
R. M. S. Cassorla
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R. M. S. Cassorla
Fanatismo, negacionismo, mentira: estudos psicanalíticos
© 2025 R. M. S. Cassorla
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Andressa Lira
Preparação de texto Mariana Góis
Diagramação Lira Editorial
Revisão de texto Regiane da Silva Miyashiro
Capa Laércio Flenic
Imagem da capa Rafael Monteiro Smeke
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Cassorla, R. M. S.
Fanatismo, negacionismo, mentira : estudos psicanalíticos / R. M. S. Cassorla. – São Paulo : Blucher, 2025.
208 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2570-6 (impresso)
ISBN 978-85-212-2569-0 (eletrônico - Epub)
ISBN 978-85-212-2568-3 (eletrônico - PDF)
1. Psicanálise. 2. Psicologia social. 3. Fanatismo. I. Título.
CDU 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicologia social CDU 159.964.2
1. Fanatismo no campo social
2. Fanatismo: entre os campos social e analítico 25
3. Fanatismo no campo analítico
4. Fanatismos contemporâneos: Anders Breivik 49
5. Negações e negacionismo
6. Convicção, mentiras e negacionismo 79
7. Barbárie: especulações a partir do caso Schreber
8. Curiosidade e fazer “vista grossa”: reflexões sobre a busca/fuga da verdade
9. Mentira e sedução perversa
10. A mentira no campo analítico
11. Por um certo elogio da mentira: outros vértices de observação
8 fanatismo, negacionismo, mentira: estudos psicanalíticos
12. Manifestações do fanatismo, negacionismo e mentiras: um exercício de psicanálise aplicada 171
13. Fanatismo e plenitude: pequenas estórias 185
Referências 195
Sabemos que a psicanálise é uma psicologia do particular e, ao mesmo tempo uma psicologia social, que se vale de indícios para investigar o funcionamento mental. A formação de nossa psique depende intrinsecamente do vínculo com o outro. A internalização adequada desse vínculo permite a alteridade, condição básica para a humanização. Dessa forma, o indivíduo se torna eticamente comprometido com a hospitalidade, tanto para o similar como, principalmente, para o diferente. O mito de Narciso nos mostra as consequências mortíferas de falhas nesse processo e o mito de Édipo revela as complexas vicissitudes dessa conquista.
Fenômenos clínicos em que a percepção da alteridade não se constitui ou é deficitária, como configurações psicóticas, limítrofes, autistas e perversas, repercutem no ambiente social. Esse mesmo ambiente social tanto pode ser um fator para a patologia como ser depositário e estímulo para sua ampliação.
O objetivo ao escrever este livro foi me dedicar ao estudo do fanatismo, fenômeno que acompanha a história da humanidade e tem se tornado motivo de preocupação na atualidade. O tema inevitavelmente me conduziu à abordagem do negacionismo e da mentira. Os temas estão imbricados e conduzem a pistas sobre alguns fatores relacionados à maldade.
Como fator social, o fanatismo tem sido objeto do estudo filosófico e das ciências humanas. A psicanálise, cujos fundamentos provêm
Neste capítulo, descreve-se como o fanatismo se apresenta na sociedade. A realidade é negada e transformada naquilo que o fanático acredita. Busca-se aproximação com as emoções envolvidas, preparando o leitor para a abordagem do fenômeno no campo analítico. A seriedade do tema estimulou o autor a terminá-lo com bom humor, forma conveniente para suportar a realidade traumática.
Quando os times de futebol de minha cidade jogam entre si, levantam-se boatos mentirosos que resultam em enfrentamentos violentos das torcidas. Após a descarga, a normalidade retorna. Até o próximo jogo, quando tudo se repete. Quando os jogadores de ambos os times são convocados para uma seleção, os torcedores se unem contra o “inimigo” comum. Esse fanatismo do dia a dia nos faz pensar em uma origem mítica, quando os irmãos rivais da horda primitiva se unem para derrotar o pai (Freud, 1911/1969b).
A humanidade sempre conviveu com a maldade. O investigador deve cuidar para que a repulsa e a indignação não prejudiquem sua capacidade de pensar o tema. Precisa considerar que os fatores que contribuem para a maldade devem ser tão complexos como aqueles que influenciam a bondade. As ideias de Arendt (1999) sobre a banalidade do mal não surpreendem o psicanalista que conhece a perene luta entre Eros e Tânatos.
A complexidade do tema demanda difíceis estudos interdisciplinares, que abrem inúmeros caminhos. É preciso lembrar que a
Aqui, o ponto de partida são situações que fazem parte da adolescência. Quando o processo de dessimbiotização se torna difícil, os jovens, de forma ambivalente, buscam desprender-se das figuras parentais, mas sua vulnerabilidade contribui para adesões simbióticas a grupos fanáticos religiosos, ideológicos e criminais, nos quais se sentem protegidos por líderes idealizados. Aborda-se também a questão do recrutamento emocional, que se manifesta no contágio das ideias fanáticas.
Este capítulo busca a aproximação de configurações clínicas que se manifestam, no campo analítico, de forma similar a comportamentos sociais considerados fanáticos. Essa similaridade poderá auxiliar na formulação de hipóteses sobre fatores envolvidos.
Todos os seres humanos mantêm em sua mente representações de experiências emocionais necessárias para o autocuidado e a autoestima. Trata-se de um narcisismo de vida. Diferente do mito de Narciso, em que o narcisismo é mortífero.
Outra parte da mente funciona na triangularidade, que será nomeada édipo, na qual somos capazes de reconhecer a existência do outro. Esse outro, em sentido simbólico, representa o mundo – a realidade – que separa o bebê da mãe. O nascimento psicológico decorre de um processo de dessimbiotização: a busca pulsional pelo contato
Neste capítulo, apresentam-se vinhetas clínicas hipotéticas em que se identificam fatores relacionados a comportamento fanático que se manifestam no campo analítico. Formulam-se hipóteses sobre esses fatores que se escondem/revelam nas configurações clínicas identificadas.
Os fatos sociais não são suficientes para abordar hipóteses sobre o funcionamento inconsciente. Como um fanático não se submete à psicanálise, não há acesso aos fatos clínicos. O psicanalista clínico, no entanto, pode ter acesso a manifestações no campo analítico que se assemelham a aspectos fanáticos.
Uma situação ficcional será abordada, de um momento da análise de um paciente não rotulado como fanático. A observação me estimulou a propor que certos fatos poderiam revelar os pródromos daquilo que será, em algum momento, considerado comportamento social fanático.
T. me procura em desespero, após passar por vários tratamentos médicos, psicológicos e místicos. Vive com terríveis “tonturas” e com o terror de que nunca cessem, o que – segundo T. – faria com que se tornasse um ser humano imprestável.
A transferência idealizada instalou-se rapidamente. As frustrações inerentes ao trabalho analítico eram projetadas em outros profissionais que, em sua opinião, eram incompetentes.
O capítulo descreve os fanatismos observados na contemporaneidade. Em seguida, a partir da biografia de Breivik, um terrorista norueguês, especula-se sobre fatores relacionados a esses fanatismos.
Nos capítulos anteriores, foram criadas hipóteses sobre configurações fanáticas a partir da investigação clínica com pacientes não considerados socialmente fanáticos, mas que manifestaram fenômenos desse tipo no campo analítico. Foram imaginados fatores relacionados a simbioses primitivas que são retomadas, principalmente na adolescência, com a adesão a religiões, ideologias e outros fatos sociais. Relações continente/contido experienciadas na infância como insuficientes e fraudulentas, e organizações narcísicas defensivas se articulam com inoculações precoces de elementos fanáticos, originando fantasias que se manifestam como fanatismo. A esses fatores juntam-se déficits nos processos de simbolização, ressentimento e transformações em alucinose, entre outros derivativos.
Ainda que o comportamento fanático seja similar na história de humanidade, os fatores que os desencadeiam se relacionam com variáveis sociais que insuflam o comportamento em determinadas fases do funcionamento de cada sociedade. Dessa forma, o que se considera fanatismos “contemporâneos” são bastante parecidos aos fanatismos do passado. Mesmo a influência de aspectos sociais em seu conteúdo não é suficientemente original, como se verá adiante.
A partir do estudo de situações clínicas e dos mitos de Narciso e Édipo discutem-se fatores que conduzem à negação da percepção da realidade e ao negacionismo como fato social.
Ao contrário do que foi feito com o fanatismo, o estudo do negacionismo partirá de mitos e situações clínicas hipotéticas que auxiliarão na formulação de hipóteses sobre o negacionismo na sociedade. Neste capítulo, será salientada a questão do “ver” e “não ver”.
É sabido que o bebê se conhece no olhar da mãe. Esta observação mostra a importância do aparelho visual. A percepção do rosto da mãe por parte do bebê inclui outros órgãos sensoriais, como audição, olfato, tato, além de importantes capacidades, menos conhecidas, que captam os afetos.
Existem, no entanto, situações em que a visão, o ver, se transforma em um problema. O conhecimento psicanalítico se iniciou justamente quando Freud descobriu que suas pacientes histéricas não queriam “ver”, isto é, entrar em contato com afetos e lembranças decorrentes de supostas seduções realizadas por adultos próximos. Posteriormente, Freud verificou que esses fatos podiam ser apenas fantasias, reprimidas e substituídas por outras fantasias negacionistas em forma de sintomas e falsas lembranças.
Partindo-se da ideia de convicção como forma de validação das construções em análise, discutem-se neste capítulosituações em que o indivíduo se torna convicto de seduções e mentiras, não se dando conta suficiente da realidade, uma forma de negacionismo. Um conto de Jorge Luis Borges é discutido, encontrando-se entre seus personagens o mentiroso, o negacionista que acredita na mentira e o fanático estupidificado em uma relação simbiótica com um objeto idealizado.
A psicanálise, ao mostrar que existe uma realidade psíquica para além da realidade material, aprofundou a controversa discussão filosófica em relação ao que é existente e verdadeiro.
Considerando a primeira tópica freudiana, constata-se que os fatos da realidade psíquica são representados nos sistemas consciente e inconsciente. Entretanto, existem experiências – não representadas –que não pertencem a qualquer dos dois sistemas. Tratam-se de realidades potenciais que somente se tornarão presentes quando estimuladas pela relação com outra pessoa. Freud (1937/1976) se referiu a esses aspectos em seu texto “Construções em análise”, ampliando o campo para o que hoje é denominado áreas não simbolizadas ou com déficit de simbolização.1 O sujeito se vê diante de situações em que a mente
1 Freud (1923/2011) já antecipava esse fato ao assinalar que o inconsciente não coincide com o reprimido. Todo reprimido é inconsciente, mas nem tudo o que é inconsciente é reprimido.
Fazendo parte do complexo fanatismo-negacionismo-mentira, aborda-se aqui a barbárie como fato social. Em seguida, em busca da aproximação com eventuais transtornos mentais, discutem-se aspectos do caso Schreber, um paciente psicótico cuja autobiografia ajudou Freud na compreensão dos delírios.
Neste capítulo, recorre-se ao caso Schreber (Freud, 1911/1969a), uma pessoa que descreveu suas ansiedades psicóticas em um livro autobiográfico (Schreber, 1903/1984) que serviu de material para especulações efetuadas por Freud. Inspirado em Canetti (1960/1983), proponho um exercício analógico em que tomamos o funcionamento mental de Schreber em sua parecença com o fanatismo e a barbárie, como se manifestam na sociedade. O leitor poderá encontrar outras analogias.
Antes, porém, algumas palavras sobre a barbárie, comumente vinculada a comportamentos fanáticos.
A barbárie atual é civilizada, no sentido que utiliza a ciência e a tecnologia de forma racional, atingindo alvos e eliminando populações, sem contato humano com a vítima. A gestão dos massacres é burocrática, planificada, racional, eficaz e existe uma ideologia legitimadora do tipo moderna, biológica, higiênica ou científica (Löwy, 2001). O paradigma é o genocídio nazista. Desse tipo foram os campos de concentração e também os gulags stalinistas e o ataque
Partindo-se da ideia de curiosidade como proposta por Bion, pista para catástrofe psicológica, discutem-se aqui fatores que transformam a curiosidade sadia em curiosidade arrogante. Nesta, identificam-se os temas deste livro: fuga da verdade, negacionismo, fanatismo e mentira. Vinhetas clínicas mostram sua concomitância, que se revela no mecanismo “fazer vista grossa”. Esse aspecto é aprofundado no estudo do mito edípico.
Não é raro que um paciente, após um tempo razoável de análise, se dê conta de que suas defesas orientadas para a onisciência e onipotência não mais dão conta de seu suposto equilíbrio. Essa tomada de consciência é acompanhada de dor pela percepção de suas limitações, desamparo e finitude. Nesses momentos, o paciente – com razão – lamenta ter buscado análise. Sente saudade dos tempos em que se sentia superior, invulnerável, e acusa o analista de tê-lo reduzido a um simples ser humano. O paciente percebe que sua curiosidade – que o levou à análise – foi um péssimo negócio. O analista, por sua vez, frente ao sofrimento de seu paciente, poderia concordar com ele, não fosse sua experiência lhe mostrando que o contato com a realidade, mesmo sofrido, costuma ser melhor que a fuga. Nem sempre o analista está convencido disso e, em alguns momentos, questiona se foi
Neste capítulo, introduzem-se fatores que se manifestam por meio da mentira, tanto no campo social como no campo analítico. Demonstra-se que o mentiroso tem uma mente sofisticada, pois deve conhecer a verdade para transformá-la em mentira. Propõe-se uma classificação das mentiras e discutem-se possíveis fatores subjacentes. Estuda-se a sedução perversa, que inclui o recrutamento de mentes usando-se comumente o engodo proposital para dominar a vítima.
Essa mentira constante não visa fazer as pessoas acreditarem em uma mentira, mas garantir que ninguém mais acredite em nada. Um povo que não consegue mais distinguir entre verdade e mentira não pode distinguir entre certo e errado.
E tal povo, privado do poder de pensar e julgar, está, sem saber e querer, completamente submetido ao governo de mentiras. Com um povo assim, você pode fazer o que quiser. (atribuído a Hannah Arendt)1
O objetivo deste capítulo é refletir sobre fatores que contribuem para que a mentira se manifeste, tanto na sociedade como no campo analítico. A reflexão visa, também, mostrar como fatos sociais podem servir
1 Disponível em: https://hac.bard.edu/amor-mundi/on-fake-hannah-arendt-quotations-2024-08-04. Acesso em: 01 dez. 2024
Neste capítulo, são estudadas as situações em que a mentira se manifesta no campo analítico e formuladas hipóteses sobre fatores subjacentes, enfatizando-se traumas precoces.
Quando as configurações estudadas nos capítulos anteriores se escondem ou revelam, no campo analítico surge a questão: “Um mentiroso é analisável?” (Bion, 1970/1973; O’Shaughnessy, 1990). Penso que o “bom” mentiroso não será descoberto ou tornar-se-á um “melhor mentiroso”. O mentiroso “mediano” ou o “mau” mentiroso permitem que alguma verdade assome.
Vale recordar que o analista não tem contato com a realidade externa. Somente com as transformações que o paciente traz para o campo analítico. Essas transformações (sonhos e não sonhos) se manifestam no aqui-e-agora e são necessariamente falsas (Cassorla, 2017c). Podem também ser mentirosas.
Sabe-se que vivências emocionais são transmitidas pelas variações da intensidade vocal, timbre, pausas, tons, como atos da fala, linguagem performativa (Austin, 1990; Franco Filho, 2000). O mentiroso sabe usar a música que acompanha as palavras – melíflua, sedutora, indignada ou/e ameaçadora – para induzir seu interlocutor a acreditar no que diz. O silêncio, o desafio e a tendência a polemizar fazem parte da indução (Etchegoyen, 1987) que, em última instância, visa destruir a função analítica (Feldman e Spillius, 1989).
Este capítulo aborda vários aspectos da mentira, como a questão moral, o pensador e a mentira, mentira e falsidade, mentira e processo analítico, verdade e beleza, entre outros. O texto repercute principalmente ideias de Bion.
O paciente procura o analista porque quer alguém que o cure de seu sofrimento. O analista lhe dá a entender que sua função é ajudá-lo a se conhecer. O paciente aceita a proposta do analista, mas está mentindo. Seu único interesse é que seu sofrimento cesse rapidamente e o “conhecer-se” é sentido como um acréscimo indesejado.
O analista, por outro lado, tem dificuldades para explicar a seu paciente qual é seu trabalho. Seria como descrever uma flor a quem nunca viu uma flor (a metáfora indica tanto a fragilidade como a beleza). Não se descarta a possibilidade de o analista usar termos que imagina o paciente querer ouvir, no intuito de atraí-lo para o tratamento. Pode ser que, ao final da entrevista, o paciente imagine que convenceu seu analista a curá-lo, enquanto o analista acredita que o paciente compreendeu sua proposta. Ambos estão enganados.
Estamos perante um dos grandes dilemas da dupla analítica (e de todos os seres humanos) – colocar em palavras percepções e
1 Este capítulo foi escrito para um livro que aborda a mentira a partir da obra de Bion (Bion’s Vertices: On Truth and Lies, de Tomasz Fortuna, que será lançado em 25 de outubro de 2025 pela Karnac Books).
12.
Manifestações
do fanatismo, negacionismo e mentiras: um exercício de psicanálise aplicada
Retomam-se, neste capítulo, conceitos estudados anteriormente, conectando-os com o filme Argentina, 1985 e outras situações sociais, como as vicissitudes do líder religioso João de Deus e os ataques a escolas.
Este capítulo retoma a psicanálise aplicada a situações sociais feitas as ressalvas assinaladas em capítulos anteriores.
Argentina, 1985 (2022)
No final de 1983, cai a junta militar que governou a Argentina e o presidente Alfonsín surpreendentemente solicita que os militares sejam julgados. Naquele período, o terrorismo de Estado matara aproximadamente 30.000 pessoas, muitas desaparecidas. Todos conhecem as mães da Praça de Maio buscando seus filhos e netos. O filme mostra as vicissitudes desse julgamento, os conflitos dos promotores, as ameaças, a busca de provas e os terríveis depoimentos das testemunhas.
Tive que dar-me o tempo de atenuar as emoções para poder pensar nos aspectos do filme que poderia discutir, a partir da psicanálise. Não foi difícil encontrar temas: violência, tortura, injustiça, desumanização.
Pequenas estórias mostram que o fanático busca um estado de êxtase, de plenitude, fazendo parte de um mundo idealizado onde nada falta. As estórias especulam sobre Liríope, Deus, paraíso, suicídio, desamparo, Pavlik Morozov, simbiose, adolescência, Narciso, as famosinhas, o complexo de Israel, a noite de S. Bartolomeu.
Descrevo neste capítulo fatores vinculados ao comportamento fanático por meio de pequenas ficções, transformações de fatos que podem ou não ser considerados reais, como mitos e sociedades perfeitas. Incluem notícias, filmes e ficções psicanalíticas, supostamente científicas.
Liríope
Deixando-se abraçar pelo rio Céfiso, a ninfa Liríope sentia-se plena de mundo. Tornara-se a paz, o todo, Deus, infinito. Totalmente preenchida, o precisar – que sentira antes – fora relegado ao olvido.
Por vezes, Céfiso se agitava e Liríope vivia um imenso prazer medroso – ao qual se seguia uma sensação de estar ainda mais plena de mundo (como se isso fosse possível). O tempo se tornava eternidade.
Um dia Liríope percebeu seu corpo se modificando. Desconfiou de algo estranho que Céfiso lhe havia introduzido, em forma subreptícia. Sentiu-se traída. O estranho crescia e a assustava. Desejava que ele – um bebê cujo nome seria Narciso – fosse eliminado. Também queria que

Nas últimas décadas, o Brasil e o mundo vêm enfrentando problemas graves de radicalização, manipulação da informação, conspiracionismo e crise das instituições. Este livro explora as raízes e as manifestações do fanatismo, negacionismo e mentira, dialogando estes conceitos entre a perspectiva psicanalítica e o campo social.
Em Fanatismo, negacionismo, mentira: estudos psicanalíticos, o leitor encontrará os últimos escritos de Roosevelt Cassorla e terá a oportunidade de levar para a sua clínica a análise psicanalítica de temas tão atuais desse renomado especialista, bem como para a vida, contribuindo para que ele se torne eterno tanto no trabalho ao qual tanto se dedicou quanto ao empenho por um mundo melhor e mais afetuoso. Aproveite!

