Cidades alagadas, mentes inundadas

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Katya de Azevedo Araújo Cidades alagadas, mentes inundadas

Organizadoras

CIDADES ALAGADAS, MENTES INUNDADAS

Organizadoras

Patricia Rivoire Menelli Goldfeld
Katya de Azevedo Araújo

Cidades alagadas, mentes inundadas

© 2025 Patricia Rivoire Menelli Goldfeld e Katya de Azevedo Araújo (organizadoras)

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Ana Cristina Garcia

Preparação de texto Márcia Leme

Diagramação e capa Juliana Midori Horie

Revisão de texto Equipe de produção

Imagem da capa iStockphoto

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Cidades alagadas, mentes inundadas / organizadoras Patricia Rivoire Menelli Goldfeld, Katya de Azevedo Araújo. – São Paulo : Blucher, 2025.

424 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2634-5 (Impresso)

ISBN 978-85-212-2629-1 (Eletrônico - Epub)

ISBN 978-85-212-2630-7 (Eletrônico - PDF)

1. Psicanálise. 2. Trauma. 3. Escuta psicanalítica. 4 Clínica psicanalítica. 5. Assistência psicanalítica em emergências. I. Título. II. Goldfeld, Patricia Rivoire Menelli. III. Araújo, Katya de Azevedo.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

Conteúdo

Prefácio

Patricia Rivoire Menelli Goldfeld, Katya de Azevedo Araújo

21

1. Projeto de Ação Emergencial SBPdePA – Enchente –Rio Grande do Sul/Brasil – maio/2024 27

Patricia Rivoire Menelli Goldfeld

2. Ação emergencial SBPdePA – Enchente 2024: atendimentos on-line 41

Vera Elisabethe Hartmann

3. Catástrofe, trauma e acontecimento 51

Julio Moreno

4. O Disruptivo e sua aplicação específica em situações de desastre e catástrofe 57

Moty Benyakar

5. O traumatismo, de Freud a Ferenczi 103

Cristina Lindenmeyer

6. Guardiões do silêncio 137

Carmem Cabral Scherer

18 Cidades alagadas, mentes inundadas

7. Uma história, muitos resgates: uma escuta psicanalítica na enchente do Rio Grande do Sul 147

Aurinez Rospide Schmitz

8. O prenúncio de uma catástrofe... As águas de maio... 163

Nora Helena Pastori Steffen

9. Ecos oceânicos: um retorno a Thalassa 185

Gabriela Alves Morsch

10. A chuva que transborda rios e rompe diques psíquicos: nas catástrofes naturais, o que pode a Psicanálise? 197

Augusta Gerchmann, Marcela Pohlmann

Morgana Mengue Saft Tarragó, Nicole Campagnolo

Silvia Varela Dian

11. Encontro clínico x encontro humano: a clínica em situações-limite ou extremas

Astrid E. Müller Ribeiro

12. Dias de inundações

Christine Nunes

223

239

13. A chuva que cai, a casa que inunda e a mente que transborda: a realidade externa se impõe 251

Katya de Azevedo Araújo

14. Num mundo de luz e sombras onde a percepção é a realidade 261

Denise Haeberle

15. Notícias do imponderável: a escuta como contorno psíquico a partir de rios transbordados 283

Leticia Casagrande

16. In-trauma: relato de uma experiência na catástrofe do Rio Grande do Sul 303

Margareth Regadas

17. O método, a clínica e suas extensões: a psicanálise de Fabio Herrmann e o dilúvio

Marta Maria Assumpção Rodrigues

311

18. Traumas: pequenos e grandes impactos que afetaram os gaúchos na enchente de maio de 2024 325

Rosa Beatriz Santoro Squelf

19. Um episódio potencialmente traumático

Leonor Guiramand

20. O espectro em cena: abrigos revelação

Marta Meneghello Müller Stumpf

337

349

21. Cuidando do cuidador, cuidando de quem cuida 363

Christine Nunes, Heloisa Zimmermann

22. Integrando e diferenciando: tragédias e crescimento tendo por ninho parcerias 377

Sandra Bulhões Cecilio

23. Henri, o bebê que ninguém via 385

Rosana Igor Rehfeld

24. E agora? Só temos dez dias 391

Aline Santos e Silva, Vládia Zenkner Schimidt

25. Caso clínico: a esperança da emergência 399

Sandra Paraíso Sampaio

26. Vínculo e solidariedade: o grupo como pele diante do trauma 411

Denise Zimpek Teixeira Pereira, Jeanete Suzana Negretto Sacchet

Lírion Scheuermann da Roza, Gaepsi, Maria Arleide da Silva

1. Projeto de Ação Emergencial SBPdePA

– Enchente – Rio Grande do Sul/Brasil

– maio/20241

Patricia Rivoire Menelli Goldfeld

Comissão do projeto1

Coordenação: Patricia Rivoire Menelli Goldfeld

Vice-coordenação: Vera Elisabethe Hartmann

Contato com o PACE: Christine Nunes

Componentes: Denise Zimpek Teixeira Pereira, Tamara Barcellos Jansen Ferreira, Rosa Beatriz Santoro Squeff, Janine Maria de Oliveira Severo, Mara Loeni Horta Barbosa, Heloisa Zimmermann, José Ricardo Pinto de Abreu, Katya de Azevedo Araújo, Nora Helena Pastori Steffen, Aurinez Rospide Schmitz, Gabriela Alves Morsch, Carmem Cabral Scherer e Ane Marlise Port Rodrigues

Apresentação

Como amplamente divulgado na mídia mundial, no final de abril de 2024, um grande volume de chuvas atingiu fortemente a quase

1 Agradecemos a psicanalista Ane Marlise Port Rodrigues por seu auxílio e orientação durante as etapas da Ação Emergencial SBPdePA Enchente 2024.

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totalidade do território do Rio Grande do Sul/Brasil, afetando mais de 96% das cidades gaúchas (478 dos 497 municípios, segundo a Defesa Civil do estado (8/7/2024), com 182 pessoas mortas, 31 desaparecidas, 806 feridas e mais de 650 mil fora de suas casas (55 mil em abrigos). Um total de 2.398.255 pessoas foram afetadas pelo pior desastre climático da história do Rio Grande do Sul. Foram resgatados 12.497 animais, tornando-se o cavalo Caramelo, que resistiu sobre um telhado cercado de água por quatro dias, um símbolo de resistência e luta pela sobrevivência.

As chuvas intensas provocaram uma série de fenômenos, como enchentes, inundações, alagamentos, deslizamentos de morros e encostas, e até mesmo tremores de terra, na cidade de Caxias, na serra gaúcha. A catástrofe climática, que assolou inicialmente as cidades do Vale do Rio Taquari, trouxe a fúria das águas de outros rios também, chegando ao lago Guaíba, inundando Canoas, Porto Alegre, Eldorado do Sul, Guaíba, São Leopoldo e outras cidades, deixando em sua passagem um cenário devastador. O vento Sul, represando a saída da água da Lagoa dos Patos para o Oceano Atlântico, trazia mais apreensão quanto à diminuição ou não dos níveis da água. Passamos a torcer por cada centímetro a menos do nível do Guaíba. Estávamos presenciando a maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Juntamente com a dor, o imenso sofrimento pelas perdas materiais e simbólicas e os lutos em andamento, já se movimenta na sociedade gaúcha uma indignação pela falta de manutenção e investimentos nas estruturas de contenção das águas em Porto Alegre e responsabilizações começaram a ser apuradas. Os negacionistas climáticos não percebem nossa dependência total ao ambiente onde vivemos e nossa interdependência uns com os outros. Desastres dessa natureza expõem nossa fragilidade social, as desigualdades, o racismo ambiental e as falhas nas políticas de prevenção e de resgate de vítimas.

Benyakar (2003/6) propõe o conceito de disruptivo como um modelo teórico-clínico para a abordagem dos fenômenos traumáticos.

2. Ação emergencial SBPdePA – Enchente 2024: atendimentos on-line

Às vezes, na agônica escolha, as palavras pesam como se fossem um dicionário completo, capa dura e letras minúsculas, sem ordem alfabética. Todo significado possível estava lá. Não sei onde. Antes da palavra, o nome de todas as coisas é desamparo. (Madeira, 2024, pp. 26­27)

Assim nos sentimos diante da inundação provocada pela enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Sensação de caos, desordem, confusão e principalmente desamparo, tristeza e dor. Tudo misturado precisando de ordem e amparo.

Sabemos que dor é amarga, dilacera, mas o que a torna intolerável é que quem a sente tem a impressão de estar separado do resto do mundo, na mais profunda solidão. Quando partilhada a dor ao menos deixa de ser exílio.

Assim estavam, possivelmente as principais vítimas da catástrofe, acrescido ainda da profunda tristeza decorrente do fato de “perder tudo”. Essa era a expressão mais recorrente. Perder documentos, fotos, móveis, roupas, remédios, alimentos, enfim a sensação de perder

Cidades alagadas, mentes inundadas a própria história. A realidade em todo seu horror conduzia o jogo da vida.

Nesse turbilhão de vivências e da imensidão do caos tínhamos o compromisso de, com a nossa ferramenta profissional – o dispositivo analítico ampliado na situação extramuros, escuta capaz de acolher a dor e o indizível. A Psicanálise. Assim, efetivar uma forma de ajuda e de cuidado, que abarcasse a emergência e, acolhendo algumas pessoas, poderíamos quem sabe, servir de mola propulsora para reorganização psíquica.

Freud em 1918, no artigo “Caminhos da Terapia Psicanalítica” (p. 201) sugere a criação de clínicas para atendimento gratuito ou de baixo custo. Ele estava preocupado com o fato de que a psicanálise era frequentemente inacessível para pessoas de baixa renda, mas, considerava a Psicanálise uma ferramenta importante para aliviar o sofrimento psíquico independente da classe ou poder aquisitivo.

Esta visão reflete o compromisso de Freud com a expansão do acesso à psicanálise como uma forma de intervenção social, promovendo a saúde mental em larga escala.

Embora sua proposta não tenha sido amplamente implementada durante sua vida, a ideia inspirou muitos psicanalistas e organizações subsequentes, e foi expandida em vários países, a partir de Berlim, levando os psicanalistas que hoje consagramos a atenderem nesses ambulatórios.

Após a Primeira Guerra Mundial, algumas iniciativas começaram a surgir, especialmente na Europa, promovendo o atendimento psicológico e levando em consideração a importância do bem-estar emocional como um direito concedido a todos, de viverem sob condições básicas civilizatórias. Essas ideias continuam a influenciar práticas e políticas de saúde pública em muitas partes do mundo até hoje.

A essência de nossa ferramenta, ou seja, a Escuta sensível e atenta, ampara e organiza.

3. Catástrofe, trauma e acontecimento1

Estamos habituados a conceber a nossa vida como um percurso linear que vai do antes ao depois, passando pelo agora. Essa forma de habitar o nosso território implica uma noção cronológica e linear do tempo. Habitamos um mundo estruturado. E, se ocorrerem rupturas aleatórias e não muito abruptas, estas são entrelaçadas com o resto das memórias até formarem um continuum homogêneo e sem rupturas. Se com o passar do tempo encontramos algum elemento desconexo após um trabalho intenso e silencioso, nós o “tornamos” contínuo sem nos deixar grandes registros dele. Tornam-se, digamos, pequenas diferenças sem poder disruptivo que fazem parte da vida. Assim, acreditamos que vivemos numa sequência homogênea e linear de acontecimentos, sem perceber que a realidade não é assim.

Catástrofe, trauma e evento. São nomes daquilo que produz interrupções significativas no que está estruturado. Suas diferenças dependem de sua intensidade e de suas particularidades.2

2 Conferência proferida no “Seminário Aberto Internacional: o traumático e seus destinos”, da SBPdePA, em 08/07/2024. Publicado em Psicanálise – Revista da SBPdePA, vol. 26, n. 2, 2024.

Cidades alagadas, mentes inundadas

Se eles são devastadores, são chamados de catástrofes; se são importantes, mas não tão devastadores, são geralmente chamados de traumas; e se geram aberturas que abrem caminhos através dos quais podem surgir situações radicalmente novas, são chamados de eventos. Neste último caso, o que irrompe não pertence a reflexões específicas do passado estruturado, mas sim a diferenças radicais com ele.

A catástrofe, que é o ápice do caos, devasta o que estava estruturado e, geralmente, está relacionada a acontecimentos que não deixam quase nada da estrutura anterior de pé. Terror e confusão se espalham sob as catástrofes. São situações dramáticas que varrem até mesmo a estrutura que sustentava as subjetividades. Podem ser eventos singulares como um acidente, uma doença ou uma guerra; ou eventos coletivos que envolvem populações, como um tsunami, a enchente que afetou o Rio Grande do Sul.

O trauma é produzido por um golpe contundente que perturba a configuração mental subjetivante. Como nos lembra o Dicionário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1971), trauma deriva do grego e designa uma ferida com destruição tecidual. Ocorre quando o montante que está em jogo não é contido pelo pensamento e atravessa grande parte das barreiras que o aparelho psíquico possui para amortecer o golpe do disruptivo, a camada protetora de que falou Freud. A eclosão de uma catástrofe, por outro lado, “varre” toda a estrutura.

O acontecimento envolve o surgimento de algo que não pertence ao texto habitual e surge de repente e gera uma mudança radical na forma de ver e interpretar o que acontece.

Trauma é uma interrupção do fluxo de pensamento que passou das causas aos efeitos. Dá-se devido à presença intrusiva de fatos que não se deixam homogeneizar, mesmo que a mente dos afetados tente veementemente consegui-lo. Permanecem marcas significativas para quem sofre com isso, mesmo que tente fortalecer a estrutura ameaçada por meio de reforços que, por sua vez, geram sintomas, uma vez

4. O Disruptivo e sua aplicação específica em situações de desastre e catástrofe

Moty Benyakar

Todas as teorias são legítimas e nenhuma tem importância.

O que importa é o que é feito com elas.

Jorge Luis Borges

Um dos eixos centrais que rege todo o Modelo de O Disruptivo é a tentativa de postular o funcionamento de uma estrutura somático-psíquica, fazendo uma distinção muito precisa entre seus princípios condicionantes e seus princípios de processo e transformação, ou seja, discernir de maneira aguda entre aqueles elementos que compõem nossos determinantes ou condições constitutivas como espécie, os estímulos do ambiente externo (mais próximo e diferenciado ou mais distante e indiferenciado), os estímulos do próprio interior, e nossa capacidade de elaboração psíquica ou de transformação e metabolização desse conjunto.

Por que isso é central?

A compreensão do que constitui o traumático, entendido como o resultado de impactos disruptivos, revela-se como uma ruptura na

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capacidade de elaboração do sujeito, causada por uma desregulação ou desarticulação entre a representação e o afeto nos diversos espaços de processamento psíquico, conforme identificado pelo Modelo. O trabalho terapêutico, portanto, centra-se em identificar qual modalidade de processamento foi comprometida, visando restaurar a capacidade de elaboração por meio da chamada interpretação Vivencial e Processual (VeP).

Essa compreensão detalhada do fenômeno traumático é essencial para determinar o nível mais preciso e eficaz de intervenção terapêutica, focada no ponto exato de paralisação, distorção ou falha. O objetivo é promover o processamento psíquico mais eficiente e complexo disponível em cada momento específico.

Neste contexto, fica evidente que o cerne do Modelo reside em sua ambição terapêutica: a aspiração de reduzir o sofrimento do outro, melhorando suas capacidades de enfrentamento a partir de seus próprios recursos, e promovendo, assim, seu bem-estar e desenvolvimento.

As implicações disso para a prática clínica são vastas, mas aquelas que nos ocupam neste curso de especialização são as que dizem respeito ao apoio do potencial do sujeito após a ocorrência de um evento catastrófico.

Aplicando os princípios anteriormente expostos a estas situações, a intervenção terapêutica visa, primordialmente, agir o mais rapidamente possível após o evento traumático. O propósito não é atuar como socorristas, mas sim manter ativa a capacidade do sujeito de reagir e se adaptar diante do impacto disruptivo e potencialmente desorganizador que tenha experimentado.

Vamos ler, juntos, um trecho de O Disruptivo, de Moty Benyakar:

Os objetivos principais que perseguíamos na atenção aos evacuados eram prevenir o caos interior e o congelamento da experiência em um foco inflexível que culminasse, possivelmente, em um estado interior isolado e de

5. O traumatismo, de Freud a Ferenczi1

O ponto de vista econômico, como propunha Freud em Para além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996a), reintroduz o debate sobre a problemática que envolve a noção de traumatismo psíquico.1

Na virada dos anos 1920, Freud completa sua metapsicologia e apresenta a segunda tópica do aparelho psíquico. Essa reformulação concretiza-se pela necessidade de avaliar, do ponto de vista clínico, as sequelas traumáticas causadas pela Primeira Guerra Mundial.

Em Para além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996a), o primeiro ponto ressaltado por Freud é a falta de preparação para um perigo mortal e a consequência deste: ser obrigado a reencenar continuamente um acontecimento doloroso. Freud acabará por identificar essa obrigação de reiterar como sendo de ordem pulsional, o que o levará a reconsiderar certos conceitos que havia defendido até então.

1 Publicado pela primeira vez na revista Tempo Psicanalítico, vol. 49, n. 1, 2017, pp. 180-208. Publicado em Psicanálise – Revista da SBPdePA, vol. 26, n. 2, 2024.

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O pavor

Nos anos seguintes à Grande Guerra, foi impossível não se confrontar com os visíveis estragos causados por ela. As teses precedentes mostram-se, então, inviáveis perante a pulsão de morte e seus efeitos devastadores. O estudo acerca das neuroses de guerra entra no centro das atenções da psicanálise. No texto Relatório de especialização acerca do tratamento elétrico das neuroses de guerra, Freud (1920/1996b) ressalta o aspecto traumático da falta de preparação para uma situação de perigo. Para se defender de uma situação de perigo extremo, deve-se estar preparado para o risco de ser surpreendido por um ataque. Em Para além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996a), Freud evoca não somente os vestígios endopsíquicos, mas igualmente aqueles que resultam de vivências reais e presentes nas situações traumáticas.

As situações de extremo perigo, produzidas pelo trauma, não se distanciam da atividade pulsional; pelo contrário, aquelas estão entremeadas a esta, que de fato encontra-se no âmago desta estrutura complexa, mas em um novo estado, mórbido.

A hipótese da falta de preparação provoca o questionamento de dois pressupostos teóricos considerados até então irrevogáveis: o da dominação do princípio do prazer e o do sonho enquanto realização do desejo.

A compulsão à repetição

O questionamento sobre o traumatismo abre o livro Para além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996a) e virá a ser traduzido pela reavaliação das teses psicanalíticas, além do reconhecimento de seus limites (Freud, 1920/1996a, p. 277). Tal afirmação preliminar faz-se complementar por outra observação: a existência de uma outra força precedendo a predominância do princípio do prazer.

6. Guardiões do silêncio

A vida do ser humano tem uma relação intrínseca com a água, ela é fonte de saúde, segurança e dignidade. Todo e qualquer aspecto da vida é conectado pela água.

A enchente de maio de 2024 que atingiu o Rio Grande do Sul me fez lembrar de uma frase do ilustre oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau:

Durante a maior parte da história, o homem teve que lutar contra a natureza para sobreviver, neste século, ele está começando a perceber que, para sobreviver, deve protegê­la.

O excesso de chuva e o acúmulo de água nas cidades, estradas e moradias, impactou a população do estado, destruindo e desabrigando milhares de pessoas. Muitas famílias foram resgatadas em meio a inundação, correnteza e ao frio, típico do estado neste período do ano. Reações psicológicas e talvez traumáticas, emergiram junto com o medo e pavor de deixar suas casas e suas referências pessoais.

Fui impactada pelo sentimento coletivo de caos e desejo de ajudar, então ofereci minha escuta analítica aos desabrigados acolhidos

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numa escola de POA. Esse abrigo estava recebendo, na grande maioria, pessoas moradoras das ilhas de POA. O médico que fazia parte da equipe de saúde do local solicitou atendimento a uma família de cinco pessoas, casal, dois filhos de 20 e de 9 anos, namorada do filho de 19 anos e sobrinha de 7 anos. Desde o ingresso no abrigo, dois dias antes, não falavam, todos sem comunicação verbal. Devido ao mutismo, eles não realizaram a avaliação médica, protocolo de recebimento no abrigo.

Todas as pessoas do abrigo estavam em uma quadra de esportes coberta, sentados ou deitados em colchões. A família do atendimento estava em dois colchões num canto da quadra, sem interação com as demais pessoas. O marido estava no pátio, não conseguia permanecer no interior do abrigo e não participou do atendimento. Me aproximei, sentei- me no chão, para ficar mais próxima deles, o silêncio era como uma barreira, mas tinha uma união, pareciam “filhotes em torno da mãe”. Me apresentei, perguntei se poderia falar com eles, a mãe acenou que sim com a cabeça. Falei pouco em voz baixa e olhando-os fixamente nos olhos. Depois de 40 ou 45 minutos, a mãe olhou fixamente nos meus olhos, por alguns minutos, e disse seu nome: Ana; em seguida, começou a chorar compulsivamente, por alguns minutos. Todos choraram e disseram seus nomes. A menina de 7 anos tocou meu cabelo e disse: “o meu cabelo está sujo”. Ana, chorando, relatou tudo que passaram com o aumento do volume do lago Guaíba e a invasão das águas, inundando a ilha e sua casa: “Foi horrível, não sei como sobrevivemos, veio uma espécie de onda que deslocou as janelas da casa e fomos arrastados pra fora, meu filho conseguiu pegar um pedaço de telhado e disse para segurarmos pra não afundar. Eu e os dois menores ficamos em cima da telha e ele e a namorada com o corpo na água, apenas se segurando nas pontas, o peso de todos não sustentaria a flutuação. Ficamos umas três horas no lago, à deriva na correnteza, bem. Não consigo parar de pensar, fico o tempo todo com a imagem dessa onda nos arrastando para fora de casa, nós podíamos

7. Uma história, muitos resgates: uma escuta psicanalítica na enchente

do Rio Grande do Sul

O estado foi assolado pela maior enchente que atingiu o Rio Grande do Sul desde 1941. Porto Alegre, a capital, foi um dos municípios afetados. O Lago Guaíba, com suas calmas águas que serviam de pano de fundo para os fins de tarde, exibindo um pôr do sol magnífico, mesclado de cores e reflexos inimagináveis, era também o cenário da orla onde muitos gaúchos desfrutavam de momentos de lazer, rodas de conversa e chimarrão. Contudo, com a chegada intensa da chuva, tudo isso mudou. A rotina tranquila e apreciada por tantos foi drasticamente alterada pela enchente.

Em menos de uma semana, em final de abril de 2024 choveu um terço da média do ano todo (de 500 a 700 mm). O lago Guaíba transbordou, atingindo 5,35 metros, invadindo 476 municípios afetando 2,8 milhões de pessoas. Houve falta de água, de luz, deslizamentos de terras, estradas interrompidas, mortes e locais total e parcialmente inundados. Pessoas ficaram incomunicáveis, em muitas situações isoladas, sem acesso a água e alimentos. EMATER RS (2024), Enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 (2024, 18 de agosto).

Estávamos diante de uma calamidade pública (Decreto 2024). O que fazer? Como ajudar? Diante dessas indagações reportei-me a

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Noal (2017), que refere, por meio dos seus diários de bordo, a sua inserção como psicóloga em diferentes lugares do mundo acometidos por tornados, ciclones, terremotos, tsunamis, atravessando fronteiras para levar cuidado. Inspirada em Noal, perguntei-me o que eu poderia fazer para auxiliar as pessoas da minha cidade? Do meu estado?

Reportei-me a Gampel (2014) quando ela se questiona como responderia aos seus netos quando eles perguntassem o que ela fez durante a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas em Gaza. Ela menciona que não gostaria de dizer: “não fiz nada”. Da mesma forma, eu pensei que também não queria responder aos meus netos que não fiz nada diante da maior enchente que afetou milhares de pessoas ao meu redor.

Diante da minha inquietação, encontrei amparo na instituição à qual pertenço, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, assim como em colegas que, assim como eu, compartilharam o mesmo desejo de oferecer uma escuta especializada às pessoas desabrigadas. Imediatamente, me prontifiquei. Não foi necessário atravessar as fronteiras do mundo, como fez Noal; a situação estava ali, ao meu lado, ao nosso lado.

Pujet e Wender (1982) reportam sobre o mundo superpostos entre analista e paciente, mundo este que invade a ambos e concomitantemente, um momento no qual todos estão submersos. De forma similar, estamos ambos: voluntários e pessoas atendidas, inseridas no mesmo contexto. Neste cenário integro a equipe de resgate em um dos pontos da capital. Esta equipe é composta por um grupo de 8 pessoas, voluntários, funcionários vinculados ao estado, com as devidas identificações. Ficávamos à espera da chegada do helicóptero com pessoa(s) resgatada(s) dos locais, agora, inacessíveis pela enchente. Assim que chegavam do helicóptero eram direcionadas até o ônibus para a recepção. Recebiam água, comida, roupas. Um ônibus era destinado a recepção das pessoas e o outro a levá-las ao abrigo.

8. O prenúncio de uma catástrofe...

As

águas de maio...

Sábado, 27 de abril de 2024, Região dos Vales do Rio Grande do Sul. ...O céu escureceu! Ventos e chuva forte sobrecarregaram as bacias dos rios da Região dos Vales que transbordaram, invadindo municípios, arrasando cidades e destruindo vidas. A chuva não parou, não deu trégua e, impiedosa, a água continuou seu curso, se estendendo também a outras regiões do estado gaúcho, chegando onde, até então, nunca havia chegado.

Dos 497 municípios de nosso estado, 478 foram atingidos por esta que foi considerada a maior tragédia climática de nossa história.

Incrédulos e atônitos assistíamos cenas de inundações, destruições e mortes. Em estado de alerta máximo, milhares de pessoas precisaram sair de suas casas, sendo acolhidas em casas de amigos, familiares ou abrigos. A Defesa Civil Estadual, em 20/08/2024, atualizou os dados referentes às enchentes, no Rio Grande do Sul: 183 mortes confirmadas, 27 pessoas desaparecidas e 806 feridas. Cerca de 2,4 milhões de pessoas foram afetadas pelos efeitos das chuvas nas regiões Central, dos Vales, Serra e Metropolitana de Porto Alegre, sendo que mais de 647 mil moradores tiveram que deixar suas casas. O abastecimento de luz e água foi cortado em mais de 640 mil residências. Cerca de

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77.712 pessoas foram resgatadas, 12.215 animais socorridos. Segundo a CNM (Confederação Nacional dos Municípios), até metade do mês de agosto de 2024, o prejuízo dos municípios com as chuvas no Rio Grande do Sul, teve um impacto de 13,3 bilhões, sendo o setor habitacional o mais afetado, com 4,7 bilhões. Ocorreram bloqueios em dezenas de pontos nas estradas estaduais e federais, por deslizamentos de terras, alagamentos, destruição de pistas e pontes ou queda de barreiras e árvores. Cidades inteiras desapareceram do mapa pela ação das águas e da lama. Houve colapso na rede de saúde pública, bem como de abastecimento geral. A capital gaúcha ficou sem rodoviária, sem aeroporto, sem funcionamento portuário e teve interrompidas suas principais ligações com cidades do interior do estado.

Tudo isto aconteceu, de forma abrupta e intensa entre os dias 27 de abril e 02 de maio de 2024, estendendo-se por cerca de 30 dias. Em várias cidades, no período entre 27 de abril e 02 de maio, chegou a chover de 500 a 700mm, correspondendo a um terço da média histórica de precipitação para todo um ano e, em muitas outras, a precipitação ficou entre 300 e 400mm. Dados do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostraram que as chuvas de maio levaram 14,2 trilhões de litros de água para o lago Guaíba, volume que equivale a quase metade do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu. A precipitação excessiva afetou mais de 90% do território estadual. O resultado foram cenas de catástrofe ambiental...cenas de tragédia humanitária!

Em paralelo a este sentimento de desamparo, fragilidade e impotência vivido pelo Rio Grande do Sul, surgiu uma onda de solidariedade local e nacional, onde o imediatismo do trauma exigia uma resposta pronta e eficiente.

Uma corrente de voluntariado se estendeu por todo o solo (agora, inundado) gaúcho! Pessoas eram resgatadas com a roupa do corpo, assustadas e indefesas. Animais eram retirados das águas, sem reação, mas com muita submissão por gratidão. Mutirões humanitários se

9. Ecos oceânicos: um retorno a Thalassa

Há ecos que resistem ao tempo, ao passado inaudível e alagado. Re-existir diante de uma disrupção seria construir uma narrativa própria e uma aquisição de palavras que dêem conta deste tempo, que poderíamos chamar de oceânico e, que, finalmente, pode encontrar socorro pela fala.

Em psicanálise, costumamos pensar que é preciso um fenômeno externo que irrompa o real para que, desta perturbação, faça emergir algo que dê oportunidade à historicização da dor de um horror vivido. São ecos do passado aguardando trabalho mental de elaboração.

Sobretudo, ao analista, cabe o pleito de acolher o desconhecido que se avizinha, até que possa dizer a que vem e, como um porto à espera de uma embarcação, o inesperado será, justamente, a carga que dará arrancada à potência da escuta. E, assim deve ser! Ora, uma escuta que não conte com o inusitado, faz de seu analista um ser com menos perspectivas, atracado num encontro pouco criativo, o que não pode ser desejável. Afinal, são nas ressonâncias dos tempos e daquilo que deles evocamos – sem sequer sabermos – que tateamos, sensivelmente, as bordas do lugar que vamos chegar, dando-lhe assim, novos contornos. Certamente, não antevemos os destinos,

186 Cidades alagadas, mentes inundadas tampouco, conhecemos porque cruzadas haveremos de navegar. Mas navegaremos, mesmo assim, e já não mais sozinhos.

Assim, introduzo esta escrita que é sobre viver uma experiência de escuta que mobiliza o setting analítico. Desafio que faz o encontro inédito entre duas mulheres: de um lado, Auxiliadora, de 56 anos, que nunca recebera atendimento psicológico e, de outro lado, eu, uma psicanalista pretensamente apta a acolhê-la. Todavia, pairava a apreensão com o que seria desta ação emergencial, que por tal singularidade, também era errante – sem bem a eira do terreno firme que a modalidade do enquadre analítico indica, nem a beira definida nas margens das paredes de um consultório, feito para ser dique, que contenha e drene, com privacidade e cuidado o deságue de quem ali chega. Enfim, aqui venho aportar um encontro a mar aberto.

A paciente que aqui chamo de Auxiliadora, ganha o codinome, por este conservar certa ambiguidade no oposto entre vida e morte, que espero lhes faça sentido ao longo da leitura. É sobrevivente de um naufrágio antigo em sua história infantil e que emerge nas águas da grande enchente que assolou o estado do Rio Grande do Sul no final de abril e início de maio deste ano de 2024. Chegou-me para atendimento, através do Programa de Ação Emergencial Online da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, criado para oferecer apoio psicológico aos atingidos pelas inundações.

Num primeiro contato, em 13/05/2024, relata que um quadro de extrema ansiedade teve início após alerta de evacuação das regiões detectadas com risco de alagamento. Auxiliadora teve de desocupar seu lar, às pressas, refugiando-se na casa de amigos. Conta que, nesses dias passou por crises de falta de ar, dores de cabeça decorrentes de apertamento dos dentes, além de estar insone há dias. Descreve, ainda, que manchas surgiram em sua face, lhe provocando coceiras intermitentes e, por isso, feridas em carne viva.

10. A chuva que transborda rios e rompe diques psíquicos: nas catástrofes naturais, o que pode a Psicanálise?

Augusta Gerchmann

Marcela Pohlmann

Morgana Mengue Saft Tarragó

Nicole Campagnolo

Silvia Varela Dian

A experiência emocional diante da catástrofe

Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia [...] os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas serpenteando pelos tacuruzais1 e banhados, que se juntaram, todos, num. (A Mboitatá, Lendas do Sul, pp. 37­39)

Nos propomos, neste capítulo, a examinar os desdobramentos psíquicos desencadeados pela experiência traumática que acometeu a população gaúcha, decorrente do fenômeno da natureza gerado pelas chuvas volumosas, que causou transbordamentos de rios e atingiu um grande número de cidades que compõem o Rio Grande do Sul2. Este

1 Ninho de cupim, que forma pequenos montes nos campos.

2 Inundações provocadas pelo alto volume de chuvas de longa duração, provocadas por um ciclone extratropical pela região Sul e geografia específica que dificultou o escoamento da água. Soma-se às causas naturais um grau considerável de

198 Cidades alagadas, mentes inundadas

evento de proporções inéditas, causou desordem, desamparo e caos na comunidade civil do estado. Concomitantemente, despertou as mais diversas reações solidárias em sua coletividade, ao mesmo tempo em que os governantes, além de ações de contingência, buscavam liberação de verba do governo federal para colocar em marcha algum plano, tanto para conter a expansão do desastre ambiental como para criar abrigos que acolhesse as pessoas que se encontravam desabrigadas. Em meio ao caos, ocorreu a falência dos órgãos estaduais e municipais, gerando medo, insegurança, angústia, desvalimento e, em alguns, revolta e ressentimento.

Diante desta realidade, o que pode a psicanálise?

Como aponta Benyakar3 (2003), em situações consideradas disruptivas, como a que vivemos, pode ocorrer uma inversão nas instituições sociais, ao tornarem-se ineficientes no cumprimento das responsabilidades a elas outorgadas. Pelo prisma do indivíduo e do grupo, é comum o ser humano engendrar alguma ordem no caos, como um meio de atenuar vivências de desvalimento e desamparo. Foi possível acompanhar muitas pessoas que, apesar de perderem sua casa, trataram de participar de resgates dos que ainda se encontravam em situação de risco, devido ao aumento contínuo do nível das águas e da falta de alimentos. Em meio às águas residuais que brotavam dos esgotos, faltava a água potável, essencial para a vida4. responsabilidade humana gerada pela ocupação desordenada do território em detrimento do planejamento econômico e potencializadas por sucessivas gestões ao longo de décadas, deste a enchente de 1941, que não valorizaram alertas de técnicos e cientistas, sobretudo causadas pelas mudanças climáticas que se estendem no planeta.

3 Psicanalista da APA, médico e psicólogo, especialista em análise de crianças.

4 https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/06/com-parte-de-porto-alegre-sem-acesso-a-agua-das-torneiras-prefeitura-decreta-racionamento.ghtm

11.

Encontro clínico x encontro humano: a clínica em situações-limite

ou extremas

Foi através da experencia desafiadora com a pandemia do Covid-19 e participando como diretora do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) da nossa sociedade (Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – SBPdePA), naquele momento tão angustiante para todos, pensamos na necessidade de criarmos, junto com a diretoria da Brasileira um projeto para atendimento da população em geral que se chamou “Projeto Psicanálise Solidária”. Para isto, se fez necessário adaptações e mudanças no nosso tradicional Centro de Atendimento Psicanalítico da Sociedade (CAP), que oferece atendimento analítico de alta frequência para população geral com valores acessíveis, mas quando frente aquele momento da pandemia se fez necessário fazermos uma mudança e adaptação na oferta deste serviço, quando passamos a ser gratuito, em formato virtual e reduzido para 12 encontros. Depois, em um segundo tempo, foram reduzidos a 8 encontros para atender a alta demanda da procura. Desafios que nos possibilitaram comprovar, que a nossa disponibilidade de escuta psicanalítica do sofrimento humano é vital e que as pessoas têm benefícios, mesmo fora do setting tradicional psicanalítico (alta frequência e uso divã). Através desta experiência de atendimentos,

224 Cidades alagadas, mentes inundadas

percebemos como estas pessoas sem contato com a escuta analítica até então, conseguiram fazer reflexões e terem insights demonstrando satisfação por essa nova escuta. Observou-se que a motivação para busca de atendimento clínico da população, manteve-se após o término do período ofertado e muitos seguiram em atendimento psicanalítico por sua própria escolha. Confirmou-se com esta experiência do projeto, a importância destes espaços bem como a especificidade da nossa escuta analítica, do sofrimento individual e social como promotora de saúde. Nos grupos de discussão e supervisões dos casos confirmava-se a importância das propostas já pensadas por Freud em 1918, sobre a abertura das Clínicas Públicas. Citamos aqui o artigo publicado por nosso grupo de atendimento voluntário do projeto, o artigo: “Psicanalise Solidária: ampliando a escuta analítica na pandemia”:

A palavra solidariedade, do francês, “Solidarité” tem o sentido de “responsabilidade reciproca”, interdependência, cooperação mútua. Um trabalho solidário não é filantropia nem caridade. Sua essência é de uma “solidez compartilhada”. Nenhum trabalho essencialmente solidário existe se não houver transformação mútua”. (2022, vol. 24, n. 2)

Todos aprendemos muito com esta experiência transformadora. Depois do encerramento destes projetos, passados apenas quatro anos, nos deparamos com uma nova tragédia no Rio Grande do Sul, a enchente em maio de 2024, deixando a população gaúcha diante de uma situação de calamidade pública sem precedentes, com grande parte da população desabrigada e alguns com perdas das condições de sobrevivência, atingindo todas as classes sociais, mas especialmente aqueles que já não possuem fácil acesso aos recursos. Citamos as palavras de Freud para expressar as repercussões psíquicas de momentos como este:

12. Dias de inundações

Diante da inundação das chuvas no Rio Grande do Sul, me voluntariei num abrigo em Porto Alegre, onde tive algumas vivências que oportunizaram outras inundações.

A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBP de PA), desenvolveu um Projeto de Ação Emergencial para o atendimento gratuito às vítimas dessa catástrofe, bem como aos profissionais e voluntários civis que cuidam das vítimas. O Projeto é constituído por duas linhas de ação: o atendimento online e o atendimento presencial em abrigos de resgatados e desalojados de suas moradias. Desde o início da Ação foram realizadas reuniões regulares com os profissionais dos dois grupos, visando proporcionar uma escuta da escuta. O método escuta da escuta, de Haydée Faimberg (2002/2010), permite não só escutar o paciente, mas também os supostos básicos dos terapeutas. Com o passar dos dias e o aprofundamento da crise provocada pela enchente, a demanda cresceu e solicitamos apoio do PACE/IPA. (Goldfeld, Projeto de Ação Emergencial, 2024)

240 Cidades alagadas, mentes inundadas

Junto à SBPdePA, estive em contato com diversos psicanalistas, especialistas em situações de crises emergenciais, estudiosos no tema dos refugiados e no trabalho com os mais vulneráveis. Um dos convidados da programação de estudos, durante este período, foi Moty Benyakar, que nos trouxe, em profundidade, o conceito “lo disruptivo”.

Benyakar (2003) propõe a palavra disruptivo para tomar o lugar da palavra traumático, “conceito baseado no fato traumático e que mascara as diferenças das subjetividades individuais, uniformizando os efeitos de um evento disruptivo em uma população afetada”. Para ele, disruptivo é todo evento ou situação com capacidade de irromper no psiquismo e produzir reações que alterem sua capacidade integradora e de elaboração (pp. 39 e 42).

O PACE/IPA, coordenado pela Mónica Cardenal, nos ofereceu grande suporte neste difícil período, através do Grupo de Discussão do Trabalho (Work Discussion Group). Este espaço de função central, onde são detectados e contidos os elementos inconscientes despertados durante a tarefa de ajudar o outro e que são difíceis de reconhecer e entender durante a tarefa em si. É no WDG que o profissional começa a perceber, com a ajuda do grupo, os processos inconscientes e transferências que, inevitavelmente, aparecem em toda relação de cuidado. Isso se dá devido a ansiedades, fantasias e defesas que as crianças mobilizam em suas relações, e que ao mesmo tempo, despertam ansiedades e defesas naqueles que a elas se dedicam.

O objetivo final é o de melhorar as estratégias de intervenção, tanto preventivas como curativas. Motivada por isto, Martha Harris implementou um seminário na Clínica Tavistock que se chamou inicialmente Estudo do Trabalho (Work Study) (Klauber, 1999), mais tarde e atualmente Discussão do Trabalho (Work Discussion), e cujo objetivo principal se centra na observação detalhada da tarefa realizada pelo profissional, para depois poder

13. A chuva que cai, a casa que inunda e a mente que transborda: a realidade

externa se impõe

Quando o luto tiver terminado, verificar­se­á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes. (Freud, 1916/1976b, p. 319)

Este trabalho se propõe a tentativa de colocar em palavras e elaborar vivências traumáticas a partir da enchente que assolou o Rio Grande do Sul em maio de 2024. De repente, da noite para o dia, nos deparamos com algo que desde 1941 não acontecia em nossa região. Muita chuva, diques que não deram conta, as casas sendo inundadas, as cidades destruídas. Perdemos as referências das ruas, das direções, era um rio a céu aberto, ou melhor, a céu chuvoso. Assim, todos nos mobilizamos, a solidariedade gritou mais alto e saímos de nossas comodidades para ajudar uma comunidade desamparada.

Os acontecimentos eram os mais inéditos até então. Relatos sofridos e inesquecíveis. Ouvir cada história, doía no corpo de quem as escutava. As sensações ficaram à flor da pele. Nós psicanalistas, precisamos sair do conforto do setting de nossos consultórios e ir ao

252 Cidades alagadas, mentes inundadas

encontro de nossos semelhantes que brigavam pela sobrevivência. Sem casa, sem lar, sem carro, somente com a roupa do corpo. Sem fotos, nem documentos, somente carregando as lembranças na memória que agora estava tão inundada com uma realidade totalmente traumática. Quanta dor! O que fazer com isto? Quanto desamparo! Como acolher? Tentar colocar em palavras o inominável, o disruptivo, o avassalador, seria uma das tarefas dos psicanalistas que prontamente se dispuseram a escutar a dor do outro. Escutar como forma de acolhimento, para organizar o caos instalado.

A sensível escuta do analista que faz a diferença, escutar as associações dos pacientes, me fez participar de atendimentos sociais tanto na SBPdePA, como no Espaço Criar, instituição que coordeno na grande POA. Esta, situada numa das regiões mais atingidas do Estado.

Atendimentos presenciais e online, gratuitos foram colocados à disposição da comunidade que fez uso em grande número. Particularmente atendi, presencialmente, no consultório, Aline, uma professora que perdeu sua casa e com risco de perder seus familiares. Tinham no grupo, crianças gêmeas de 3 meses e ao estar na “laje” de sua casa, precisou de ajuda de barcos de resgate. Se deparou com a dificuldade de carregar as crianças sem perdê-las. Como fazer isto? A solução foi se abrigar com um grande casaco onde pudesse colocar as mesmas junto ao seu corpo para juntas, entrar num barco sem o risco de separação e perda. Seus avós idosos, cada um num barco de resgate, desembarcavam em lugares diversos e se perderam da família. Como encontrar, posteriormente? Será que foram salvos? Será que sobreviveram? Estas eram as perguntas que se fazia. As crianças estavam salvas, mas e os idosos? A procura nos abrigos da cidade ocorreram e após 2 dias, o reencontro. Estavam lá num canto, e unidos 4 idosos, amedrontados e misturados, desesperados. Cenas descritas como imagens de uma guerra, resgates e sobreviventes. Ao escutar este relato, percebi o quanto o meu corpo era inundado também por sensações. Uma experiência sensorial e corporal. Ao escutar, eu

14. Num mundo de luz e sombras onde a percepção é a realidade

A tragédia

Vivemos todos aqui no Rio Grande do Sul uma imensa inundação; as chuvas constantes e os leitos dos rios que não paravam de transbordar provocaram tanto destruições impensáveis quanto espanto.

Quem não estava lutando pela sua própria vida estava, para dizer o mínimo, estarrecido com o que estava acontecendo e víamos através dos noticiários o que parecia ser um filme de terror: pessoas e animais morrendo, pessoas e animais ilhados nos telhados das casas, e tudo o que foi construído com muita dedicação, esforço de uma vida de trabalho, ia literalmente por água abaixo. Todos fomos golpeados. Quem não foi atingido diretamente pela enchente também foi atingido por muitos sentimentos e emoções: tristeza, preocupação, terror, medo, pânico… que inundavam nossas mentes.

Incrédulos, com esta inundação no mundo externo e no mundo interno pensávamos o que fazer com isso. Foi então que percebemos que, tão rápido quanto a subida das águas, a solidariedade cresceu entre nós. Vimos pessoas ajudando pessoas, dividindo o que tinham (alguns muito pouco) para amenizar tamanho sofrimento. A organização de voluntários das comunidades, bairros, parentes e amigos

262 Cidades alagadas, mentes inundadas

criaram uma rede de proteção aos desabrigados ofertando um lugar seguro (os abrigos improvisados) com condições mínimas de segurança à própria vida: um lugar seco com alimentos, cobertores, roupas, remédios. Outros organizavam um espaço assim para os muitos animais de estimação que se perderam dos seus tutores nesta correria para fugir da morte. Cada um ajudava como podia e toda ajuda foi essencial. Recolhemos coisas, alimentos, roupas, ao mesmo tempo que lidávamos com o desabastecimento de luz, água e mantimentos nas residências não atingidas pelas águas. Todos irmanados no desamparo.

Em algum momento a água parou de subir e se estabilizou. E assim ficou por muito tempo, acho que um mês. Procurei na internet a informação precisa do quanto durou e tive dificuldade em encontrar a resposta. O que me fez pensar que, na verdade, ainda não acabou. Falarei sobre isso mais tarde. Mesmo quando as águas baixaram, muitos ainda não podiam voltar para suas casas pois não havia abastecimento de água e luz elétrica. Durante esta “estabilidade” os problemas emocionais cresciam muito e os psicólogos, as sociedades de psicologia e de psicanálise que já estavam mobilizadas em atender pessoas nos abrigos organizaram atendimentos solidários às vítimas.

As águas retornaram ao leito normal do nosso Guaíba, a enchente já passou mas nos deixou uma inundação de questões de todos os tipos e origens e isso é o que não passou e é importante que permaneça: questões para pensar. As águas que não puderam ser contidas pelos muros e diques nos impuseram um mergulho forçado numa realidade muito dolorosa de ver e que dava muito trabalho para enxergar. Quando Porto Alegre e todo o estado do Rio Grande do Sul se destacaram no mapa do Brasil iluminados pelo desastre natural, surgiram questões muito profundas: mudancas climáticas, questões sociais, econômicas, políticas e psicológicas.

A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (a qual pertenço) se fez cargo destas questões e foi um exemplo de presteza e organização. Logo tínhamos um grupo de WhatsApp chamado “Ação

15. Notícias do imponderável: a escuta como contorno psíquico a partir de

rios transbordados

Um desastre arromba a porta. Uma catástrofe acontece subitamente.

Os socorros têm a marca da emergência. Tudo precisa ser rápido, feito com pressa e em caráter de urgência.

Um estado inteiro jogado, abruptamente, num cenário de fragilidade e desamparo. Seis dias de chuva ininterruptos. A enchente invadiu a vida dos gaúchos, arrastando suas casas, suas rotinas e sobretudo, sua tranquilidade. A cidade dormia e acordava ao som de helicópteros, enquanto eu tentava dormir e acordar também em meio aos barulhos de fora e de dentro. O sono era interrompido por sons externos que estimulavam uma produção de pensamentos de toda ordem. Contudo, foram os ruídos internos, os mais difíceis de apaziguar.

Os grupos de WhatsApp solicitavam serviços, roupas, colchão, comida, água, barco e diversas modalidades profissionais. O relato das vivências noticiavam, o tempo todo, a magnitude assustadora dos fatos. As pessoas haviam perdido tudo, ou quase tudo, inclusive, o básico. Diante disto, até mesmo o muito que era oferecido, parecia ser pouco, escasso e insuficiente. Abrigo, alimentação e higiene estavam sendo providenciados, mas eu sabia que toda dor, medo ou tristeza aguardavam alguém que as escutasse.

284 Cidades alagadas, mentes inundadas

Estávamos à mercê do imponderável; sentia-me inquieta parecendo sofrer de excesso de realidade. Nos intervalos de atendimento em meu consultório, eu percebia um certo afogamento psíquico através do consumo, quase tóxico, de conteúdo virtual em mídias sociais e imprensa formal.

As imagens de resgates e salvamentos, bem como, as informações sobre o volume, a destruição e os caminhos que as águas percorriam pelo Estado geravam ansiedade, tristeza e, principalmente, uma intensa sensação de impotência.

O conceito/metáfora chamado “núcleo radioativo” ajuda a compreender o modo como essa modalidade de vivência se instala na mente. Esse conceito foi usado por Gampel (2023), quando a autora refere o núcleo como representação conceitual de um processo particular no qual existe a penetração no aparelho psíquico de aspectos terríveis, violentos e destruidores vindos da realidade externa. Ela cita que, nessa condição de vulnerabilidade, o sujeito não tem nenhum controle, tampouco, algum mecanismo de proteção contra o enraizamento desses elementos violentos e seus efeitos posteriores, a nível, inclusive, transgeracional. Essa “identificação radioativa” se constitui de vestígios não representáveis e resíduos radioativos enquistados inconscientemente.

Criar a possibilidade de escutar as dores é uma tentativa de sobrevivência à situação com potencial traumático. Seria esta, uma forma do sujeito encontrar dentro de si um objeto espaço de ilusão dotado de valor simbólico e capaz de dissimular, ainda que por um instante, o horrível e o impensável. (Gampel, 2023, p. 193)

Todas nossas insuficiências enquanto sociedade estavam expostas e sendo testadas pela catástrofe. O Rio Grande do Sul inteiro, unido em forças coletivas tentando não sucumbir. No quinto dia, as notícias

16. In-trauma: relato de uma experiência na catástrofe do Rio Grande do Sul

O presente texto tem por objetivo apresentar uma vivência de um atendimento clínico a uma pessoa que estava na catástrofe.

Entendemos por catástrofe um acontecimento que envolve graves impactos ao funcionamento ou até destruição dos serviços de apoio (esse serviço de apoio seria a atenção primária), e esta ocorreu no estado do Rio Grande do Sul. In trauma porque ocorreu no momento do trauma, que seria a atenção secundária, que visa a tentativa de evitação de transtorno como ansiedade, depressão, TEPT com alguns prejuízos.

Se faz necessário apresentar o percurso desse atendimento que só foi viável porque contamos com a Clínica Social da Spfor que atende, em sua maioria, pessoas que residem em Fortaleza. Na época da pandemia, criou-se um grupo com profissionais que se disponibilizaram a atender virtualmente uma demanda não somente local, mas nacional, viabilizando o atendimento de pessoas de várias cidades do país. A partir dessa experiência foi pensado em ampliar para as vítimas da enchente no Rio Grande do Sul.

Entrei em contato com o coordenador da Clínica e sugeri participar de alguma maneira dessa situação de crise que o estado estava

304 Cidades alagadas, mentes inundadas vivendo, um momento que nos convoca a ajudar para além das doações financeiras, que nos dar uma sensação de pertencimento da dor humana. A Sociedade de Porto Alegre foi muito receptiva e nos colocou no grupo de apoio emergencial. Através de duas colegas Vera e Patrícia, que já tinham experiência em enchentes, criou-se um grupo de voluntários via WhatsApp com vários vídeos informativos, reuniões, mensagens de como se daria os atendimentos e um suporte da IPA através do PACE. Foram feitos alguns encontros, tudo muito ágil, sem burocratização. Sendo sugerido e criado fichas cadastrais que também contemplasse um resumo dos atendimentos. O cuidado, comprometimento e disponibilidade de todos do grupo nesse período foi, e ainda é, amparo e auxílio na condução da escuta e compartilhamento das vivências.

A Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial de Saúde, através de seus informativos, muitas vezes resumidos, explanados a partir de palestras, aulas, reuniões e alguns encontros com a PACE nos permitiu ter um conhecimento teórico a respeito dos cuidados psicoemocionais em situações traumáticas coletivas.

A intervenção pós-trauma divide-se em imediata nas primeiras 48 horas, agudo, do terceiro ao trigésimo dia e terciário, após 30 dias. As reações comuns são as emocionais, como choque, medo, luto, raiva, ressentimento, culpa, vergonha, desamparo, entorpecimento, desesperança; reações cognitivas como confusão, desorientação, indecisão, autorresponsabilidade, memórias indesejáveis; reações interpessoais como irritabilidade, isolamento, sentir-se rejeitado ou abandonado; reações físicas como tensão, fadiga, insônia, náuseas, perda de apetite, frequência cardíaca aumentada. No curso típico de ajustamento, no contexto social inserido vai se modificando, promovendo uma resposta de recuperação, promovendo mecanismos que levam a uma maior resiliência. Aos poucos as pessoas vão recuperando seu funcionamento social, acadêmico, de trabalho e o grau de sofrimento e prejuízo nas relações interpessoais vai diminuindo. A

17. O método, a clínica e suas extensões:

a psicanálise de Fabio Herrmann e o dilúvio

Introdução

O psicanalista brasileiro Fabio Herrmann (1944-2006) dedicou grande parte de sua vida e de sua extensíssima obra para recuperar, difundir e compartilhar a ideia do método psicanalítico. Ao se engajar nessa empreitada, criou a Teoria dos Campos, que – fazendo uso do método da Psicanálise e revisitando a concepção freudiana de psique para além do psiquismo individual – pôs em evidência o trabalho iniciado por Freud de incorporação e exploração da psique para a ciência do seu tempo.

No final dos anos 1960, Fabio Herrmann nos apresentou seu pensamento sobre o homem e o seu mundo não para constituir uma nova escola psicanalítica, mas, sim, para desvelar o método psicanalítico inventado por Freud (Leda Herrmann, 2004: 5) “em todo âmbito de abrangência do sentido humano” (Leda Herrmann, 2009: 83). Nestes termos, ao fazer uso do método da Psicanálise, a Teoria dos Campos resgatou não apenas o papel do fazer clínico na formulação do conhecimento psicanalítico, mas, principalmente, o valor heurístico (ou de descoberta) do sentido humano. Ademais, estendeu o método psicanalítico (e a interpretação psicanalítica) à interface da Psicanálise

312 Cidades alagadas, mentes inundadas com a cultura, com a sociedade, com os movimentos sociais, com a literatura, com as artes e com o reino das ciências.

Na esteira desse processo, o pensamento clínico da Teoria dos Campos se expandiu, nos anos 2000, trazendo à luz a expressão que Fabio Herrmann cunhou como clínica extensa – referindo-se a um movimento que estende o método psicanalítico para o mundo fora do divã, para lugares que ultrapassam o atendimento (Fabio Herrmann, 2017: 366) ou o setting psicanalítico tradicional – como a escola, o hospital, a praça. Em outras palavras, para a Teoria dos Campos que considera que “atenção psicanalítica é sempre clínica” (Barone, 2005:24), a clínica extensa acontece sempre que haja a possibilidade de uma “escuta oblíqua”, um “encontro humanizador” (Fabio Herrmann, 2024 [2006]; Camargo e Terepins, 2007).

Nesse sentido, um anseio desta clínica, que Fabio considerava o próprio “método em ação” (Herrmann, 2017: 368), é o de abrigar sujeitos que não encontram um heim, uma casa, um lugar, de maneira que a prática psicanalítica possa acontecer, inclusive, junto à população desprovida de recursos ou junto àqueles que perderam seus recursos em alguma forma de catástrofe.

Da perspectiva da Teoria dos Campos, a noção que sustenta e ilumina o caminho que o pensamento de Fabio Herrmann percorreu do método à clínica se dá “por meio da função terapêutica da Psicanálise” (Fabio Herrmann, 2006: 57) – outro conceito fundamental da Teoria dos Campos.

O conceito de função terapêutica da Psicanálise é objeto do artigo “A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo”, que Fabio Herrmann publicou em 1983, ao considerar o efeito terapêutico do método interpretativo de ruptura de campo – provocada como escuta em outro campo. Neste artigo, o autor sistematiza a ideia de função terapêutica como a “possibilidade de tocar o absurdo” através da interpretação psicanalítica, pondo à mostra as regras sustentadoras

18. Traumas: pequenos e grandes impactos que afetaram os gaúchos

na enchente de maio de 2024

A enchente que vivenciamos em 2024 foi um momento bombástico inesperado que transtornou a vida de muitas pessoas. Em função dessa triste e inusitada situação, a SBPdePA organizou a Ação Emergencial online logo após tomar conhecimento da extensão do ocorrido. Nossa Presidente Patrícia Goldfeld, auxiliada pela colega Vera Hartmann, da Comissão da Comunidade e Cultura, organizaram uma lista com psicólogos e psicanalistas interessados em atender gratuitamente quem foi atingido pela catástrofe.

Essa iniciativa foi extremamente proveitosa, não só para as vítimas desalojadas de suas casas, como também para nós que tivemos a experiência de escutar, entender e amparar algumas pessoas que foram diretas ou indiretamente atingidas, em nosso Estado.

Quem escolhe a profissão de psicólogo/psicanalista e tem a oportunidade de exercer seus conhecimentos e sua prática num momento de extremo sofrimento alheio, além de também sofrer, sente-se muito gratificado em poder ser útil aos necessitados. É uma experiência de realização, por demais reconfortante e contribui para aliviar a angústia de ver o semelhante em profunda tristeza.

326 Cidades alagadas, mentes inundadas

Da mesma forma, a possibilidade de fazer parte de um livro, onde temos a oportunidade de escrever e expressar nossos sentimentos e vivências, sobre uma situação ímpar na nossa trajetória, é muito salutar, uma vez que nos permite direcionar para a escrita nossas experiências e emoções relacionadas a fatos tão impactantes. É fazer na prática ao que Freud deu o nome de sublimação (1927).

Eu acredito que a maioria dos gaúchos ficou muito chocada, ou até poderia dizer “traumatizada”, pelo impacto do poder de destruição da natureza e da fragilidade humana nesse momento, no sul do Brasil.

Por outro lado, para mim, também foi muito surpreendente perceber a rapidez, a habilidade e a potência do trabalho solidário do povo, em prol dos desabrigados. Constatamos uma enorme parceria do país inteiro e até do exterior. Isso me sensibilizou muito. Posso até afirmar: O mundo não está perdido. Quanto calor humano e desprendimento observamos em maio de 2024. Vivenciamos nesse momento o que Freud escreveu em Futuro de uma ilusão, de 1927, ao falar que um dos únicos consolos que a civilização tem é quando acontece uma catástrofe e os povos se unem para se defender da força do meio ambiente.

Tive o privilégio de atender quatro pessoas atingidas pela enchente. Inicialmente, ofereci 4 sessões a cada uma para serem escutadas, e nesses casos, três expressaram seus sentimentos com muita dor e lágrimas. Nos primeiros encontros me senti pequena para abarcar tanto sofrimento. No entanto, à medida que o tempo foi transcorrendo, percebi que as pessoas estavam conseguindo se reerguer e, aos poucos, foram reconstruindo suas vidas. Impressionou-me um dos casos, onde o trágico parecia que tinha se transformado em bênção. Era um pai de 74 anos que foi resgatado pelas filhas, após sua residência ter ficado totalmente alagada. Elas lhe proporcionaram, em suas casas, carinho e um abrigo aconchegante. Ele ficou impressionado com tanta gentileza e pode concluir, então, que tinha sido um pai suficientemente bom para receber tanto cuidado e amor. Disse-me

19. Um episódio potencialmente traumático

« Um evento de grande violência, como um acidente de carro, um incêndio ou uma agressão, nem sempre conduz a um psicotraumatismo. Por isso, o evento é qualificado como «potencialmente traumático». O fato de ele conduzir ou não a um psicotraumatismo, depende de inúmeros fatores que modulam as reações da pessoa face a violência da realidade. »

Florence Askenazy (2023)

Porto Alegre, 8 de maio de 2024 – Criação do grupo WhatsApp « Ação Emergencial On-line » pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA).

Dados das enchentes no Rio Grande do Sul de acordo com as publicações da « Casa Militar Defesa Civil RS »

Sábado, 27 de abril, primeiro temporal...

Boletim das 9h de quarta-feira em 8 de maio de 2024:

Pessoas afetadas: 1.450.078

Pessoas Desalojados: 158.992

Pessoas em abrigos: 66.434

Pessoas Feridas: 372

338 Cidades alagadas, mentes inundadas

Pessoas desaparecidas: 128

Municípios afetados: 414

Sexta, 29 de maio: um mês de tragédia...

Último boletim datado, de 20 de agosto de 2024: o impacto das enchentes no Rio Grande do Sul resultou em números alarmantes:

Pessoas afetadas: 2.398.255

Óbitos confirmados: 183

Pessoas desaparecidas: 27

Pessoas feridas: 806

Municípios afetados: 478

As catástrofes naturais são frequentemente mais aceitas do que as catástrofes causadas pelo homem. Enquanto as primeiras são vistas como resultado da ação do ambiente, do clima ou de representações mais arcaicas (os deuses, os espíritos ou a ambivalência da Terra que nos deu vida), as segundas são mais difíceis de tolerar e despertam necessidades de vingança e explicação. Se a revolta contra os elementos naturais parece inútil, isso não diminui o seu caráter traumático. (Bacqué, 2003)

(Embora possamos questionar o uso do termo ‘catástrofe natural’ no contexto das inundações – visto que as inundações são amplamente favorecidas pela atividade humana). (Cepri, 2015)

Em sua conferência sobre o tema a « Clínica do Traumatismo  », Thierry Bokanowski, refere-se ao « evento traumatizante (ou do tipo traumático) », que na maioria das vezes irrompe do exterior (por

20. O espectro em cena: abrigos revelação

Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em conserva. O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta. Criou­se, assim, todo um mundo inconsciente que leva uma vida separada e oculta. (Abraham e Torok, 1995)

Ao longo da minha prática clínica com pessoas com deficiências, neurodiversas, como aqueles que se enquadram no que hoje chamamos de transtorno do espectro autista, venho refletindo sobre o suposto aumento desses casos. Penso muito em como nós, profissionais da área da saúde mental, estamos abertos a olhar essas questões, nossos preconceitos e o quanto estamos dispostos a escutar e quem sabe contribuir ativamente para a qualidade de vida dessas pessoas.

As enchentes que assolaram o estado do Rio Grande de Sul, assim como a pandemia de Covid-19 que ocorreu no mundo, foram catástrofes que revelaram muitos aspectos humanos, dos melhores aos piores. Se na pandemia o isolamento foi um dos males necessários

350 Cidades alagadas, mentes inundadas para a sobrevivência, nas enchentes a solidariedade foi um dos maiores bens. Em ambas as situações muitos aspectos foram sendo revelados. Os abrigos salvaram a vida de milhares de pessoas, das águas, das ruas, da fome, do frio, da solidão. O que é abrigar? É dar ou receber abrigo; acolher, proteger de intempérie. Abrigar vem do latim de apricare e, originalmente, remetia a ficar aquecido sob o sol. Em qualquer abrigo sempre há revelação, que é um termo que tem a sua origem etimológica no vocabulário latino revelatio. Refere-se a revelar, contar algo que era secreto, tornar visível o que estava oculto, tirar o véu.

E esse aumento nos casos de autismo, esse boom de casos do espectro? Etimologicamente, a palavra espectro se originou a partir do latim spectrum, que significa “visão”, “fantasma” ou “aparência”. Alguns dos principais sinônimos de espectro são: aparição, fantasma, sombra, fantasmagoria, ameaça, indício, sinal, ilusão, quimera, pálido, lívido e cadavérico. Na psicologia o termo espectro abrange uma ampla gama de sintomas e níveis de gravidade que vão de uma necessidade menor de suporte a uma maior, e suas manifestações podem diferenciar-se de sujeito a sujeito, resultando sempre em um caso singular.

Em nossos consultórios recebemos pessoas com questões diversas, pacientes neuróticos, psicóticos, perversos, mas o fato é que o número de encaminhamentos de pessoas com autismo têm de fato crescido nos últimos anos. Sabe-se que para Freud (1897) a neurose é o negativo da perversão e que em cada análise há a revelação daquilo que está oculto, da parte mais sombria, do sinistro, daquela parte que negamos de nós mesmos, recalcamos, desmentimos, foracluímos ou elidimos, como nos traz Laznik (2011) quando se refere ao autismo, mas as análises são também construções criativas a dois de um psiquismo, de um vínculo, um laço que não pode acontecer satisfatoriamente. Momentos de catástrofes são favoráveis às revelações porque neles as barreiras internas cedem. Algo do que estava soterrado no

21. Cuidando do cuidador, cuidando de quem cuida

Introdução

Em maio de 2024, a atenção de todos do Rio Grande do Sul esteve voltada apenas para a inundação que assolou o estado. Nunca passamos por algo assim. Todos se ocuparam e contribuíram da melhor forma possível na tentativa de diminuir a dor, o sofrimento, o dano de cada um. Neste capítulo, nos propomos a falar sobre o cuidado com quem cuida por ser uma tarefa árdua, que requer preparo e experiência, e que frequentemente é negligenciada. Comumente, a rotina dos psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas em geral é bem determinada. Trabalha-se no conforto e na segurança do consultório, de segunda a sexta-feira, em horário comercial, atendendo pacientes em sua maioria conhecidos, frequentemente os mesmos por longos períodos. Nas situações emergenciais, ocorre o oposto desta estrutura organizada. E isto traz consequências.

Organização geral

Como psicanalistas, alcançamos o nosso melhor quando aderimos às nossas tradições mais fundamentais de

364 Cidades alagadas, mentes inundadas

observar atentamente e de nos esforçarmos para ver o mundo através dos olhos e das experiências dos outros. ...quando mudamos o nosso foco para além do consultório, não só expandimos as nossas teorias..., mas também alargamos o alcance e o impacto da sua aplicação para um número enorme de pessoas que jamais passaria pelas portas dos nossos consultórios. (Marans, 2023)

O poder público, ou o Estado propriamente dito, levou bastante tempo para se pronunciar e não o fez de modo eficiente. Assim, desde os primeiros dias, pessoas comuns foram se mobilizando e criando espaços a partir do método de “tentativa e erro”, cheias de boas intenções e solidariedade, para receber e amparar quem precisasse.

Assim que se formaram os abrigos, profissionais da área da saúde se encaminharam para ajudar, se oferecendo no começo para conversar no próprio local, como “ambulantes”. Rapidamente, a maioria dos locais providenciou salas ou nichos apropriados para atendimentos e a demanda passou a ser devidamente equacionada.

Os psicoterapeutas abundaram de tal forma, que já no segundo dia de acolhimento, muitos foram dispensados para serem chamados caso fosse necessário. Uma curiosidade: quem não começou o trabalho voluntário presencial neste momento, não foi chamado depois. Justamente porque os voluntários ficaram de tal forma envolvidos na situação, que simplesmente atendiam mais e mais abrigados, quem quer que precisasse. Muitos chegaram a passar 12 horas por dia nos abrigos conversando com quem solicitasse, sem intervalo, pausa ou descanso.

Naquele momento de urgência, não coube a preocupação com contrato de início de psicoterapia ou de processo analítico, combinações de qualquer ordem como quantidade ou frequência de encontros ou sequer um compromisso de sigilo entre quem atende e quem foi atendido. No início, a atenção recaiu apenas sobre as pessoas

22. Integrando e diferenciando: tragédias e crescimento tendo por ninho parcerias

“Penso, logo existo”

Em 1637, René Descartes publicou seu livro Discurso do método. A obra reforça a importância da razão humana, conceito banal para o homem moderno, mas um tanto novo para o homem medieval acostumado à autoridade eclesiástica. Em um tratado matemático e filosófico, Descartes ousou na frase acima de forma bela e direta, propor a razão como única forma do existir. Se penso, então sou um ser humano vivo.

Tragédias são realidades dentro e fora de cada um dos humanos.

“Pensar”, esse atributo do humano que nos diferencia das outras formas de vida não evita que algumas tragédias ocorram. Tragédias anteriormente eram atribuídas aos deuses. Ao pensar pode-se buscar outras causas além das divinas? Elas até podem ser obras do acaso. Será? Sabemos, no entanto, que algumas tragédias podem ser pensadas e quiçá evitadas. Pensar pontos de vista mais amplos pode minimizar tragédias e suas consequências. Precisamos para tanto desenvolver o pensar. Hoje já em direção à complexidade.

Em 2024 acompanhamos o estado do Rio Grande do Sul ao sofrer um severo alagamento passar a viver uma situação trágica.

378 Cidades alagadas, mentes inundadas

No final de abril o Vale do Rio Pardo já sofria com fortes chuvas e granizo o que levou o Instituto Nacional de Meteorologia a emitir o primeiro alerta vermelho de alto volume de chuva e ocorreram as primeiras mortes como consequência.

No dia 1° de maio a situação piorou dramaticamente tendo evoluído para calamidade pública e, poucos dias após, o cenário já era de guerra. No dia 10, o estado contabilizava 126 mortos, 141 desaparecidos e 756 feridos. Ao final, cerca de 1,9 milhão de pessoas foram afetadas em 441 municípios. Desse total, 340.000 pessoas tiveram que deixar suas casas e 71.000 foram alojadas em abrigos. Institui-se um cenário de guerra. Evidentemente haveria um pós-guerra.

Diante desde quadro já em 1° de maio a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) lançou o projeto Ações Emergenciais com o propósito de oferecer apoio emocional aos atingidos por tamanha tragédia. Ao pensar e articular esta alternativa a instituição ofereceu à população parceria para aninhar mentes em profundo sofrimento. Logo após, eu, uma mineira, me inscrevi neste projeto. Recebi no dia 4 de maio o contato de uma das coordenadoras do mesmo, Vera Hartmann: “Bom dia. Estou te conectando para agradecer tua disponibilidade e dizer que estou colocando teu nome na lista de voluntários para atendimentos... As demandas deverão começar mais adiante.”.

No dia 10, às 9 h da manhã, recebo contato de Clarissa.

Iniciamos, através do WhatsApp, nossa parceria, conectadas pelo trabalho e apoio da SBPdePA.

Clarissa escreveu:

“Bom dia. Procuro ajuda psicológica. Sou voluntária e apóio crianças num abrigo próximo de minha casa, mas também estou precisando de ajuda. Me passaram teu contato. Sou do Rio Grande do Sul. Pode ser no seu tempo, mas estou pronta quando puder.”

Às 13h desse mesmo dia fizemos nosso primeiro encontro.

23. Henri, o bebê que ninguém via

Ao chegar pela primeira vez ao abrigo, parei na grande porta que dava acesso ao dormitório no ginásio. Meu olhar foi imediatamente capturado por um berço que estava no meio do salão. De onde me encontrava, via um bebê que parecia sozinho, sem um adulto a cuidá-lo.

Fui até lá, vi um menino que parecia ter em torno de 6 meses. Barriga para cima, olhos pretos bem abertos fixos no teto, braços esticados ao longo do corpo, perninhas esticadas, só de fraldas empapadas de xixi. Completamente inerte.

Olhei ao redor. Tinha muita gente circulando, falando. Ninguém parecia notá-lo.

Sentei-me no chão ao lado do berço. Meu desejo era pegá-lo no colo. Como não conhecia as regras, preferi não arriscar. O berço tem treliças de um tipo de cordas que me permitiram enfiar os braços pelos buracos e chegar com as mãos no corpo do bebê.

Então, comecei a cantar, bem perto de seu ouvido melodias de ninar e deslizar minha mão pelo corpinho: “... boi, boi, boi da cara preta vai embora daqui que eu não gosto de careta.”

“... perdi a mamãe no mar, não consigo mais encontrar... a moça que está aqui vai chamar a mamãe para me cuidar...”

386 Cidades alagadas, mentes inundadas

“... mamãe vem me buscar, to com medo deste lugar...”

“A dona aranha foi embora da parede. Agora vou olhar e o medo vai passar. A dona aranha foi embora da parede, agora vou olhar e a mamãe já vai chegar.”

Percebi que meu coração batia mais forte e rápido do que o normal. Por identificação projetiva também sentia medo. Henri, como decidi chamá-lo não respondeu. Continuou rígido com o olhar fixo no teto. Por outro lado, sentia que sua pele que antes me parecia muito fria estava ficando quentinha, como se eu tivesse colocado uma roupa no corpo nu.

Isto me deu esperança e continuei a massagear Henri e a cantar melodias que não escutava há 30 anos. Lembrei das melodias, mas inventei as letras tentando imaginar as angústias de terror que pudessem estar passando na fantasia de Henri e tentando com aquelas palavras nomeá-las.

Depois do que me pareceu muitos minutos ali já conseguia chegar minhas mãos no rosto e na cabeça dele. Neste momento Henri me viu, virou o rosto na minha direção e começou a mexer as pernas e os braços. Fiz uma conexão com meus olhos, dei um sorriso e recebi outro de volta.

Senti-me como quem fez “respiração boca a boca”, “primeiros socorros emocionais”. Henri estava vivo.

Algum tempo depois a mãe do Henri surgiu, muito agitada, segurando roupas e objetos que havia ganhado dos voluntários.

Ela olhou para mim e disse que o bebê estava “paradinho” desde que haviam chegado. Disse-lhe que ele estava assustado. Me apresentei e perguntei se gostaria de conversar.

“Sim, eu também estou muito assustada, a morte passou perto.” A este primeiro encontro seguiram-se mais 3 onde participaram Henri, sua mãe e uma irmã de 12 anos.

24. E agora? Só temos dez dias

O rio a transbordar: a psicanalista e a enchente

No dia 3 de maio cheguei bem cedo no consultório; era uma sexta-feira e eu teria um longo dia de atendimentos. Dois dias antes já se anunciava nos noticiários o difícil cenário que assolava algumas cidades do interior do estado devido ao alto volume das chuvas. Apesar de impactada e triste com tais notícias, imaginei que meu dia seria como tantas sextas feiras que já vivi, afinal o campo de futebol que se localiza em frente ao prédio do meu consultório tinha apenas suas tradicionais poças que aparecem em dias de chuva. Relembro Totem e Tabu (Freud, 1913) e sinto na pele que não só os povos primitivos têm, por fim, a necessidade de controlar o mundo. Todos gostaríamos de controlar o mundo... Mas, em meio ao terceiro atendimento do dia, volto meu olhar para a janela compreendo na prática o que se anunciava, pois rapidamente, a água vinha chegando. Eu poderia descrever neste momento todo um relato de várias coisas que senti, fiz e experienciei, incluindo não poder voltar para casa pela inundação de minha própria rua, mas me atenho ao clima que se instaurou em mim: uma necessidade vertiginosa de ajudar os desabrigados versus os desdobramentos no social do grande grupo.

392 Cidades alagadas, mentes inundadas

Minha primeira reação foi fazer tudo que imaginei estar ao meu alcance e assim, um dia após a vivência acima citada, eu estava imersa em um abrigo realizando a ajuda direta a todos que lá chegavam (posteriormente descobri que esta escuta de urgência é denominada de “primeiros socorros psicológicos”). Hoje me lembro de um frenesi que senti com este trabalho de cuidado, e questiono como se origina esta defesa onipotente onde “os secos” acolhem “os encharcados”. Muitas pessoas experienciaram isso, aliás muitos, vivenciando este frenesi, foram realmente heroicos. Certamente mais vidas teriam se perdido se não houvesse esse ímpeto da tal onipotência, a ideia protetora de “só eles estão em risco e não eu”. A cisão a serviço da proteção psíquica. Mas, no fundo é difícil se deparar com a ideia de que nossa onipotência nada mais é que um recurso frente ao medo do nosso desamparo.

O voluntariado cresceu rapidamente. Todos queriam ajudar, até os que estavam desabrigados e com importantes perdas materiais. Provavelmente, seja um jeito de viver ativamente o medo de experimentar passivamente algo muito assustador, a total perda do controle. Em uma atividade online para discussão destes primeiros socorros psicológicos, falou-se que, usualmente, este tipo de voluntariado que estávamos experimentando, não dura mais do que 10 dias. Essa informação chamou atenção. Por que a maioria da população, incluindo profissionais, possui tempo limitado de doação? Vamos em busca de Freud (1913) que nos explica que sempre estaremos às voltas com nossos desejos agressivos e desejos sexuais. Para viver em sociedade fazemos uso do recalcamento, que dá forma a subjetividade humana e, também, ao laço social que nos ata. O recalcamento, sabemos, não mantém exatamente tudo “sob controle” e, por isso, a ameaça sempre está no ar. O psíquico está sempre ameaçado de ser inundado pela agressividade e pela sexualidade, ambos com poder disruptivo sabido. Será que esta benevolência do voluntariado não se mostra como uma saída contra nossos medos de que os espíritos do mal também

25. Caso clínico: a esperança da emergência1

Em maio de 2024 recebi o contato de Esperança, via WhatsApp. Ela tem 30 anos e foi resgatada de barco com a filha de 10 anos e um cachorrinho. Deixaram tudo para trás: casa, roupas – a sobrevivência se impôs após três dias ilhadas e isoladas no prédio em que moravam.1

Em Porto Alegre foram acolhidas na casa de uma amiga até que fosse possível limpar a casa dos pais, que também havia sido inundada pelas águas, e Esperança pudesse ir para lá a fim de cuidar deles.

A queixa sintomática era não conseguir dormir, nem parar de andar de um lado para outro. Sentia-se excessivamente ansiosa, num tipo de agitação motora que me levou a pensar num bebê se debatendo com braços e pernas em movimentos descompassados e choro compulsivo.

Era um dia de sábado e realizei o atendimento imediatamente como exigem esses casos provenientes de situações catastróficas –não tem final de semana ou feriado e nem hora marcada. A compreensão está na urgência e emergência para evitar o colapso psíquico

1 Todos os nomes aqui apresentados são fictícios.

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ou que ele se agrave pondo em risco a vida da pessoa. Situação que clama por amparo humano.

Agora, eu e Esperança, estávamos no mesmo “barco”. Mas o meu diferencial era o apoio dos organizadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) nas pessoas de Vera Hartmann e Patrícia Goldfeld por meio da criação de grupo de WhatsApp com indicações de leituras, palestras e discussões clínicas. Colegas de todo o Brasil se juntaram ao grupo para os atendimentos, como voluntários, num gesto sensível de solidariedade humana.

Esse foi o primeiro e único contato visual e falado que tive com Esperança, os demais foram por escrito via WhatsApp.

Nesse primeiro contato, Esperança me apresentou Delicadeza, sua filha doce e firme que me apresentou seu cachorrinho, e eu lhe apresentei a minha. Delicadeza demonstrou grande aptidão de se alegrar com a visão de um animal, o que significava a capacidade de se recuperar rapidamente das dificuldades. Estava brincando quando foi chamada pela mãe e demonstrou interesse de saber meu nome, quem eu era e o nome da minha cadela e sua idade.

Voltamos a ficar a sós, eu e Esperança, e ela me disse:

E: Preciso lhe dizer quem eu sou, preciso falar. Fiz terapia por 10 anos. Sofri assédio desde os 13 anos por parte de um senhor amigo de meu pai. Tinha o consentimento de meu pai…

Parei de escutá-la por um momento. Minha cabeça parecia rodar. As águas baixaram e a lama ficou exposta.

Retornei a ouvir Esperança

E: … era um amigo rico, cresci me sentindo uma perversa. Os encontros aconteciam em motéis. Eu continuei virgem, eram só manipulações. Mas foi bom! Assim pude pagar meus estudos e hoje sou formada.

Nesse tipo de situação não se trata de um retorno do trauma, mas sim, da apresentação do trauma.

26. Vínculo e solidariedade: o grupo como pele diante do trauma

Denise Zimpek Teixeira Pereira

Jeanete Suzana Negretto Sacchet

Lírion Scheuermann da Roza

Gaepsi

Maria Arleide da Silva

As feridas cicatrizam, embora pulsem por dentro da pele.

As feridas são as marcas da vida que insistem em permanecer sempre!!! Não é fácil seguir sem percebê­las...

No entanto é possível aprender com elas e viver com elas e conviver com elas e fazê­las deixar de doer, ou sendo mais humilde, se acostumar com a dor.

Eduardo de Campos Garcia

A história do atendimento emergencial a um grupo de profissionais da educação aqui descrita, teve sua origem na demanda por este modelo de assistência, consequente aos traumas sofridos pelas milhares de vítimas das enchentes no estado do Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2024. Em atendimento à solicitação de apoio pela Direção da Escola, aqui cognominada Escola da Zona Norte; um grupo composto por quatro psicólogas, que compunham o voluntariado de profissionais no atendimento às vítimas, decidiu-se por assumir a tarefa demandada. No grupo assistido, incluíram-se todo o corpo docente e funcionários em outras funções, com cerca de 45 pessoas.

O objetivo inicial era de uma escuta que pudesse acolher os medos e angústias relativos ao momento que estavam passando individual

412 Cidades alagadas, mentes inundadas

e coletivamente, e que contribuísse à reorganização da vida privada e institucional escolar, que sendo o lugar físico de trabalho, estava parcialmente destruída e com perdas substanciais, não apenas na estrutura física, perderam-se nas enchentes muitos materiais pedagógicos, construídos ao longo do cooperativo e dedicado trabalho da coletividade escolar, mais de 80% dos alunos e alguns profissionais tiveram as suas residências igualmente destruídas ou extremamente danificadas. Um cenário literalmente de destruição na Escola e nas residências, para além e sobretudo, nas vidas destas pessoas.

Previamente foi definido que este atendimento específico, realizar-se-iam três encontros, com frequência de uma vez por semana, através de plataforma virtual. No dia do primeiro encontro, reuniram-se inicialmente todas as psicólogas e o grande grupo, apresentamo-nos individualmente, informamos que os nossos encontros aconteceriam com o grande grupo reorganizado em três subgrupos.

A experiência psíquica de tamanha tragédia, transforma-se em sentimentos de incapacidade, impossibilidade de lidar com o que está sendo vivido, como se a realidade fosse algo alheio a cada um que vive, estes sujeitos sentem-se “presos” ao caos, um sintoma, que recebeu outrora o apelido de “os abobados da enchente”, sujeitos incapazes de equilibrar o que vem da vida interna com o que está fora. Em 1926, Freud escreveu sobre as inibições do Eu, “Quando o Eu é solicitado por uma tarefa psíquica particularmente difícil ...” (Freud, 1926, p. 19), entre os exemplos, inclui o luto, tal qual o vivido por todas as pessoas de alguma forma vitimadas pelas enchentes; e na sequência, continua Freud, referindo-se as situações traumáticas e de perigo, a angústia automática surge na reação a um perigo, seja este de natureza interna ou externa e gera um sinal de alerta (Freud, 1926, p. 99).

A construção ou reconstrução de vínculos, na perspectiva da compreensão do funcionamento mental inconsciente, vislumbra-se como uma estrutura em rede, que subjaz aos vínculos individuais nos vários contextos relacionais e suas interações: família, casal, grupos

Em 2024, o Rio Grande do Sul foi surpreendido por uma catástrofe climática que mudou significativamente a vida dos gaúchos. Grande parte da população do estado perdeu suas casas, inundadas, e teve de sair o mais rápido possível, deixando todos os bens e priorizando a própria sobrevivência e a de seus familiares. Porto Alegre, a capital, ficou sitiada, sem luz e sem água, com apenas uma via colateral de entrada e saída. A mobilização e o auxílio vieram de inúmeros pontos do país, e o Brasil inteiro se solidarizou.

A Diretoria da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, desde o início dos trágicos acontecimentos, profundamente sensibilizada e reconhecendo sua responsabilidade junto à comunidade gaúcha, desenvolveu um Projeto de Ação Emergencial para o atendimento gratuito das vítimas da catástrofe, bem como de profissionais e voluntários civis que cuidavam das vítimas. O Projeto foi rapidamente incorporado por colegas psicólogos e psiquiatras de todo o Brasil, que gentilmente abriram sua agenda para proporcionar sua escuta especializada. O desenvolvimento e os resultados desse trabalho foram relatados neste livro.

Desejamos que esta obra possa representar uma contribuição à sociedade, aos profissionais e principalmente às vítimas dessa catástrofe e que seja um estímulo a novas escritas. Cidades alagadas, mentes inundadas veio como um convite a estudarmos com mais profundidade o trauma imposto e suas consequências psíquicas em cada um de nós. Boa leitura!

As organizadoras

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Cidades alagadas, mentes inundadas by Editora Blucher - Issuu