada do Brasil em Harare

Embaixada do Brasil em Maputo

Embaixada do Brasil na China

Embaixada do Brasil na França

Embaixada do Brasil na Tanzânia

Embaixada do Brasil no Japão

Embaixada do Brasil no Marrocos

Embaixada do Brasil no México

Embaixada do Reino da Dinamarca no Brasil

Embaixada Real da Noruega em Brasília

Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo

Estate Ferlov Mancoba

Eugenio López – Fundación Jumex

Fas Collection

Filmicca

Folha de S.Paulo

Fondation Alliances

Fondation H

Fortes D’Aloia & Gabriel

Frederik Schampers / Casa Onze

Fundação Bienal MoAC Biss

Fundação Nacional de Artes –Funarte

Fundação Padre Anchieta

Galeria Verve

Galeria Yehudi Hollander-Pappi

Galerie Barbara Thumm

Galerie Buchholz

Galerie Cécile Fakhoury

Galleria Continua

Globo

Goethe-Institut São Paulo

Grupo Estado

Hamid Zénati Estate

Hauser & Wirth

Helloo

Hochschule für Bildende Künste–Städelschule

ifa - Institut für Auslandsbeziehungen

Institut français

Instituto Arte na Escola

Instituto Brasileiro de Museus –Ibram

Instituto Cervantes de São Paulo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan

Instituto Guimarães Rosa

Instituto Inhotim

Instituto Italiano di Cultura de São Paulo

Instituto Sacatar

Instituto Serrinha

International Biennial Association

JCDecaux Brasil

La Friche la Belle de Mai

Lima Galeria

Lodos Gallery

Loft Art Gallery

Mendes Wood DM

Ministério da Cultura

Ministério da Educação

Ministério da Igualdade Racial

Ministério das Relações Exteriores

Ministério do Meio Ambiente

Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania

Mitre Galeria

Mondriaan Fund

MT Projetos

Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo –MAC USP

Museu de Arte do Rio – MAR

National Gallery of Zimbabwe

neugerriemschneider

Nicodim Gallery

Office for Contemporary Art Norway (OCA)

OH Gallery

Paula Cooper Gallery

Paulo Darzé Galeria

Pivô Arte e Pesquisa

POIESIS – Instituto de Apoio à Cultura, à Língua e à Literatura

Portas Vilaseca

Preta Ação

Pro Helvetia

Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo

Projeto Sociocultural Bateria 013

Renova BR

Richard

Saltoun Gallery

Roberts Projects

Royal Air Maroc

Santa Marcelina – Orquestra do Theatro São Pedro

Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural

Secretaria de Formação, Livro e Leitura

Secretaria Estadual de Educação de São Paulo

Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, e os Programas: Projeto Jovem Monitor

Cultural, Escolas Municipais de Iniciação Artística, Programa de Iniciação Artística para a Primeira Infância, Programa de Iniciação Artística, Vocacional, Rede Daora

Secretaria Municipal de Educação de São Paulo: Coordenadoria Pedagógica – COPED, Divisão do Sistema de Formação de Educadores da Rede

Municipal de Ensino de São Paulo

Selebe Yoon

Semiose Gallery

STARS Gallery

Stevenson Gallery

Take Ninagawa

The Frank Bowling Foundation

The Imran Mir Art Foundation

Tomm El-Saieh

Translocal Enterprise RM C

TV Cultura

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Université Paris-Sorbonne

Usina de Arte

Valor Econômico

Villa Arson

Villa Medici

West Baffin Cooperative

PARCERIA ESTRATÉGICA

PATROCÍNIO MASTER

PATROCÍNIO

MOBILIDADE OFICIAL

TRANSPORTADORA OFICIAL

AGÊNCIA OFICIAL

APOIO INSTITUCIONAL

APOIO INTERNACIONAL

REALIZAÇÃO
PARCERIA CULTURAL
APOIO MÍDIA

Créditos da publicação

Publicado em português e em inglês por Fundação Bienal de São Paulo

Organização

Equipe conceitual e Fundação Bienal de São Paulo

Coordenação editorial Fundação Bienal de São Paulo

Projeto gráfico

Studio Yukiko

Diagramação

Aninha de Carvalho Price

Edição e revisão de texto

Tatiana Allegro

Assistência de edição

Deborah Moreira

Preparação

Bruno Rodrigues

Livia Lima

Tradução

Gabriel Bogossian

Mariana Nacif Mendes

Nicolas Brandão

Philip Somervell

Rafael Falasco

Sergio Maciel

Sylvia Monasterios

Famílias tipográficas

Arizona e Camera Plain por Dinamo

Produção gráfica

Fundação Bienal de São Paulo e Marcia Signorini

Impressão Ipsis

ISBN 978-85-85298-92-0

O título da 36ª Bienal de São Paulo, Nem todo viandante anda estradas, é formado por versos da escritora Conceição Evaristo.

© Copyright da publicação: Fundação Bienal de São Paulo. Todos os direitos reservados. As imagens e os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por artistas, fotógrafos, escritores ou representantes legais e são protegidos por leis e contratos de direitos autorais. Todo e qualquer uso é proibido e condicionado à expressa autorização da Fundação Bienal de São Paulo, dos autores, dos artistas e dos fotógrafos. Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.

Todas as fotos: cortesia dos artistas ou de seus herdeiros, exceto quando indicado de outra forma. Este catálogo foi originalmente publicado em português e em inglês em agosto de 2025. Uma tiragem complementar, com atualizações, foi realizada em setembro do mesmo ano.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

36ª Bienal de São Paulo : Nem todo viandante anda estradas : Da humanidade como prática / Fundação Bienal de São Paulo; curadoria Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. -São Paulo : Bienal de São Paulo, 2025.

Vários autores.

ISBN 978-85-85298-92-0

1. Artes – Exposições – Catálogos

2. Arte – São Paulo (SP) – Exposições

3. Bienal de São Paulo (SP)

I. Fundação Bienal de São Paulo.

II. Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng.

25-287819

Índices para catálogo sistemático:

1. Bienais de arte : São Paulo : Cidade 709.8161

2. São Paulo : Cidade : Bienais de arte 709.8161

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária – CRB-8/9380

CDD-709.8161

Fundação Bienal de São Paulo

Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera

Av. Pedro Álvares Cabral – Moema 04094-050 / São Paulo – SP bienal.org.br

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

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