O avesso da documentação
Marilia Panitz
Há algo em torno da fotografia que se mantém desde seu surgi-
Tal operação parece definir a elaboração das obras de Usha Velas-
mento. Talvez certa mágica da operação instantânea – a impressão
co. Em uma das conversas que tivemos como preparação ao texto,
que aquilo que se opera através da máquina seja a apresentação do
a ver com instruções de leitura!): ela não associa sua produção a fo-
da imagem enquadrada pelo olhar – sustente, para nós, a ideia de
que é visto sem a mediação da interpretação (embora estejamos
sob a égide do inconsciente ótico, desde sua nomeação por Walter
Benjamin). Um estatuto de documento confiável. É claro que, com 1
todos os avanços tecnológicos e o desenvolvimento da tecnologia digital, hoje disponível para qualquer um que possua um celular com câmera, desfaz-se qualquer ingenuidade quanto à manipulação do
objeto capturado. Mas a associação entre fotografia e documento se
mantém, mesmos com os seus diferentes usos, que incluem a produção poética da figuração construída imaginariamente ou mesmo da abstração – por apagamento, distorção ou fragmentação.
E o que dizer dos artistas que usam esse meio como opção de lin-
guagem, debruçando-se sobre o cotidiano como tema, daquilo que
a artista ofereceu a chave para a abordagem de seu trabalho (nada tojornalismo, seus instantâneos sempre são trabalhados com outras camadas. Do aprendizado em grupo durante os mais de vinte anos em que participou de um coletivo fotográfico, traz a observação da imagem capturada orientada pela leitura crítica (de seleção e edi-
ção); fotografar é somente o início da construção da linguagem (há que se distanciar para rever o que foi enquadrado). De seu exercício
como editora de texto, traz o corte e a montagem das séries como sentença imagética. Do amor pela poesia de Drummond, Manoel de Barros e outros, aprende o atravessamento dos campos de expres-
são e o olhar sobre o comum que o transforma em vivência única. Da constante visita a seu passado (em memórias lembradas ou inventadas) constrói a base de seu repertório visual...
se recorta das ruas ou dos interiores, onde a composição eventual aponta para uma leitura que transcende a informação?2 Como classificar essa cena que desencadeia um deslizamento de sentido muitas vezes por um simples detalhe? Para alguns deles, há algo que 3
se imiscui na cena mais rotineira, por montagem, ou mesmo pela retenção casual de algum elemento estranho ao que convencionamos associar à normalidade... um quase nada... toda a diferença.
1
Na “Pequena História da Fotografia”, em MAGIA E TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA – Obras Escolhidas, vol. 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 91-107
2
Isso já estava presente nos registros de Atget, da Paris da virada do século 19 para o 20 e, emblematicamente, no trabalho de Cartier-Bresson.
3
E não é disso que Roland Barthes trata, ao nomear o punctum (da ordem do afeto) em contraposição ao studium (da ordem da documentação em seu livro sobre fotografia, A CÂMARA CLARA? (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984).