A transferência irônica na esquizofrenia

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A transferência irônica na esquizofrenia

Marina Moreira Carrilho

A TRANSFERÊNCIA IRÔNICA

NA ESQUIZOFRENIA

Marina Moreira Carrilho

A transferência irônica na esquizofrenia

© 2025 Marina Moreira Carrilho

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Juliana Morais e Andressa Lira

Preparação de texto Ariana Corrêa

Diagramação Thaís Pereira

Revisão de texto Lidiane Pedroso Gonçalves

Capa Laércio Flenic

Imagem da capa Dedê Paiva

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Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

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Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Carrilho, Marina Moreira

A transferência irônica na esquizofrenia / Marina Moreira Carrilho. – São Paulo : Blucher, 2025. 128 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2692-5 (impresso)

ISBN 978-85-212-2689-5 (eletrônico - Epub)

ISBN 978-85-212-2690-1 (eletrônico - PDF)

1. Psicanálise. 2. Esquizofrenia. 3. Psiquiatria. 4. Ironia. I. Título.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

CDU 159.964.2

1. Da esquizofrenia na psiquiatria clássica à esquizofrenia na psicanálise

2. Ironia e transferência

3. Ironia: entre a noção de fenômeno e ato

4. A ironia e sua forma própria de fazer laço

1. Da esquizofrenia na psiquiatria clássica à esquizofrenia na psicanálise

Na contemporaneidade, testemunhamos o advento de uma psiquiatria submetida, quase em sua totalidade, às descobertas recentes das neurociências e dos manuais diagnósticos. Isso se deve ao desenvolvimento, iniciado na década de 1950, nos Estados Unidos, de uma corrente de produção de psiquiatria que se pretendia ateórica e desvinculada de compreensões psicodinâmicas (Dunker & Kyrillos Neto, 2011). O principal problema dessa concepção de ciência é que, pretendendo se livrar das particularidades epistemológicas dos saberes das ciências psicológicas, foram desenvolvidas aberrações diagnósticas como as observadas nas caracterizações dos distúrbios mentais catalogados nos últimos Manuais Diagnósticos e Estatísticos de Transtornos Mentais (DSM). Nos DSM, há uma infinidade de supostas síndromes e desvios que desconsideram os processos próprios de desenvolvimento histórico e conceitual de cada uma das categorias descritas, e se obtém como justificativa para sua manutenção dentro dos manuais a resposta de um conjunto de sintomas mediante a exposição a determinado psicofármaco. Porém, não é devido à boa resposta a um antigripal que se pode determinar que uma pessoa apresenta gripe. O que sustenta esse raciocínio equivocado é uma poderosa indústria farmacêutica que

a transferência irônica na esquizofrenia

se beneficia diretamente da medicalização de todos os processos intrínsecos à vida humana.

Assim, proponho um retorno à clínica psiquiátrica clássica para que seja possível desmistificar a naturalização de uma psicopatologização generalizada da vida. E para que seja possível se aproximar com mais cuidado das narrativas de sofrimento específicas de um modo de estar no mundo, que pode, por exemplo, produzir determinados efeitos de maior abertura diante do real, e, portanto, demandar um maior cuidado específico quando sua expressão na realidade compartilhada produz mais sofrimento do que o que pode ser suportado sem um acompanhamento mais detido. Com isso, não há intenção dizer que a experiência da estrutura psicótica seja, por si, algo que produza um imenso sofrimento, mas a experiência clínica nos mostra que deixar esses sujeitos à deriva num momento de crise pode gerar efeitos devastadores.

Como a ideia é trabalhar especificamente com o que de mais particular apresenta as manifestações da chamada “esquizofrenia”, a Tabela 1.1 demonstra que houve um longo percurso para que o conceito de esquizofrenia fosse desenvolvido.

Tabela 1.1 Cronologia do desenvolvimento de conceito de esquizofrenia

Ano Evento

1893 Emil Kraepelin descreve o quadro clínico da demência precoce na quarta edição de seu “Tratado de Psiquiatria”.

1908-1911 Eugen Bleuler publica um artigo sobre o prognóstico da demência precoce seguido do livro Demência precoce: o grupo das esquizofrenias.

1913 Publicação da oitava e última edição do tratado de Kraepelin com a descrição dos dois principais componentes da demência precoce.

1930-1940 Descrição de vários subtipos de esquizofrenia na Europa e nos Estados Unidos.

1948 Kurt Schneider publica a Psicopatologia clínica descrevendo os “sintomas de primeira ordem”.

1965 (até 1970)

Projeto colaborativo Estados Unidos-Reino Unido.

(continua)

2. Ironia e transferência

amei em cheio meio amei-o meio não amei-o Paulo Leminski, “Desarranjos florais”, 1987

A busca pela compreensão da particularidade da ironia que poderia interessar à psicanálise, a ponto de ser colocada como elemento de escuta a se considerar no percurso de um tratamento, continua. É sabido que a via régia de acesso àquilo denominado como “inconsciente” é a escuta, sob transferência, dos sonhos (Freud, 2006a), dos chistes (Freud, 2017), dos sintomas (Freud, 2014) e dos atos falhos (Freud, 2013b). Nesse sentido, a escuta da ironia como elemento linguístico passível de ser analisado sob o aspecto de quem a enuncia, e dos lugares que ela produz nas relações transferenciais na clínica psicanalítica, também pode ser utilizada como mais uma ferramenta de análise na construção de um psicodiagnóstico. Assim,

Pressentida ou intuída, certamente polissêmica se reconhecida, de improvável delimitação, enfim, a ironia é acompanhada de problemáticas que interessam à psicanálise

. . . enquanto linguagem que joga e se entretém consigo mesma e com o outro, a ironia convida a um debate tão teórico quanto moral ou mesmo a uma reflexão estética ou linguística desafiadora, nos quais a psicanálise se faz participante. (Gellis & Junta, 2020, p. 72)

A ironia, além da intencionalidade de quem a enuncia, depende de um intérprete que capte sua intenção para que seu sentido seja transmitido, do contrário ela se mantém em suspensão (Gellis & Junta, 2020). Essa característica é bastante consonante com aspectos que Freud (2017) elencou como necessários para a compreensão de ditos cômicos e espirituosos: a presença de mais de uma pessoa para produzir seu efeito de riso, por exemplo. Apesar de aparentemente elementar, uma vez que sabemos que é preciso alguém que emita esses ditos, e alguém que os escute e os valide, para que a comunicação de seu sentido seja efetivada, o principal ponto que essas considerações expõem é de que um não ri sozinho.

O riso, e principalmente as formas de comunicação que dependem dele para concretizar seus sentidos, são majoritariamente tipos de relação social. E, portanto, maneiras de enlaçamento ao Outro da linguagem.

A transferência é uma forma particular de relação com o Outro, que se expressa dentro do contexto dos atendimentos psicanalíticos por meio do amor ou do ódio. Essas manifestações são “como forças impulsionadoras do trabalho e da mudança” (Freud, 2010b, p. 218), a partir das quais o tratamento pode ocorrer.

A transferência também pode surgir na literatura psicanalítica como uma forma de resistência ao tratamento. Ela é o motor da cura, mas também representa sua tendência repetitiva de reavivar uma série de experiências do paciente na atualidade da relação com o analista, e pode se aparentar a uma forma de bloqueio ao avanço das produções em análise.

3. Ironia: entre a noção de fenômeno e ato

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção Está provado que só é possível filosofar em alemão. Caetano Veloso, “Língua”, 1984

Com o intuito de extrair implicações clínicas do postulado lacaniano do inconsciente estruturado como uma linguagem, foi necessário buscar algumas definições de ironia no campo da linguística a fim de verificar se elas apresentam alguma homologia com a proposta de transferência irônica desenvolvida por Alomo (2012). Nessa toada, uma dessas formulações destaca o valor ético implicado na ironia desde suas origens, situando-a para além de uma simples figura de retórica:

Se a ironia interessou à filosofia foi em razão de remeter, já em sua origem, não tanto a uma retórica, mas a uma atitude, a um comportamento, que concerne mais a uma questão ética, uma vez que o método próprio à ironia socrática envolvia o ethos de não impor qualquer raciocínio ao outro – ética imanente à palavra, portanto. (Gellis & Junta, 2020, p. 74)

Segundo Maas (2010), o fenômeno da ironia emerge como elemento significativo na instauração do pensamento contemporâneo sobre a linguagem. Os elementos fundamentais para a aproximação a esse tema já estavam presentes em alguns textos do movimento literário classificado como primeiro romantismo alemão. Para compreender esse modo de pensamento é necessário se desvincular da ideia de ironia como um conceito e considerá-la mais próxima das ideias de tropo e performance.

Dois autores que exemplificam bem essa questão da ironia enquanto fenômeno performático são Friedrich Schlegel (1772-1829) e seu principal comentador: Paul de Man (1919-1983), filólogo, filósofo e crítico literário belga, divulgador do estilo irônico e da própria ideia de ironia enquanto fenômeno do ato enunciativo, a partir do pensamento de Friedrich Schlegel. No artigo “Uma abordagem comparativa da ironia: conceito, tropo e performance” (Maas, 2010), há uma análise sobre a perspectiva desses dois importantes pensadores que se debruçaram sobre a questão da ironia e seus efeitos no ato de fala.

Schlegel promoveu grandes avanços no pensamento sobre o fenômeno da ironia por meio da escrita de “Über die Unverständlichkeit” (“Da ininteligibilidade”) em 1800. Sua intenção com esse texto era responder às críticas do público e de outros críticos literários que afirmavam que seus escritos eram ininteligíveis. Esse trabalho é considerado uma manifestação de fenômeno, no caso o fenômeno irônico, como proposta por Kierkegaard, em contraposição a uma escrita do que seria o conceito de ironia.

O que impressiona nessa obra é a prova de que a ironia produz uma desconstrução comunicativa do paradigma semiótico, por se revelar refratária à uma leitura saussuriana e também por resistir a uma análise de caráter semiótico greimasiano, em que existe uma hierarquia de sentidos polarizada entre os eixos dos contrários e dos contraditórios. Isso se torna possível uma vez que o texto de Schlegel não permite que a ironia seja interrompida, ou dividida em núcleos menores de estudo, ou seja, hierarquizada segundo as categorias de

4. A ironia e sua forma própria de fazer laço

— Você poderia me contar qualquer coisa a seu respeito?

— Acho melhor não. . . .

— Como assim? O que é isso, agora? — exclamei —, — Não vai mais escrever? — Não. . . .

— Ora, das duas, uma. Ou você faz alguma coisa, ou alguma coisa tem que ser feita a você. Que tipo de trabalho você gostaria de fazer?

Gostaria de voltar a fazer cópias para alguém?

— Não. Acho melhor não mudar nada.

Herman Melville, Bartleby, o escrivão, 2017a

Os autores que se debruçaram mais detidamente sobre a incidência da ironia no discurso de pacientes esquizofrênicos foram Miller (1994), Silva (2015), Veloso (2009), Teixeira (2010), Alomo (2012), López (2016) e Sant’Anna (2019). Neste capítulo, será apresentada a pesquisa dessa última autora sobre o que foi observado no acompanhamento

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de uma paciente esquizofrênica seguida da elaboração de um diálogo com as descobertas de tal trabalho, visto que estas se aproximam muito do percurso de estudo realizado até aqui.

Em “A demissão do outro na esquizofrenia: o dito esquizofrênico sem a ajuda de nenhum discurso estabelecido”, Sant’Anna (2016) acompanha as experiências de Valéria, nome dado à sua paciente, atendida no serviço de acolhimento do Ambulatório Bias Fortes. A partir de suas observações, é construída uma leitura específica sobre os enunciados e atos irônicos produzidos pela paciente sem intencionalidade, mas que revelam sua forma particular de enlaçamento ao Outro.

O início do tratamento ocorreu no ano 2000 devido ao desencadeamento de um surto psicótico seguido por delírios persecutórios e alucinações audioverbais. O disparador desses sintomas foi a acusação de furto em seu local de trabalho, seguida por sua demissão. Foi percebido que, apesar de inocente, Valéria não tinha sido capaz de produzir nenhuma palavra em sua defesa e, devido a essa ausência, ela ainda sentia que as pessoas ao seu redor estavam sempre falando a seu respeito, o que a levava a evitar ambientes tumultuados. No processo de acompanhamento e escuta havia a hipótese de que os sintomas haviam acontecido na tentativa de produzir uma resposta possível à convocação do outro, que insistia em nomeá-la culpada mesmo depois de anos da acusação.

A paciente se queixava de um imenso vazio e afirmava a intenção de pôr fim à própria vida, que para ela não apresentava sentido. Ainda que ao longo do acompanhamento ela tivesse conseguido emprego em outros estabelecimentos, ela não conseguia manter-se neles mais do que alguns poucos meses.

Com o passar do tempo, as construções delirantes saíram de cena e restou um predomínio dos chamados sintomas psiquiátricos negativos, como a apatia, a abulia e a anedonia. A inércia e o desinteresse presentes na vida dessa paciente são um assunto que intriga os estudiosos desde a

Onde está a ironia? A pesquisa de Marina Carrilho mantém presente, em cada capítulo, a sustentação de uma postura curiosa e investigativa que vai além do tema da esquizofrenia, nos convidando a pensar também o lugar da transferência e, aos moldes socráticos, uma ética que considera a inconsistência do Outro – já que o riso é também concretização de sentido e forma de se fazer laço.

No grego, eironéia é a dissimulação ou pergunta que se faz ao interlocutor fingindo ignorância. Era o método socrático para confundir os sofistas com o objetivo de colocar em xeque a fragilidade de qualquer conhecimento, mostrando seu caráter de opinião ou leitura parcial da realidade: “Quando tiverem prática com o esquizofrênico, vocês saberão da ironia que o arma, atingindo a raiz de toda relação social” (Lacan em Respostas a estudantes de filosofia).

Vinícius Costa

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