

Marion Minerbo
Morrer de vergonha
MORRER DE VERGONHA
e outros ateliês
volume 4
Marion Minerbo
Revisão técnica
Isabel Lobato Botter
Luciana Botter
Colaboradora
Fernanda de Barros Machado Borges
Morrer de vergonha e outros ateliês – volume 4
© 2025 Marion Minerbo
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Andressa Lira
Preparação de texto Regiane Miyashiro
Diagramação Lira Editorial
Revisão de texto Juliana Leuenroth
Capa Leandro Cunha
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Minerbo, Marion Morrer de vergonha: e outros ateliês/Marion Minerbo; revisão técnica Isabel Lobato Botter, Luciana Botter; colaboradora Fernanda de Barros Machado Borges – São Paulo: Blucher, 2025.
122 p. (Série Ateliê Clínico, 4 v.)
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2683-3 (Impresso)
ISBN 978-85-212-2684-0 (Eletrônico - Epub)
ISBN 978-85-212-2681-9 (Eletrônico - PDF)
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
1. Psicanálise. 2. Clínica psicanalítica. 3. Relatos de caso. I. Título. II. Série. III. Botter, Isabel Lobato. IV. Botter, Luciana. V. Borges, Fernanda de Barros Machado.
CDD 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise CDU 159.964.2
Conteúdo
Morrer de vergonha
“Era só para zoar!”
A gata majestosa
Ateliê 1
Morrer de vergonha
Este foi o primeiro ateliê que registrei por escrito, ainda em 2022, bem antes de ter tido a ideia de publicá-los no formato da Série Ateliê Clínico. Embora uma versão resumida dele já tenha sido publicada em 20231, quis que a versão completa constasse aqui, acrescida de um pós-escrito redigido agora, em 2025. Neste, faço uma releitura do sintoma que traz Oscar para análise a partir de um conceito lacaniano novo para mim: “gozo parasita”. Ele me parece indispensável para organizar e dar sentido a alguns aspectos do material clínico.
Esse caso tem o interesse de ilustrar duas formas de presença do analista em seu trabalho clínico. Uma delas, a mais clássica, é escutar o material como se fosse um sonho: seguir as trilhas associativas, “dar corda” e fazer pequenos toques disruptivos encaminhando o processo de desvelamento
1 Uma versão deste texto está publicada em Almeida, A. P. (org.). (2023). Muito além da formação: diálogos sobre a transmissão e a democratização da psicanálise. Cap. 9 – “Contribuições do ateliê clínico à formação do psicanalista”, pp. 215238. Blucher.
do recalcado. É o que Roussillon (1999) chama de “simbolização secundária”. Entretanto, quando as trilhas associativas se interrompem, quando há um buraco no tecido das representações, cabe ao analista “sonhar” o pesadelo no qual o paciente está aprisionado. O processo de simbolização primária solicita sua imaginação clínica, ou rêverie. Duas formas de presença do analista: escutar como se fosse um sonho e “sonhar” o pesadelo que se repete. Falei muito sobre isso no capítulo “Trauma e simbolização” no meu livro Diálogos sobre a clínica psicanalítica (2016a).
Além disso, foi interessante ver como a clínica convocou uma discussão sobre a diferença entre o sofrimento neurótico e não neurótico. Como numa partitura musical, as mesmas notas (o material clínico) poderiam ser lidas tanto na clave de Sol quanto na clave de Fá. A depender da interpretação da partitura, a melodia é totalmente diferente. Durante um tempo, pensamos estar em terreno não neurótico. Em algum momento, nós nos demos conta de que esse material poderia ser lido também como pertencendo a um terreno neurótico. A situação atual “acordou” uma dimensão do traumático, lançando o paciente, cujo funcionamento psíquico é predominantemente neurótico, em uma “fenda geológica” de natureza não neurótica. Essa fenda colocou uma dificuldade a mais na integração da posição desejante passiva, componente normal – embora conflituoso – da sexualidade infantil. O prazer ligado à passividade estava atravessado pelo traumático da passivação, de tal forma que Oscar temia a primeira como se fosse a segunda.
O tema desse ateliê é a masculinidade ultrajada e revela o horror ao feminino, tão comum na nossa cultura. Durante a discussão, não chegamos a abordar os elementos ligados ao machismo estrutural, que certamente contribuem para que Oscar se sinta emasculado e envergonhado por ter sido feito de “otário”, isto é, de ter sido tratado como uma “mulherzinha”.
Primeiro encontro
Oscar tem em torno de cinquenta anos e é casado. Procura análise depois de uma traição que cometeu.
Eu estava saindo da casa de “massagem” (erótica) que frequentava. Uma massagista, que eu não conhecia, me pediu carona. Achei estranho. Sabia que não tinha que dar carona, mas dei. Ela sugeriu a gente parar num bar para tomar cerveja. Nos encontramos assim por oito meses. Gostava de conversar com ela. Parecia que ela também gostava de mim.
Lá pelas tantas, propôs que eu me separasse da minha mulher para ficar com ela. Eu estava pensando seriamente nisso, até o dia em que revelou que era casada. Fui pego de surpresa. Não tinha percebido que era um golpe. Encerrei o caso com um buquê de flores, mas fiquei arrasado. Cheguei a pensar em me matar, ou em mudar de cidade.
É difícil entender por que ele chama o caso com a mulher da carona de “traição”. Por um lado, Oscar sempre traiu a mulher e nunca se incomodou com isso (“todos os homens traem”). Por outro, com essa massagista, não aconteceu nada além das conversas no bar.
Pergunto à colega por que ele ficou arrasado, isto é, como ele traduziu para si mesmo a situação. Estamos interessados no sentido que ele atribui ao fato, pois interpretamos tudo o que nos acontece a partir do nosso mundo interno.
Ela esclarece que ele não ficou arrasado porque foi rejeitado, mas sim porque morreu de vergonha por não ter percebido que era um golpe. Vergonha, nas palavras dele, de ter sido tão otário. Segundo ele, a única solução seria se matar, ou mudar de cidade.
Ateliê 2
“Era só para zoar!”
Escolhi este ateliê porque ele nos proporcionou a experiência intelectual e emocional de percebermos como nossas teorias implícitas determinam a escuta e, portanto, nossas intervenções.
A colega que apresenta o caso é uma excelente profissional e tem um trabalho importante na área dos transtornos alimentares. As teorias que lhe permitem trabalhar com essa psicopatologia se situam dentro do recorte que estuda o arcaico, as disfunções no vínculo primário e suas consequências sobre o processo de subjetivação. E foi com esses instrumentos – com essas teorias implícitas – que ela procurou escutar e interpretar o material clínico de Marcos.
Imagino que a analista tenha escolhido esse caso para o ateliê porque estava preocupada com o andamento do processo: o paciente estava dando sinais de que achava que não estava adiantando. Este ateliê mostra com clareza como, de fato, a análise pode rodar em falso quando usamos ferramentas teóricas equivocadas.
Acontece que desde o início o material tanto poderia ser escutado tendo como pano de fundo as teorias sobre a neurose (o infantil) quanto as teorias sobre o sofrimento não neurótico (o arcaico). Dizendo de forma um tanto grosseira: a criança-em-Marcos teria dois, três anos ou cinco, seis? Inclusive, as duas problemáticas poderiam estar justapostas. E assim ficamos até que um lindo fragmento sobre o perfume não deixou mais dúvidas e abriu novos caminhos de compreensão.
Por coincidência, os dois primeiros ateliês deste quarto volume tratam do sofrimento masculino. Em “Morrer de vergonha”, vimos Oscar, que procura análise quando se sente destituído de sua masculinidade – na sua leitura, ele foi “feito de otário” por uma massagista. Neste, Marcos sente que não é homem o suficiente porque não banca nada. Procura análise porque se vê como impotente, tanto no sexo quanto na vida. Um morre de vergonha, o outro se deprime.
Primeiro encontro
A colega começa a descrever Marcos, quarenta e poucos anos, divorciado, em análise há dois anos. Descreve-o como uma “pessoa opaca, sem brilho; o começo da sessão é sempre meio sem graça. Melhora um pouco do meio para o fim. Ele sempre rouba cinco minutos no fim da sessão. No começo eu me irritava, agora não me irrito mais”.
M – vamos precisar entender o que significam esses cinco minutos. mas temos tempo…
Marcos chegou dizendo que tem medo de “falhar sexualmente”. Isso aconteceu uma vez na adolescência. Tinha medo de não conseguir se relacionar com nenhuma mulher. Divorciou-se depois de um casamento de quinze anos. Durante esse tempo, teve muitas mulheres.
“era só para zoar!” 43
Segundo ele, era uma tentativa de se expor à cena temida para superar o medo. Uma espécie de terapia comportamental. Não tem problemas quando a mulher não lhe desperta muito interesse, mas toma “um comprimidinho” quando a mulher é “mais interessante, ou tem mais dinheiro do que ele”.
M – oopps! “mulher mais interessante e com mais dinheiro” é uma representação importante, mas de quê? como entender esse material?
Essa representação me remete a um texto que escrevi sobre a inibição sexual de homens diante de mulheres vividas manifestada como “muita areia para meu caminhãozinho” (Minerbo, 2019c). A descrição indica uma relação vivida como assimétrica, isto é, com uma mulher que está bem talhada para servir de suporte transferencial da figura materna. A mulher é “grande” e ele é “pequeno”. Daí o medo de falhar e o comprimidinho. A colega continua. Marcos reclama muito dos pais. Se irrita quando lhe perguntam se precisa de dinheiro. No entanto, usa o carro velho deles. Tem duas motos potentes. Pensa em vendê-las para comprar um carro novo, mas não consegue fazer nada a que se propõe. Na separação, comprou um apartamento, porém, dois anos depois, muitas coisas ainda estão encaixotadas.
M – sempre que alguém se irrita, ou fica com raiva, é porque interpretou a situação de alguma maneira que nos cabe tentar reconhecer. É uma forma de acessarmos aquela subjetividade. em que “planeta” – em que universo subjetivo ele se move? como ele lê o mundo e a si mesmo? sabemos por que Marcos se irrita?
A colega acha que ele se sente infantilizado pelos pais. Faz sentido, pois ele faz questão de dizer que tem uma moto BMW potente
Ateliê 3 A gata majestosa
Escolhi este ateliê por amor à (nossa) arte. Foi especialmente lindo e didático.
Partimos de uma historinha simples, mas intrigante, sobre a relação entre Marta e a gata do namorado. Esse material clínico exigiu certas ferramentas conceituais para poder ser interpretado. O conceito de exclusão primária nos ajudou a reconhecer a experiência dolorosa e traumática de não ter lugar no psiquismo materno – de “estar sobrando”.
Foi surpreendente ver essa mesma configuração se repetir no campo transferencial. A contratransferência – entendida como “barulho que toca o corpo do analista” (Sociedade de Psicanálise de Brasília, 2022) – era, inicialmente, apenas um vago “incômodo”. Sua elaboração durante o ateliê revelou a dor narcísica da analista por “estar sobrando” – agora era ela que estava vivendo a exclusão primária.
No terceiro encontro tivemos mais material sobre a exclusão primária, dessa vez na relação com as amigas. E como se não bastasse, no quarto
encontro a dor narcísica da exclusão primária apareceu com clareza em um material sobre o ex-namorado de Marta – aqui, ele funcionava como um “avatar” da criança-em-Marta.
Tudo isso pôde ser conectado ao sintoma que trouxe Marta para análise. O pavor de perder a mãe era uma projeção alucinatória, no futuro, de um traumático que já tinha acontecido no passado: a súbita exclusão da criança do psiquismo de sua mãe.
Primeiro encontro
Nossa colega apresenta Marta. Tem trinta anos, vive com o namorado na Itália, onde trabalha numa empresa de design. Desde que se conhece por gente, tem pavor de perder a mãe, que tem uns 55 anos e goza de excelente saúde. Há quatro anos procurou análise porque acha que seu medo é “exagerado” e está prejudicando sua vida.
Antes de continuar, nossa colega compartilha um elemento da contratransferência, que ela sabe ser importante, mas não consegue elaborar. Se esquece dessa paciente com frequência, o que não acontece com os demais. Sente que não investe muito nela. Quando tem que levar um caso para supervisão, Marta nunca é uma prioridade. Foi exatamente por isso que nossa colega quis trazer Marta para o ateliê. “Queria oferecer a ela este lugar valioso (o ateliê)”, diz ela.
Mais alguns dados de sua história. A mãe é uma médica que trabalhava num posto de saúde. Quando Marta tinha dois anos, ela se apaixonou e se casou com um médico que conheceu num congresso. Ele era uma sumidade na sua especialidade. Os dois passaram a trabalhar juntos em pesquisas cujo mérito era reconhecido internacionalmente. O pai se casou de novo, mas Marta nunca foi integrada à nova família. Viveu com sua mãe e seu padrasto, com quem se dava muito bem até ele falecer.
Começamos com o pavor que Marta tem de perder a mãe. O exagero e a desproporção indicam a presença da criança-em-Marta. Afetos primitivos, em estado bruto, são a cicatriz viva de um traumático que pertence à outra época e lugar. Sua intensidade sugere que algo não foi elaborado e integrado ao Eu. Ou seja, estamos diante da atualização de elementos inconscientes (clivados) ligados ao arcaico (Minerbo, 2024a). Se considerarmos sua idade cronológica, trinta anos, o pavor realmente é desproporcional. Mas quando entendemos que a criança-no-adulto tem uns dois anos, e ainda depende de sua mãe de forma absoluta, o pavor de perder a mãe não é nada exagerado.
Nossa colega continua. Antes de ir para a Itália, Marta teve um namorado que, segundo ela, a tratava muito mal. Era uma relação abusiva.
M – temos historinhas que mostrem como era essa relação?
Pausa para falar desse termo que uso muito nos ateliês: historinhas. Tem a ver com como entendo e pratico a escuta analítica. Sessão após sessão, o paciente fala de situações que são variações em torno do mesmo tema. Como eu escuto as historinhas? Algumas eu escuto como se fossem um sonho, quer dizer, como representação simbólica ligada à problemática infantil. Outras, como se fosse um pesadelo, isto é, como representação não simbólica ligada à problemática arcaica que continua assombrando o Eu.
Parece estranho? Sim, é estranho; mas a escuta analítica é estranha. Vocês já se perguntaram por que falamos em “fazer uma formação” e não em “fazer um curso” de psicanálise? Afinal, o que formamos – o

