1_9786559086030

Page 1

Ludmila Carvalho Gaspar de Barros Bello

O CandidatO e O Crime de COrrupçãO passiva

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduardO Ferrer maC-GreGOr pOisOt

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen m. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA tOmás s. vives antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B386c

Bello, Ludmila Carvalho Gaspar de Barros

O candidato e o crime de corrupção passiva [recurso eletrônico] / Ludmila Carvalho Gaspar de BarrosBello. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB

Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5908-603-0 (recurso eletrônico)

1 Direito eleitoral - Brasil - Disposições penais 2 Fundos para campanhas eleitorais - Corrupção - Brasil 3 Campanhas eleitorais - Brasil - Aspectos morais e éticos 4 Crime eleitoral - Brasil 5 Corrupção na política - Brasil 6 Livros eletrônicos

I Título

23-84761

CDD: 324 780981

CDU: 324:342 841(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

DOI: 10.53071/boo-2023-06-29-649dbeb35486e

28/06/2023 04/07/2023

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com

tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Ludmila Carvalho Gaspar de Barros Bello

O CandidatO e O Crime de COrrupçãO passiva

À Maria Helena Martins de Barros Bello, minha primeira professora.

aGradeCimentOs

Agradeço aos meus pais, Gabriela e Ney, e aos meus irmãos, Guilherme e Marina, não apenas por todo o apoio ao longo desses três anos de mestrado, mas por uma vida inteira de amor, afeto e segurança. Nossa casa foi o local em que aprendi a valorizar e amar o conhecimento. Espero passar isso para os meus filhos um dia também.

A toda a minha família, em especial aos meus avós Ney, Maria Helena, Raimundo e Maria do Socorro. Sei que vocês são meus maiores torcedores. De meu lado, sou sua maior fã.

A Helena Regina Lobo da Costa, minha orientadora, que é um exemplo de docente e pesquisadora, a quem eu agradeço pela disposição, sensibilidade e paciência de sempre (e por me ensinar que “primeiramente” não se escreve, já que “segundamente” não existe). Agradeço também a Ana Elisa Bechara e Mariângela Magalhães Gomes, professoras do Departamento de Direito Penal. Obrigada às três por serem, do primeiro ao último dia, modelos fundamentais para que eu entendesse que caminho eu gostaria de trilhar.

Aos professores Luciano Anderson de Souza, Guilherme Brenner Lucchesi, Raquel Scalcon e Marcelo Ruivo pelas inestimáveis considerações feitas na ocasião da minha banca de qualificação e de depósito, sem as quais este livro não teria sido concluído.

Ao professor Sérgio Salomão Shecaira por me presentear com um momento inesquecível para todos aqueles que sonham com a docência: a oportunidade de ministrar minha primeira aula.

Aos incríveis Eduardo, Glauter, José Paulo, Marjorie, Paola, Patrícia e Paula. Obrigada por estarem sempre disponíveis ao debate e serem meus mais sinceros — embora cuidadosos — críticos. Também não poupo agradecimentos às queridas e diárias presenças de Mariana, Thais, Giovana, Júlia, Clarissa, Louise e Guilherme.

6

Por fim, agradeço, como não poderia deixar de ser, à Faculdade de Direito do Largo São Francisco, local que me transformou em mim. É impossível saber o que o futuro nos guarda, mas, no que depender de mim, espero nunca me manter muito longe das Arcadas.

7

“Em Tupinilândia, tudo sempre daria certo, pois fora planejado para ser assim, para sufocar com a alegria do samba, o sabor das frutas e a rapidez de seus ritmos aquela tão sutil e oculta tristeza brasileira, tristeza que nascia do sentimento de fracasso pela miragem do progresso, do país do futuro, um futuro que se projetava constantemente à sua frente e fugia para longe na mesma velocidade com que se corria atrás dele.”

(Samir Machado de Machado, Tupinilândia)

sumáriO preFáCiO ...................................................................................... 12 Helena Regina Lobo da Costa intrOduçãO ................................................................................. 15 Capítulo 1 O FenômenO da COrrupçãO e Os CenáriOs em estudO .................... 19 1.1. A corrupção sob uma ótica abrangente: considerações gerais a respeito da corrupção política, conceitos, origens e cenário atual ........................... 19 1.2. A corrupção sob uma ótica jurídica ................................................... 27 1.3. Evolução histórica do tipo penal de corrupção passiva na legislação brasileira .................................................................................................. 31 1.3.1. O Código Penal do Império de 1830 e a gênese do tipo penal da corrupção passiva ................................................................................... 32 1.3.2. O Código Penal de 1890 e sua influência na interpretação do artigo 317 hoje vigente .................................................................................... 34 1.3.3. O Código Penal de 1940, o fim da bilateralidade e a desnecessidade da prática de ato de ofício ...................................................................... 37 1.3.4. Os projetos de Códigos Penais de 1969 e 2012 e suas contribuições ao debate 39 1.4. A teoria unificada da corrupção de Greco e Teixeira como referencial para definição do conteúdo material do delito .......................................... 42 1.5. As variáveis selecionadas para o estudo da conduta do candidato a cargo eletivo do poder executivo ........................................................................ 48 1.5.1. O momento da eleição: primeiro ou segundo turno da disputa eleitoral .................................................................................................. 49 1.5.2. A qualidade da contrapartida oferecida ou prometida pelo candidato: determinada ou indeterminada .............................................................. 50 1.5.3. A qualidade da doação de campanha feita pelo particular: legal ou ilegal ...................................................................................................... 50 1.5.4. O resultado da eleição: candidato eleito ou não eleito ao final da campanha .............................................................................................. 52 1.6. Os cenários em estudo elaborados a partir da combinação das variáveis ... 53 1.7. Discussões atuais no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça: pontos de interesse para a análise da conduta do candidato ...... 55
1.7.1. A Ação Penal 1015/DF e o Inquérito 3982/DF: a necessidade de existência de um ato de ofício em potencial ........................................... 56 1.7.2. O Recurso Especial 1.745.410 e o espectro de competências do funcionário público ............................................................................... 58 1.7.3. O Inquérito 4141/DF e a centralidade do debate em torno dos valores recebidos na campanha eleitoral ................................................. 60 Capítulo 2 O tipO penaL da COrrupçãO passiva e seus pOntOs de impOrtânCia para a disCussãO da questãO dO CandidatO a CarGO eLetivO.......... 63 2.1. O bem jurídico tutelado pelo crime de corrupção passiva: a função da administração pública perante a sociedade como objeto de proteção da norma ...................................................................................................... 64 2.2. Sujeitos do delito e o conceito de funcionário público ....................... 80 2.3. Tipo objetivo e seus elementos no artigo 317 em abstrato ................. 84 2.3.1. A vantagem indevida.................................................................... 84 2.3.2. O exercício da função e o ato de ofício ......................................... 87 2.4. Tipo subjetivo no artigo 317 em abstrato .......................................... 92 2.5. Consumação e tentativa .................................................................... 94 2.5.1. Um breve aparte: a corrupção passiva enquanto crime de perigo abstrato .................................................................................................. 98 Capítulo 3 Os Limites da respOnsabiLidade dO CandidatO a CarGO eLetivO dO pOder exeCutivO e O aLCanCe dO artiGO 317 nOs CasOs em estudO101 3.1. A (ir)relevância das variáveis escolhidas ........................................... 101 3.1.1. Doação legal ou ilegal ................................................................ 102 3.1.2. O momento da eleição ............................................................... 107 3.1.3. A contrapartida oferecida ou prometida ..................................... 108 3.1.4. O resultado da eleição ................................................................ 115 3.2. Os cenários em análise à luz da relevância das variáveis .................... 117 3.2.1. É possível haver responsabilidade criminal do candidato em algum dos cenários apresentados? ................................................................... 118 3.3. Atipicidade formal da conduta do candidato eleito a cargo eletivo do poder executivo ...................................................................................... 120 3.3.1. Atipicidade objetiva da conduta ................................................. 123 3.3.2. Atipicidade subjetiva da conduta como decorrência da atipicidade objetiva ................................................................................................ 129
3.4. Atipicidade material da conduta do candidato eleito a cargo eletivo do poder executivo ...................................................................................... 130 3.5. Tomada de posição: inviabilidade da adequação do cenário único à norma do artigo 317 do código penal..................................................... 133 3.6. Possíveis caminhos a serem seguidos diante da atipicidade da conduta do candidato ............................................................................................... 134 COnCLusãO ................................................................................ 140 reFerênCias bibLiOGráFiCas ........................................................ 145

preFáCiO

A discussão pública sobre o fenômeno da corrupção, em suas diversas formas de manifestação, tem sido intensa no Brasil, com particular destaque para o período atual, também conhecido como Nova República. Os impactos do tema são evidentes: a história política brasileira recente está permeada por imputações de prática de corrupção, objeto do primeiro impeachment pós redemocratização, bem como por importantes fatos que marcaram praticamente todos os governos federais posteriores. Nos âmbitos estaduais e municipais, os exemplos também vicejam.

Nesse grande campo de questões que perpassam a política e os crimes de corrupção, há um ponto específico que tem gerado dúvidas quanto ao seu tratamento penal: o recebimento de doações por parte de candidatos a cargos públicos do Poder Executivo. O tema surgiu muito mais a partir de questões práticas, que inundaram o direito penal com perguntas sobre sua configuração típica, do que propriamente de uma reflexão eminentemente teórica.

Tais perguntas foram selecionadas para exame na presente obra, o que já demonstra a sagacidade e coragem de sua autora, Ludmila Carvalho Gaspar de Barros Bello. Sagacidade por identificar e recortar adequadamente o tema, muito presente nas discussões midiáticas, mas em geral tratado de modo confuso e atécnico. E coragem para enfrentar uma questão complexa, que exige conhecimentos dogmáticos e exegéticos apurados para sua depuração, e que não havia sido objeto de estudos pormenorizados e específicos pela doutrina brasileira.

O trabalho se inicia com um exame do fenômeno da corrupção de modo geral no campo da política para, a seguir, focar especificamente em seus aspectos jurídicos, analisando então o desenvolvimento histórico do tipo penal de corrupção passiva ao longo da legislação brasileira. A autora identifica importantes aspectos oriundos de tal desenvolvimento histórico que marcam a interpretação

12

contemporânea do tipo, tal como a influência da redação do Código Penal de 1890 no tipo atual de corrupção passiva, além de esmiuçar o importante debate sobre a ausência de bilateralidade entre os crimes de corrupção ativa e passiva, e a desnecessidade de prática de ato de ofício para a configuração da corrupção passiva, temas sempre em pauta na doutrina e jurisprudência que examinam o assunto.

A seguir, estabelece seu marco teórico para a verificação do conteúdo material do delito, a partir das reflexões trazidas por Luís Greco e Adriano Teixeira, que propõem uma teoria unificada da corrupção, exigindo, para caracterizar a corrupção, um pacto de injusto entre as partes, assim como o abuso de poder condicionado por uma vantagem. Corretamente, a autora destaca que tal proposta não consegue explicar o injusto da conduta de solicitação contida no tipo de corrupção passiva, ponto que permanece aberto à discussão.

O trabalho passa, então, a estabelecer variáveis concretas para sua análise, indagando se haverá diferenças no exame em razão do momento da eleição (primeiro ou segundo turno), da qualidade da contrapartida do candidato (determinada ou indeterminada), da legalidade ou não da doação de campanha e, por fim, de o candidato ter ou não sido eleito ao final da campanha. A partir de tais variáveis, fixa os cenários que serão estudados, por meio de combinações entre elas.

Ciente da relevância de enfrentar os aspectos que vêm sendo questionados nos casos práticos, Ludmila destaca precedentes dos tribunais superiores que discutiram três temas que impactam o estudo do assunto: a necessidade de existência da um ato de ofício em potencial, o âmbito de competências do funcionário público e o tratamento dos valores recebidos em campanha eleitoral.

A trilha para a solução dos cenários propostos segue, então, com foco nos aspectos dogmáticos do crime de corrupção passiva, delimitado pela questão do candidato a cargo eletivo. É aqui que se examinam o bem jurídico tutelado pelo delito, os sujeitos do crime — com destaque para o conceito penal de funcionário público —, os tipos objetivo e subjetivo, além do momento consumativo do crime. Com todos os seus pressupostos bem estabelecidos e debatidos, chega-se à pergunta central do trabalho, que é examinada

13

de modo detalhado e teoricamente estruturado. Não subtrairei do leitor o deleite de descobrir os fundamentos teóricos, conclusões e propostas do trabalho a partir da leitura do próprio texto da autora, para que possa apreciar não apenas o refinado — porém acessível — raciocínio jurídico, bem como o estilo do texto.

Quem lê um trabalho tão bem estruturado, argumentado claramente e que soluciona os problemas inicialmente identificados com segurança e nitidez certamente não vislumbra todo o labor por trás de cada linha. Apenas quem acompanhou os anos de dedicação da autora pode enxergar, nas entrelinhas, as idas e vindas, as reformulações, as muitas páginas escritas e descartadas, a busca por mais um livro, mais um artigo, mais um autor... É isso, em verdade, que leva à construção de um trabalho límpido, ao lado de um culto à língua e um cuidado com o estilo, que não decorrem do amor ao formalismo, mas da paixão pela literatura, pela palavra, pela beleza dos muitos recôncavos e reconvexos da língua portuguesa.

E é por isso que, posso dizer, esta obra personifica sua autora, em seu momento de vida: uma pesquisadora irrequieta, cuidadosa, incansável, que carrega seu tema de pesquisa para todos os âmbitos de sua vida, refletindo sobre ele dia e noite, aos finais de semana e até em sonhos. Mas cuja vida também acaba por invadir o trabalho, que, embora nunca se afaste de seus atributos científicos próprios, traz ao leitor a fluidez da palavra bem escolhida, a frase agradável aos ouvidos e o encanto do texto escorreito. Enfim, trata-se sobretudo de um texto belo e que reflete o olhar de quem conseguiu domar a poesia concreta das esquinas de Sampa porque nunca se esqueceu dos casarões de São Luís.

E eu, como orientadora da dissertação de mestrado que resultou neste livro, apenas posso agradecer por meu caminho ter cruzado com o de Ludmila.

14
HeLena reGina LObO da COsta Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada.

intrOduçãO

A importância e a atualidade das discussões sobre a corrupção são nítidas. É notório o destaque que o assunto recebe da mídia e da sociedade. Esse movimento, no entanto, não vem acompanhado de debates aprofundados do ponto de vista jurídico, o que fatalmente gera a propagação de informações tecnicamente falaciosas, bem como a replicação de conceitos que, quando cuidadosamente analisados, mostram-se vazios de conteúdo.

Dentre todas as manifestações de corrupção que se podem mencionar, chama a atenção, duplamente em razão de sua recorrência nos meios de comunicação e pela complexidade do tema, aquela praticada pelo funcionário público que é também um candidato a cargo eletivo.

Dentro desse contexto, a questão que aqui se põe é se um candidato a cargo público do Poder Executivo também pode incidir no tipo penal da corrupção passiva. Pelas mesmas razões já mencionadas, surgiu a necessidade de conduzir uma análise mais aprofundada a respeito do tema.

A razão da controvérsia é simples. O delito de corrupção passiva previsto no Código Penal em vigor tem a seguinte redação:

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena — reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena — detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Como se vê, embora previsto no Capítulo I do Título IX de nosso Código sob o nome de “Crimes praticados por funcionário

15

público”, o artigo 317 abre margem para responsabilização daquele que não esteja no exercício de seu cargo ao empregar a locução “ainda que fora da função ou antes de assumi-la.” Em tese, o candidato que ainda não venceu a eleição poderia ser abarcado por essa redação.

A relevância da discussão fica evidente quando se percebe que atividade política e corrupção são tratadas pelos meios de comunicação de forma indissociada. Quando se pensa em corrupção passiva, intuitivamente se imagina a figura de mandatário político em exercício, tais como senadores, prefeitos, governadores etc. Todos os citados são, indiscutivelmente, funcionários públicos nos termos do artigo 3271, que define o conceito para fins penais, e, portanto, respondem pelo artigo 317 do Código Penal brasileiro. Suponha-se que um Senador da República receba de determinado empresário valores em dinheiro para que vote de forma favorável a um projeto de lei de seu interesse; essa seria uma forma de manifestação da corrupção passiva do artigo 317 do Código Penal.

Mas — e nesse momento surge a pergunta raiz deste livro — se essa mesma conduta fosse praticada por um candidato e não por um representante eleito, ainda assim se configuraria a corrupção passiva? Pode um candidato a cargo eletivo incidir nesse crime mesmo que não seja ainda um mandatário do Estado?

Esta é, portanto, uma análise sobre a interpretação do artigo 317 do Código Penal brasileiro. O propósito é entender se, em sua redação atual, o tipo pode abranger condutas praticadas por candidatos a cargos eletivos, já que o tipo penal parece admitir a tipicidade da conduta daquele que ainda não assumiu o cargo e que, portanto, não se enquadra no conceito de funcionário público trazido pela própria lei penal no artigo 327.

1 “Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

§ 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. ”

16

Contudo, a pergunta que se quer responder abarca uma infinidade de possibilidades, possivelmente com respostas diversas entre elas. Para que a pesquisa seja viável, o trabalho não pode pretender abarcar todos os cenários possíveis. A resposta que aqui se desenhar, portanto, não será definitiva. Caso se conclua que para as hipóteses levantadas não há que se falar em responsabilidade por corrupção passiva de um candidato, isso não implica dizer que essa mesma resposta será verdadeira para outros candidatos em condições diversas. De saída, serão excluídas as análises relativas a candidatos a cargos do Poder Legislativo, por uma única e simples razão. Os cenários a serem apresentados levarão em conta o sistema majoritário, por ser este mais simplificado em comparação com o sistema proporcional, utilizado na eleição de Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores. Desta feita, o nexo causal entre o recebimento da vantagem indevida e a eleição de determinado candidato é mais evidente quando se trata de candidatos a cargo eletivo do Poder Executivo, seja este concorrente ao posto de Presidente da República, Governador do Estado ou Prefeito. Também serão excluídas análises em que os candidatos já sejam funcionários públicos, quer estejam concorrendo à reeleição, quer visem a ocupar cargo diverso do atual. A razão, novamente, é simples. Abranger esses cenários aumentaria enormemente o universo desta dissertação, de maneira a torná-la inviável. Por esses motivos, todas as hipóteses aqui estudadas tratarão apenas de candidatos ao Poder Executivo, que não estejam no exercício de outra função pública no momento da eleição para o novo cargo. Quanto mais reduzido o quadro, com maior precisão se poderá encontrar uma resposta satisfatória.

Em suma, por se entender que a relação entre corrupção passiva e política é tema de fundamental importância, optou-se por realizar um estudo a respeito das fronteiras do tipo penal. Mais especificamente, esta análise se dedica a entender o que é a corrupção passiva e se um candidato a cargo eletivo do Poder Executivo — alguém que ainda não exerce efetivamente a função pública, portanto — pode incidir no referido artigo caso receba vantagem indevida em sua campanha em troca de contrapartida futura. Não se pode atribuir levianamente a prática de corrupção nem à atividade polí-

17

tica per se, nem a condutas que, embora eticamente questionáveis, não se adequem ao artigo em questão, ou, ainda, que se encaixem em tipos penais diversos. Por isso, um estudo das fronteiras do artigo 317 se mostra necessário. O tema aqui abordado é complexo, não apenas em razão de seus elementos jurídico-legais, mas principalmente pelas consequências que traz para a sociedade democrática, que deve ter na confiabilidade de seus representantes e do processo eleitoral como um todo um de seus pilares. A existência de conduta na campanha que possa ser confundida com corrupção e a falta de elementos jurídicos para sua correta classificação estimulam a falta de credibilidade não apenas no Judiciário, mas nos três Poderes.

O objetivo deste livro, portanto, é fazer uma análise completa, crítica e, sobretudo, jurídica, da conduta do candidato a cargo eletivo que recebe vantagem indevida ainda em sua campanha, de maneira a entender se há incidência ou não do tipo penal do artigo 317 — ou se essa aplicação depende de determinadas variáveis. A possibilidade de existência de delito de corrupção passiva no âmbito das campanhas eleitorais é, afinal, tema de crucial importância para a sociedade brasileira, interferindo diretamente no regular funcionamento da democracia. É necessário, contudo, que a análise dos limites do artigo 317 seja feita de forma cuidadosa, sem que o tipo penal seja extrapolado para abarcar condutas que não se propõe a tutelar. A possível capacidade desse tipo penal de englobar os atos cometidos quando em campanha a cargo eletivo exige cautela, sob pena de fortalecimento do expansionismo penal e da insegurança jurídica.

18

Capítulo 1

O FenômenO da COrrupçãO e Os CenáriOs em estudO

O objeto desta pesquisa é a aplicabilidade do artigo 317 do Código Penal brasileiro aos cenários derivados das quatro variáveis escolhidas e que serão apresentadas em detalhes neste capítulo.

No entanto, para que se possa chegar a esse ponto, a corrupção deve ser entendida de maneira mais profunda. Isso exige um estudo de seu significado, de suas raízes, de suas características, de seu desenvolvimento histórico na legislação e das polêmicas atuais que ela provoca nos Tribunais Superiores. Só então se poderá partir para uma análise referente ao tipo penal da corrupção passiva, base necessária para o estudo da situação do candidato a cargo eletivo do Poder Executivo.

Assim, este capítulo se divide em duas partes distintas. Num primeiro momento, se dedica a uma análise mais genérica da corrupção enquanto fenômeno, suas origens, os traços comuns às suas mais diversas manifestações e de que forma a legislação brasileira dela tratou ao longo dos anos. Num segundo momento, introduz a análise das questões dogmáticas que envolvem a corrupção passiva. Ao final, serão apresentadas as variáveis em análise e os cenários que delas derivam. Espera-se então viabilizar o caminho para a discussão central do trabalho.

1.1. a COrrupçãO sOb uma ótiCa abranGente:

COnsiderações Gerais a respeitO da COrrupçãO pOLítiCa, COnCeitOs, OriGens e CenáriO atuaL

Escrever sobre o tema da corrupção no Brasil é uma tarefa especialmente desafiadora frente às polêmicas que ele provoca. A corrupção e a percepção que dela se tem produzem fortes impactos no comportamento social, na economia, na confiabilidade na Adminis-

19

tração Pública enquanto garantidora dos direitos individuais, sociais e transindividuais e nas escolhas eleitorais dos cidadãos. Como se pode verificar por meio do Corruption Perception Index (“CPI”)2, o indicador mais comumente utilizado para medir os níveis de corrupção pública em escala mundial, o Brasil é apontado como o 106º entre os 198 países avaliados3, situando-se, portanto, entre os cem países mais corruptos do mundo de acordo com a visão de especialistas nacionais e internacionais. Isso não passa despercebido pela sociedade, que demonstra crescente intolerância a essas práticas4. Múltiplos episódios envolvendo corrupção política marcam o cenário nacional atual, gerando polêmicas reações do Executivo, do Judiciário e do Legislativo, de diferentes maneiras. Neisser sintetiza perfeitamente o fenômeno ao dizer que a luta contra a corrupção tem tomado “status de cruzada institucional”5.

De acordo com a visão clássica adota pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a essência da corrupção política está no quid pro quo entre agente político e particular6, no qual o último oferece ao primeiro uma vantagem, geralmente financeira, em troca de favores ou influência. Bustos Gisbert apresenta fórmula segundo a qual há corrupção política quando um agente político, que gere interesses como consequência de uma relação de confiança, quebra as normas de conduta estabelecidas pelo povo para obter um benefício pessoal como consequência de um preço pago por um corruptor7. Tama-

2 CAGGIANO, Monica Herman. Corrupção e financiamento das campanhas eleitorais. In: ZILVETI, Fernando Aurelio; LOPES, Sílvia (Coord.). O regime democrático e a questão da corrupção política: análises à luz da lei n. 9. 882/ 99. São Paulo: Atlas, 2004. p. 118.

3 Disponível em: https:/ / www. transparency. org/ en/ cpi/ 2019/ results/ bra. Acesso em: 25 abr. 2021.

4 BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva; FUZIGUER, Rodrigo José. A política criminal brasileira no controle da corrupção pública. In: GÓMEZ DE LA TORRE, Ignácio Berdugo; BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva (Org.). Estudios sobre la corrupción: una reflexión hispano brasileña. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2013. p. 305.

5 NEISSER, Fernando Gaspar. Dolo e culpa na corrupção política: improbidade e imputação subjetiva. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 25.

6 EDWARDS, Paul S. Defining Political Corruption: The Supreme Court's Role. BYU Journal of Public Law, v. 10, n. 1, 1996. p. 2.

7 BUSTOS GISBERT, Rafael. Corrupción política y derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 19, n. 89, p. 387–405, mar. / abr. 2011.

20

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.