Coordenadores da coleção: Daniel Kupermann, Jô Gondar e Eugênio Canesin Dal Molin
Publisher Eduardo Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Walys Oliveira e Andressa Lira
Preparação de texto Mariana Góis
Diagramação Plinio Ricca
Revisão de texto Cristiana Gonzaga Souto Corrêa
Capa Laércio Flenic
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Psicanálise entre catástrofe e criação / coordenadores
Daniel Kupermann, Jô Gondar, Eugênio Canesin Dal Molin. – São Paulo : Blucher, 2025.
214 p. – (Coleção Sándor Ferenczi)
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2567-6 (impresso)
ISBN 978-85-212-2566-9 (eletrônico - epub)
ISBN 978-85-212-2565-2 (eletrônico - pdf)
1. Psicanálise. 2. Trauma psíquico.
3. Resistência (Psicanálise). 4. Ferenczi, Sándor, 1873-1933. I. Título. II. Série. III. Kupermann, Daniel. IV. Gondar, Jô. V. Dal Molin, Eugênio Canesin.
Índice para catálogo sistemático:
1. Psicanálise
CDU 159.964.2
Conteúdo
Apresentação – A vida anfíbia de pessoas e grupos 9
Parte 1 – Trauma e resistência
1. Paixão e ternura como forças políticas 17 Jô Gondar
2. Ferenczi, processos de subalternização e testemunho 33 Julio Sergio Verztman
3. Indiferença e Desmentido – rupturas na subjetividade e nos laços sociais 55 Mônica Kother Macedo
4. Trauma e psicanálise na contemporaneidade 77 Joel Birman
5. A identificação com o agressor e suas vicissitudes 89 Daniel Kupermann
Parte 2 – Trauma e transmissão
6. Trauma, conceito aberto 113
Eugênio Canesin Dal Molin
7. Intertextualidade e parasitismo em psicanálise: consequências para a formação do analista 139
Luis Claudio Figueiredo
8. Existe uma concepção ferencziana da supervisão? 153
Renato Mezan
9. A vida secreta de Ferenczi: a análise mútua como um paradigma relacional 179
Peter Rudnytsky
Sobre os autores 211
1. Paixão e ternura como forças políticas
Jô Gondar
“A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma” (1981). Foi assim que Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, explicou a um jornalista como pretendia transformar uma sociedade que valorizava o coletivo numa sociedade individualista. Uma das principais protagonistas da virada neoliberal dos anos 1980 não ignorava que, para conseguir seu objetivo político, seria preciso penetrar a subjetividade social, para que os trabalhadores funcionassem de acordo com os termos de um jogo imposto a eles. No coração e na alma estariam os alicerces da mudança política.
O filósofo Vladimir Safatle (2015) deu um nome a essa base de sustentação: ele a chamou de circuito de afetos. Freud já teria mostrado, em Psicologia das massas (1921/1976), o quanto a esfera individual é inseparável da esfera social, ambas constituídas por modos de relação que se exercem no ambiente circundante, funcionando como suporte para diversas formas de vínculo. A tese de Safatle (2015) é a de que uma determinada circulação afetiva vai moldar as formas de sociabilidade e modular o quanto nos submetemos, o quanto
Psicanálise entre catástrofe e criação
resistimos à sujeição, o quanto somos capazes de afirmar quem somos e o que queremos.
nossa sujeição é afetivamente construída, ela é afetivamente perpetuada e só poderá ser superada afetivamente a partir da produção de uma outra aesthesis. O que nos leva a dizer que a política é, em sua determinação essencial, um modo de produção de circuito de afetos.
De fato, a política não pode ser reduzida a práticas de gestão econômica, legal, ou de serviço dos bens. Ela concerne às maneiras possíveis de estar juntos e às suas possibilidades de mudança. É pensando em outros afetos, bem diferentes dos incitados pela virada neoliberal, que escrevo este trabalho. Creio que para compreender as formas contemporâneas de organização social, e mesmo a conjuntura política em que estamos mergulhados, não basta conhecer a geopolítica em curso; é preciso também entrar no campo da micropolítica e, particularmente, dos afetos e modos de sensibilidade que sustentam a construção dos laços sociais. No plano social mais amplo, a psicanálise mostra de maneira inquietante a geografia dos afetos de dominação, segregação e colonização, bem como as condições afetivas da emancipação política e os motivos de seus bloqueios. Desse modo, ela fornece contribuições tanto para se entender a adesão às formas de governo e sociabilidade, quanto para construir projetos de emancipação que visam transformá-las. Pois não se trata apenas de compreender; trata-se também de pensar alternativas ou, ao menos, possibilidades de desmonte dos modos afetivos e/ou sensíveis que sustentam determinadas formas de vínculo. Diferentes afetos e formas de sensibilidade vão modelar diferentemente a vida social e política (Safatle, 2015).
Hobbes já teria mostrado a importância do medo como afeto que induz a construção de um Estado forte, capaz de impedir a guerra
alteridade. Isto porque muitas vezes usamos esses valores da elite para definir o que é analisável.
4. A consequente assertiva, bastante popular em nosso meio, de que a prática clínica diz pouco respeito aos modos sociais de dominação, devendo incidir prioritariamente sobre a amarração singular das formas de sofrimento. A relação entre estas amarrações singulares e formas violentas de dominação social constitui uma lacuna de saber ideologicamente construída. E esta lacuna repousa em uma confusão entre as esferas “singular” e “individual”.
5. A suposição de que as ditas amarrações singulares são potencialmente capazes de serem expressas universalmente pelos sujeitos, independente de seus marcadores sociais. Deste modo, certas formas de subjetivação são impostas como ideais para a realização de uma análise, excluindo do benefício de nossa escuta sujeitos com outras modalidades de subjetivação, especialmente aqueles distantes do modelo eurocentrado.
6. A crença de que as formas de sofrer e as formas de adoecimento, nosso objeto primordial de trabalho, ocorrem sob leis formais de uma psicopatologia que circula entre nossa categoria de origem, a neurose, e seus “outros”.
7. Minha aposta aponta para Ferenczi ser um autor capaz de embaralhar as cartas e, numa analogia com o baralho, fazer com que descartemos algumas e adicionemos outras à nossa mão.
8. O que estou denominando processos de subalternização me pareceu um modo de juntar as cartas no baralho construído por Ferenczi e suponho que esta forma de jogar pode nos fazer repensar nossas possíveis participações em processos que reiteram o silenciamento de figuras de alteridade.
3. Indiferença e desmentido – rupturas na subjetividade e nos laços sociais
Mônica Medeiros Kother Macedo
Desde 2003 uma sequência de estudos sobre o trauma, a destrutividade e a dor psíquica vem me possibilitando desvelar aspectos inerentes à complexa relação sujeito/cultura. Temas como pertencimento/exclusão do laço social, distintas nuances nas experiências alteritárias, indiferença e crueldade operam, nesse percorrido, como temáticas que geram interrogações, promovendo investigações e, assim, possibilitando ampliar a concepção de responsabilidade no que diz respeito ao trabalho intelectual em psicanálise.
Localizo nos textos de Sándor Ferenczi valiosas ferramentas teóricas e clínicas que estimulam a problematização sobre o contexto intersubjetivo e as relações de poder. Constato no estilo de escrita de Ferenczi contribuições que promovem vital desacomodação, gerando, na medida em que possibilitam reconhecer a complexidade do humano, o estímulo a buscar aportes interdisciplinares que contribuem à problematização de uma leitura, a partir da psicanálise, da relação sujeito/cultura. Sabemos que, além do descentramento da razão decorrente da proposta freudiana de um sujeito de Inconsciente, outro elemento destacado pela psicanálise alude ao tema da alteridade.
Alteridade que descortina a impossibilidade de existência do Eu sem o outro, bem como o papel relevante da cultura na vida psíquica.
A experiência de diálogo com antropólogos portugueses, ocorrida durante a realização de meu pós-doutorado, contribuiu significativamente para explorar valiosas nuances referentes à temática das diásporas contemporâneas (Macedo, 2022a). Dentre elas, a urgência de a psicanálise ingressar vigorosamente nesse debate, recuperando, deste modo, sua potência de crítica, denúncia e intervenção em situações de violência no laço social. É exatamente o reconhecimento da complexidade do objeto de estudo em questão, as diásporas contemporâneas, que me conduz neste capítulo a fomentar a interlocução com subsídios advindos da Antropologia, do Direito, da Sociologia e da Filosofia.
Ancorada na definição de complexidade, proposta por Morin (2020), detenho-me na reflexão sobre os deslocamentos contemporâneos, ou seja, lanço o olhar às situações enfrentadas por migrantes e refugiados de nosso tempo, comprovando, em seu bojo, a tessitura conjunta de fatores decorrentes de “muitas crises” de similar impacto. Nesta tessitura encontro, como elemento de interligação, as inegáveis desigualdades e violências sociais que se apresentam nos mais variados cenários mundiais. Convido-os, portanto, a situar o fenômeno das diásporas como uma impactante ilustração da indiferença e do desmentido, temáticas centrais que abordarei no decorrer do capítulo, cujos efeitos de ruptura ecoam, de forma devastadora, na subjetividade e nos laços sociais contemporâneos. Nessa direção, proponho uma análise das ligações existentes entre violência e movimentos de deslocamento, na expectativa de que os argumentos apresentados permitam perceber com clareza desdobramentos de signos traumáticos que instauram, no exemplo das diásporas contemporâneas, rupturas cruciais. Entendo que tais rupturas dão testemunho sobre a vulnerabilidade do sujeito e do tecido social, ao mesmo tempo em que chamam nossa atenção para as
4. Trauma e psicanálise na contemporaneidade
Joel Birman
Preâmbulo
O objetivo inicial deste texto será destacar a posição estratégica do conceito de trauma na leitura do mal-estar contemporâneo, na medida em que estamos inseridos na atualidade num mundo marcado por múltiplas marcas e fontes de acontecimentos traumáticos.
Assim, o que pretendemos destacar inicialmente são os signos que evidenciam tais marcas e fontes do traumático na realidade atual.
Dessa maneira, a indagação inicial deste ensaio é colocar em destaque as condições concretas de possibilidade da experiência traumática hoje, nas suas múltiplas formas de manifestação.
Ao lado disso, é preciso pontuar também de forma preliminar o que se entende por trauma neste ensaio, à medida em que vou colocar em destaque a leitura psicanalítica do trauma, que se enunciou inicialmente com Freud e foi retomada posteriormente em uma longa tradição psicanalítica. Com efeito, desde o início da constituição do discurso psicanalítico foi enunciada a categoria de trauma por Freud em 1894-1896 com a teoria da sedução (Birman, 2024). Contudo, essa leitura inicial foi desconstruída por Freud em 1896, com a constituição da teoria da fantasia. No entanto, o conceito de trauma foi
Psicanálise entre catástrofe e criação
retomado tardiamente no percurso freudiano em 1920, com a obra Além do princípio do prazer em uma perspectiva teórica bastante diferente da formulação inicial (Freud, 1981).
Portanto, se na leitura inicial a categoria de trauma na psicanálise foi articulada com a existência da figura do pai perverso, identificado que foi com a figura do pai abusador, na leitura final, em contrapartida, estaria em pauta a construção da figura do pai caracterizado pela insuficiência.
No entanto, em ambas as leituras introduzidas pelo discurso freudiano, o trauma se caracterizaria no registro psíquico, da subjetivação com características metapsicológicas bem delineadas, não se inscrevendo assim no registro biológico do organismo. Nessa perspectiva, diferentemente da leitura realizada no século XIX pelo discurso da neuropsiquiatria na Alemanha, que inseriu o trauma como consequência de uma disfunção e anomalia inscritas no sistema nervoso central, no discurso freudiano, em contrapartida, a ênfase clínica foi colocada no campo psíquico, no registro estrito do sujeito.
No entanto, com base nestas considerações preliminares em psicanálise, a perspectiva fundamental deste ensaio é demonstrar a pertinência teórica das interpretações de Freud e de Ferenczi sobre a experiência traumática, nas linhas de força e de fuga da caracterização do trauma na atualidade.
Ordem neoliberal
Na virada histórica ocorrida no Ocidente nos anos 1980 iniciou-se a nova ordem mundial denominada de neoliberalismo, que não se restringiu a uma simples retomada do liberalismo do século XIX em um novo contexto histórico, pois problemas sociais cruciais que não eram outrora considerados como ativos e bens do mercado, como a educação, a saúde, a arte e a ciência, foram privatizados e, em consequência, transformados em mercadorias com a ordem neoliberal.
5. A identificação com o agressor e suas vicissitudes1
Daniel Kupermann
Introdução
O termo “vicissitudes”, como vocês podem reconhecer, aparece na tradução da editora Imago para o texto de Freud sobre as pulsões (1915). É um termo interessante para pensar essa categoria tão criativa, esse mecanismo de defesa proposto por Ferenczi ao campo psicanalítico – a “identificação com o agressor” –, buscando articulações que nos ajudem a pensar a nossa contemporaneidade. Antes de iniciar, gostaria de dizer que a minha apresentação tem um caráter absolutamente experimental. Eu levei a sério o termo “preparatório” que aparece no título desse curso e pesquisei como os dicionários definem preparação: é o ato de preparar algo de forma a poder ser utilizado. Eu espero que as ideias que apresentarei a vocês possam, de fato, promover pensamento, possam ser usadas. Os leitores de Winnicott (1969) sabem que o termo “uso” (do objeto) implica destruição e a consequente criação. Então, que as ideias aqui expostas possam ser destruídas, originando, assim, novas ideias; à moda daquelas gravações dos filmes
1 Transcrição realizada por Helena Battendieri Brotero de Castro da aula proferida para o “Curso preparatório à 14a Conferência Internacional Sándor Ferenczi”, em 28 de outubro de 2023.
antigos de detetive: “essa mensagem será destruída em 10 segundos após ser escutada”.
A elaboração dessa aula começou em outro evento que reuniu vários membros do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi, organizado pela Nebulosa Marginal e pela Formação Freudiana na PUC do Rio de Janeiro, em 2023. Um evento comemorativo dos 150 anos de nascimento de Ferenczi, no qual eu tive o prazer de participar de uma mesa com Jô Gondar e Gilberto Souza. A ambição do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi é a criação de uma comunidade; porém, precisamos inventar o sentido dessa comunidade, e me parece que, quando as ideias circulam, provocam, fertilizam, temos uma pista de que estamos construindo uma comunidade. Nessa mesa, Gilberto Souza cita uma passagem do Diário clínico (Ferenczi, 1932, p. 181), na qual Ferenczi se refere à paciente que ele chama de S.I.: uma paciente que aparenta portar um quadro atravessado por delírios psicóticos. Ferenczi diz assim: “S.I. encontrou-se durante alguns anos sob a influência demoníaca de espíritos maléficos que aterrorizavam e dirigiam a ela seu ódio e sua intenção homicida”. Ele continua dizendo que “a crueldade mais horrenda infligida a essa paciente foi efetivamente ter sido forçada a engolir os órgãos genitais de um negro repugnante que acabara de ser morto”.
Não sabemos quanto de realidade existe nessa fala da paciente, mas isso não importa. Gilberto, um jovem homem negro, diz que estranha muito que isso tenha aparecido no Diário clínico sem nenhum comentário de Ferenczi acerca desse delírio, dessa fantasia, ou, mesmo, desse fato, “engolir os órgãos genitais de um negro repugnante que acabara de ser morto”, como figura do ódio. No debate que se seguiu às apresentações, Gilberto disse que muitas vezes escreve psicanálise com ódio. Quase imediatamente eu
6. Trauma, conceito aberto1
Eugênio Canesin Dal Molin
Hoje, quem diz Ferenczi, diz trauma. Quem conjura esse autor traz para o centro da conversa o conceito de trauma e tudo que vem com ele. Como outros conceitos discutidos quase à exaustação no meio psicanalítico, o trauma não é das coisas mais simples, nem sua história se presta a uma apresentação linear. A ideia se torna tardiamente uma obsessão para Ferenczi, mas sempre esteve em seu campo de interesse de outras formas, arranjada de outras maneiras.
Minha sugestão é que adotemos uma disposição teórica específica para tratar do assunto, voltando-nos ao conceito de trauma como a um arranjo constelatório, uma constelação, no sentido que Adorno dá a esse termo explorado por Walter Benjamin. Para Benjamin (2011), “As ideias se
1 Este texto serviu de base para minha aula no Curso Preparatório para a 14a Conferência Internacional Sándor Ferenczi. Uma versão dessas ideias foi publicada em inglês no American Journal of Psychoanalsis, 84, p. 79–93, 2024; e, em português, na revista Cadernos de Psicanálise, v. 46, n. 50. Gostaria de agradecer a leitura e os comentários de Isabella Borghesi Dal Molin, Renata Udler Cromberg, Diane Viana, Nelson Coelho Junior e do grupo de pesquisa que ele coordenou na Universidade de São Paulo quando esbocei essas ideias pela primeira vez, composto por Amanda Watson, Bruna Zerbinatti, Daniel Schor, Douglas Pereira, Fabio Vargas, Jô Gondar, Gisele Senne de Moraes, Sergio Gomes e Marina Bialer.
Psicanálise entre catástrofe e criação
relacionam com as coisas assim como as constelações se relacionam com as estrelas” (p. 35). Adorno leva adiante esse modo de pensar e diz que
A história encerrada no objeto só pode ser entregue por um conhecimento ciente do valor posicional histórico do objeto em suas relações com outros objetos – pela atualização e concentração de algo que já é sabido e é transformado por esse conhecimento. Cognição do objeto em sua constelação é cognição do processo guardado no objeto. Como uma constelação, o pensamento teórico circula o objeto que ele gostaria de desvelar, esperando que ele possa voar livre como a fechadura de um cofre bem guardado: em resposta não a uma única chave ou único número, mas a uma combinação de números (Adorno, 2007, p. 163).
Vamos começar brevemente com um Freud anterior à teoria da sedução, depois discutir algumas das formas diferentes que Ferenczi dá ao conceito de trauma e, por fim, comparar brevemente esse arranjo ao pensamento de outros autores do campo psicanalítico e às ideias sobre trauma de um grupo de sociólogos de Yale.
Trauma, conceito aberto
Como sabem, o conceito de trauma sofreu mudanças ao longo da obra de Freud2 (Balint, 1969; Janin, 2004, 2005; Knobloch, 1998;
2 Dois grupos de experiências catalisaram os esforços de teorização a respeito do trauma: o abuso sexual de crianças e as neuroses traumáticas (histéricas, “mecânicas” e, mais tarde, as neuroses de guerra). Sabemos que Freud dedicou atenção a ambos os grupos. O primeiro grupo ocupou seu pensamento entre 1895 e 1897, e mereceu uma série de textos, entre artigos (1896a, 1896b, 1896c), trechos de manuscrito (1895, p. 352-357), um relato clínico (1893-1895, p. 180-193) e cartas endereçadas a seu amigo, o médico Wilhelm Fliess (Masson, 1985). O segundo grupo de experiências, o das neuroses traumáticas, igualmente mereceu a atenção freudiana, como atestam escritos do começo de sua carreira (1894) e de sua maturidade (1918, 1920). Para mais detalhes sobre esses dois grupos, conferir Dal Molin, 2016; e 2017.
7. Intertextualidade e parasitismo em psicanálise: consequências para a formação do analista
Luís Claudio Figueiredo
Retomando noções: intertextualidade e parasitismo no plano da cultura e no campo da psicanálise
No sexto capítulo de Palavras Cruzadas e no novo capítulo do livro incluído na segunda edição lançada na Conferência Internacional Sándor Ferenczi (Figueiredo, 2024), baseado no crítico literário e da cultura J. Hillis Miller (1995), trabalho com a ideia de “intertextualidade”: com ela se alude a como os textos se conectam e produzem efeitos uns nos outros, textos que se enlaçam com outros textos, neles se apoiam e se abrigam, mas também os deformam e destroem e, paradoxalmente, os conservam e prolongam suas vidas. A intertextualidade é complexa e contraditória.
É claro que poderíamos aqui falar em “contexto dialógico”. No entanto, seguiremos Hillis-Miller falando em “parasitismo”: efetivamente se trata de ver como os textos se alimentam uns dos outros em um campo em que tanto se verifica cooperação e mútua inspiração, como também conflito e mútuas ameaças, deformações, “mal-entendidos” etc. Isso muitas vezes está bem oculto, camuflado e reprimido
Psicanálise entre catástrofe e criação
até mesmo para seus autores, que nem sempre se dão conta de quanto devem a outros e quanto destroem e deformam os outros textos de que se alimentam e a que dão sobrevida.
O parasitismo pode ocorrer na forma de imitação – o que gera uma experiência ridiculamente triste; mas o parasitismo pode se dar também em uma forma criativa e alegre em que impera uma “lógica da suplementaridade”, sendo que o suplemento dá um outro destino e sentido ao material de que se alimentou.
Hillis-Miller formula a lógica da suplementaridade com as seguintes palavras: “não só, mas ao invés disso”. Afirma-se e, sem desmentir a afirmação, acrescenta-se uma adversativa que leva o sentido para outro lado. Minha ideia é que esse é exatamente o modo de os grandes autores da psicanálise se relacionarem: não só Freud, mas ao invés dele Ferenczi, e assim por diante.
Na complexa dinâmica que se instaura no campo sobressaem os “usos abusivos” de textos alheios. Os grandes e mais originais pensadores da psicanálise se leem (embora nem sempre confessem), alimentam-se uns dos outros, mas fazem uns aos outros suplementações criativas. No entanto, não podemos ignorar as vicissitudes do parasitismo criativo e seus riscos, vale dizer, os estragos que muitas vezes produzem na compreensão do que leram, citam, transmitem...
Antes de tratar deles, contudo, vamos aproximar os usos abusivos de textos e outros objetos da cultura ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (Andrade, 1928). Não se fala aí em parasitismo, mas – e aqui a influência do Freud de Totem e Tabu é evidente – em canibalismo. É preciso deglutir a cultura europeia para digeri-la na forma de uma cultura brasileira livre, alegre e “abusada”, nesse outro sentido da palavra. De toda forma, usos abusivos e suplementos criativos estão presentes nesse texto de Oswald, um manifesto a favor da criatividade nativa, autóctone, indígena.
8. Existe uma concepção ferencziana da supervisão?1
Renato Mezan
Um problema-bábushka
A questão poderia parecer simples: nada de extraordinário em que o termo “supervisão” não figure nos escritos de Ferenczi, visto que não existia na sua época. O que hoje designamos com ele era então chamado de Kontrollanalyse (análise de, ou sob, controle). No entanto, até essa expressão é bastante rara: vasculhando os índices remissivos das Obras completas e do Diário clínico , encontrei somente duas ocorrências, e mesmo no amplo estudo de André Haynal sobre Ferenczi, La technique, en question , o tema só aparece em conexão com Michael Balint ( 1982 , p. 116 e 142 ), o continuador e divulgador da obra ferencziana. 2
1 O conteúdo deste capítulo é resultado da minha participação na 14a Conferência Internacional da Ferenczi International Network, ao lado de Wania Cidade e Luis Cláudio Figueiredo. Essa participação me permitiu avançar no estudo de um problema que me intriga há bastante tempo, e sobre o qual pude apresentar algumas ideias em uma live no nosso Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi no episódio “Sándor, supervisor de Ferenczi” (2024), do podcast do GBPSF.
2 Paris, Payot, 1982, p. 116 e 142.
entre catástrofe e criação
A respeito da Kontrollanalyse, nos textos do próprio Ferenczi encontramos uma breve nota no Diário clínico, da qual falarei no item 3 deste trabalho, e algumas linhas na conferência “Sobre o processo da formação psicanalítica”, dada em 1928 a um público espanhol (Stein, 19923). Esse meio parágrafo complementa uma passagem sobre a necessidade, para o analista principiante, de que “alguém o ajude a vencer suas resistências”, porque sem tal ajuda isso só pode ser alcançado até certo ponto. Vale a pena tê-la à nossa disposição:
tendo se tornado um compagnon, mas sempre vigiado (surveillé) e controlado, o aprendiz deve tentar a experiência do trabalho independente. Este segundo momento é representado pela análise dita sob controle. Algumas análises são confiadas ao aluno, que trabalha sozinho, mas vai periodicamente relatar esse trabalho ao seu formador, que pode chamar a atenção sobre eventuais erros técnicos, e aconselhá-lo quanto à maneira de conduzir o tratamento. O controle continua até que o aluno seja capaz de trabalhar sozinho.4
A referência é claramente ao sistema inaugurado pelo Instituto de Berlim, e seguido com alterações mínimas nos de Viena e Londres: o famoso tripé análise pessoal + estudo + supervisão. Que esse sistema esteja longe de ter entusiasmado Ferenczi, contudo, não o impediu
3 “Le processus de la formation psychanalytique”, in Oeuvres Complètes, vol. IV, Paris, Payot, 1982, p. 239-245. A mesma passagem é assinalada por Conrad Stein no texto “Em qual lugar falar de seus pacientes?”, in A Supervisão na Psicanálise, São Paulo, Escuta, 1992, p. 23 (versão brasileira do número 31 da revista Etudes Freudiennes, Paris, Association pour Etudes Freudiennes, 1989).
4 “Le processus...”, p. 244. Grifo no original. Na hierarquia das corporações medievais, compagnon designava o artesão capaz de demonstrar sua habilidade no ofício escolhido apresentando ao mestre um artefato bem realizado: algo como o TCC nas nossas universidades atuais.
9. A vida secreta de Ferenczi: a análise mútua como um
paradigma relacional
Peter Rudnytsky1
No dia 5 de janeiro de 2024, fui convidado a fazer uma apresentação online para um grupo em Teerã chamado Manjeh Educational Group, com o título Rescuing psychoanalysis from Freud (“Salvando a psicanálise de Freud”). A declaração de missão do Manjeh Educational Group é a seguinte:
Com a nova onda de promoção da cultura psicanalítica entre os iranianos completando quase duas décadas, chegou a hora de transformar o isolamento acadêmico e institucional em harmonia comparativa e interinstitucional.
O Manjeh analisa seriamente o diálogo e a interação entre o interior e o exterior no contexto sociopolítico.
Eu estava conversando com esse grupo de analistas iranianos, alguns dos quais viviam em outros países, e um membro desse grupo, chamado Kamran Alipanahi, mencionou que havia conhecido Pedro Boschan. Ele mora em Buenos Aires. Pedi a ele que me escrevesse
1 Tradução de Mariana Toledo.
180 Psicanálise entre catástrofe e criação
contando a história de seu encontro com Pedro, que eu gostaria de compartilhar aqui. Ele escreveu:
[...] Foi em um voo de Buenos Aires para Santiago do Chile, em 2008, que tive a oportunidade de conhecer Pedro Boschan e sua esposa. Estávamos sentados na mesma fileira do avião. Naquela época, eu estava prestes a começar minha formação psicanalítica na Associação Psicanalítica da Argentina.
A conversa que tive com Pedro sobre a próxima Conferência Internacional de Ferenczi, em Buenos Aires, foi realmente esclarecedora. Suas percepções e entusiasmo pelo evento despertaram meu interesse pelo trabalho de Ferenczi e pelo campo mais amplo da psicanálise. Após retornar do Chile para Buenos Aires, aprofundei-me nos escritos de Ferenczi, especialmente em seu Diário clínico, que comprei depois de nossa conversa.
Embora eu não tenha participado da Conferência de Ferenczi em Buenos Aires, minha conexão com Pedro e nossa conversa no avião serviram como uma introdução significativa à psicanálise. Para mim, foi uma experiência formadora que influenciou a trajetória da minha carreira e aprofundou meu apreço pela interconexão da nossa comunidade psicanalítica.
À luz dos recentes acontecimentos trágicos, nossas amizades psicanalíticas, de fato, assumem uma importância e um significado ainda maiores. Sou grato pela oportunidade de refletir sobre esse encontro significativo com você e de contribuir para a sua palestra na próxima Conferência de Ferenczi em São Paulo.
Este livro marca um momento importante dos debates psicanalíticos no Brasil, em que é possível dialogar com um autor, tê-lo como inspiração, sem perder de vista seu lugar histórico e político, sua fertilidade e suas limitações – em que se pode pensar, para dizermos de outra forma, para além das escolas fechadas e da submissão acrítica ao instituído. O espírito questionador à consolidação epistemológica da psicanálise em sistemas que se pretendem únicos, ao lado da sensibilidade empática com os modos de sofrimento de seu tempo, é o que melhor pode caracterizar o pensamento de Ferenczi. Aqui ele aparece não como um mestre, mas como um companheiro de percurso caminhando ao nosso lado.