
Israel Domingos Jorio

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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
EdUARdo FERRER MAC-GREGoR PoISot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
JUAREz tAvARES
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
LUIS LóPEz GUERRA
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn M. FISS
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
toMáS S. vIvES Antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
J71c
Jorio, Israel Domingos
Crimes sexuais [recurso eletrônico] / Israel Domingos Jorio. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-523-1 (recurso eletrônico)
23-82754
CDU: 343.54(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-05-15-64617c9cafde2
01/03/2023 03/03/2023
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1. Direito penal - Brasil. 2. Crimes sexuais - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título.Revista, atualizada e ampliada
Che
Un giorno
(Para meu pai)
A Deus, sempre e em primeiro lugar.
A meus filhos, Daniel, Viktor e Laura, donos do meu coração.
A Américo Bedê, Anderson Burke, Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, Cláudio Brandão, Daniel Duarte, Felipe Schwan, Gustavo Senna, João Maurício Adeodato, Lorenzo Moreira Alves, Marcelo Zenkner, Matheus Sardinha, Ricarlos Almagro, Saulo Salvador Salomão e Wilton Bisi, bons amigos, hábeis interlocutores e companheiros de jornada acadêmica.
Ao amigo Paulo César Busato, com quem mantive e mantenho, desde a primeira edição, diálogos frequentes e altamente enriquecedores sobre esse árido tema e tantos outros assuntos do Direito Penal.
A Raphael Boldt, sócio, amigo, irmão de uma vida inteira.
Ao meu amigo Thiago Fabres de Carvalho (in memoriam), cujo precoce falecimento, aos 42 anos de idade, na mais triste quarta-feira de cinzas que já se viu, subtraiu do mundo uma nobilíssima pessoa, e da criminologia crítica de nosso país, um de seus expoentes.
Aos colegas professores da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), a quem cumprimento especialmente nas pessoas de Antonio José Ferreira Abikair, Elda Coelho Azevedo Bussinguer e Ricardo Goretti.
Antecipando, quiçá, a orientação linguística mais tarde desenvolvida completamente por Wittgenstein, José Ortega y Gasset cunhou sua famosa expressão: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”, nas conhecidas Meditaciones del Quijote, de 1914.
Com efeito, uma existência encontra-se completamente imbricada às circunstâncias. Não somos simplesmente. Somos também o que fazemos, com o que nos envolvemos, do que participamos.
Esta é, seguramente, a razão pela qual é para mim um orgulho ter sido convidado por Israel Jorio para escrever este prólogo.
As apresentações de obras e de autores só têm sentido quando presente uma identificação entre apresentador e apresentado, e é precisamente o que ocorre neste caso.
É muito difícil lecionar e escrever sobre algo tão brutal como o Direito Penal, preservando um óculo atento aos direitos e garantias fundamentais que este mesmo instrumento recorta!
Daí minha identidade, que já vai de alguns anos, com a postura de professor e de pesquisador do Israel Jorio.
Somente esta afinidade justificaria um prólogo à sua obra.
Claro que não coincidimos em tudo, porque são vários os caminhos pelos quais se pode almejar alcançar a proteção de direitos e garantias fundamentais, mas o objetivo é, induvidosamente, comum.
Mas vou além.
Nossa identidade passa também pelo inconformismo frente à forma tradicionalista, enfadonha e repetitiva que tem assumido os escritos sobre a parte especial do Direito Penal.
A adoção do formato analítico, que é próprio da teoria do delito, não tem por que escudar-se mais em estruturas dogmáticas desgastadas e superadas como são os modelos causalista, neokantiano ou finalista de teorias do delito.
Portanto, faz pouco sentido que os livros de parte especial, ao debruçarem-se sobre a análise dos crimes em espécie, sigam a ordem clássica-ontológica de análise de ação, tipicidade objetiva, tipicidade subjetiva, antijuridicidade e culpabilidade.
Neste ponto, a meu ver, a visão de nossos tempos é outra a respeito das teorias do delito. Entendo necessária uma revisão desde um ponto de vista prático, de uma filosofia da práxis, que é justamente a filosofia da linguagem, que vai permitir que os pontos a serem abordados na parte especial sejam outros, como já tive ocasião de expressar por escrito1.
Israel não se decanta nesta obra por uma postura orientada segundo a filosofia da linguagem, mas se afasta claramente do paradigma clássico ao antecipar, para o início da abordagem de cada um dos delitos em espécie, a discussão sobre o bem jurídico.
Este adiantamento revela uma inclinação para uma postura axiológica a respeito da teoria do delito, alterando a pergunta a respeito do crime (já não pretende explicar o que o crime é, mas perguntar o que se quer ao criminalizar determinada conduta), o que supõe o enorme ganho de rendimento que o funcionalismo teleológico inaugurado e sintetizado por Roxin2 demonstrou possuir em face das posturas clássicas.
O que quero dizer é que a escolha feita neste livro, ao adiantar a discussão a partir do bem jurídico, reposiciona a obra no marco do funcionalismo teleológico no sentido de ocupar-se primeiro da questão normativa acerca de qual é o bem jurídico que a norma incriminadora visa referir e se a intervenção no sentido de tal proteção se justifica.
Note-se que é uma questão de base axiológica, que de entrada convida para a discussão da incriminação argumentos de política criminal.
Já de há muito, Carlos Martínez-Buján Pérez3 tinha identificado a coincidência de orientação político-criminal entre o funcionalismo teleológico de Roxin e a concepção significativa da estrutura de imputação oferecida por Tomás Salvador Vives Antón, principal autor de um modelo jurídico-penal orientado pela filosofia da linguagem.
Portanto, daí vem a coincidência teórica entre minha postura e a adotada pelo Prof. Israel neste livro, que permite que eu me sinta à vontade em recomendá-lo ao leitor.
A simples ousadia inovadora do escrito, a pretensão de dar um passo além do óbvio, além da tradicional repetição e cópia dos clássicos, é razão suficiente
1 Recentemente, completei a trilogia de parte geral e especial de Direito penal, com BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte Geral. (vol 1), Parte Especial (vols. 2 e 3). São Paulo: Atlas, 2015-2016. Nota do autor: desde 2022, a excelente coleção do penalista, revisada, atualizada e ampliada, é publicada pela Editora Tirant Lo Blanch.
2 Refiro-me à lição inaugurada pelo clássico ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1973.
3 Veja-se, a respeito MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. A concepção significativa da ação de T. S. Vives e sua correspondência sistemática com as concepções teleo lógico-funcionais do delito. Trad. de Paulo César Busato, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
para a recomendação à leitura. Mais ainda quando feita a partir de uma matriz teórica preocupada com direitos e garantias fundamentais, como certamente é o funcionalismo teleológico.
Mas eu não gostaria de parar por aí, pois há muito mais.
Faço questão de frisar ao menos alguns dos muitos que considero méritos específicos do livro, na abordagem de temas em concreto, ainda que minha opinião não coincida sempre com a do autor.
A primeira questão que gostaria de colocar em destaque é que desde a introdução do livro, Israel se preocupa com desmitificar o discurso que embala o legislador contemporâneo, sempre ávido por endurecer as penas e ampliar o espectro de incriminação desmedidamente, em um afã ilusório de estar produzindo maior proteção às pessoas.
Esta postura é louvável e orienta as decisões específicas tomadas pelo autor em relação a cada uma das hipóteses de imputação sobre as quais debruça sua verve crítica, já que reconhece que “a Lei 12.015/09 modificou substancialmente a política criminal de repressão aos delitos sexuais”, em direção a uma postura punitivista, o que faz com que ela seja “um formidável exemplo” de uma concessão ao afã midiático de posturas punitivistas.
E, por conta disso, o autor deixa clara sua opção pela missão do Direito Penal como sendo a proteção seletiva de bens jurídicos, ao afirmar:
“Não deve haver criminalização ou punição de comportamentos que não sejam efetivamente lesivos a bens jurídicos relevantes. Não se pode recorrer ao Direito Penal senão em casos de necessidade para a preservação dos bens jurídicos dotados de dignidade constitucional (em nossa visão, os bens jurídicos que podem ser penalmente tutelados são aqueles que encontram esteio nos direitos fundamentais assegurados por nossa Constituição)”.
Quanto a esta afirmação, estou quase que completamente de acordo. Penso que a seletividade efetivamente passa pelo eixo identificado por Israel, qual seja, o dos bens jurídicos essenciais.
Entretanto discordo – e em especial em face dos crimes aqui tratados – que estes bens jurídicos encontrem esteio na Constituição.
Entendo a influência dos autores portugueses no texto de Israel, eis que ele emprega a expressão dignidade do bem jurídico, associando-o a Constituição, tal como se faz, de modo usual, na Escola de Coimbra.
Entretanto, sou cético a este respeito. Quiçá por defeito meu, desconfio sempre da base exclusivamente constitucional. Isto porque não se encontra na Constituição, de modo expresso – quando muito, apenas implícito, não sem esforço hermenêutico –, a liberdade sexual, que deveria ser norte dos tipos aqui discutidos.
Por outro lado, estão previstos como direitos sociais essenciais, por exemplo, o adicional de férias, que certamente não possui o que se chamaria de dignidade do bem jurídico.
Parece-me pobre o referencial constitucional. Não mais do que um ranço positivista jurídico de corte kelseniano.
Os direitos fundamentais da pessoa humana, entre eles, o direito à liberdade sexual, transcendem a Constituição e vigem a despeito de sua previsão expressa.
Portanto, neste ponto, eu e o autor confluímos na pretensão – proteção seletiva de bens jurídicos – mas não no caminho, pois não creio que a estrada constitucional seja o pavimento adequado. E se nem esta, que é cidadã, contempla tudo o que faz falta, ainda que inclua coisas não essenciais, o que dizer então dos Estados de Stalin ou de Hitler, que se instalaram e vicejaram mesmo presentes cartas constitucionais?
Gosto sempre de lembrar àqueles que se apegam excessivamente à Constituição como referência que ela não foi capaz de conter as maiores atrocidades cometidas contra a humanidade.
Em março de 1933, uma emenda à Constituição de Weimar, aprovada pelo parlamento alemão por 444 votos contra 94, permitiu que Hitler e seu gabinete criassem e aprovassem leis sem o consentimento do presidente ou do próprio Reichstag.
Com sua assunção ao cargo de chanceler, Hitler impulsionou a criação constante de legislação discriminatória, mesmo vigente a constituição de Weimar, chegando ao ponto de ser reconhecido, tanto por seus correligionários quanto pelos próprios magistrados, como a personificação da própria lei. A vontade do Führer passou a ser a lei e a interpretação pessoal dele dava o norte de como deveriam ser lidas tanto as leis como a Constituição.
Aliás, vários “decretos-lei” de Hitler, inclusive os de suspensão de direitos civis, foram amparados pelo decreto do presidente Paul von Hindenburg de 28 de fevereiro de 1933, para a Proteção do Povo e do Estado do artigo 48 da Constituição.
Esta é a origem constitucional de um enorme massacre de pessoas. Outra, parecida, foi realizada por Stalin. Em maio de 1935, o ditador soviético inaugura o desenvolvimento de uma nova Constituição, que seria conhecida como a “Constituição Stalinista”, que entrou em vigor em dezembro de 1936. Essa carta constitucional, no dizer de seu ideólogo, partia da ideia de que o homem é o capital mais precioso e apresentava-se, formalmente, como a mais democrática do mundo.
No entanto, foi precisamente entre 1936 e 1939 que a União Soviética viveu o período conhecido como o momento de pior repressão em um país em tempos de paz, o chamado Grande Expurgo ou Grande Terror, quando foram executadas cerca de 680.000 pessoas e deportadas para Gulags na Sibéria um número de pessoas até hoje não descoberto, que se suspeita tenha rodeado a cifra de 5 milhões. Na ocasião, sob a égide de uma Constituição democrática, Stalin pessoalmente autorizou, entre outras coisas, o uso da tortura nas prisões.
Por essas razões, opto pelo caminho de sustentar os direitos fundamentais das pessoas frente ao Direito Penal, nos princípios limitadores deste instrumental jurídico, a saber: legalidade, intervenção mínima e culpabilidade, que são os corolários de um Estado social e democrático de direito. Com ou sem Constituição.
Penso que a condição humana é a própria fonte dos direitos fundamentais.
Aliás, convém dizer que este ponto argumentativo é também sublinhado e agasalhado pelo trabalho de Israel Jorio, ao iniciar seu comentário sobre a ideia de dignidade sexual afirmando que “toda pessoa possui um valor irrecusável e, em razão disso, é titular de uma prerrogativa de tratamento condizente com sua dignidade”, não podendo ser coisificada.
Com isso, o autor assume, a meu ver, corretamente, a base da ética kantiana que considera o homem um fim em si mesmo e que jamais pode ser convertido em meio para o alcance de qualquer objetivo, por mais nobre que seja.
Coloca-se o autor frente a uma opção, a meu ver, muitíssimo acertada, de negação de abrigo a um paternalismo em termos do bem jurídico liberdade sexual, tomando por norte precisamente que a intervenção do Estado a despeito do indivíduo só tem lugar em sentido paternalista, em que não é dado à própria pessoa expressar sua liberdade, como nos casos dos vulneráveis.
Com esta postura o autor apresenta sua obra, de entrada, como uma estrutura voltada para a análise dos tipos a partir de sólidas bases político-criminais. E não defrauda.
Poderiam ser vários os exemplos capturados para demonstrar o acerto da orientação do livro. Tomo apenas alguns, por brevidade.
Israel Jorio toma posição firme em defesa do princípio de legalidade – e, por conseguinte, do Estado de direito – ao não se render às soluções fáceis no caso do estupro cometido contra vítima que tenha exatos 14 anos. Ciente de que há uma lacuna do legislador, que estabelece a vulnerabilidade com menos de 14 anos e a forma qualificada do tipo para vítimas maiores de 14 anos e menores de 18 anos, o autor não se rende à busca de uma suposta voluntas legis e firmemente opta por posicionar-se pela aplicação da modalidade fundamental do tipo, não admitindo, de modo algum, uma analogia in malam partem.
Também é correta a opção do autor pelo concurso de crimes para a situação em que durante o ataque sexual a alguém, a violência empregada para a submissão da vítima redunda em morte antes que se consume qualquer ato sexual. Israel critica, com razão, as opções feitas por parte da doutrina, que se decanta pela aplicação da forma qualificada do estupro com resultado morte, mesmo sem ter havido a realização de parte do ato, quer seja em forma consumada ou tentada.
Não obstante o autor escolha a saída do concurso de crimes preservando a conjugação de uma figura subalterna preterdolosa com um estupro tentado em modalidade fundamental – circunstância impossível pelo fracionamento do dolo em dois, que dependeria de desígnios autônomos –, acerta no caminho pelo concurso de crimes.
Outro ponto de destaque é a crítica acertadíssima de Israel em face do crime de assédio sexual, desde o ponto de vista do bem jurídico. Sem dúvida este é o eixo para enfrentar o dispositivo em questão e é correta a posição que defende, de que o crime em questão não descreve uma ofensa à liberdade sexual.
A mesma crítica, partindo do bem jurídico – instrumento que norteia toda a obra –, é dirigida às figuras de favorecimento da prostituição, em que demonstra com clareza remanescer certo resquício de pretensão de imposição de padrões morais pré-concebidos pelo legislador.
Enfim, seriam muitíssimos os elogios que se pode fazer às opções dogmáticas e político-criminais adotadas pelo autor nesta obra, todas elas sempre voltadas à valorização do ser humano e de seus direitos fundamentais.
Se há um futuro para a espécie humana, este reside na orientação à preservação das conquistas históricas de caráter libertário, e se existe um futuro para o estudo do Direito Penal, este igualmente se volta para os textos orientados em face dessa liberdade.
Este livro é um destes textos. Usemo-lo. Sem parcimônia.
Embora a população carcerária do Brasil seja uma das maiores do mundo, segue firme e forte o discurso da “sensação de impunidade”. Trata-se de um produto política e midiaticamente fabricado que acaba por ser facilmente assimilado por uma população já bastante afetada por descrença e desesperança. Desigualdades sociais imemoriais, associadas a ininterruptas crises econômicas, políticas e institucionais que são mui pobremente contornadas por governantes incompetentes, desidiosos ou corruptos, criam uma atmosfera perfeita para o vicejo da intolerância. Diante de desalentadoras estatísticas criminais, o resultado não pode ser outro: há um vigoroso clamor pelo enrijecimento das leis penais. Constroem-se os estereótipos dos inimigos públicos – “o traficante”, “o pedófilo”, “o marido/companheiro agressor”, “o corrupto” – e, uma vez feito isso, todas as medidas político-criminais destinadas a eliminá-los ou inocuizá-los são aceitáveis. Mais um pequenino passo e direitos e garantias fundamentais, previstos na inicialmente festejada “Constituição Cidadã”, passam a ser enxergados como empecilhos à Justiça e instrumentos de impunidade.
A mídia cria e explora o pânico. Os políticos interesseiros, desprovidos de conhecimentos jurídicos, põem-se a usá-lo sem pudor. O desfecho natural é a criação de leis que são ora simbólicas, ora excessivamente rigorosas, mas quase sempre são atécnicas e defeituosas.
A Lei 12.015/09, que modificou substancialmente a política criminal de repressão aos delitos sexuais, constitui um formidável exemplo. Absolutamente repleta de brechas e incoerências, não resiste a uma análise dogmática minimamente criteriosa. Se sobre ela lançarmos um olhar crítico que seja constitucionalmente orientado, o verdadeiro fracasso se tornará evidente. E entendemos que é exatamente essa a missão dos que se propõem a estudar o Direito Penal em um Estado democrático de Direito. As Leis 13.718/18 e 13.772/18, de caráter nitidamente panfletário, com seus tipos penais confusos e mal redigidos, dão causa a novos conflitos entre normas penais e arte-finalizam aquilo que se pode considerar uma épica desventura legislativa.
Para bem desempenhar a difícil tarefa de escrutinizar os intrincados tipos penais da Parte Especial do nosso Código, é crucial que sejam reunidas as visadas dogmática, político-criminal e criminológica em prol de uma reflexão mais aprofundada, que seja tecnicamente consistente, mas que não descure da (dura) realidade social em que estão imersos os destinatários das normas. É essa a proposta da presente obra, que escrevemos em tom bastante crítico, mas primando, ao mesmo tempo, pela necessária objetividade que os tempos atuais nos impõem,