A diferença entre meritocracia técnica e política

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A DIFERENÇA ENTRE MERITOCRACIA TÉCNICA

E POLÍTICA

Nos grupos científicos a artísticos, observados sob o vértice psicanalítico

Paulo Cesar Sandler

A diferença entre meritocracia técnica e política: nos grupos científicos a artísticos, observados sob o vértice psicanalítico

© 2024 Paulo Cesar Sandler

1ª edição – Blucher, 2024

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Andressa Lira

Produção editorial Juliana Morais

Preparação de texto Luana Negraes e Regiane da Silva Miyashiro

Diagramação Plinio Ricca

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Capa Laércio Flenic

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Sandler, Paulo Cesar

A diferença entre meritocracia técnica e política: nos grupos científicos a artísticos, observados sob o vértice psicanalítico / Paulo

Cesar Sandler. – São Paulo: Blucher, 2024. 380 p.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2296-5

1. Psicanálise I. Título

24-3373

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

Conteúdo

1. A diferença entre meritocracia técnica

4. Ciência ou arte: qual veio primeiro?

5. Meritocracia técnica em psicanálise: o vértice psicanalítico

6. Meritocracia

7. Uma história natural das cinco meritocracias políticas

8. Exemplos práticos sob forma de mitos

9. Interação homeostática das meritocracias técnica e política: um exemplo de funcionamento harmônico, e não confusional

10. Prevalência da meritocracia política sobre a meritocracia científica, complicada pelo disfarce no qual política se traveste de técnica 309

11. À guisa de fim em uma história real, até agora infindável 375

12. Notas finais 377

1. A diferença entre meritocracia técnica e

meritocracia política

Numa esquina, aquém do fim do mundo e bem pra lá da

Terra de São Nunca, conversam Francis Bacon, George Santayana, Wilfred Bion, Boris Schnaiderman e Wolfgang Sauer. Velhos amigos na acuidade – que jamais se conheceram:

Francis (alerta do alto da carruagem): “Toda novidade não passa de esquecimento”.1

George (todo despachado, vai pegando carona na carruagem sem pedir): “Quem desconhece seu passado condena-se a repeti-lo”.2

1 Bacon, F. (1625). Of Vicissitudes of Things. In The Essays (editado por J. Pitcher). London: Penguin Books, 1985. p. 228

2 Santayana, G. (1905). Reason and Common Sense. In The Life of Reasan. New York: Dover, 1980. p. 284. Pode ser recuperado em Project Gutemberg E-book, editado por Marylinda Frazer-Cunnlife, 2005

a diferença entre meritocracia técnica e meritocracia política

Boris (afastando-se de um Jeep em que sequer entrou ao divisar o banco tomado por sangue de algum ferido, perto de Pisa): “Um fato importante para a formação de grupos é o maior ou menor grau de degradação moral que se atingiu”.3

Wilfred (dirigindo um Bentley usado, olha para os três que lhe pareceram demasiado otimistas): “Aquilo que aprendemos da história é que nada aprendemos da história”.4

Wolfgang (resignando-se): “O ser humano não aprende”.5

De tanto querer auxiliar, atrapalha

Há mais de um século, pessoas padecendo de sofrimentos decorrentes de dificuldades e impossibilidades de enfrentar vicissitudes que afetam e podem danificar sua natureza humana procuravam médicos e ministros religiosos. Como faziam há incontáveis milênios.

Médicos e, antes deles, sacerdotes, tantas vezes confundidos por excesso de fantasias de onipotência e onisciência, apregoaram e prosseguem apregoando, explicitamente ou não, o desafiar de um fato natural – morte. Tanto em sua postura, quanto na sua prática. Acoplam-se às esperanças, expectativas e exigências daqueles que os procuram, por “curas”. Nome, nada acidental, e muito antigo: em uma bem conhecida religião, sacerdotes foram denominados, por séculos, de “curas”.

Em parte por isso, e em parte por eficácia, tantas vezes por coincidência probabilística, hoje chamada efeito placebo pelos médicos, a atividade que apregoa curas mantém-se sob alta procura. Por

3 Schnaiderman, B. (1964). Guerra em Surdina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 111

4 Bion, W. R. (1961a). Experiences in Groups. Londres: Tavistock Publications. p. 89

5 Sauer, W. (2011). Depoimento. In P. C. Sandler, Clássicos do Brasil: Fusca. São Paulo: Alaúde.

a diferença entre meritocracia técnica e política 15 dramaticidade da situação, sem dúvida, que, tantas e tantas vezes, conduz a tragédias.

O exercício da medicina sempre esteve sob crítica, construtiva ou não. Pessoas cuja obra escrita mostra notável alcance e profundidade a respeito da natureza humana e de suas vicissitudes, como Platão, demoraram muito tempo para compreender e finalmente resolver suas dificuldades com os médicos de então. Buscaram, diversas vezes, retirar-lhes a possibilidade de exercer certas ações sobre os pacientes, vistas como extrapolações do que parecia ser minimamente razoável. Ações vistas como se fossem poderes que precisariam ser reservados aos dirigentes da pólis, mas nunca aos sabedores de tecnologias (teknai). Que precisariam apenas servir, mas nunca decidir nada a respeito dos destinos de seus semelhantes.

Terá sido o caso de Platão ter confundido seu próprio autoritarismo com o que supôs ser um autoritarismo indevido, fazendo parte da ação da medicina? Isso ocorreu durante algum tempo, até que Platão pudesse se dar conta de que tudo aquilo que criticava como extrapolação autoritária era algo intrínseco ao trabalho da medicina. Pode discriminar melhor a medicina, como atividade dedicada ao auxílio de pessoas que sofrem, dos médicos que tentavam exercê-la; e dentre eles, aqueles que não podiam exercê-la. Não sendo médico, e, até o ponto que podemos saber, não teria precisado de cuidados médicos, e, talvez, faltou-lhe algum outro componente – paciência, aliada à sapiência que tinha – para poder apreciar adequadamente a técnica que desconhecia; mesmo que tenha podido reconhecer muito do que não sabia, em termos de percepção da realidade.6 Em retrospecto, e no que tange ao assunto que tento abordar, deixou-nos uma experiência em que se pode diferenciar a meritocracia política em um grupo humano – no caso, representada por ele mesmo, Platão – e

6 Levin, S. (2014). Plato’s Rivalry with Medicine: A Struggle and Its Dissolution. Oxford: OUP.

2. Mitos

Há um paradoxo no lugar-comum social a respeito da compreensão dos antigos mitos. Foi observado por Shelley, a respeito da obra de Shakespeare, 80 e ressaltado dois séculos depois por Bion para uso de psicanalistas: Falstaff, um artefato conhecido, é mais “real”, nas formulações verbais de Shakespeare, do que incontáveis milhões de pessoas que são opacas, invisíveis, desvitalizadas, irreais, em cujos nascimentos e morte – e até mesmo casamentos, que pena! – somos obrigados a acreditar, já que sua existência é garantida pela assim chamada certidão oficial.81

Um fenômeno “demasiadamente humano”: ficção, muitas vezes, contém mais realidade do que reportagens jornalísticas ou pregações

80 Clark, D. L. (1939). Shelley and Shakespeare. PMLA, 54: 261-287. https://doi. org/10 2307/458637

81 Bion, W. R. (1975). O sonho. In Uma memória do futuro (Vol. I, P. C. Sandler, Trad. Prefácio de Frank Phillips). São Paulo: Martins Fontes. p. 8

políticas, determinadas a impor o preconceito de um propagandista sobre as emoções da audiência.

A partir da observação de Bion em Aprender da experiência e Elementos de psicanálise, considerarei que mitos se constituíram como um dos métodos científicos primevos para apreender sofrimentos e vicissitudes que afetam a natureza humana; e comunicar verbalmente alguns fatos que a compõem. Descobrem, por um tipo primevo de análise crítica, questões que efetuam, afetam e impedem relacionamentos que todos nós, seres humanos, podemos ter, ou tivemos, ou pretendemos ter, ou necessitamos ter com eventos da natureza, e com outras entidades animadas, incluindo outros seres humanos, e com objetos concretos ou coisas. Parecem ter sido a primeira tentativa científica a lançar mão de formulações verbais. Buscam expressar aspectos generalizadores e universais que podem ser extraídos a partir de histórias, feitas por meio de formas narrativas, que emergem no decorrer de vidas humanas, conforme ocorrem no senso comum. Formam tipologias.

A tentativa feita pelos elaboradores de mitos tem sido bem-sucedida? Estou sugerindo que sim, mas sob condições dependentes dos usuários – a audiência e os escritores de mitos. Será necessário que os usuários do mito não se aprisionem pela excessiva materialização necessária para a construção formal do mito. Isso inclui as formas étnicas (por exemplo, religiosas) típicas do espaço-tempo no qual o mito foi elaborado.

O leitor que chegou até este ponto percebe que já estou lançando mão de relatos históricos contendo referências a pessoas. Espero que o leitor possa considerar que essas pessoas, hoje falecidas, mais ou menos conhecidas no senso comum, são personagens de mitos – isso abrange todas as pessoas citadas até agora, como Platão, Alcméon de Crotona, Sigmund Freud.

A obra escrita dessas pessoas não é utilizada como se fosse mítica, mas como aproximação direta e específica da realidade a partir de

a diferença entre meritocracia técnica e política 63 métodos científicos. O apelo a relatos históricos e biográficos costuma nublar o fato de que podem se referir a mitos.

Suponho que a seguinte diferenciação possa ajudar na apreensão do sentido que tento dar no meu apelo a mitos acrescentados de relatos biográficos ou autobiográficos. Quando o relato mítico inclui questões transcendentais, expressando evoluções artísticas ou científicas, contendo progressos nutritivos ou destrutivos, intrínsecos aos fatos descritos – sob os vértices médico, psicológico, jurídico e político – que possam ter sido úteis ou inúteis à vida humana, torna-se possível usá-lo como forma de conhecimento de aspectos da natureza humana. Mencionei anteriormente que aproveito da percepção de W. R. Bion sobre a função científica primitiva que precisa ser atribuída aos mitos como forma de apreensão primeva das vicissitudes e sofrimentos da natureza humana e da própria natureza humana quando ainda não havia formulações científicas.

Sob os vértices psicanalítico e de dinâmica de grupos, vou tentar construir três mitos para serem utilizados como ilustrações de exemplos de atos e consequências sociais de membros mais ou menos reconhecidos de meritocracias técnicas e políticas que fazem parte do senso comum de pessoas interessadas, que reconhecerão boa parte dos nomes citados. Usarei como material de construção dados descritivos coligidos por vários autores, devidamente citados; os dados são escolhas arbitrárias, mas obedecem a um sentido específico, segundo os objetivos do presente texto. Parece-me ter havido situações caracterizáveis por uma harmonia homeostática dos dois modos de conduta dos membros integrantes de meritocracias técnicas e de sua outra “face”, a meritocracia política. Os exemplos também incluem casos de quando houve preponderância de uma das duas “faces” à custa da outra. Espero que auxilie na diferenciação da meritocracia técnica e da meritocracia política o modus faciendi dos membros de cada uma delas.

Como ocorre em todos os mitos, vou descrevê-los por meio de formas narrativas. Estão moldadas por alguns dados histórico-biográficos

3. Transdisciplinaridade

Usei também o termo “transdisciplinaridade”. Em 1950, era um neologismo. Ainda o é, atualmente?

O fato é o seguinte: todos os investigadores científicos que buscavam conhecimento foram contemplados com mais um termo, cuja intenção seria integrar todas as suas pesquisas, apreendidas por alguns como se estivessem sendo elaboradas de um modo clivado e artificioso, levando a conclusões de tal modo parcializadas que se tornavam, sob o vértice científico, condenadas à falsidade.

O termo foi cunhado por Robert Merton,114 um dos introdutores da sociologia nos Estados Unidos que estava tentando obter uma possibilidade para que o establishment acadêmico e a sociedade circundante (ou população geral) pudesse aceitar que a sociologia seria uma disciplina científica. Fugiria ao escopo deste texto detalhar as labutas dos autores dessa disciplina e suas dificuldades para ser considerada uma ciência; estas remontam à época de Émile Durkheim e Auguste Comte, cujos estudos foram introduzidos no meio

114 Merton, R. W. (1948). The Self-Fulfilling Prophecy. The Antioch Review, 8(2): 193210

acadêmico norte-americano por Talcott Parsons. Ele foi professor e depois amigo pessoal de Robert Merton. Pode-se dizer que Merton introduziu, no mundo inteiro, os estudos sobre história da sociologia. Parsons e Merton foram os mais respeitados sociólogos em sua época. Nunca nutriram preconceitos contra a psicanálise. Reconheceram que Freud fez grande parte de sua pesquisa sob a abordagem transdisciplinar, mesmo que nunca tenha usado esse termo, já que que faleceu nove anos antes que Merton o cunhasse. Para os objetivos deste texto, pode-se dizer que Parsons e Merton exerceram funções nutritivas (sempre aplicando o conceito de que a realidade é materializável e imaterial) sob o vértice científico para a manutenção do establishment acadêmico.

As iniciativas dos dois incrementaram a formação de equipes transdisciplinares, integrando sociologia, psiquiatria e psicanálise em universidades respeitadas, localizadas principalmente nos Estados da Califórnia e de Nova York. Perceberam que a psicanálise já tinha algo que denominaram “conceitos-chave”, úteis para a aplicação na prática, pois possuem contrapartes na realidade.

Aquilo que pode ser denominado “coisa”, no mesmo vértice de realidade material ou, mais precisamente, materializado, apreensível até certo ponto pelos nossos órgãos sensoriais (visão, audição, tato etc.), aparentemente não propôs tantos problemas para nosso conhecimento, como o que não podia ser denominado “coisa”, pois a imaterialidade prevalecia. Isso ocorreu durante milênios. Conhecimento de “coisas”, totalmente materializadas, foi erigido ao altar do único conhecimento possível; por exemplo, pela religião positivista.115

Como toda e qualquer visão reduzida às aparências, essa também é enganadora, condenada à falsidade. Sob o vértice psiquiátrico, toma

115 Comte, A. (1896). The Positive Philosophy of Auguste Comte (versão em inglês por H. Martineau). London: George Bell & Sons. Há uma reprodução eletrônica em http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/econ/ugcm/3113/comte/Philosophy3.pdf

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a parte pelo todo e caracteriza estados denominados paranoide; segundo a contribuição da psicanálise para a psiquiatria, que dotou de maior precisão, caracteriza estados esquizoparanoides. A falsidade é dada pelo reduzido espectro de absorção de estímulos que caracteriza nosso aparato sensorial.

“Realidade imaterializada” e “realidade imaterializável” não parecem ser denominações usuais, de senso comum, embora possam ser vistas como lugares comuns, ainda que com outros nomes, em determinados estamentos populacionais dedicados a práticas que se dizem religiosas – de modo especial, a religião espírita. Espero que a penumbra de significados atual que possa cercar esses dois termos não seja um fator de indiscriminação e confusão para o leitor. O que proponho denominar realidade imaterial e imaterializável tem merecido outro termo que se tornou senso comum na física e lugar-comum em literatura, política e obras teológicas: “energia”, tantas vezes aparentada ou confundida. Portanto, parece que não está muito mais livre da considerável penumbra de significados que cerca as palavras imaterial e imaterializável.

A questão que me parece estar mais bem encaminhada, em termos de conhecimento, pelas disciplinas científicas de física e psicanálise, é a seguinte: uma apreensão do fato de que não são duas realidades, matéria ou energia, mas apenas uma realidade, matéria e energia. Há uma condição formal diversa, conforme essa realidade seja observada. Outro modo de colocar gramaticalmente, de forma analógica (metaforicamente): aquilo que é real funciona do mesmo modo que as duas faces de uma mesma moeda. São duas transformações da mesma realidade: moeda. Essa última é uma palavra que representa a invariância comum às duas transformações. Moeda de uso corrente, embora pouco reconhecida.

Matéria e energia não podem ser conhecidas de modo último, mas os relacionamentos entre as duas podem. Esclarecimentos – conhecimentos – a respeito das transformações entre matéria e energia são, em termos históricos, muito recentes.

4. Ciência ou arte: qual veio primeiro?

É um costume acadêmico moderno afirmar que a arte teria vindo primeiro, citando-se as pinturas rupestres como primeiras manifestações da atividade do que se pode enunciar como o aparato de pensar em nossa espécie Homo sapiens: entre 6 mil e 40 mil anos atrás.

No entanto, o uso de uma faca a partir de uma pedra lascada, que pode ter sido feita pela natureza a partir de rompimentos com outras pedras ou rompimentos geológicos, parece-me ser um ato de engenharia primitivo, ou um ato de tecnologia primitivo, em uma época na qual não se poderia diferenciá-las. Seria anterior à introdução de uma família, à noção da paternidade?

Suponho que foi feito por uma atenção concentrada a partir de uma preconcepção de “faca”, obtida por filogenia, a partir de alguma perda biologicamente determinada, que precisou passar pelo processo de seleção natural descrito por Darwin e aperfeiçoado pela genética. Uma conjectura imaginativa desse tipo de perda – que poderia justificar a descoberta de uma faca externa – seria a perda de uma potência bucomaxilar, determinada pelo músculo denominado por anatomistas masseter, acoplado a muitos dentes que os dentistas chamam de

ciência ou arte: qual veio primeiro?

caninos. Até hoje, é considerado o músculo mais potente que temos, mas sua potência não pode ser comparada à dos de outros seres vivos, como os felinos e os caninos e, menos ainda, os grandes sáurios.

Essa suposição não pode ser evidenciada por nenhum método científico conhecido: nunca se encontrou nenhum fóssil de um hominídeo caçador provido dessa estrutura bucomaxilar pouco potente, meramente conjectural, mas encontrou-se o uso e, infere-se, a fabricação de instrumentos cortantes, ancestrais do que hoje denominamos faca, entre esses hominídeos primitivos.

Há uma interpretação arqueológica atual, tida como verdadeira, de que a “faca” foi feita há algo em torno de 2,5 milhões de anos, quando os primeiros hominídeos coabitavam a face da Terra com os grandes sáurios.163 A utilidade é óbvia e permitiu, como a possibilidade de lidarmos com o fogo, a sobrevivência em um ambiente hostil e desigual. Possibilitou a alimentação carnívora aos seres humanos.

Se considerarmos que esses primeiros hominídeos apareceram há 8 milhões de anos, e o Homo sapiens, há 100 mil anos, o primeiro ato do aparato de pensar pode ter sido expresso pela tecnologia ou pela aplicação prática da engenharia.

Pode-se dizer que existe a probabilidade de a medicina já existir há 31 mil anos, pelos dados obtidos recentemente a respeito das técnicas de amputação, hoje consideradas como se fossem as primeiras; certamente são as primeiras até hoje descobertas.164

Na antiga Grécia, incluindo alguns desenvolvimentos no início da era cristã, foram seguidos de um freio autoritário no período

163 Willoughby, C. C. (1902). Prehistoric hafted flint knives. The American Naturalist., 36(421): 1-6. https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/278055

164 Maloney, T. R.; Dilkes-Hall, I. E.; Vlok, M.; Oktaviana, A. A.; Setiawan, P.; Priyatno, A. A. D.; Ririmasse, M.; Geria, I. M.; Effendy, M. A. R.; Istiawan, B.; Atmoko, F. T.; Adhityatama, S.; Moffat, I.; Joannes-Boyau, R.; Brumm, A. & Maxime, A. (2022). Surgical amputation of a limb 31,000 years ago in Borneo. Nature, 609: 647-668. https://doi.org/10 1038/s41586-022-05160-8

a diferença entre meritocracia técnica e política 103 conhecido como Idade Média; não houve parada, mas houve uma seleção violenta em relação a algumas áreas. Durante o Renascimento, houve uma crescente noção da existência de erros no conhecimento autorizável pelas leis eclesiásticas do ramo católico apostólico romano do cristianismo, dependentes de doutrinas e postulados autoritários, promulgados ou decretados pela meritocracia política, onde se misturavam o sacerdócio e a nobreza feudal. Deram aparências concretas e estáticas ao que é dinamicamente transitório. A continuidade das alternativas propiciadas pela Reforma possibilitou a retomada (renascença) dos desenvolvimentos nas aproximações à verdade dos fatos. Constata-se o aparecimento de investigações gradativamente mais setorizadas, proporcionando aprofundamentos nos processos de conhecer. No entanto, isso ocorre à custa de menor amplitude no conhecimento “colecionável” e “colecionado”, antevistas por Sócrates. Investigações setorizadas correspondem, etimologicamente, à formulação verbal “ciência”, derivada do termo schizen: no antigo grego, clivagem, similar ao ato praticado pelo que me parece ser a primeira ferramenta descoberta pelo ser humano, ainda na época dos hominídeos: a faca.

Desde a Renascença, mas especialmente durante o Iluminismo e o movimento romântico, a considerável quantidade de aquisições científicas não apenas permitiu, como demandou que se descobrisse a possibilidade de se organizar, prática e teoricamente, algumas “novas” disciplinas. Atingiu um acme no século XIX: antropologia, sociologia e psicanálise.

A psicanálise forneceu maior amplitude e profundidade a uma disciplina anterior, a psicologia, até então levada a cabo por filósofos, ministros religiosos e charlatães.165,166

165 Ellenberger, H. F. (1970). The Emergence of Dynamic Psychiatry. In The Discovery of the Unconscious. New York: Basic Books. pp. 53, 75-82

166 Dingfelder, S. F. (2010). The first modern psychology study. APA: Monitor on Psychology, 41: 30. https://www.apa.org/monitor/2010/07-08/franklin

5. Meritocracia técnica em psicanálise:

o vértice psicanalítico

Nós, psicanalistas, não precisaríamos nos sentir desconfortáveis por usar o método interpretativo na prática de uma observação participante dos fenômenos que ocorrem durante o “aqui e agora” do setting psicanalítico.207

O método interpretativo tenta isolar qualidades, não quantidades. Estas últimas são parcialmente acessíveis por métodos estatísticos que descobrem taxas de erro. Outras disciplinas científicas se baseiam no método interpretativo. 208,209 Também são alvo de contrové rsias destrutivas. Que surgem por uma quest ã o real: interpreta ç ões, quando emitidas sem que se especifique claramente: (I) o vé rtice de observa çã o; (II) descri ç ões fenomê nicas

207 Sandler, P. C. (2009c). Dreaming, Transformations, Containment and Change (vol. I de A clinical application of Bion’s concepts). Oxford: Routledge, 2019. pp. 83, 145-149.

208 Merton, R. (1968). Social Theory and Social Structure. New York: The Free Press. p. 147

209 Wertz, F. J.; Charmaz, D.; McMullen, L. M.; Josselson, R.; Anderson, R.; & McSpadden, E. (2011). Five Ways of Doing Qualitative Analysis. Phenomenological Psychology, Grounded Theory, Discourse Analysis, Narrative Research, and Intuitive Inquiry. New York: The Guilford Press.

técnica em psicanálise: o vértice psicanalítico

precisas; (III) mé todos de aná lise, desaguam no idealismo ingê nuo. Constituem-se no exerc í cio libertino de meras opiniões pessoais autoritárias: produtos do pouco saber, geradores inesgotáveis de preconceitos. No que se refere aos membros do movimento psicanalítico, decorrem de alguns fatores. Um deles: a falta de forma çã o em psicaná lise real.

Para obter essa formação, fazem-se necessárias pelo menos três ações acopladas entre si:

• submeter-se a uma psicanálise por necessidade ditada pelo enfrentamento das vicissitudes e sofrimentos, mas nunca por ordens nem conselhos advindos do corpo discente de cursos de graduação;

• exercer, ainda que muito parcialmente, uma autoanálise, a partir do que Freud denominou “elaboração”;210

• é impossível levar a cabo as três ações com genuinidade sincera caso estejam dissociadas da vida real do candidato a psicanalista; Bion observa que “análise real é vida real” (ver Capítulo 3 – Transdisciplinaridade, notas de rodapé 123 e 124). Nunca se “é” psicanalista, mas há a possibilidade de se exercer psicanálise caso haja algum paciente disponível: é possível “estar sendo” um psicanalista, de modo temporário e parcial. Como temporária e parcial é a vida real.

No que se refere à ação (i), críticos violentamente destrutivos que também são ou foram acadêmicos de renome na meritocracia política de várias universidades famosas – não há escassez deles na academia – jamais se submeteram a uma psicanálise, exibindo esse fato com o mesmo orgulho de crianças que exibem medalhas de sucesso escolar. Atacam a obra de Freud por meio de uma série de crença racionalizadas – como toda crença. Uma delas, invariante

210 Freud, S. (1914c). Remembering, Repeating and Working Through. SE, vol. XII.

a diferença entre meritocracia técnica e política 121 nesses trabalhos, é a de que Freud teria apenas executado uma prática ritualística iniciática; que seria produto de adiçõ es similares às das drogas psicoativas;211 parecem ter se convencido de que poderiam substituir formação por informação obtida apenas por leituras de textos sobre psicanálise.212,213,214

Equivale à fantasia de que se poderia exercer algum esporte ou visitar uma localidade, ou cozinhar apenas lendo livros a respeito: confunde-se o falar sobre psicanálise com o exercício prático da psicanálise.

Desconsideram o fato de que experiência em qualquer atividade prática que se considere é condição absolutamente necessária, mesmo que não suficiente por si só. Não é privilégio de membros do movimento psicanalítico, se considerarmos que nenhuma tekné ou ofício prático – medicina, engenharia, culinária, pintura, pescaria, pilotar aviões ou qualquer outro meio de transporte, ou algum de que o leitor se relembre por si – permite sequer acesso a uma porta de entrada, caso a pessoa não o experimente, que não tente exercê-lo “de próprio punho”, para usar uma expressão idiomática vinculada a leituras. Menos ainda, que possa exercê-lo caso não tenha, além de o experimentado, apreendido-o minimamente, não apenas aprendido racionalmente. “O erudito sabe que um texto foi escrito por Freud ou Klein, mas fica cego para a coisa descrita”.215 A possibilidade de apreendermos fenô-

211 Eisenck, H. J. (1985). Decline and Fall of the Freudian Empire (prefácio de Sybil Eysenck). Londres: Routledge, 2014. pp. 25, 49.

212 Sulloway, P. (1978). Freud, Biologist of the Mind: Beyond the psychoanalytic legend. New York: Harper Collins, 1980.

213 Wilson, E. O. (1988). Consilience: the unity of knowledge. New York: Vintage Books (Random House).

214 Grunbaum, A. (1984). The foundations of Psychoanalysis: A philosophical critique. Berkeley: The University of California Press; Seattle: Kindle Edition.

215 Bion, W. R. (1975). O sonho. In Uma memória do futuro (Vol. I, P. C. Sandler, Trad. Prefácio de Frank Phillips). São Paulo: Martins Fontes p. 9

6. Meritocracia

Mérito, meritocracia, tecnocracia e cleptocracia

Os quatro termos misturam a língua latina com a grega e ainda se constituem como neologismos. Ganharam o status de noções e concepções, talvez pelo fato de que já existia, antes de sua cunhagem, a correspondência na realidade material e psíquica, individual e social, indicada por essas palavras. São “pensamentos sem pensador” esperando que alguém os pensasse. E, pensando-os, contribuiu para uma aproximação ou conhecimento de alguns fatos que passarei a descrever. O nome de quem os pensou, ou parece ter sido o primeiro a pensá-los, aparece nessa descrição.

Mérito pode ser visto como expressão de gratidão ou reconhecimento individual ou social. Se for individual, da pessoa para com ela mesma, pode ser caracterizado como respeito por si mesmo e estará sob a égide de um dinamismo equilibrado e, portanto, harmônico, ainda que paradoxal na homeostase entre os instintos de vida e de morte, sem prevalência de nenhum. A manifestação no ambiente dos fenômenos, captáveis pelos órgãos sensoriais, e

utilizando uma terminologia coerente com o sistema consciente aparecerá como orgulho.

Uma segunda situação, também individual, da pessoa para com ela mesma, pode ser caracterizada como arrogância, quando o indivíduo se arroga à condição de superioridade em relação a outros e a si mesmo. Originada de avidez, pode ser caracterizada como carência de respeito por si mesmo, ainda que disfarçado, assumindo as vestes aparentes de respeito por si mesmo. Estará sob a égide de um dinamismo desarmônico, introdutor de desequilíbrios na estrutura da personalidade pela prevalência dos instintos de morte às expensas dos instintos de vida. A manifestação no ambiente dos fenômenos, captáveis pelos órgãos sensoriais, e utilizando uma terminologia coerente com o sistema consciente, também aparecerá como se fosse orgulho. Em outras palavras: aparências enganam, e a discriminação das duas situações pode – e precisa – ser feita por meio de uma análise mais ampla, duradoura e profunda; não conheço outro método para fazê-la que não o psicanalítico. A discriminação entre orgulho e orgulho transformado em arrogância foi feita por Bion;243 sobre ela, proponho a expansão descrita, no sentido de conferir-lhe maior precisão, promovendo uma alternativa a juízos morais – facilitados quando usamos o termo arrogância em uma terminologia da psicologia do sistema consciente, aparece como se fosse orgulho quando estiver sob a égide dos instintos de vida.

Mérito, na maior parte das vezes – segundo minha experiência –, pode ser conferido também externamente, pelo sistema social. Pode ser generalizado, de toda uma etnia; pode também ser conferido por um determinado estamento, ou ofício, ou profissão, para indivíduos que doam ao grupo social algo originado por uma “estrutura” de personalidade com vários “alicerces” inter-relacionados, semeados sobre

243 Bion, W. R. (1957). Arrogância. In No entanto… pensando melhor (versão brasileira de Second Thoughts por P. C. Sandler). São Paulo: Blucher, 2021. p. 123

a diferença entre meritocracia técnica e política 141

qualquer uma das duas alternativas internas aqui relacionadas. A metáfora sobre alicerces ou bases pode ser descrita a partir de formulações verbais correspondentes a comportamentos no ambiente dos fenômenos e traços de personalidade, determinando as várias realidades materiais e psíquicas desses indivíduos:

• experiência;

• talento;

• dedicação (ou doação pessoal) genuína a determinado trabalho (usualmente denominada esforço);

• habilidade física, ética ou de investigação artística ou científica;

• educação que esteja em acordos de compromisso com regras sociais determinadas pelo ambiente. De modo resumido: uma educação que seja submetida a códigos morais, que podem ou não se equacionar com princípios (ou valores) éticos civilizados. Se não estiverem equacionados, a pessoa se classificará como domesticada, a partir do que Freud denominou processos secundários. Se estiverem equacionados, a pessoa será classificada como civilizada, por processos superegoicos,244,245 em parte inconscientes, por introjeção dos valores sociais. Corresponde ao imperativo categórico observado por Kant e, na tradição judaico-cristã, à lei mosaica.

Acoplar habilidades e talentos pessoais, naturais ou adquiridos, às funções de mando ou chefia – hoje chamadas de gestão e liderança – é algo conhecido pelo menos desde a Dinastia Han, na China, de 550 a.C.: foi pregado por Confúcio. Nas civilizações indo-europeias, na Mesopotâmia e na Grécia homérica, implicava finalidades militares.

Em 380 a.C., Platão estendeu o uso do que hoje chamamos mérito e meritocracia para outras atividades, somadas às militares. A transformação do Império Romano no ramo apostólico da Igreja Católica

244 Freud, S. (1923). The Ego and the Id. SE, vol. XIX.

245 Freud, S. (1938a). An Outline of Psycho-Analysis. SE, vol. XXIII.

7. Uma história natural das cinco meritocracias políticas

Sugiro que façamos uma distinção entre cinco tipos de meritocracia política em todas as épocas que possamos considerar e em todos os locais, de modo mais ou menos sofisticado, com maiores ou menores números de membros. A divisão é artificiosa; na vida real, aparecem mescladas, e, no mais das vezes, em confusão:

1. meritocracias militares beligerantes de agressão;

2. meritocracias militares beligerantes de defesa;

3. meritocracias burocráticas;

4. meritocracias econômico-comerciais;

5. meritocracias esportivas.

Mencionei, anteriormente, que (iii), (iv) e (v) são três atividades grupais que podem ser consideradas alternativas quase-civilizadas à guerra invasora sangrenta. Até o momento, todas as meritocracias, técnicas e políticas, fluem, ainda que com exceções, para propósitos ávido-destrutivos. Parece-me útil considerar que beligerância

invasora é uma expressão social do ciclo psíquico individual autoalimentante de avidez-inveja.285

Não é seguro que, sob o vértice psicanalítico, possa-se afirmar, sob o vértice científico de aproximação à verdade, que meritocracias militares de defesa possam ser vistas como exceção. Seria necessário levar a cabo estudos individuais – por exemplo, nos Alexandres, Theodores e Franklin Roosevelts, Winstons Churchills e Volodimers Zelenskys que existiram ou ainda existem na história da humanidade e, por necessidade científica, seus pares paradoxais contendores, muito mais conhecidos, ovacionados e odiados: Stalins, Hitlers, Putins e outros.

Esses estudos precisariam ter massa crítica sob o vértice matemático para que pudessem ser considerados amostras representativas da sociedade. Seriam passíveis de comprovações ou refutações estatísticas – algo, a meu ver, impossível de ser feito.

Temos disponível pelo menos uma sugestão prototípica desse tipo de estudo no trabalho de Eliott Jaques, apresentado após uma experiência que precisou de sessenta anos para ser desenvolvida. Não posso me alongar na exposição desse estudo, feito por alguém que nasceu no Canadá, fez medicina em Toronto, residência na Escola Médica Johns Hopkins, completando sua formação com os maiores mestres de sua época em sociologia, antropologia e psicologia clínica em Harvard.

Contingências beligerantes da época o levaram, por meio do exército canadense, ao esforço de guerra dos Aliados contra as potências do Eixo. Após a guerra, foi um dos fundadores do Instituto de Relações Humanas Tavistock, trabalhando com W. R. Bion, John Bowlby e John Sutherland. Submeteu-se a uma análise com Melanie Klein e foi, com Joan Riviere, um dos dois de seus colaboradores que realmente a auxiliaram a desenvolver e elaborar seu trabalho, não se limitando a repeti-lo. Trabalhou em duas empresas do grande capital (uma, siderúrgica,

285 Klein, M. (1957). Envy and Gratitude. Londres: Tavistock Publications.

a diferença entre meritocracia técnica e política 169 onde, pela primeira vez no mundo inteiro, os operários diminuíram seu salário para manterem seus empregos; e outra, de mineração, na Austrália); e em empresas estatais, como o Serviço Nacional de Saúde Britânico. Nos vinte anos finais, atuou no Instituto de Pesquisa de Ciências Sociais e Comportamentais do Exército dos Estados Unidos. Exerceu o magistério na Universidade Brunnel, em Londres, e na Universidade George Washington, sobre ciências administrativas. A meu ver, trata-se de um trabalho ainda excessivamente desconhecido e submetido a um precoce esquecimento.286 Não sei se terei tempo para executar o mesmo trabalho de divulgação que tenho feito em torno da obra de W. R. Bion, mas fica registrada minha intenção – já expressa mais timidamente em outras publicações. Fica o convite para outros colegas, caso me veja impossibilitado.

Os propósitos de Sócrates e Platão para o futuro da humanidade, em retrospecto, provaram-se impossíveis, talvez ilusórios, talvez delirantes, sob a égide do princípio do prazer-desprazer – sendo todos nós, seres humanos, até agora, quem somos e quem temos sido.

Os benéficos e dadivosos permanecem vistos como trouxas e fracos; boa parte deles teve morte física precoce e injusta. Têm existido mais Robespierres do que Dantons em todas as denominadas, por propaganda posterior tipificando patriotadas, “revoluções”. Governantes competentes e generosos sempre foram mais raros do que matemáticos, físicos, químicos, médicos, músicos e literatos competentes e generosos – e, demasiado humano, competência nem sempre caminha com generosidade, mesmo que Roberts Wagners pareçam exceções.

Francesca Bion termina a edição das “cogitações” de seu falecido e amado marido com um comentário à margem do exemplar de The 286 Jaques, E. (2002). Values for a Living World: Freedom and Constraint, and Mutual Trust and Morals. In The Life and Behaviour of Living Organisms. Westport: Praeger.

8. Exemplos práticos sob forma de mitos

O modo a partir do qual tentarei apresentar os exemplos práticos a respeito da diferença entre meritocracia técnica e política inclui casos de preponderância da segunda à custa da primeira, além de casos em que me parece haver um equilíbrio homeostático entre as duas.

Relembro que uma apreensão mínima do texto que se segue se baseia na capacidade de disciplina do leitor de evitar o uso da forma narrativa sob as crenças da religião positivista, descritas no Capítulo 3 – Transdisciplinaridade. Mitos sempre são construídos sob essa forma para atrair a atenção do leitor quanto à apresentação de fatos que o mito tenta indicar; mitos usualmente têm uma intenção moralística ou de cânones religiosos com função social. Minha tentativa é usar os mitos como descrição de probabilidades a respeito do que pode ter ocorrido, desaguando na elaboração de algumas teorias e ideias por pessoas que realmente existiram.

Os mitos descrevem percursos históricos de pessoas que viveram em um espaço-tempo e, portanto, em um Zeitgeist similar ao que Freud viveu, que inclui também o das gerações seguintes às dessas pessoas até a atualidade.

O mito do século XX

Tento usar a palavra “mito” do mesmo modo que parece a muitos ter sido usada pelos antigos gregos e romanos. Mitos foram registrados de modo escrito da assim chamada época homérica. Há dúvidas, pelos historiadores, se existiu realmente uma pessoa chamada Homero – nome que pode ser traduzido para português como “O Cego”. Nem é possível saber se foi apenas uma pessoa que escreveu as obras transcendentais, Ilíada e Odisseia. Von Herder e muitos dos que o seguiram consideraram que o Velho Testamento poderia ser visto de forma não sacralizada: ou seja, como um mito sobre a natureza humana.

Parece-me necessário considerar o alargamento do campo semântico da palavra “mito”. Seguiu um percurso, ao longo de pelo menos um milênio, de uma excessiva concretização das figuras míticas e da forma narrativa pela qual mitos são comunicados. O uso continuado da palavra mito dotou-a de uma penumbra de significados questionável. O significado mais atual, fora dos estudos dos mitologistas, é que mitos só comunicam falsidades; são produtos de uma imaginação alucinatória e, em alguns lugares, foram vistos como se fossem uma “obra do diabo”. Têm servido para espraiamento de ideologias, com finalidades político-financeiras: mitos seriam componentes fundamentais para criar e impulsionar modismos.

Os exemplos que estou usando podem ser vistos por alguns leitores como demasiadamente repetitivos; minha tentativa é trazer representações históricas de resultados destrutivos. Destrutivos do quê? Da verdade. O que atualmente se denomina “fake news” equivale a esse sentido dos mitos: propagadores de mentiras (ver Capítulo 4 – Ciência ou arte: qual veio primeiro?). A denominação é nova, mas o fato remonta à antiguidade: parece ter sido praticada por todos os povos beligerantes até hoje. Um dos pioneiros pode ter sido o general romano Júlio Cesar, que sobreviveu politicamente durante algum tempo à custa da falsidade que espalhou com a argúcia e a capacidade

a diferença entre meritocracia técnica e política 243

retórica de um jornalista: que teria vencido Vercingetórix nas primeiras guerras contra os gauleses.378 Nos séculos XIX e XX, tipificou o tzarismo,379 prosseguiu de modo incrementado no estalinismo e nos seus sucedâneos atuais. Foi elevado (ou rebaixado) ao status de ideologia no nazismo, cujo “teórico” máximo chamou-se Alfred Rosenberg,380 que escreveu um livro tido como abstruso e ilegível até mesmo para seus colegas nazistas. O título era “O mito do século XX”, como justificativa para o extermínio da etnia judaica misturada com o extermínio do bolchevismo e do grande capital. Toda ditadura tem seus “máximos”, escolhidos como pessoas individuais que fazem parte das meritocracias técnicas dessas ditaduras.

De modo “demasiadamente humano”, parecem-me representados por pessoas que um dia fizeram cursos em filosofia, ou em arte, ou em ciência, fazendo de conta que colaborariam com a meritocracia técnica, mas jamais a exerceram, por incompetência técnica. Substituíram-na para tornarem-se máximos ou favoritos do ditador de plantão, seguindo regras da meritocracia política em universidades para abocanhar diplomas e certificados oficiais que “atestariam” sua professorialidade – roupas acadêmicas para nutrir e dar forma concreta para fantasias de superioridade física e moral, dominando o jargão autorizado pela mesma meritocracia política, à qual serviram obedientemente e agora dominam:

ROBIN: Brouwer já não assinalou que pode existir uma matemática na qual a lógica matemática clássica é irrelevante?

378 Cesar, J. (58 a.C.). The Gallic Wars (versão em inglês por H. J. Edwards). Seattle: Kindle books (e-book).

379 McHenry, ed. (1993). The Protocols of the Learned Elders of Zion. In The Encyclopaedia Britannica, Micropedia, Chicago: The Encyclopaedia Britannica, Inc., 1994. vol. 9, p. 742

380 Wittman, R. K. & Kinney, D. (2016) The Devil’s Diary. Alfred Rosenberg and the stolen secrets of the Third Reich. New York: HarperCollins.

9.

Interação homeostática

das meritocracias técnica e política: um exemplo de funcionamento harmônico, e não confusional

No mito científico que se segue, a história ficcional, porém baseada em fatos, inicia-se no mesmo espaço-tempo no qual Freud viveu. História que ficará em estado larvário durante quase um século, sendo resgatada por um laboratório de biologia molecular em Londres, que congregou médicos, biólogos, geneticistas, químicos, físicos, técnicos de computação e bioquímicos.

Os personagens tiveram os nomes de Friedrich Miescher, Phoebus Aaron Levene, Erwin Chargaff, Frederick Sanger, Sydney Brenner, James Watson e Francis Crick.

Vou focalizar o percurso de Sidney Brenner, responsável por três descobertas:

• O esclarecimento dos passos fundamentais “dados” pelo DNA para fabricar as proteínas responsáveis pela existência da vida.

• A descoberta de três bases fundamentais de DNA para formar os aminoácidos que compõem essas proteínas.

• A hipótese de que o funcionamento do RNA não poderia se limitar apenas ao controle das várias reações bioquímicas responsáveis pelos mecanismos de homeostase intracelular; pareceu-lhe

256 interação homeostática das meritocracias técnica e política

existirem expressões bioquímicas de outros fenômenos caracterizando a atividade celular. As organelas denominadas ribossomos estavam perenemente em atividade; comparou-as, analogicamente, a fábricas providas de geradores que sintetizariam proteínas. A hipótese permitiu que se descobrisse a existência de mais do que os tipos já conhecidos de RNA, como se fosse mais uma “especialização” do RNA. E que esse novo tipo interferia numa reação de comunicação intracelular, carreando informações dos códigos genéticos de reprodução do RNA entre os ribossomos. A comunicação é feita apenas por essa transformação especial, ou “especialização” do RNA. A formulação verbal – comunicação – deu-lhe a inspiração para cunhar o nome: denominou-o RNA “mensageiro”,399 como se a molécula proteica fosse um mensageiro obediente, dentro do sistema imunológico celular. Podemos aplicar a mesma analogia verbal dos sete honestos servidores sugerida por Rudyard Kipling para mais essa investigação científica: uma exploração no desconhecido.

O modelo de um RNA mensageiro obteve o status de hipótese científica, que, por sua vez, após experimentação, se tornou uma tese comprovada. O caminho foi tortuoso, envolvendo um número de pessoas que pode ser comparado ao de um batalhão de exército, ao longo de mais de meio século.

Essa nomeação permite ver que bioquímicos também fazem uso extenso de analogias verbais antropomórficas – sem precisarem se preocupar com acusações de que seriam não científicos em função desse uso.

A descoberta do RNA mensageiro permitiu a fabricação de vacinas antivirais muito mais seguras e inteligentes do que as disponíveis

399 Cobb, M. (2015). Who discovered messenger-RNA? Current Biology, 25(13): 526-532. https://doi.org/10 1016/j.cub.2015 05 032

a diferença entre meritocracia técnica e política 257

até então, que usavam vírus inativados ou mortos – como a vacina protetora contra a terrível infestação de um vírus com o formato de uma coroa causador da chamada covid. Afinal, vivemos a época da nomenclatura por acrônimos. Essa infecção provou ser mais uma das muitas pandemias que têm assolado a humanidade a cada cem anos, em uma aproximação tosca.

A produção da melhor vacina é dada segundo o critério da maior diminuição de mortalidade aliado a poucos efeitos colaterais danosos. No caso da covid, foi possível em função de uma adaptação do RNA mensageiro ao código genético do vírus, feito pela bioquímica húngara dra. Katalin Karikó, trabalhando em um pequeno laboratório alemão associado a um gigante da indústria farmacêutica fundado por alemães nos Estados Unidos.

A descoberta do RNA mensageiro mudou o curso da medicina em áreas vitais, mas que até então tinham pouca ou nenhuma condição real de instituir práticas terapêuticas realmente efetivas: hematologia, oncologia, neonatologia, controle de endemias por micro-organismos.

Sydney Brenner também tinha outras características de comportamento que podem ser vistas como típicas de um outsider em relação à meritocracia política, mesmo quando delas participou. Essas outras características de comportamento poderiam ser nutritivas para os membros do movimento psicanalítico que preferem, ou só podem pertencer à meritocracia política? Além de cientista, exerceu funções na organização de grupos científicos e tentou promover incrementos éticos para o funcionamento desses grupos – por exemplo, a denúncia firme e continuada quanto à nocividade do método de peer-reviews.

A coragem e a capacidade verbal de Brenner teve alguns reconhecimentos, tanto por amor como por ódio, manifestados por membros do establishment científico: um dos principais periódicos

10. Prevalência da meritocracia política sobre a meritocracia científica, complicada pelo disfarce no qual política se traveste de técnica

Veja! Um ovo maligno de serpente, como todos de sua espécie, criança travessa. Insuspeito, eclodirá de repente, para dar o bote, fazendo-se de inocente. Mate-o, antes que saia da casca485

Eugenia, sofisticada mímica de ciência

O fenômeno social que se expressou pelo espraiamento da doutrina eugênica nos fornece um exemplo da prevalência da meritocracia política disfarçada de meritocracia técnica – por artes e graças da mímica. Outra capacidade “demasiadamente humana”. Será esta uma de nossas características herdadas de um de nossos ancestrais répteis, o camaleão, e chamada pelos zoólogos de metamorfose? É encontrada

485 Shakespeare, W. (1599). Julius Cesar. II,ii. Which hatch’d, would, as his kind grow mischievous; And kill him in the shell.

em nossos primos, os símios, e me parece ter sido por nós, que chamamos de seres humanos, desenvolvida por avidez e inveja.

Eugenia deu enorme prestígio e fama social a seu inventor, Francis Galton – tanto em sua época como nas duas gerações seguintes, com um intervalo envergonhado em que continuou comparecendo de modo disfarçado, como se não existisse, pois não confesso. Muitas vezes, não consciente nos indivíduos e em seus grupos. Há alertas de que prossegue existindo, qual ovo de serpente, latejando, aguardando a hora para sair outra vez da casca.

Há pessoas que dizem sobre si mesmas “não sou racista”, mas jamais juntariam seu percurso de vida a outras pessoas que tivessem características que lhes parecessem deficientes, seja de nacionalidade, cor da pele, religião ou ideologia, ou mesmo em relação a ideias básicas. O vértice psicanalítico que tolera paradoxos permite perceber que toda pessoa que fala (verbaliza, materializa por palavras, representa) um “não”, não fala, mas diz (imaterialmente, infrassensorialmente) um “sim”, que nega o que falou.

O que ocorreu para que tenha havido, e continue havendo, sucesso na propagação globalizada da doutrina? Há uma notável fartura de dados disponíveis a respeito da doutrina e do seu inventor. Boa parte deles escrita pelo próprio Francis Galton, responsável também por cunhar o termo: um uso da educação sofisticada que teve, em uma época em que se valorizava a contribuição da civilização grega da antiguidade, a língua e seus vários radicais, prefixos e sufixos.

Suponho que a fartura de dados disponíveis a respeito da doutrina e dos passos sociais de seu inventor configura uma vantagem rara na escolha desse exemplo mítico. Em consequência, não há escassez de dados sobre a história da humanidade, no que pode ser analogicamente visto como um silo onde se acumulam esses dados. A nossa questão, hoje, é como adentrar nesse silo. História da humanidade... tantas vezes vista como tragédia, pela capacidade que todos nós, seres humanos,

a diferença entre meritocracia técnica e política 311 podemos ter de tratar nossos semelhantes de modo inimaginavelmente desumano. E foram essas, as ações da doutrina eugênica, que as envolveu em mantos racionais e pseudocientíficos. Violência e crueldade orientadas por avidez, rivalidade e inveja; subserviência ao princípio do prazer parecem ser potencialidades transcendentalmente humanas. Seriam inatas como qualidades? Freud e Klein supunham que sim. Caso sejam, configuram triste ironia e são estimuladas ou inibidas conforme características ambientais, que vão lhes dar uma diferença em quantidade, conforme o indivíduo que possamos considerar.

O termo eugenia e o movimento em torno dele foram inventados e incitados por uma pessoa, um ser humano como todos nós, mesmo que ele tenha tido outro nome social e tenha vivido muito antes do que todos nós que podemos ler este livro, e o autor dele. Por diferença de quantidade entre ele e muitos outros, e hábil para travestir política por técnica, foi “criança travessa”. Insuspeito, eclodiu de repente, para “dar o bote”, fazendo-se de inocente. O que se segue tentará evidenciar, por dados históricos, a breve síntese crítica feita neste parágrafo.

A fama de Galton, ainda que diminuída, persiste nos meios acadêmicos. Foi contemporâneo de Freud e apontado como um pioneiro em psicologia – um dos fatores que me levaram a incluí-lo no presente livro, como um mito a respeito da prevalência da meritocracia política sobre a meritocracia científica, em plena era onde houve um impulso de favorecimento à meritocracia política na Grã-Bretanha, pelas administrações de Disraeli e Gladstone.

A fronteira da fama para a infâmia é tênue, porém tenaz, pois se faz do mesmo modo observado por Bion a respeito das relações objetais da personalidade psicótica e da transferência mantida pela personalidade psicótica com um analista.486 Não poderia ser diferen-

486 Bion, W. R. (1955). Desenvolvimento de um pensar esquizofrênico. In No entanto… pensando melhor (versão brasileira de Second Thoughts por P. C. Sandler). São Paulo: Blucher, 2021. p. 58

11. À guisa de fim em uma história real, até agora infindável

Pope, pensador do Iluminismo inglês, observou que “pouco saber é algo perigoso”. Tomo a liberdade de acrescentar que é perigoso, por ser destrutivo à vida e à natureza humana. Transforma utilidades materializáveis – facas, garfos, automóveis, conhecimento etc. – e predominantemente imateriais – energia mecânica, elétrica, atômica, processos de conhecer – em ferramentas criminosas. Todo este livro é uma tentativa de aproximação à realidade material e psíquica que caracteriza a natureza humana. Pouco saber é perigoso e destrutivo para a tarefa científica e artística. A última não é o assunto que tento abordar, por mais próximo que pareça ser, pelo menos no intuito final. Pouco saber implica omissões e mentiras, conscientes ou não.

Assegura-se frequentemente que a origem do homem jamais poderá ser conhecida: mas ignorância germina confiança com muito maior frequência do que o faz o conhecimento: são aqueles que sabem pouco, e não os que sabem melhor, que asseguram positivamente

376 à guisa de fim em uma história real, até agora infindável

que esse, ou aquele problema, jamais será resolvido pela ciência. 531

O pouco saber que tentei me endereçar, neste primeiro volume de Instrumentos de um psicanalista, refere-se a algumas confusões: entre o movimento psicanalítico e a psicanálise propriamente dita; entre meritocracia política e técnica, que tem levado, até agora, à prevalência da meritocracia política sobre a meritocracia técnica. Tal prevalência, qual o Leviatã descrito por Hobbes,532 torna o nutritivo em depauperante.

Espero que o texto se torne datado, o mais rapidamente possível, e se torne uma lembrança da antiguidade, dessas que causam surpresa aos mais modernos, que dizem: “impressionante, eles se mobilizavam com a ajuda de carroças com rodas de madeira!”, ou “caminhavam com sandálias de couro ou madeira e chegaram ao estreito de Bering!”. E que este texto venha a ser apenas um tipo de crônica dos enganos da história do movimento psicanalítico, ao enumerar o que não é um instrumento psicanalítico, mas que, paradoxalmente, possibilita que haja a formação e a manutenção de psicanalistas. Um casal psicanalítico é um grupo, formado de duas pessoas. Caso seja tornado em mais uma meritocracia política, como se delas houvesse escassez, mesmo que em escala micro, impede a consecução de uma análise.

Como quase toda esperança, corre o risco de ser ilusória. Quase? Como tudo, há exceções: aquela em que um recém-nascido espera encontrar um seio. Esperança que pode se desenvolver, caso o bebê se desenvolva, naquela em que se espera que mães, pais, irmãos, cientistas e artistas, o sejam, verdadeiramente.

531 Darwin, C. (1871a). Mental Powers of Man and the Lower Animals. In The Descent of Man. Origin of Species. In The Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1994 p. 255

532 Hobbes, T. (1651). Leviathan (versão em inglês por N. Fuller). In The Great Books of The Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1994

12. Notas finais

Este livro é uma versão mais detalhada e profunda daquilo que foi apresentado com intuitos mais específicos. É o desenvolvimento de um trabalho sobre dinâmica grupal.

A primeira versão, que tentou apresentar a diferença entre meritocracia técnica e política, apareceu em um livro que pode ser cientificamente descrito como uma ode à meritocracia política em uma sociedade psicanalítica, mas tentando dar um cunho científico aos vários trabalhos apresentados. A meu ver, foi uma bricolagem, que tentou reunir trabalhos de muitos autores que discorreram sobre assuntos escolhidos politicamente pelos organizadores.533

A segunda versão foi elaborada como parte da comemoração do 80º aniversário do dr. Antonio Sapienza, em uma sessão promovida pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Qualifiquei essa sessão do mesmo modo que o fazem os acadêmicos, usando uma palavra em alemão que se tornou internacionalizada: Festschrift, cujo sentido é o de uma apresentação científica homenageando um investigador notável. Minha apresentação foi feita a convite do dr. Sapienza, o destacado membro dessa sociedade de psicanálise, que sempre tentou se manter em um estado de integração harmônica na meritocracia técnica

533 Montagna, P. K. et al. (orgs.). (2012). Dimensões psicanálise. Brasil. São Paulo. São Paulo: Diretoria da SBPSP e do Instituto de Psicanálise, biênio 2011-2012

e política da SBPSP. O trabalho não foi publicado, fez parte de uma sessão cujo cunho foi histórico-científico.

A terceira versão, mais detalhada, apareceu no livro editado pelas dras. Gina Khafif Levinsohn, Kaioko Yamamoto e dr. Ryad Simon, em comemoração aos vinte anos do curso de pós-graduação em Psicoterapia Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). A meu ver, uma tentativa que durou um pouco mais do que duas décadas, tentando integrar meritocracia técnica com meritocracia política em seu funcionamento interno, criando um ambiente de equilíbrio harmônico entre as duas faces. A tentativa se fez dentro de um instituto de psicologia da mais afamada universidade do país e sob os seus auspícios, na forma de um curso de pós-graduação lato sensu. A tentativa findou com a prevalência da meritocracia política, externa ao curso, da própria universidade, subserviente às mudanças ideológicas afetando o Estado e o País, ao modificar as regras dos cursos de pós-graduação lato sensu no IPUSP.534

Sobre o moto

Provavelmente, muitos dos leitores deste livro já têm alguma noção a respeito da obra escrita por W. R. Bion. Um número menor, e em ordem decrescente na quantidade, poderá ter tido contato com as obras de, respectivamente, Francis Bacon e George Santayana, pensadores reconhecidos internacionalmente. Leitores brasileiros interessados na língua e na literatura russa talvez conheçam o nome e a obra de Boris Schnaiderman. Alguns leitores, que mantenham interesse na história industrial, talvez conheçam o nome e a obra de Wolfgang Sauer, um administrador de empresas. Foi dessas obras que extraí as frases para compor o diálogo imaginário.

534 Sandler, P. C. (2016). Curso de psicoterapia psicanalítica: meritocracia técnica e política. In Novos avanços em psicoterapia psicanalítica (organizado por Ryad Simon, Kaioko Yamamoto & Gina Khafif Levinsohn). São Paulo: Zagodoni. pp. 89-109

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