Mais sentido, menos consumo

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Publisher: Edgard Blücher

Editor: Eduardo Blücher

Coordenação editorial: Rafael Fulanetti

Coordenação de produção: Ana Cristina Garcia

Produção editorial: Juliana Midori Horie

Revisão técnica: Marcello Montore

Revisão de texto: Lígia Alves

Capa, projeto gráfico e diagramação: Lara Vollmer

Imagens da capa: Dreamstime (Bota); Depositphotos (Flores)

Mais sentido, menos consumo Movimentos, filosofias e teorias que propõem uma vida com mais propósito e menos demandas

Lara Vollmer © 2025

Editora Edgard Blücher Ltda.

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Segundo Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios, sem autorização escrita da Editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570 Vollmer, Lara Mais sentido, menos consumo : movimentos, filosofias e teorias que propõem uma vida com mais propósito e menos demandas / Lara Vollmer. – São Paulo : Blucher, 2025.

312 p. : il.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2699-4 (Impresso)

1. Consciência ambiental. 2. Consumo sustentável. 3. Desenvolvimento sustentável. 4. Meio ambiente e a sua proteção. 5. Meio ambiente e sociedade. 6. Conservação ambiental – Medidas sociais. 7. Medidas de conservação ambiental. 8. Comunicação e o meio ambiente. I. Título. CDU 502.12

Índice para catálogo sistemático: 1. Consciência ambiental CDU 502.12

Introdução 13

1. Comunicação e consumo sob o prisma do neoliberalismo 19

Condição neoliberal e produção de subjetividades 24

Midiatização da vida 26

O egocentrismo e a falsa promessa de liberdade 28

Tempo: subjetividade neoliberal e culto à velocidade 30

A psiquiatrização da vida 33

Consumo e felicidade como imperativos 38

2. Menos consumo, mais sentido 59

Entre o senso comum e o bom senso 62

Motivações ao não consumo 63

Anomia e vazio de sentido 78

3. Da teoria à prática: quais os caminhos possíveis 81

Movimentos que incentivam a redução do consumo 83

Teorias e outras convergências ao não consumo 120

Slowsumerismo: uma proposta mais abrangente 136

4. Iniciativas públicas e privadas para a redução do consumo 143

Planos de ação global 146

Ações públicas pelo mundo 159

Políticas públicas no Brasil 166

Consumo como statement 172

Comunicação para o Slowsumerismo 198

5.

1 Comunicação e consumo sob o prisma do neoliberalismo

Sacrificamos os velhos deuses imateriais, e ocupamos o templo com o Deus Mercado. Ele nos organiza a Economia, a Política, os hábitos, a vida e até nos financia a aparência de felicidade em prestações e cartões. Pareceria que nascemos somente para consumir e consumir e, quando não podemos, arcamos com a frustração, a pobreza e a autoexclusão.1

– Pepe MUJICA 2

Uma pichação na rua dizia: “Everything is fine, keep shopping ” (Está tudo bem, continue comprando). Olhando ao redor, podia-se observar dezenas de imponentes anúncios ironicamente corroborando aquela transgressora crítica ao sistema, desprovida de qualquer apelo mercadológico.

Mas até quando “estará tudo bem” se continuarmos produzindo e consumindo como temos feito nas últimas décadas?

É preciso buscar uma melhor compreensão sobre o papel da mídia na construção do consumidor e sobre como este pode ou não resistir de forma positiva, tanto para si quanto para o todo. Quais seriam, portanto, as brechas, as possibilidades de ocupação dos meios públicos e privados,

1 Frase proferida em discurso de Mujica na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2013.

2 José Alberto Mujica Cordano (Montevidéu, 1935), conhecido popularmente como Pepe Mujica, foi militante e preso político na época da ditadura militar do Uruguai (1973-1985), chegando a ser Presidente do país entre 2010 e 2015, e Senador entre 2015 e 2018. Mujica passou 14 anos na prisão, tendo saído apenas no final da ditadura. Pepe sempre manteve uma vida simples, e ficou conhecido por ter renunciado aos tantos privilégios inerentes ao cargo de Presidente – incluindo parte do salário –, por defender um estilo de vida simples e moderado quanto a bens materiais e, também, pela forma pragmática e pedagógica como fala e reflete sobre o poder político, a pobreza e a globalização. Mujica foi uma das vozes mais respeitadas da tradição política de esquerda da América Latina, exercendo grande influência nas pessoas ao redor do mundo.

O Relatório Desigualdade S.A. da Oxfam, lançado em 2024, revela que os super-ricos do mundo criaram uma nova era de poder corporativo e monopolista que garante lucros exorbitantes e também controle sobre as economias dos países; revela ainda que essas corporações e seus bilionários alimentam as desigualdades pressionando trabalhadores, negando direitos, evitando o pagamento de impostos, privatizando o Estado e destruindo o planeta.

as oportunidades por trás desse complexo sistema midiático que se reinventa a cada dia com o intuito de nos seduzir e cooptar?

Estima-se que as grandes empresas multinacionais privadas – embora sejam responsáveis por um avanço científico e tecnológico extraordinário –, obtenham mais de 50% do PIB mundial, monopolizando o poder econômico, financeiro, ideológico e político de forma inédita na história. Essas grandes corporações exploram a mão de obra barata de países pobres e expropriam suas riquezas, configurando o sistema de comércio internacional que hoje conhecemos por meio de inúmeras denúncias feitas por órgãos humanitários em todo o mundo. As políticas econômicas globais que vêm sendo aplicadas nas últimas décadas com base em ideologias neoliberais resultam nesse abismo social que vem aumentando a cada dia: o aumento radical do acúmulo e da expropriação do valor do trabalho, ou seja, ao passo que a concentração de renda aumenta, cresce também a desigualdade social e a extrema pobreza no mundo.

É natural, portanto, que, na cartilha do “Deus Mercado” a que Mujica se refere, a recomendação seja a de obter o máximo lucro no menor espaço de tempo, não importa a que custo humano. Nesse ínterim, o mundo se tornou incompreensível para a grande maioria dos indivíduos, que, para alcançar e manter a posição social almejada, bem como para proteger sua autoestima contra uma possível exclusão social, atendem prontamente aos chamados do mercado.

Esse consumidor, bem como sua demanda de consumo e estilo de vida, foi problematizado nesta primeira parte do livro, buscando entender quais os mecanismos de poder, controle e vigilância a que ele se sujeita cotidianamente em uma sociedade midiatizada e globalizada – processo que vem supostamente causando o “esvaziamento de sentido de si e da vida”, bem como o “distanciamento dos afetos” (Safatle, 2015).

Zygmunt Bauman, em sua obra Vida para consumo (2008), aponta e analisa um traço marcante da vida contemporânea, que é a transformação das pessoas em mercadorias e o grande impacto que essa conduta vem causando nas sociedades modernas. Se antes, na sociedade de produtores – baseada em segurança e estabilidade –, o produto do trabalho era transformado em mercadoria, na sociedade de consumidores as próprias pessoas são agora transformadas em mercadoria. O autor afirma que a sociedade de consumidores exerce “pressões coercitivas sobre seus membros desde a infância e ao longo de suas vidas”, deixando a administração do corpo por conta dos indivíduos “espiritualmente treinados e coagidos”. As crianças estabelecem uma dependência de

consumo antes de aprenderem a ler ou escrever, pois todos devem ser “consumidores por vocação”. Essa mudança de foco exigiu uma mudança de “hábitat natural”, agora composto por shoppings e ruas comerciais que exibem seus produtos e divulgam seus serviços. Muitos autores e críticos contemporâneos apontam para essa tendência do indivíduo de empreender a si mesmo, o que configura uma estratégia individual sem qualquer vínculo coletivo ou proteção social fornecida pelo Estado – algo bem conveniente aos que governam – e, portanto, inviável a longo prazo para o próprio indivíduo, que tende a sucumbir psicologicamente, e para uma sociedade que busca ser mais justa e igualitária.

O fato de estarmos sempre nos ressignificando como indivíduos e sociedade faz com que a nossa condição como consumidores seja igualmente mutável, sempre de acordo com a razão de ser e viver vigentes. A geração baby boomer, 3 por exemplo, foi protagonista de uma transformação cultural importante e abrangente, que desencadeou uma nova forma de ser e de consumir que não pode ser ignorada. Alinhada ao efervescente capitalismo – que se consolidou por meio do mercantilismo para culminar na Revolução Industrial com seus novos processos de manufatura e que, a partir daí, não parou de evoluir –, essa geração confiou que o trabalho árduo seria o caminho para o alcance do conforto e do status que só a produção poderia oferecer, e que suas conquistas materiais lhes trariam uma vida melhor do que a geração anterior teve, ao conviver com a guerra e seus parcos recursos. Os baby boomers se destacaram como a geração mais rica da história até então, podendo permanecer nesse posto por muito tempo.

De acordo com o Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR), 4 em 2018 o Brasil tinha cerca de 30 milhões de pessoas na faixa etária 60+, cujo empoderamento fez nascer a revolução da longevidade, termo cunhado por Alexandre Kalache – importante sanitarista e gerontólogo, e atual presidente do ILC-BR –, que prega um envelhecimento mais ativo. Kalache também vê os baby boomers como importante nicho mercadológico que não deve ser negligenciado.

Vendendo-se como libertária, a nova opressão do capitalismo financeiro não censura, não silencia, não impede, não proíbe. Não recorre a nenhum dos dispositivos de dominação normalmente associados ao exercício do poder. Ao contrário, ela nos estimula a contar nossa vida, a nos comunicarmos, a expor nossos desejos e preferências. Isso tudo como se estivéssemos curtindo, gostando, fruindo nossa liberdade individual.

[ Jessé de SOUZA, 2018 ]

3 Baby boomers configuram a geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1964, quando houve um súbito aumento de natalidade em todo o mundo – fenômeno conhecido como baby boom e que deu origem ao termo. Essa geração viveu a Ditadura Militar no Brasil (19641985), e cresceu acreditando que existiria um milagre econômico e a explosão das estatais. Os baby boomers foram sempre muito fiéis no trabalho, permanecendo por muitos anos no mesmo emprego. Gostam da estabilidade financeira, trabalham demais, são bons consumidores, mas não gostam de inovação e não ligam para a opinião dos outros (fontes diversas).

4 O Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR) é uma organização independente, criada como uma usina de ideias (think tank ) em março de 2012, no Rio de Janeiro.

A riqueza do Brasil está nas mãos de pessoas com mais de 55 anos. Temos R$ 1,5 trilhão, que é a riqueza acumulada entre esse público. Com a crise contínua, é fundamental que as empresas abram os olhos.

[...] Precisamos acompanhar as tendências, porque vamos envelhecer diferentemente dos nossos avós e pais. Toda essa dinâmica vai mudar.

[ Alexandre Kalache, Presidente do International Longevity Centre-Brasil e copresidente da Global Alliance of International Longevity Centres ]

Segundo Kalache, esse público ainda representa um mercado consumidor muito importante, pois é sedento por novos horizontes e detém alto poder de conversão, algo bem diferente do que aconteceu nas gerações anteriores.

Certamente, as pessoas envelhecem em contextos diferentes em relação aos de gerações anteriores e influenciam as novas gerações em muitos aspectos, para o bem e para o mal. O consumidor da atualidade vem se constituindo com base nos princípios de trabalho e acúmulo iniciados com a geração baby boomer, o que vem sendo tecido ao longo do tempo em sociedades capitalistas, havendo ainda muita especulação científica sobre como e se isso tudo pode ou não mudar num futuro (nem tão) próximo.

Condição neoliberal e produção de subjetividades

Quando eu compro o mundo fica melhor, o mundo é melhor. E depois deixa de ser.

Aí eu compro outra vez.

– Becky Bloom5

Em um contexto em que o pensar foi deixado de lado para que se tenha o êxito prometido pelo status do ter – algo esperado pela necessidade de distinção e pertencimento –, busca-se a todo custo a razão de ser e viver E assim, como para Becky Bloom, o ter parece não sustentar o mundo melhor por muito tempo na sociedade do hiperconsumo.

O capitalismo neoliberal incita o “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar, fazendo com que os indivíduos racionalizem suas ações em prol de uma dinâmica de maximização de performances. A busca por um eu performático e producente, ou seja, altamente “mercadológico”, é frenética e perene. Esse fenômeno paradoxal da contemporaneidade acarreta danos em nossa experiência sensorial, perceptiva, cognitiva e existencial, levando-nos a um estado tóxico de busca por recompensas instantâneas. Byung-Chul Han, influente filósofo da atualidade, traduz essa aceleração da vida com a carência de ser:

Precisamente à vida desnuda, que acabou se tornando radicalmente transitória, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da produção. Também o aceleramento de hoje tem muito a ver

5

Becky Bloom é a personagem central do filme Delírios de consumo de Becky Bloom (2009).
Menos consumo, mais sentido

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

A expressão “sonho de consumo” tem sido utilizada por muito tempo para definirmos o desejo de possuir ou realizar algo muito especial e estimado. Fato é que tudo pode ser um “sonho de consumo”, e esse algo com frequência é inacessível – daí o termo “sonho”. No que diz respeito ao termo “consumo”, este nos remete ao conjunto de processos socioculturais por meio dos quais se realizam os usos e a apropriação dos bens materiais ou imateriais. Essa noção nos ajuda a perceber nossos atos de consumo como algo mais do que simples exercício de gostos, caprichos e compras em demasia, segundo os julgamentos moralistas ou atitudes individuais, tal como as pesquisas de mercado costumam explorar.

Assim como os hábitos e comportamentos dos indivíduos se transformam a depender das condições socioculturais, também seus sonhos de consumo se modificam com o tempo. Enquanto as avós dos anos 1970 sonhavam com uma geladeira mais moderna, as de hoje podem estar sonhando com uma cirurgia plástica ou um tablet, dependendo do contexto socioeconômico e da produção de subjetividades do momento.

As mercadorias podem ser consideradas instrumentos para a criação de si. Elas regem a subjetividade, constroem identidades e validam os estilos de vida por meio da mídia, que age como uma rica fonte de produção de significados. Levando em conta esses conceitos, que associam a comunicação ao consumo e a mercadoria ao sujeito, analisaremos uma nova forma de ser e estar, na qual o sujeito esquiva-se de alguma forma intencional de alguma forma de consumo – o “não consumo”, ou diminuição do consumo.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma variedade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

[ Stuart HALL, 2006 ]

Há, contudo, um descompasso entre mudança de atitude e mudança de comportamento, o que justifica a dificuldade de uma transformação cultural, que pode demandar muito tempo para acontecer. Uma questão é estarmos de acordo que devemos mudar nossos hábitos de consumo (mudança de atitude); outra, bem diferente – e mais desafiadora –, é mudar efetivamente nossa rotina (mudança de comportamento). Entender melhor como o consumidor vem se estruturando, se organizando e se ressignificando, quais as políticas e resistências que surgem a partir dessa prática e quais as ações comunicacionais que dispomos hoje nesse sentido são algumas das questões que pretendemos compreender melhor daqui para a frente.

Entre o senso comum e o bom senso

O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação.

– Oscar Wilde (1854-1900)

Para o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall, as velhas identidades que reinaram por tanto tempo no mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades que emergem do indivíduo, que se fragmenta em um processo que ele chama de “crise de identidade”. Não há mais estabilidade simbólica no ato de consumir, e as identidades contemporâneas precisam se deslocar para atender a novos valores simbólicos, que sejam congruentes com os novos conhecimentos adquiridos. Para Hall, é nesse movimento que ocorre a perda do sentido de si estável – um deslocamento ou descentralização do sujeito – , que estaria relacionada à globalização e seu impacto sobre as identidades culturais. Esse movimento traz necessidades emergentes de mudança.

Um exemplo disso seria o valor atribuído ao atual discurso verde na comunicação, que faz emergir os sentidos implícitos e explícitos de um importante movimento social que tem na defesa do meio ambiente sua principal preocupação – o ambientalismo. Mesmo o ambientalismo não deixa de transformar desejos e novas necessidades em demandas, que acabam sendo novamente manipuladas pela sociedade de consumo.

[...] novas necessidades exigem novas mercadorias, que por sua vez exigem novas necessidades e desejos; o advento do consumismo augura uma era de obsolescência embutida dos bens oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular na indústria da remoção do lixo (Bauman, 2008).

Condutas ansiosas e obsessivas de consumo têm origem, dentre outras causas, numa insatisfação profunda, gerando angústia e vazio crônicos. É nesse campo “vazio” e desprovido de sentidos que surge um consumidor mais moderado e reflexivo.

Vivemos, portanto, essa complexa dicotomia em que, mesmo com a influência da mídia e da tecnologia, é possível perceber uma pequena, mas crescente parte da sociedade que incita alternativas aos tantos preceitos contemporâneos, buscando respostas em pequenas ações e no “fazer” e “ser”, em vez do “ter”. A despeito de ainda assim fazerem parte do sistema – algo quase impossível de não acontecer dentro das sociedades contemporâneas –, os indivíduos se engajam em movimentos, estilos de vida ou práticas alternativas ao establishment – de que trataremos mais adiante – por questões políticas, sociais ou para sua realização pessoal.

Não podemos negar, contudo, que os comportamentos relativos à diminuição do consumo no país ainda são muito voltados à economia, como desligar lâmpadas ou fechar torneiras. Portanto, as adesões podem depender das condições socioeconômica e cultural desses indivíduos, mas também podem ter como premissa algum sentido no que diz respeito a questões como o aquecimento global e as mazelas causadas à humanidade, os prazeres frugais dos afazeres domésticos diários, o zelo pelo bem-estar e a saúde da família ou a vivência com o natural e a natureza, entre outros que aqui nos interessam. As opções recomendam uma nova visão de mundo, algo diferente do que a ilusão material ou mesmo virtual possam oferecer. De forma mais ampla, os adeptos desses movimentos aspiram a um consumo mais comedido e crítico, ou seja, menos demandas materiais e mais sentido para a vida.

Vivemos, sim, em um sistema que amplia constantemente a produção e encontra sempre novas e sofisticadas formas de impulsionar o consumo, mas há uma miríade significativa de “brechas”, “fugas”, “lacunas”, possibilidades. E é a partir delas que pretendo organizar uma discussão sobre o importante confronto do ter ao ser e fazer

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.

[ Stuart HALL, 2006 ]

Motivações ao não consumo

São muitas as causas de adesão aos movimentos que promovem a redução de consumo em uma ou mais instâncias, portanto é importante compreender quais são as principais motivações que levam o consumidor a diminuir seu consumo, conforme veremos a seguir.

Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então, para que ser cidadão?

Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser consumidor?

[ KRENAK, 2019 ]

Motivação econômica

É de esperar que, em um país como o Brasil, o maior índice de adesão ao consumo sustentável esteja relacionado à economia, motivação claramente identificada pela pesquisa do Instituto Akatu1 intitulada Panorama do Consumo Consciente no Brasil: desafios, barreiras e motivações2 (2018). Diminuir o consumo de água, gás, eletricidade, transporte, planejar compras etc. são os tópicos mais citados que compreendem a principal preocupação da grande maioria de consumidores, algo absolutamente compreensível para a realidade do país. Em outras palavras, o brasileiro que diminui seu consumo almeja, acima de tudo, a diminuição de seus gastos.

Em entrevista à BBC News Brasil, o ex-presidente do Uruguai José Mujica lamenta e admite sua parcela de culpa sobre o que considera ter sido uma falha dos governos latino-americanos nesse sentido:

[...] temos muita gente com fome, sem abrigo ou com casas miseráveis, e conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos – os processos são lentos demais, é mais fácil resolver de imediato o problema da (falta de) comida, porque é algo que fala de imediato à nossa consciência. Mas, não conseguimos cortar a imensa dependência que temos deste mundo atual que se expande cada vez mais. Queremos consumir como o primeiro mundo enquanto ainda não resolvemos nossos problemas mais básicos. Isso resulta na criação de condições brutais de vida.3

Krenak também alertou sobre a necessidade de sermos mais críticos quanto a essa inversão de valores da humanidade na atualidade, quando a cidadania dá lugar ao consumo. Ser um “bom consumidor” é algo imprescindível na vida contemporânea e transforma as pessoas em mercadorias logo cedo, um preceito que serve para todas as sociedades capitalistas, mas que no Brasil se agrava diante do grande abismo socioeconômico.

1 O Instituto Akatu é uma organização que trabalha em prol da conscientização e mobilização do cidadão brasileiro para seu papel de agente transformador, enquanto consumidor, na construção da sustentabilidade da vida no planeta (Akatu, 2021).

2 Tendo como base um levantamento do comportamento diário de 1.090 brasileiros, em 2003 o Instituto Akatu criou uma tipologia para avaliar o grau de consciência dos consumidores, classificando-os em indiferente, iniciante, engajado ou consciente. Com base nessa tipologia, foi elaborado um teste de aplicação online, utilizado pela ONG para concluir uma pesquisa publicada, em 2018, sob o título “Panorama do Consumo Consciente no Brasil: desafios, barreiras e motivações”. Nos resultados foi possível identificar um crescimento no nível de iniciantes, de 32% em 2012 para 38% em 2018

3 Transformamos pobres em consumidores e não em cidadãos, diz Mujic a. Entrevista cedida a Ana Maria Bahiana, BBC News Brasil, Los Angeles, 2018.

3

Da teoria à prática: quais os caminhos possíveis

Motivações sempre encontram caminhos para a realização, e alguns movimentos sociais e estilos de vida vêm se apresentando como soluções para aqueles que buscam o sentido em uma vida “mais leve”. Tais movimentos surgem de iniciativas individuais ou ações coletivas, e, dada a crescente crise do capitalismo assim como o conhecemos, alguns estão se consolidando e aumentando seu número de adeptos exponencialmente.

Na sequência trago os movimentos e teorias mais conhecidos e seus princípios, importantes nesta jornada ao entendimento do que faz ou poderia fazer o indivíduo mudar seus hábitos de consumo de forma muitas vezes surpreendente. Em geral, esses movimentos e teorias podem configurar o coaching midiático que leva os indivíduos ao positivismo exagerado – o que já problematizamos aqui em vários momentos. Entendermos seus conceitos e intenções é tarefa fundamental para a problematização aqui proposta.

Movimentos que incentivam a redução do consumo

Lowsumerism – menos consumo

É ingênuo acreditar que hábitos individuais não interferem na vida de mais ninguém. Lowsumerism é um movimento que deve ser colocado em prática com urgência: o consumismo é um comportamento ultrapassado do qual logo sentiremos vergonha (Lowsumerism, 2015).

Em 2015 a agência de pesquisa de tendências em consumo Box 1824 lançou o videoprotesto The Rise of Lowsumerism, que mostra um estudo

É a partir de reflexões como essa que se incita o questionamento do consumo desenfreado que não está satisfazendo plenamente quem o consome. Isso não significa deixar de consumir. A questão é avaliar a qualidade desse consumo: eu preciso disso? Serei mais feliz com isso? Comprar este produto é incentivar impactos negativos no meio ambiente? Esta é a base do Lowsumerism.

[ BARCELLOS, 2016 ]

sobre o desejo contemporâneo de quebrar o ciclo vicioso do consumismo sendo mais consciente, o que significaria, portanto, consumir menos. O vídeo tinha o implícito objetivo de criar um movimento nesse sentido. Passados dez anos, a ideia não evoluiu como esperado, mas a mensagem continua pertinente e seus criadores garantem que é possível haver mudança por meio do desenvolvimento das microtendências propostas. Para eles, a tendência é de que o mercado acabe por abraçar essa ideia e assuma o papel de “requalificador de desejos”, contribuindo para o consumo mais equilibrado.

O movimento propõe constante reflexão sobre o que consumimos por meio da informação, reflexão e conscientização, ou seja, incita questionamentos sobre o ciclo de vida dos alimentos e objetos e outros produtos que consumimos, de forma a mobilizar nossa consciência de sua necessidade ou não.

A etimologia do termo é bem feliz: low (menos) + consumerism (consumismo): a união das partes gera um anglicismo que podemos entender como o oposto de consumismo. O termo em si é interessante, mas não “pegou” pela dificuldade de entendimento, e fato é que o movimento não traz nenhuma novidade na prática, pois os princípios são os mesmos dos 5Rs da educação ambiental, que também se aplicam ao consumo consciente: repensar, reutilizar, recusar, reduzir e reciclar.

Os grupos de interesse criados a partir desse termo-conceito são poucos e irrelevantes em termos de adesão, levando-nos a crer que suas contribuições são, de fato, o conceito em si e o esclarecedor vídeo que ainda circula nas redes sociais.

Minimalismo

– menos é mais

Não carregues o que você não precisa no bolso, em casa, no coração. – Joshua Becker, The Minimalists

O Minimalismo surgiu em meio a uma série de movimentos artísticos e culturais no século XX, em especial nas artes visuais, design e música. Dentre esses movimentos podemos citar o Cubismo, o Construtivismo, a Vanguarda Russa e o Modernismo. Seus adeptos preocuparam-se em fazer uso de poucos elementos fundamentais como base de suas expressões artísticas e culturais, promovendo a ideia de “menos é mais”, e de que uma linguagem universal da arte é passível de ser compreendida por todos.

Os movimentos minimalistas foram contraposições ao Expressionismo Abstrato, que buscava expressar as emoções dos artistas de forma aleatória, rompendo com a pintura tradicional em um cenário pós-Segunda Guerra Mundial. O Minimalismo foi, portanto, a contraposição da contraposição, cuja principal meta era retirar qualquer traço de expressão biográfica das obras de arte, tais como mensagens subliminares, narrativas escondidas ou qualquer outro tipo de enigma que pudesse eventualmente ser suscitado.

Com o tempo, essa ideia passou a ser sinônimo de sofisticação no campo social. O termo foi expandido para outras áreas sem perder sua essência quanto à simplicidade de elementos e entendimento: hoje é propagada não só por artistas, designers e músicos, mas também por urbanistas, decoradores e estilistas, tendo se tornado um estilo de vida. Um estilo que prega mantermos somente o indispensável, sem qualquer excesso.

Viver com pouco passou a ser um modelo aprimorado de identidade, e o caráter clean se tornou a base para evitar o consumo desnecessário. Resume-se no desejo de viver com menos coisas, liberando espaços físicos e preocupações que o acúmulo acarreta.

Um conceito muito utilizado no minimalismo é o de desapego, que a Filosofia explica como sendo uma ação ou estado no qual o indivíduo supera sua inclinação para a posse de coisas, pessoas ou mesmo ideias para, assim, alcançar uma perspectiva de vida mais elevada. É tida como virtude e sabedoria em muitas religiões orientais, entre elas o jainismo, o taoísmo e o budismo. Sinônimo de abnegação e renúncia, o desapego é uma prática antiga e compreende uma evolução quase espiritual, pois transcende o mundo material e está na base de todos os movimentos de diminuição de consumo.

Outro conceito aparentemente com origem no minimalismo, e do qual já falamos aqui anteriormente, é o destralhe, que significa a ação decorrente da mudança de atitude em relação aos pertences e à própria casa. O desapego deve vir antes do destralhe, caso contrário haverá dor e sofrimento. É preciso retirar dos objetos e afins o sentimento (desapego), para então se livrar deles (destralhe). A ideia do destralhe faz todo o sentido: ao nos livrarmos daquilo que já não nos tem mais qualquer utilidade no campo racional, iniciamos um processo que acaba se estendendo para os pensamentos e relacionamentos. Abre-se espaço para o novo, novas pessoas e novas experiências, configurando uma conquista interior de grande valor e coragem, levando a sentimentos mais próximos da leveza, liberdade e presumida “felicidade”.

O minimalismo é uma ferramenta que pode ajudá-lo a encontrar a liberdade. Liberdade do medo. Liberdade de preocupações. Liberdade de sobrecarga. Liberdade da culpa. Liberdade da depressão. Liberdade das armadilhas da cultura de consumo em torno da qual construímos as nossas vidas. Verdadeira liberdade. Isso não significa que haja algo inerentemente errado em possuir bens materiais. O problema de hoje parece ser o significado que atribuímos às coisas: atribuímos demasiado significado às coisas, muitas vezes renunciando à nossa saúde, aos nossos relacionamentos, às nossas paixões, ao nosso crescimento pessoal e ao nosso desejo de contribuir para além de nós mesmos.

[ Joshua Fields e Ryan Nicodemus, The Minimalists ]

O documentário Minimalism: A Documentary about the Important Things (2015), conta a trajetória de dois jovens que encontram no estilo minimalista o sentido de suas vidas depois de passarem por traumas decorrentes do excesso de trabalho e estresse, ou a perda de um ente querido. Ryan Nicodemus, um dos protagonistas, afirma que “podemos abrir espaço nas nossas vidas com o que realmente importa”, e, ao limpar a bagunça do caminho, eles garantem que é possível se sentir mais livre, leve e feliz. Os jovens contam suas trajetórias e como chegaram a lançar o primeiro de quatro livros, Minimalism: Live a Meaningful Life (2011), com o objetivo de disseminar a ideia dessa vida mais leve. Hoje eles mantêm um portal1 com blog, podcasts, promoções de seus livros com direito a e-book gratuito, newsletters e agenda de eventos. Paradoxalmente, em nada mais suas vidas lembram o minimalismo, mas permanece a ideia de difusão do movimento a partir da popularidade conseguida por ambos, agora conhecidos como The Minimalists

Paradoxal também nos parece a trajetória da guru do minimalismo, Marie Kondo. Seu método, apelidado Konmari, ganhou fama mundial em 2014, quando a autora lançou o livro A mágica da arrumação: a arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida (2014), que logo se tornou best-seller na lista do The New York Times. Com o mantra “organize seu espaço, transforme sua vida” – e o ritual “Este objeto te dá alegria? Se não for o caso, livre-se dele. Mas, antes se despeça dele agradecendo por seus serviços” –, Kondo também foi para o streaming e chegou a uma fortuna avaliada em 8 milhões de dólares.

Seu trabalho sugere que os objetos não apenas nos fazem sentir bem –os objetos também sentem as coisas. Ela escreve sobre livros antigos que precisam ser “acordados” com o toque das pontas dos dedos e meias que “suspiram de alívio” por estarem devidamente dobradas.

Contrassenso ou não, o primeiro item do menu em seu site2 é o de compra online, onde podemos encontrar inúmeros itens que prometem “auxiliar” nessa missão, desde caixas para organização, livros, prateleiras, produtos de limpeza, óculos, incensos, itens holísticos, fragrâncias e até objetos da cultura japonesa que nada têm a ver com o contexto minimalista. Assim como os minimalistas Joshua e Ryan, Marie Kondo configura o que alguns críticos classificam como “o novo consumismo espiritual”.

1 Disponível em: https://www.theminimalists.com.

2 Disponível em: https://konmari.com.

O mundo precisa de liderança mais do que nunca.

Iniciativas públicas e privadas para a redução do consumo

Para continuar a envolvê-lo como uma potência responsável.

Ser uma força de paz e de mudança positiva.

– Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

As recentes atividades econômicas no mundo vêm colocando uma enorme pressão sobre o planeta, acelerando a mudança climática e destruindo biodiversidade e ecossistemas, além de aumentar os níveis de poluição e lixo de forma progressiva e preocupante. Não seria exagero afirmar que a humanidade, na era do Antropoceno, vem travando uma guerra contra a natureza e o que muitos cientistas acreditam, de forma suicida. Nos últimos anos pudemos assistir a inundações, incêndios florestais, invasão de gafanhotos e uma crise pandêmica de proporções desastrosas, deixando o mundo cada dia mais em alerta, deprimido e preocupado.

No entanto, parece haver uma grande vontade de proteger o futuro do planeta e de toda a biodiversidade, por meio de planos e pactos globais ou regionais que propõem, entre outras coisas igualmente importantes, transformar os padrões de produção e consumo para modelos mais sustentáveis, num movimento de cima para baixo.

Com o objetivo de traçar um panorama sobre ações e intenções de produção e consumo mais responsáveis em todos os níveis, é importante fazer um levantamento de ações públicas que vêm obtendo bons resultados nas esferas global e local. E são muitas, mas falaremos das mais relevantes. Também buscaremos situar o Brasil nesses contextos, para um melhor entendimento sobre nossas perspectivas enquanto cidadãos, comunidade e nação.

Planos de ação global

Agenda 2030

A Agenda 2030 é a nossa Declaração Global de Interdependência. – Antonio Guterres, Secretário-Geral da ONU

A Agenda 2030 foi o resultado da Assembleia Geral das Nações Unidas de setembro de 2015 em Nova York, quando 193 Estados-membros da ONU reconheceram que o maior desafio global – o que estaria diretamente ligado ao desafio do desenvolvimento sustentável do planeta – é a erradicação da pobreza em todas as suas formas e proporções. Trata-se, portanto, de um plano de ação com 17 ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (em inglês, GSD – The Global Goals for Sustainable Development ), contendo 169 metas ao todo que visam “transformar o mundo” e fortalecer a paz universal e a promoção de uma vida digna e justa para todos.

Os 17 ODS compreendem questões de desenvolvimento social, econômico e ambiental, tais como pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social. As 169 metas são amplas e interdependentes, organizadas para que cada país possa desenvolvê-las de acordo com suas prioridades.

Embora todos os ODS tenham uma forte relação com o consumo em si, seja pela prejudicial falta dele (pobreza e fome), seja pelo seu danoso excesso (crescimento econômico e cidades insustentáveis), o Objetivo 12

Os 17 ODS da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Fonte: Plataforma Agenda 2030.

(garantir padrões de consumo e de produção sustentáveis) fala sobre Consumo e Produção Responsáveis, definindo metas específicas nesse sentido:

Para alcançar as metas deste ODS, a mudança nos padrões de consumo e produção se configuram como medidas indispensáveis na redução da pegada ecológica sobre o meio ambiente. Essas medidas são a base do desenvolvimento econômico e social sustentável. As metas do ODS 12 visam à promoção da eficiência do uso de recursos energéticos e naturais, da infraestrutura sustentável, do acesso a serviços básicos. Além disso, o objetivo prioriza a informação, a gestão coordenada, a transparência e a responsabilização dos atores consumidores de recursos naturais como ferramentas-chave para o alcance de padrões mais sustentáveis de produção e consumo.1

Por serem metas globais, as ideias giram em torno das responsabilidades de governos e empresas em racionalizar e extinguir políticas e práticas danosas à humanidade e meio ambiente, adotando outras mais sustentáveis e benéficas a médio e longo prazos, porém a meta 12.8 também busca uma conscientização em massa, quando diz que

12.8 – Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e consciencialização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.2

O ODS 12 e suas metas devem ser também compreendidos como facilitadores a mais para a implementação dos demais objetivos e metas da Agenda 2030, ou seja, alcançar o consumo e a produção sustentáveis, seja no âmbito público ou privado, favorece o cumprimento não apenas do próprio ODS 12, mas de todos os demais objetivos da Agenda, de forma significativa e simultânea, direta ou indiretamente.

A Agenda 2030 é a síntese de uma grande rede de informações e serviços que vem sendo tecida há anos por organizações interessadas no desenvolvimento global mais sustentável, e suas raízes combinam várias ferramentas desenvolvidas para a sua realização. Antes dos 17 ODS, havia os 8 ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que foram o resultado de uma série de cúpulas realizadas nos anos 1990 e culminadas no Fórum do Milênio, com maior preocupação com o desenvolvimento humano e, principalmente, a redução da extrema pobreza.

1 Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/ods/12.

2 Disponível em: https://ods.pt/objectivos/12-producao-e-consumo-sustentaveis.

Os 17 Objetivos são integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. São como uma lista de tarefas a serem cumpridas pelos governos, a sociedade civil, o setor privado e todos os cidadãos na jornada coletiva para um 2030 sustentável. Nos próximos anos de implementação da Agenda 2030, os ODS e suas metas irão estimular e apoiar ações em áreas de importância crucial para a humanidade: Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e Parcerias.

[ Agenda 2030, ONU ]

No ano 2000, os Estados-membros da ONU adotaram a Declaração do Milênio e os ODM, resultados do Fórum, incitando o mundo a enfrentar estes oito desafios sociais já no início do século XXI.

de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Fonte: Plataforma Agenda 2030.

Durante 15 anos, os ODM e a Declaração do Milênio foram a estrutura global para o desenvolvimento, contribuindo na orientação de ações governamentais em todos os níveis – local, nacional e internacional. Em 2010 houve uma pressão na Cúpula das Nações Unidas para acelerar a implementação dos Objetivos, culminando na reelaboração destes em 2015, em função das emergências globais no que tange à sustentabilidade do planeta.

Uma nova era pós-2015 exige uma nova visão e uma estrutura responsiva. O desenvolvimento sustentável – impulsionado pela integração do crescimento econômico, justiça social e sustentabilidade ambiental – deve se tornar o nosso princípio orientador e procedimento operacional padrão.3

No que confere ao Objetivo 12 da atual Agenda 2030 (Consumo e Produção Responsáveis), é igualmente importante conhecer suas origens. Na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20 em 2012, os chefes de Estado convergiram em torno da ideia de que mudanças fundamentais em nossos padrões de produção e consumo são indispensáveis para alcançar o desenvolvimento sustentável de longo prazo. Ao constatar que essa tarefa não seria fácil e exigiria o compromisso de diversos atores em todo o mundo, foi adotado um quadro decenal de programas sobre Consumo e Produção Sustentáveis. Secretariado pelo PNUMA, 4 o 10YFP (10-Year Framework of Programmes on Sustainable Consumption and Production Patterns), é um quadro com-

3 Trecho do primeiro relatório da ONU dedicado à futura agenda – Uma Vida Digna para Todos.

4 O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, PNUMA ou, em inglês, United Nations Environment Programme, UNEP, é um programa fundado em 1972 no Quênia, e voltado à proteção do meio ambiente e à promoção do desenvolvimento sustentável no mundo.

Objetivos

5

Quanto estamos dispostos a mudar?

A linguagem nunca é transparente.

– Eni Orlandi, 2010

Para compreender melhor como a redução do consumo vem se estabelecendo na relação entre estilo de vida e sentido de vida, foi preciso sair da teoria e partir para o campo, a empiria, cujos resultados forneceram subsídios para analisarmos melhor os polos de subjetividade que aqui nos interessam, a saber, do neossumidor e do slowsumidor. Portanto, foram realizadas dez entrevistas em profundidade, sendo cinco de cada, que foram posteriormente analisadas e confrontadas.

É importante entender que o sujeito discursivo atua pelo inconsciente e pela ideologia, sentidos a partir dos quais sua fala é afetada instintivamente. O sujeito, portanto, não tem condições de optar por estar dentro ou fora da ideologia: ele é atravessado por ela, assujeitado a uma condição que, por mais que pareça evidente, escapa aos seus próprios olhos.

As palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós (Orlandi, 2010).

A pesquisa qualitativa em profundidade adotada não foi uma escolha contingente: ela está intimamente ligada ao compromisso deste livro, que é investigar e examinar em nuances as causas e efeitos das escolhas de consumo nos dois polos de subjetividade apresentados, por meio de relatos produzidos a partir de estímulos induzidos pelo entrevistador. A observação e análise dessas narrativas de estilos de vida e práticas de consumo permitiram certo percurso temporal e textual através da cultura e memória social dos entrevistados, o que acabou possibilitando

observarmos convergências e divergências nas questões apresentadas. Com as análises, foi possível também desvelar as múltiplas relações entre intenção e ação que envolvem os sujeitos.

A busca e a escolha dos entrevistados foram longas e complexas, mas seu processo não contribuiria muito neste livro, então focaremos as questões que realmente importam para uma boa compreensão do processo, bem como dos resultados, que serão posteriormente apresentados.

A análise dos grupos

Diga-me com quem andas e te direi se irei junto. – Contraditado popular

Foram entrevistados membros dos dois grupos de interesse: o primeiro grupo composto por cinco pessoas com nenhum ou pouco envolvimento com movimentos e práticas de redução de consumo, que denominaremos aqui Grupo N (neossumidores); e o segundo grupo composto por cinco pessoas envolvidas com movimentos de não consumo e/ou suas práticas, que denominaremos Grupo S (slowsumidores).

O universo de estudo

A primeira tentativa de seleção dos entrevistados foi realizada com base na observação de grupos de interesse na rede social Facebook. Após algum tempo, foram escolhidos dois grupos, um em cada polo, cujas características e premissas se alinharam rapidamente às expectativas acima caracterizadas. São eles:

Grupo N – Prosperidade Financeira

Descrição do grupo no Facebook: “Grupo destinado às pessoas que querem conversar e/ou aprender sobre Prosperidade Financeira”.

Grupo S – Viver a Custo Zero

Descrição do grupo no Facebook: “Viver a custo zero é um movimento que busca resgatar a essência da felicidade através de uma vida mais simples e reduzindo drasticamente nosso custo de vida. Aqui nós vamos discutir temas relacionados a viver com menos, ao minimalismo, ao sobrevivencialismo, à permacultura, tutoriais do tipo ‘faça você mesmo’, entre outros. Compartilhe este movimento!”.

Os dois grupos de interesse foram escolhidos segundo alguns critérios de acessibilidade e representatividade: são grupos abertos e atuantes dentro do território nacional; têm participação ativa dos integrantes, não ficando apenas ao administrador a responsabilidade de atualização da página; são os mais representativos dentro de suas premissas (ganhar dinheiro/diminuir consumo); e têm maior representatividade entre outros grupos similares de interesse. Essa tentativa de seleção dos entrevistados teve êxito parcial com o auxílio de posts com convites em busca de voluntários para as entrevistas, que foram enviados nos dois grupos simultaneamente, mas o retorno foi desproporcional ao extremo: enquanto o Grupo N teve apenas um like, o Grupo S teve 58 likes e 80 retornos de pessoas se prontificando à entrevista.

Na busca de explicações para esse fenômeno, fizemos uma averiguação no perfil dos membros de cada grupo, o que nos levou às seguintes considerações:

Quadro de considerações a partir dos grupos de interesse.

Chamou a atenção a questão iconográfica peculiar de cada grupo, que pudemos confirmar em similares adjacentes: enquanto o grupo Prosperidade Financeira posta constantemente imagens genéricas – em geral disponíveis em bancos de imagens, com mensagens motivacionais e de autoajuda, como “pense grande”, “acredite”, “prosperar é...” –, o grupo Viver a Custo Zero exibe fotos realistas, de situações em geral vividas pelos membros, como frutas tiradas do pé, ovos colhidos, comidas caseiras feitas em fogão a lenha, sacolas feitas de sacos de ração etc. A própria foto da timeline mostra a questão do abstrato x concreto e intenção x ação, bem como a proposta de cada grupo: ganhar dinheiro e viver com menos

As imagens falam por si e refletem as subjetividades de cada grupo de forma explícita e pujante. No primeiro grupo, os posts prometem, sugerem, prenunciam. No segundo mostram, evidenciam, compartilham, comprovam. Um lança um futuro incerto, outro exibe um presente experimentado.

Print das páginas iniciais dos dois grupos, com as imagens em destaque. Fonte: Facebook.

Quadro comparativo de características observadas nas imagens dos grupos N e S.

Apresentando os grupos

Os entrevistados foram escolhidos dentro de um contexto preestabelecido pela pesquisa, de modo a evitar mesmices ou indiferenças durante as entrevistas. Esse tipo de escolha (amostragem) é considerado o mais seguro e recomendado, desde que haja bons critérios de julgamento.

O processo se deu em algumas etapas, sendo a primeira a familiarização com os grupos de interesse para entender o modus operandi de cada um através da observação dos integrantes e investigação dos perfis em destaque, e por fim o contato e convite por meio de uma mensagem privada. Mediante o aceite, foi feito o agendamento da entrevista.

Considerações finais

Se você não mudar a direção, terminará exatamente onde partiu.

– Provérbio chinês

Neste momento conclusivo do livro, há uma pergunta (ainda que retórica) que ecoa de forma persistente: afinal, por que nos distanciamos tanto da natureza? Uma pergunta para muitas respostas possíveis e complementares, é sabido. Essa questão, bem como outras da mesma ordem, apontam à importância de voltarmos nossos olhos para a vida e seu fluxo contínuo, de forma a nos integrarmos novamente com o todo. Mas um ser humano integrado que goza livremente do espetáculo da vida nada teme? Nem mesmo a própria morte?

A ideia ocidental e negativa de morte, esta à qual estamos acostumados, bem como nossa relação com ela, talvez tenha sido o ponto mais intrigante do trabalho. Afinal, quais subjetividades inculcadas pelo sistema capitalista neoliberal, bem como em sua condescendente mídia, estão afetando o indivíduo a ponto de lhe causar tanto medo da morte? Teria esse medo uma relação direta com o distanciamento da natureza?

Arrisco dizer que esse indivíduo, paradoxalmente egocentrado e distante de si, perdeu seu instinto e se transmutou, a ponto de não se conectar mais com a própria natureza. No entanto se conecta com as novas tecnologias digitais do viver. Tornou-se o vírus de si mesmo, e vaga num ecossistema estranho, o eu, assim como acontece quando uma doença autoimune se instala no organismo e não se reconhece mais como parte do corpo, pois já não se enxerga no todo. A ironia é que o autoataque em doenças autoimunes é uma forma legítima de defesa, e, no caso desse indivíduo, a manifestação cega do medo da morte. Uma morte simbólica.

O que o sistema e a mídia nos inculcam sistematicamente, portanto, é esta morte simbólica: não consumir é o mesmo que não existir.

Aforismos à parte, o desconectado neossumidor está agora longe da natureza e de sua própria natureza (redundância?), embora seja muito voltado a si mesmo. Ele se olha, mas não se sente, e, anestesiado, segue rumo a um futuro que lhe foi prometido sem qualquer garantia – aquele para o qual ele investe diariamente seu verdadeiro eu. O neossumidor vive à espera desse futuro incerto.

O slowsumidor não demonstrou ter muito medo da morte, mas sim de não viver. O não viver é a morte para ele, e essa é a grande diferença entre ambos: viver tem relação direta com o presente e com a imaterialidade da alma, enquanto morrer tem relação com o futuro e a materialidade do corpo.

Percebe-se que as dificuldades e preocupações individuais são de mesma proporção e intensidade em ambos os polos, mas de diferentes ordens, pois enquanto indivíduo (eu) o slowsumidor se concentra no presente (e todas as suas mazelas), e o neossumidor se preocupa com o futuro (e todas as suas incertezas). Quando o assunto é o meio ambiente (o todo), essa relação presente/futuro se inverte, e as atitudes de cada um perante o consumo são a maior prova disso.

A recusa nos parece ser a forma mais efetiva de praticar o slowsumerismo: pequenas recusas, tanto da produção material quanto de subjetividades que buscam a conformação, parecem ser o mais eficiente antídoto, a fresta, a brecha necessária para mudar a ordem compulsória de um sistema que não vem oferecendo muito sentido e que abala a nossa existência. Recusar talvez seja o mais importante “R” da educação para o futuro, pois nele estão implícitos todos os demais.

Conforme já mencionado, o slowsumidor não é um tipo de consumidor utópico, mas absolutamente lícito e possível. Silas é a maior prova disso.

Relação dos grupos N e S com presente e futuro.

Mas é importante deixar claro que para ser um slowsumidor nos moldes aqui estabelecidos não é preciso gabaritar o quadro de intenções; basta atingir 50% delas.

É importante frisar que a condição de slowsumidor não requer o abandono do conforto conquistado, nem mesmo a renúncia ao dinheiro e tudo o que ele pode nos proporcionar. Essa condição requer uma mudança de visão de mundo que fará com que conforto e dinheiro tenham outras dimensões: deve-se economizar recursos em vista ao respeito que se tem por eles, e não porque poderá vir a faltar um dia, como nos ensinou Sol de forma tão eloquente. Atitude, somente, já não é suficiente. É preciso reestruturar as bases da vida através da reconexão com o todo, e ensinar às próximas gerações a importância dessa conexão e do todo. Nesse sentido, o termo slowsumerismo é contundente: razão e ação em prol de uma nova ordem de ser e viver com mais sentido para si e para o mundo.

Os meios de comunicação hoje incitam essa produção de subjetividades capazes de nos moldar ao longo da vida a ponto de deixarmos até mesmo de pensar, como relata Norton em um momento de insight sobre si. Freud já alertava quanto à renúncia progressiva dos instintos como um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana, mas também atentou ao fato de que nenhuma renúncia ao instinto pode ser aceita sem causar algum tipo de sofrimento, e o sofrimento hoje é de ordem neuronal, como bem aponta Han (2017).

Outro ponto relevante diz respeito aos conceitos que diferem de grupo para grupo, a exemplo de sucesso. O nosso aparato midiático neoliberal é muito voltado para a disseminação da ideia de sucesso relacionada a trabalho, dinheiro e bens materiais. Sueli se ressentiu por não ter podido seguir as artes, pois segundo seus pais esse caminho não a levaria ao sucesso. Sergio ainda trava uma luta para desconstruir esse conceito inspirado por seu pai, uma ideia que, claramente, nunca lhe serviu. Ambos, slowsumidores em transição, Sueli e Sergio mergulharam em questionamentos vida afora para, enfim, encontrarem um melhor entendimento do que seria sucesso para eles. Mas esse processo de desconstrução conceitual tende a ser muito difícil em muitos aspectos, principalmente porque a sociedade de consumo impõe pressões desde nossa infância, seguindo ao longo de nossas vidas.

Vivemos agora na sociedade do cansaço de Han (2017), com toda essa violência neuronal em que os indivíduos se cobram para apresentar resultados, tornando-se vigilantes de suas próprias ações, carrascos de si mesmos. Estamos agora cansados de argumentos que não se sustentam

Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida.

[ Ailton KRENAK, 2020 ]

e futuros que nunca chegam, o que faz com que a maioria ainda opte por afetos instantâneos e explicações rasas para lidar com o excesso de significantes vazios em que habitamos.

Outras questões ligadas à ideia ocidental de sucesso, como vaidade, poder e status, importaram muito mais aos neossumidores, como garantias para obtenção de suas subjetividades. Nuno ensina o caminho: status lhe confere poder, e este alimenta sua vaidade. Contudo, os conflitos acerca desse ciclo vicioso contemporâneo são evidentes em nossos entrevistados neossumidores, bem como nos slowsumidores ainda em transição. Silas e Sol são os únicos aparentemente alheios a essa idealização.

A questão do tempo gerou muitos entendimentos sobre o quanto as subjetividades neoliberais vêm causando danos no subconsciente das pessoas. Como já mencionado, o sistema e suas promessas levam o neossumidor a esperar pelo futuro, mas é justamente no presente que os efeitos dessas promessas mais o atingem, através da vida ritmada à produtividade. Ele é compelido a essa maximização de performances da forma mais contínua e permanente possível: sempre com pressa, sempre atrasado, sempre cadenciado pelo relógio ou pela agenda cheia de compromissos – o agendamento midiático de cunho neoliberal a que nos referimos –, e, agora, sonha com o descanso, a pausa, a aposentadoria, a possibilidade de vir a ter mais tempo para si e para os familiares.

O sistema pouco nos permite pausar, contemplar, descansar. E, quando o fazemos, acreditamos que o merecimento por aquilo deve ser “a qualquer custo”, seja ao bolso, seja ao mundo. Sueli relata bem sua mudança de visão de mundo:

Eu queria fazer uma viagem pela América Latina hoje, porque quando eu viajei eu tinha um olhar muito diferente do que eu tenho hoje, sabe? Principalmente relacionado à cultura dos povos, a relação dos povos com a terra, com o plantio... no Peru, gente! como eu não prestei atenção nisso? Tinha mais de 300 tipos de batata! Eu sentava e comia as batatas! Hoje, eu sentaria no chão lá com eles, na minha hora do almoço, e perguntaria: – pelamordedeus, me contem como vocês plantam essa batata! Eu não tinha essa noção, sabe? Hoje seria uma outra viagem. Como foi pobre a minha vivência (Sueli, 48).

“Deus visita a gente toda hora, mas a gente nunca tá em casa”, disse Sol em determinado momento da entrevista. Estaríamos sempre no futuro –o que ela associou à ansiedade –, ou no passado – à depressão. Estar no presente e empreendê-lo sem pensar em uma suposta utilidade da vida

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