Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

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Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

Berta Hoffmann Azevedo

PAIXÃO E LOUCURA NOS LIMITES DA CLÍNICA

PSICANALÍTICA

Berta Hoffmann Azevedo

Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

© 2025 Berta Hoffmann Azevedo

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Ana Cristina Garcia

Preparação de texto Regiane Miyashiro

Diagramação e revisão Know-how Editorial

Capa Juliana Midori Horie

Imagem da capa “The Evil Mothers”, de Giovanni Segantini

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Azevedo, Berta Hoffmann Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica / Berta Hoffmann Azevedo. –São Paulo : Blucher, 2025.

232 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2616-1 (Impresso)

1. Psicanálise. 2. Clínica psicanalítica. I. Título.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

A convocação para o descabível Daniel Delouya

Apresentação .......................................................................................... 17

Psicanálise, esse ofício apaixonante

Juliana Lang Lima

Introdução .............................................................................................. 21

1. Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica ............... 31

2. Sobre os benefícios clínicos de diferenciar loucura e psicose 47

3. Paixão e sofrimento: quando o objeto de desejo se transforma em objeto de necessidade.................................... 69

4. A captura no circuito da dor: um desafio clínico ..................... 81

5. Quando o brinquedo não brinca: há futuro para a desilusão? 97

6. O Eu e seus abalos sísmicos: contribuições contemporâneas à teoria do trauma .......................................................................... 117

8 Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

7. Do solavanco à despersonalização: a falha de reconhecimento ................................................................ 135

8. Decameron: faces da desobjetalização e o relançar de laços 155

9. Hiperconectividade e autocancelamento: o Eu em tempos de excesso .......................................................... 171

10. Do silêncio ao testemunho: a recuperação do traumático em Édipo Rei como modelo clínico em Psicanálise ................. 185

11. Por uma Psicanálise com sexualidade, ainda ............................ 199

12. Por que ainda ler Freud? ............................................................... 221

1. Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica1

1Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles. (Frida Kahlo)

Próprias do humano e relacionadas entre si, paixão e loucura tocam a vivência originária de indiscriminação e desborde, experiência-limite arrebatadora de embaralhamento, que podemos ler nas palavras de Annie Ernaux sobre a sensação junto ao objeto de sua “paixão simples”. Diz a francesa: “Graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de, às vezes, imaginar que iria chegar ao outro lado” ( 1991 / 2023 , p.  60 ). Guardemos essas palavras.

1 Capítulo baseado nas ideias apresentadas em mesa-redonda no 29º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado de 1 a 4 de novembro de 2023 (Campinas, São Paulo), e no Encontro de Psicanálise na Sigmund Freud Associação Psicanalítica (SIG), em agosto de 2024 (Porto Alegre, Rio Grande do Sul) e publicado como artigo na Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 58, n. 3, 1, 2024

A propósito do trabalho com o Homem dos Lobos, Freud escreve:

As análises que conduzem a uma conclusão favorável em pouco tempo são de valor para a autoestima do terapeuta e para substanciar a importância médica da psicanálise; mas permanecem em grande parte insignificantes no que diz respeito ao progresso do conhecimento científico. Nada de novo se aprende com elas. Na verdade, apenas são bem-sucedidas tão rapidamente porque tudo o que era necessário para a sua realização já era conhecido. A novidade só pode ser obtida de análises que apresentam especiais dificuldades. (1918/2006, p. 21)

Poderíamos começar afirmando que a Psicanálise contemporânea é aquela que leva essa posição freudiana a sua radicalidade máxima, endereçando-se a explorar situações ricas em tais dificuldades e a estender o campo psicanalítico nessas direções. As transferências passionais e as saídas paradoxais para se defender do enlouquecimento – na transferência e fora dela – oferecem um eixo fértil de exploração na escuta.

Água na fervura

Em uma pequena epígrafe a um dos artigos do livro O trabalho do negativo (1993/2010b), André Green, expoente e impulsionador do movimento coletivo de investigação do contemporâneo, faz referência a Bartleby, personagem de Herman Melville de 1853. Uma discreta menção, que dá notícias do campo clínico de interesse do autor de A loucura privada. Bartleby é um escriturário recém-contratado que responde a tudo com um indiferente “Prefiro não”. Recusa-se ao trabalho extra, assim como às tarefas básicas, ou às iniciativas óbvias de se retirar após ser demitido, ou de se alimentar. Tudo é repelido com o perturbador “Prefiro não”. Precursor da literatura do absurdo,

2. Sobre os benefícios clínicos de diferenciar loucura e psicose

Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro e, na ponta, o que parecia ser uma pequena chama. Ele parecia para mim estar lançando-a, por vezes, no meu coração e perfurando minhas entranhas; quando ele a puxava de volta, parecia levá-las junto também, deixando-me em chamas com o grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer; e, apesar de ser tão avassaladora a doçura desta dor excessiva, não conseguia desejar que ela acabasse. A alma está satisfeita agora, com nada menos que Deus. A dor não é corporal, mas espiritual; embora o corpo tenha sua parte nela. É uma carícia de amor tão doce que agora acontece entre a alma e Deus. (Santa Teresa d’Ávila)

No silêncio de um quarto de hospital, a tensão é audível e crescente, subitamente interrompida por uma explosão em gemidos que acompanham o convulsionar do corpo. A excitação motora é, então, substituída pela calmaria da entrega pós-descarga. Do outro lado da tela, quem assiste ao vídeo EEG tem a íntima sensação de adentrar a privacidade do erótico e da loucura.1

1 Uma série de experiências como essa está apresentada e desdobrada no livro Crise pseudoepiléptica, Coleção Clínica Psicanalítica (Azevedo, 2011).

Como não reconhecer a possessão do corpo na crise pseudoepiléptica,2 que parece momentaneamente dissolver as propriedades do Eu de fazer frente à violência pulsional, numa súbita loucura que toma o sujeito? Se uma cena sexual febril testemunha o parentesco do erótico com a loucura ‒ os amantes, afinal, dizem ter sido levados à loucura ‒, a crise descrita tem alguma familiaridade com tudo isso.

O corpo a corpo originário do infans com seu cuidador acorda o pulsional e é nascedouro da paixão. E da loucura. O destempero e a urgência marcam essa relação e não se restringirão a ela. A nascente do sexual não jorra discretamente suas águas. Ao contrário, ela brota anárquica e impetuosa, transbordante e sem contornos. Um sol de incandescência desmedida, capaz de queimar e derreter que, com o auxílio do objeto primário, passará por algum processo de negativação, jamais completo ou absoluto.

Num outro cenário, no calor da discussão conjugal, a fúria exaltada se assemelha a um surto, assim descrita por uma paciente em análise. Uma raiva fervilhante que, enlouquecida, a fez perder a cabeça e dizer coisas horríveis sobre as quais se arrepende. Não sei o que foi que me deu.

Medeia, na peça de Eurípedes, tomada de loucura, foi capaz de matar os filhos para vingar sua dor de amor. Na ânsia descontrolada por tocar o marido traidor a ponto de fazê-lo experimentar o desespero, sacrifica a própria prole, indiferente às consequências para si, tão fixada estava em fazer doer nele.

O êxtase de Santa Teresa, retratado na escultura de Bernini, traz em seu rosto uma expressão ambígua de aspecto orgástico, interpretada como gozo sacrificial por diferentes psicanalistas, como Jacques Lacan (1985 (1972-1973)) e André Green (2021 (1996)). O escultor italiano esculpiu uma boca semiaberta e olhos revirados, num misto de prazer

2 Também nomeada “crise não epiléptica psicogênica” ou “crise funcional”.

3. Paixão e sofrimento: quando o objeto de desejo se transforma em objeto de necessidade1

“Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo, igualmente, a fonte de suas desgraças?” (p. 40), pergunta-se o jovem Werther, na obra de Goethe. Annie Ernoux diz que a oportunidade de viver uma paixão é um verdadeiro luxo, mas quem lê seu livro, Paixão simples, percebe que é também pathos, sofrimento. Afeta. Perturba o circuito de investimento do Eu. Rosa Montero, autora de O perigo de estar lúcida, conta que, mesmo em seus momentos de luto intenso, como na morte do marido, conseguiu manter investimento em sua produção escrita. A única exceção acontecia quando estava apaixonada. Aí, nada mais lhe interessava.

O apaixonamento é fenômeno corriqueiro que, embora não patológico, remonta a experiências de entrega que vulnerabilizam e podem ser intensamente ameaçadoras quando as bases da sustentação narcísica primária se mostram fragilizadas.

Algumas cenas da clínica convocam a pensar a delicadeza dessa entrega.

1 Originalmente apresentado em conferência no ITIPOA em 09 de maio de 2025, em Porto Alegre.

Juan me procurou por questões amorosas: vinha de uma sucessão de relações nada comoventes. Uma história feita de encontros corretos, com parceiras adequadas, mas sem abalo ou tempestade. Tivera namoros, sim, mas nenhum que o fizesse perder o chão. Não se apaixonava, só elas, e isso era frustrante. Será que alguma vez nos seus quase 50 anos viveu uma paixão amorosa?, ele se perguntava. Só se lembra de ter se sentido arrebatado no primeiro amor, um tanto platônico, que o fez sonhar acordado por dias e abater-se fortemente quando nada deu certo. Depois disso, tudo se tornou plano. Seguiu vivendo, trabalhando, relacionando-se – mas os inícios, os meios e os fins se davam no mesmo tom morno.

Era um homem cuidadoso. Não queria ferir ninguém. A atual companheira, por exemplo, era alguém legal – e por isso, ele a advertira não saber do futuro. Como quem avisa amigo é, ele já anunciava não estar muito envolvido.

Da análise, queria saber se precisava mudar ou simplesmente aceitar seu modo de sentir – ou de não sentir. Estaria ele procurando sarna para se coçar? Perguntava-se. A propósito, embora tenha vindo para as sessões, não tinha certeza de que isso fosse para ele. Gostava de entender os processos, cresceu na vida sendo prático e executivo, essa conversa sem direção clara era meio perturbadora, como andar no escuro com os olhos abertos. Sim, um homem no impasse de querer se apaixonar sem perturbar sua estabilidade. Sua vida infantil lhe deu motivos para isso. Desgraças familiares deram provas contundentes da destruição resultante da cegueira pulsional irrefreada e do perigo de estar em condição de vulnerabilidade. Bem-sucedido na vida, organizou-se numa posição ativa pouco conciliável com a entrega à correnteza apaixonada. Seu modo próprio de responder ao horror à dependência protegia o narcisismo por meio de certa neutralização das intensidades. Pede por uma paixão como quem quer comprar um produto, sem poder mergulhar na experiência arriscada de se perder, de seguir as vísceras e atribuir a outro o poder de acessar área vulneráveis ao sofrimento.

4. A captura no circuito da dor: um desafio clínico1

1Porque quando a dor cai sobre você sem paliativos, a primeira coisa que ela lhe arranca é a palavra.

(Rosa Montero)

Luna2 chega ao consultório dizendo que devia ter tomado seu “sossega-leão” para angústia, mas se assim o fizesse não conseguiria vir à sessão. Na verdade, ainda devia tomá-lo. “Espera!”, diz ela segurando-se à cadeira, quase sem respirar. Ficamos as duas em suspensão aguardando que sua respiração voltasse ao normal. “Acho que passou… Não, espera!” Novamente a vejo contrair-se e sua respiração acelerar. Seu olhar apreensivo busca, nos cantos da sala, algum socorro. Acompanho esse vai e vem de sensações dolorosas que ocupam quase toda a sessão e vejo-me sentada com o tronco para a frente em sua direção, apoiada em meus joelhos, tentando captar algo do que ela pudesse estar vivendo. Ocorre-me a ideia de que devia ser como um trabalho de parto, só era preciso sobreviver mais um pouco às

1 Trabalho publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 55, n. 2, 61-72; 2021.

2 Os dados clínicos foram ficcionalizados para proteger a confidencialidade.

contrações que tendiam à expulsão. Retenho esse pensamento; ele me ajuda a estar com ela. “Eu preciso parar de pensar”, ela diz. “O que você está pensando?”, eu pergunto. “Não sei”.

E ela não sabia. É a mesma jovem que me contava de brigas violentas com a mãe sem saber dizer o tema em torno do qual girava o conflito; ou que, em meio ao caos interno provocado por invasões externas, acalmava-se usando a lâmina que fazia brotar do seu corpo o sangue e a dor.

— Nossa! O que foi isso? Deve ter sido angústia, pois ansiedade eu sei que não foi — ela me diz ao fim da sessão.

— É? Como você sabe disso?

— Ah, se fosse ansiedade eu nunca suportaria ter ficado todo esse tempo sentindo… Que fome! Nem me lembro quando foi a última vez que tive fome. Há tempos só como por compulsão.

No início da sessão seguinte, ela me pergunta se conheço o meme da caveira. Mostra-me no celular uma caveira em que se lê: “Minha mãe esperando eu lhe dar um neto”. Achou muito engraçado e apropriado para si mesma, já que sua mãe parece ainda não ter entendido que ela nunca namorará um menino nem engravidará. “Ui, eu nunca ia querer engravidar. Que agonia isso de ter alguém dentro de você!”

Digo a ela que, a propósito do que falava, ia contar um pensamento louco que tive naquela sessão da angústia. Ela dá uma gargalhada e diz que sou mesmo muito louca, mas que poderia me indicar uma psicanalista ótima que conhecia. O sobrenome era Azevedo.

“Bom, como você sabe, não vou engravidar nunca, a menos que sofra um abuso [bate três vezes na madeira]. E, nesse caso, faria um aborto.”

Perpassa a análise com essa paciente, uma problemática clínica que implica um desafio de trabalhar em torno do que não pode ser tocado, do que insiste em não alcançar palavras e resiste às aproximações das conflitivas mais diretamente. Um refúgio que se faz cárcere

5. Quando o brinquedo não brinca: há futuro para a desilusão?1

A sabedoria não consiste em declarar que a loucura é condenável, mas em reconhecer que, no mais sábio, ainda existe muita loucura. (André Green, 1980)

Impasses na clínica

Há algumas semanas que Artemis vinha ao consultório. Trazia no corpo uma resistência viva – reativa, feroz. Roupas? Só as que mal tocavam a pele. Tudo largo, solto. Nos pés da menina, mesmo sob o frio cortante do inverno, somente chinelos. Nada podia prendê-la, conter seu movimento, roçar-lhe o corpo. Sua hipersensibilidade à presença do outro se derramava em mil formas não apenas táteis: um desafio contínuo a minha capacidade transformativa. Na sala, os brinquedos não brincavam, explodiam. As bolinhas de gude, lançadas sem rumo, viravam estilhaços. Atenta, eu colhia os cacos, tentando tecer, entre as

1 Trabalho originalmente publicado na Revista de Psicanálise da SPPA 32(2), Porto Alegre, 2025

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ruínas, um gesto de jogo, uma partilha possível entre analista e analisanda. Foi então que, surpresa, ela parou. Uma súbita ideia:

— Você tem novelo de lã! Fecha os olhos!

Sorri, tocada por um sopro de esperança com o convite. Cerrando os olhos, senti os fios e voltas me envolverem, tecendo lentamente uma prisão macia, até que, imóvel, compreendi: era ela em carne viva que precisava conter a alteridade, imobilizar. Era a vitalidade invasiva do outro que, para ela, ameaçava. Naquele gesto de lã, Artemis me dizia, sem palavras: “Não me invada, não toque demasiado firme, acompanhe-me a uma distância que eu possa suportar”.

A sabedoria popular ensina que mar calmo não faz bom marinheiro. Na Psicanálise, como na arte da navegação, é no turbilhão das águas agitadas, em meio a impasses e desafios, que novos recursos podem emergir; águas turvas, tempestades, navegação incerta, condições para o naufrágio ou para o surgimento do novo.

Foi na confrontação com as adversidades – resistências, insuficiências e dificuldades transferenciais – que, do tronco e raiz freudianos (Mezan, 2014), foram derivando diferentes direções da prática clínica, futuros para as desilusões, campos de exploração teórica que respondiam ao que pedia por respostas. Afinal, como pensava Pontalis (1977/2005), o aparelho teórico ganha ao não funcionar demasiado bem. É a causa do movimento psicanalítico.

Há momentos na clínica em que nos vemos diante de uma dificuldade particular: encontrar uma posição de mínimo conforto para nos instalarmos na transferência do paciente e tocá-lo sem despertar excessiva dor. Diferentemente das sessões em que o fluxo acontece com relativa naturalidade, nessas situações sentimos um mal-estar sutil, porém persistente. Escutar passa a ser árduo, intervir parece arriscado. Surge a sensação de que qualquer gesto – falar ou calar –carrega o risco de excesso ou falta.

É como se a delicada medida entre presença e ausência, proximidade e distância, se rompesse, e o conflito, ao invés de ser expresso

6. O Eu e seus abalos sísmicos: contribuições contemporâneas à teoria do trauma1

Andei lendo sobre movimentos geológicos. Preciso mencionar que nem de longe é minha especialidade, mas acho incrível pensar que, vista do espaço, a Terra aparenta unidade e calmaria maiores do que tem. Pela aparência, não diríamos que sua camada mais externa é formada por placas tectônicas de diferentes tamanhos em constante movimento, embora seus efeitos se façam sentir de tempos em tempos em determinadas localidades. As placas se afastam, movidas pelo magma que é pressionado para a superfície e também se aproximam e colidem umas com as outras, situação na qual tremores de terras podem ser sentidos.

Lendo um pouco, descobri que zonas de tensão são criadas justamente nas bordas das placas e, quando esse acúmulo de pressão é liberado, acontece um terremoto. Esses abalos sísmicos podem ser de grande magnitude, quando, então, são capazes de destruir áreas e construções inteiras. Uma das maiores catástrofes naturais, o tsunami, é também decorrente do choque entre placas tectônicas, dessa

1 Texto publicado na SIG Revista de Psicanálise, 2(13), 2024, com base na apresentação oral de Abertura da VII Jornada da SPFOR, 19 de setembro 2024.

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vez na costa: empurrada por forças do interior do planeta, uma placa entra embaixo da outra, levanta parte dela e faz inundar a região litorânea.

A teoria das placas tectônicas sucedeu de outra, a teoria da deriva continental de Wegner, que defendia que, há milhões de anos, a Terra era composta de um único supercontinente, chamado “Pangeia”. Não apenas o aspecto morfológico dos continentes parecia compor um perfeito quebra-cabeça, mas também a existência de fósseis semelhantes nos diversos continentes foi um argumento para sustentar a hipótese de que a Terra teria sido uma massa única que se dividiu.

Reservemos esse devaneio geológico como alegoria para nos voltarmos aos abalos estruturais no Eu e as contribuições de autores da Psicanálise contemporânea nesse campo. São psicanalistas que desenvolveram suas teorias em terrenos clínicos-limite, áreas de instabilidade nas quais a estrutura do Eu está sujeita a maiores tremores e o estilo aproximativo clássico do psicanalista tende a fazer fracassar nossos esforços.

O território limite da Psicanálise contemporânea

Com Psicanálise contemporânea, não me refiro à adjetivação geral das práticas psicanalíticas de hoje em dia. O sentido que me interessa é aquele atribuído por André Green, que chama de “psicanálise contemporânea” o movimento coletivo de investigação que parte dos limites da analisabilidade para construir modelos que articulem o intrapsíquico e o intersubjetivo e, a partir da noção de enquadre, examine o trabalho de representação e seus fracassos.

Sem constituírem uma nova escola de Psicanálise, os pioneiros desse movimento (Green, Pontalis, McDougall, Aulagnier, Anzieu, Laplanche, entre outros) conviviam no ambiente francês da década de 1970 e partilhavam desafios clínicos comuns, aos quais responderam

7. Do solavanco à despersonalização: a falha de reconhecimento

Em uma viagem de trem, Sigmund Freud foi surpreendido por uma experiência estranha. Após uma sacudida mais violenta, a porta que se comunicava com o toalete se abriu e ele viu entrar em sua cabine um senhor desconhecido, vestido com roupão e gorro. Supôs que, ao sair do banheiro, o ancião se havia equivocado, dirigindo-se à cabine alheia. Qual não foi sua surpresa quando, ao se levantar para adverti-lo, percebeu que o estranho em questão era sua própria imagem refletida na porta da cabine!1

Após anos diagnosticada com epilepsia, Flora foi encaminhada para o exame de vídeo-EEG, por meio do qual os médicos buscavam uma explicação para a falta de sucesso terapêutico. Apesar dos anticonvulsivantes administrados diariamente, as crises continuavam a ser frequentes no dia a dia da jovem que, com o resultado do exame, descobre não haver nenhuma explicação neurológica para as diárias manifestações convulsivas que tanto lhe restringiam a vida há 14 anos. Um súbito encontro com uma dimensão redobrada de si, “infamiliar”. Cada um a sua maneira,

1 Freud (1919/2003, p. 247) relatou o ocorrido.

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Freud e Flora experimentaram uma sensação que o austríaco nomeou como Das Unheimliche .

Em 2011,2 dediquei-me a pensar sobre o sentimento “infamiliar” nas situações como as de Flora. Em alguns desses casos, percorri um caminho clínico que me deixava satisfeita; noutros, sentia que me faltavam recursos para acompanhar os fenômenos apenas com as lógicas ‒ do recalcamento e do princípio de prazer ‒ de que eu dispunha operando em meu pensamento clínico. Minha orientação principal para pensar esses abalos era o Freud de 1919 que, embora tenha escrito na mesma época seu Além do princípio de prazer, ainda não havia extraído todas as consequências da revolução que estava prestes a operar em sua teoria.

De minha parte, aquele foi o motor da busca por novos autores que me ajudassem a pensar a clínica-limite sem abandonar a metapsicologia freudiana.

Freud (1919/2003) dedicou-se a investigar as condições que favoreciam o surgimento desse sentimento e percebeu que a palavra heimlich habita dois campos de significação que, embora não se oponham de maneira absoluta, se encontram bastante distantes: de um lado, o que é familiar, agradável; de outro, o que é clandestino, oculto; e entre os muitos sentidos, há um que paradoxalmente se confunde com seu próprio oposto: unheimlich. Uma amostra do que havia abordado em “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”.

A propósito do Unheimliche, Freud discutiu a origem do sentimento com Ernst Jentsch (1906, cf. Freud, 1919/2003), seu único interlocutor na literatura médico-psicológica sobre o tema.

Jentsch destacou como exemplo de causa de Unheimliche a dúvida sobre se algo é vivo ou inanimado e apontou

2 Azevedo, 2011a.

8. Decameron: faces da desobjetalização e o relançar de laços1

Sonhei que eu estava na China com meus amigos, a gente parou numa banquinha de rua e o atendente era tão bonito que eu me apaixonava. Ele me dizia que ia me levar até o hotel, só que quando chegávamos lá ele se transformava em uma barata, tipo Kafka. Eu sentia nojo, medo e saía correndo. Então apareceu um policial tipo mib que me dizia “que bom que você não teve maior contato com ele, ele iria sugar sua energia”.

Por um triz…

As coisas do mundo só adquirem sentido na medida em que passam por um movimento psíquico de investimento. Trata-se de uma constatação, quem sabe, óbvia essa, para um psicanalista, mas a respeito da qual me vi refletindo ao tentar metabolizar os efeitos contratransferenciais de uma sessão.

1 Publicado originalmente no Jornal de Psicanálise 53(99), 235-248 2020

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Era a terceira semana de quarentena, e meu consultório, como o da maioria, havia migrado para o formato virtual. Eu aguardava por Rebeca, paciente cujo trabalho de análise já durava 1 ano. Ela, ao que parecia, não estava entre aqueles especialmente sensíveis à imperiosa mudança do enquadre pela qual passávamos. Recebeu bem a mudança, compreendia a necessidade do isolamento, exasperava-se de ver a posição negacionista de amigos e governantes. Continuava a trazer suas angústias que, naquele momento, giravam em torno de um relacionamento que exigia dela uma particular dança de aproximações cuidadosas que evitasse espantar o parceiro. Sempre que a proximidade aumentava e a fazia sentir que estavam se envolvendo, ela era surpreendida por um pedido de tempo para que ele pudesse entender o que sentia. No início da quarentena, ele quis ficar com ela, há 10 dias já não mais, nem sabia se aguentava manter algum envolvimento. Ela, então, voltou a estar sozinha em sua casa, trabalhando muito, como sempre fez. É uma moça que se construiu por si mesma, por meio de seu trabalho e estudo, vinda de uma família descrita como simples em todos os sentidos. Ainda que tivessem boa vontade, intuía não poder contar com os pais em nenhuma dimensão que pudesse vir a precisar. Isso eu já sabia de ouvi-la dizer, mas sua solidão e desamparo ganharam corpo e uma violência que, contratransferencialmente, pude agora sentir de modo vívido.

Sem aviso prévio, recebo uma mensagem que me fazia saber que estavam impossíveis as sessões virtuais, e que não mais viria. Fico surpresa, confusa, pergunto-me de onde vinha aquilo e como não escutei algo assim se desenhando. Será que me enganei imaginando poder manter as análises nessas condições de isolamento? Contenho minhas dúvidas e sustento que a aguardaria para a sessão.

Ela aceita se conectar, e a violência do desinvestimento que se apresentou me deixou preocupada, chegando a alcançar em mim um mal-estar físico. Com uma vigorosa barreira montada e uma agitação impaciente, ela me diz que está insuportável tanto

9. Hiperconectividade e autocancelamento: o Eu em tempos de excesso1

Narcisismo em queda livre

Diz um provérbio, citado por Zygmunt Bauman (2000/2021, p. 149), que “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus pais”. Começo este capítulo recortando duas situações clínicas de sofrimento que trazem as tintas do nosso tempo.

A primeira é de uma adolescente que tentou suicídio após uma atitude sua exposta na internet. Sentindo-se revelada como uma péssima pessoa, imaginou não ter mais ambiente para viver, tamanha falha pública, e, impulsivamente, ameaçou a própria vida.

A outra é de uma jovem mulher que não suportava ter rede social: ver a conquista dos outros a perturbava e sentir-se constantemente avaliada era ainda pior. A leitura autorreferente do feed alheio a remetia, por contraste, à própria vida. Por vezes, pontualmente, voltava a se conectar, o que me dava a oportunidade de testemunhar

1 Baseado na apresentação na mesa-redonda “O Eu em tempos de excesso”, no 29° Congresso Brasileiro de Psicanálise da Febrapsi, realizado em Campinas (2023) e publicado na Ide, 46(78), 89-98, 2024.

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a persecutoriedade deflagrada. Sentia-se claramente em perigo, exposta a riscos em seu olhar sobre si mesma. A mobilização narcísica, insuportável nas redes, era apenas uma versão virtual da crítica vigilante que também a torturava nos encontros sociais: assombrada pela ameaça de deslizes de inadequação, era lançada num escrutínio feroz de seus movimentos, o que tornava penosa cada uma dessas interações.

Surge Black mirror como associação: em sua incrível capacidade de construir distopias tão malucas quanto precisas, o episódio Queda livre (Wright, 2016) ofereceu uma caricatura do que os fragmentos clínicos me faziam ver.

A história se passa numa realidade, não tão distante, na qual cada pessoa do mundo tinha sua existência avaliada por meio de um aplicativo. Pessoas bem-cotadas em escala de 0 a 5 recebiam descontos e eram incluídas em programações valorizadas. Notas baixas, por sua vez, rendiam a seus portadores olhares desconfiados de pena ou repulsa.

Na mão, todos estavam munidos de um celular, que, tal qual uma arma, era capaz de destruir uma reputação lapidada com esmero ao longo de dias, meses ou anos. Com um único clique, era possível “negativar” alguém, linguagem relativa a uma avaliação zero, mas também alusiva à ameaça de desaparecimento. A personagem principal, Lacie, era uma boa moça, de sorriso doce, treinado no espelho para capturar likes. O espectador acompanha seu dia a dia preenchido de relações artificiais muito mais alimentadas pela preocupação com a própria imagem que voltadas a um encontro genuíno. A cena de um café bonito, mas sem gosto, retrata seu lugar no mundo naquele momento.

Tudo começa a mudar quando nossa protagonista que, de tão submetida aos veredictos alheios, pouco merece essa denominação, se vê interessada em um pequeno aumento de escore para aquisição de um imóvel. Um consultor de imagem garantiu-lhe orientações. Ela descobre quão valoroso é ter amigas, não quaisquer, nem as de

10. Do silêncio ao testemunho: a recuperação do traumático

em Édipo Rei como modelo

clínico em Psicanálise

A subversão da narrativa hegemônica

Há alguns meses, fui convidada para comentar o artigo Édipo a contrapelo, do psicanalista Luiz Meyer, comentário que se desdobrou no presente capítulo.1 O autor já havia mencionado algumas das ideias ali contidas no lançamento do número 105 do Jornal de Psicanálise (SBPSP, 2023) cujo tema Violações foi organizado em minha editoria. Essa memória me acompanhou na leitura do texto, reverberando no modo como pude apreender a tragédia de Sófocles a partir de então e impactando na construção do texto que segue. Como voltar a pensar em Édipo exclusivamente pela narrativa hegemônica sem atribuir relevância às violações das quais ele fora objeto?

Meyer se atreveu a cocriar com Sófocles, escreveu um poema incluindo a voz abafada do personagem que, antes de ser ativo, sofreu passivamente, e, em cima desse poema, escreveu seu artigo. Diz Adélia Prado (2013, p. 146): “De vez em quando Deus me tira a poesia.

1 Publicado como artigo na Revista de Psicanálise Reverie, 1 (17, 2024) e baseado no comentário desenvolvido pela autora, a convite de Luiz Meyer, em Reunião Científica na SBPSP, no dia 14 de setembro de 2024

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Olho pedra e vejo pedra mesmo”. Não foi o que aconteceu ao autor, que, vendo a mesma pedra pela qual passamos muitas vezes, fez seu labor de poeta e psicanalista e restituiu os avessos, os duplos sentidos, o espaço para o virtual ainda não realizado. Antes dele, Steiner (2018), que inspirou Meyer em seu artigo, havia apontado os traumatismos contínuos pelos quais passara Édipo desde que nasceu.

Grada Kilomba (2018) também deu à tragédia de Édipo o relevo de violência sofrida por seu herói. Na instalação Illusions Vol. II, Oedipus, a autora aborda as tensões mortíferas entre pai e filho no mito para refletir sobre a política da violência e o papel do destino na vida dos que estão inseridos em um sistema que reproduz e perpetua opressão. Em sua abordagem, não é o desejo que ganha destaque, mas a violência pela qual passou Édipo, sentenciado à morte pelo próprio pai. Em sua série, a artista transporta clássicos da mitologia grega para a política atual, num trabalho que questiona a violência do sistema colonial patriarcal.

Nem todos fazemos poesia, mas, como psicanalistas, apostamos em uma capacidade poiética do psiquismo de criar em cima do vivido. É poiesis o que escutamos na clínica. Maturana e Varella (1997) falam da capacidade autopoiética dos sistemas vivos constantemente se autoproduzindo em interação com o meio. Paradoxalmente autônomos e dependentes, uma vez que, para exercer a autocriação, precisam recorrer a recursos do ambiente. Também quando escutamos um paciente, não é da história material que se trata, mas da criação psíquica sobre o acontecido, processos de autocura, já atravessados por defesas erigidas e soluções encontradas. Testemunhamos o que de mais criativo pôde até então ser elaborado para dar conta de vivências intrapsíquicas e intersubjetivas situadas em certa condição histórico-social. Essa resposta ativa a experiência em suas muitas dimensões, produz as narrativas oficiais de cada um de nós.

O que faz a Psicanálise senão interrogar o apego às versões reduzidas dos fatos, abrindo possibilidades subjetivas de movimento? Meyer,

11. Por uma Psicanálise com sexualidade, ainda1

Um dia corriqueiro de consultório poderia inspirar múltiplos interrogantes para dar início a este capítulo. Seleciono duas vinhetas.

Primeiro, uma mãe visivelmente desgastada, que retoma sua análise e relata que a filha, que já tentou tirar a própria vida diversas vezes, passou, há algum tempo, a querer ser tratada no masculino. “Ela cortou o cabelo, ela está com um pequeno grupo de amigos, ..., ela diz..., ela quer..., ela fala... A analista marca: “mas você segue tratando por ‘ela’?”

M — É estranho, não é uma figura de homem, está aquela coisa nem lá nem cá.

B — E as tentativas de suicídio?

M — Acalmaram, pelo menos isso, não tem mais ameaçado nem tentado faz um tempo.

B — Bom, então parece ter surgido aí uma forma mais vivível de existir.

1 Este capítulo é uma reformulação do artigo “Por uma psicanálise com sexualidade”, publicado na Sig Revista de Psicanálise, ano 2, n. 1, 2013.

200 Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

Segundo, uma moça que cresceu sem alarde, sem febre, sem fúria, sem turbulências, presa em promessas que nunca jurou. Carregava ressentimentos amorosos herdados maldigeridos pela mãe, sem jamais trair os pactos com ela. Nada de heterotops. Escolheu um namorado respeitoso, um homem bom, para quem ela era tudo na vida. Um amor que era refúgio seguro. Sempre que se via à beira de um colapso, ele estava lá. Amparava, oferecia segurança, sustentava as bases que tremiam dentro dela. Era a certeza contra desmoronamentos narcísicos, que ameaçavam sua frágil estabilidade e que a trouxeram para análise. Durante o processo, enquanto começava a interrogar as fidelidades alienantes às dores maternas, um sintoma: já não podia transar com ele. Um nojo avassalador, asco, que agora a repelia daquele corpo gordo que parecia ter seios. Um interdito.

Caro Dr. Jung, meus cumprimentos após seu regresso da América, embora não mais tão afetuosos como na última ocasião[...] o senhor reduziu uma boa quantidade de resistência com suas modificações, mas eu não o aconselharia a contar isso como crédito porque, como sabe, quanto mais a gente se afasta do que é novo em Psicanálise mais certeza se tem do aplauso e menos resistências se encontra. (Freud, 1912, p. 523)2

Foi com esse trecho supracitado que Freud respondeu à empolgação de Jung que, na condição de presidente da International Psychoanalytical Association (IPA), voltava de suas conferências americanas nas quais disse ter conseguido diminuir as resistências à Psicanálise retirando o peso do sexual em suas comunicações. Para Freud, de nada adiantava combater as resistências à Psicanálise deixando de ser Psicanálise, e o caminho não deveria ser o afastamento da temática sexual, mas, ao contrário, abordá-la cada vez mais.

2 Tradução nossa.

12. Por que ainda ler Freud?1

Estimulada a produzir um texto acerca das repercussões de um seminário teórico de Freud no espaço de formação analítica, eu me vi refletindo sobre o ato mesmo de ler Freud. Pareceria óbvio que, para o vir a ser psicanalista, a leitura de Freud fosse indispensável. No entanto, com um pouco de observação e inserção nas instituições formadoras de psicanalistas, percebe-se que esta é uma temática mais complexa e que merece desdobramentos. Não se trata apenas de ler ou não Freud – apesar de, em si, essa já ser uma questão pertinente. É que o espírito com que se entra nessa experiência modifica radicalmente o resultado.

Ainda vale a pena ler Freud?

Essa pergunta, dificilmente formulada de maneira explícita, será tomada como eixo de reflexão neste capítulo. Trata-se de uma questão aparentemente simples se empreendermos uma visada superficial, mas que pode se tornar complexa quando levada a sério.

1 Texto vencedor do Prêmio João Bosco Calábria, conferido durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, MS, de 25 a 28 de setembro de 2013 e publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, 4(47, pp. 89-97), 2013.

222 Paixão e loucura nos limites da clínica psicanalítica

Em uma primeira abordagem do problema, a resposta afirmativa aparece como automática: sim, Freud é o pai da Psicanálise, e nós, psicanalistas, devemos lê-lo. A concordância a respeito de que os seminários de Freud devam fazer parte de uma formação analítica não implica, entretanto, um trânsito contínuo pela obra freudiana na atuação clínica de muitos de nós.

Seria possível dividirmos esquematicamente duas posturas diante dos movimentos históricos dentro da Psicanálise. Uma delas, que poderíamos nomear “histórico-genética”, considera o desenvolvimento da Psicanálise na perspectiva dos avanços sucessivos ao longo do tempo. Desse ponto de vista, entende-se que há uma sofisticação da teoria que se dá de maneira linear, de forma que os autores mais recentes se prestam melhor a responder aos problemas clínicos atuais. Seguindo esse modo de ver, poderíamos pensar, por exemplo, em uma evolução das teorias de Melanie Klein em relação às de Freud, e um progresso ainda mais significativo das teorias de Bion em relação às de Klein.

A lógica que deriva dessa visão aponta para uma leitura de Freud que ganha um caráter de conhecimento histórico ‒ pouco afinado às questões problemas contemporâneas ‒ e o que se passa a buscar nas linhas do texto são, portanto, referências de um pensamento já superado, úteis para a compreensão das origens do que se tem hoje, mas não capazes de estimular inquietações ainda atuais. Tal como em uma faculdade de Psicologia, em que, nos primeiros semestres, os alunos acompanham matérias relativas à história da disciplina2 para, depois, adentrar nas teorias ainda válidas para o trabalho atual, uma leitura histórica desse tipo torna o contato com o autor menos indispensável e, frequentemente, vem acompanhada de uma expectativa de que os grandes autores que fizeram escola depois de Freud já tenham

2 É possível estudar sobre a criação do primeiro laboratório de psicologia, sem necessariamente precisar dedicar-se à leitura de Wundt.

A loucura do Eu tomado pelas paixões, o enamoramento apaixonado, as relações passionais, a paixão secreta da loucura privada, as defesas paradoxais, as psicoses: Como podemos pensar a relação entre esses termos? E de cada um deles com a dor e o trauma narcísicos? Por que isso interessa ao psicanalista contemporâneo?

Este livro nasce da urgência clínica. Movido pela escuta de sofrimentos que congelam ou queimam, percorre os limites da loucura, da paixão e da desorganização psíquica. Propõe uma travessia pela linguagem do pensamento louco – íntima, desconcertante –, exigindo do analista hospitalidade e imaginação. Com envolventes vinhetas clínicas e diálogo com autores clássicos e contemporâneos, explora o que desafia o manejo e a simbolização em análises marcadas por paixões extremas e medidas radicais para contê-las. Um convite a pensar pontes em territórios em que a camada civilizatória vacila e os lutos impossíveis fazem gritar os núcleos selvagens da pulsão.

PSICANÁLISE

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