
Organizadores

Izabella Barros-Melo
Alfonso Galán Muñoz
Organizadores
Izabella Barros-Melo
Alfonso Galán Muñoz
um diálogo hispano-brasileiro
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
EDUARDO FERRER MAC-GREGOR POISOT
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
JUAREZ TAvARES
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
LUIS LóPEZ GUERRA
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
OwEN M. FISS
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
TOMáS S. vIvES ANTóN
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
B277
Dez questões fundamentais da política criminal : um diálogo hispano-brasileiro [livro eletrônico] / Izabella Barros-Melo...[et.al.]; prólogo Izabella Barros-Melo, Alfonso Galán Muñoz. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.
5.306Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-601-6
1. Direito penal contemporâneo. 2. Neurociência e direito penal. 3. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. I. Título.
CDU: 343
Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
DOI: 10.53071/boo-2023-06-29-649dd50761687
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.
Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com
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Impresso
Organizadores
Izabella Barros-Melo
Alfonso Galán Muñoz
um diálogo hispano-brasileiro
AUTORES
Izabella Barros-Melo
Francis Rafael Beck
Cezar Roberto Bitencourt
Isidoro Blanco Cordero
Guilherme Brenner Lucchesi
Paulo César Busato
André Luís Callegari
Eduardo Demetrio-Crespo
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
Miguel Díaz y García Conlledo
Patricia Faraldo Cabana
Alfonso Galán Muñoz
María del Carmen Gómez Rivero
José L. González Cussac
Rodrigo Leite Ferreira Cabral
Plínio Leite Nunes
Raul Marques Linhares
Marilia Montenegro Pessoa de Mello
Francisco Muñoz Conde
Elena Núñez Castaño
Gonzalo Quintero Olivares
JUNTOS OU MISTURADOS? ALGUMAS CONSIDERAçÕES E PROPOSTAS SObRE A QUESTIONávEL
FUNDAMENTAçãO E DISTINçãO ENTRE DELITOS DE óDIO E DO DISCURSO DE óDIO ...................
Prof. Dr. Alfonso Galán Muñoz
TECNOLOGIA E RADICALIZAçãO: A ExPLOSIvA COMbINAçãO ENTRE IDENTIDADES, AUTOMAçãO E IDEIAS hOSTIS NA DISSEMINAçãO PUNÍvEL DE CONvICçÕES POLÍTICAS ....................................
Profa. Dra. Izabella Barros-Melo
Profa. Dra. Elena Núñez Castaño
O
Prof. Dr. André Luís Callegari e Prof. Me. Raul Marques Linhares
Compartilhar parece ser a palavra que dirige o tempo que vivemos. Informações, atualizações, conhecimentos, opiniões políticas, pontos de vista sobre a realidade e nossa forma de entender nosso entorno. A tecnologia e as novas dinâmicas sociais nos motiva, a todo momento, não apenas a compartilhar o que pensamos, o que somos e o que queremos ser, mas também nos permite disfrutar do que terceiros compartilham conosco e com o mundo. E são justamente essas opiniões e ideias que, de alguma maneira, também nos contagiam e nos animam a darmos sequência a essa ciranda.
Infelizmente, essas dinâmicas também têm seu viés negativo.
Transversalmente, inúmeras democracias têm se deparado com fortes instabilidades políticas, que parecem estar relacionadas com as novas práticas comunicacionais que dispositivos tecnológicos terminam favorecendo e a oportunismos narrativos, que se aproveitam das fragilidades que essa realidade indiretamente promove, para fragilizar argumentos que orientam um sistema punitivo afinado com princípios constitucionais.
Uma avalanche de opiniões dissonantes toma conta, não apenas do espaço público, mas também da academia, que tem sido colocada à prova, talvez para testar sua própria capacidade de seguir à diante, apesar dos recorrentes ataques ao pensamento científico e à logica do conhecimento, construídos em um processo evolutivo, durante toda a história da humanidade, embora, nem sempre em favor da proteção dos direitos dos coletivos mais vulneráveis, é importante ressaltar. E, por essa razão, provocar a discussão que rechaça o recorte de direitos parece ser a postura mais adequada aos tempos atuais.
Considerando que todos hoje encontram espaço e audiência para difundirem sua voz, inclusive aqueles cujas opiniões estão menos comprometidas com princípios constitucionais universais, nasce o livro que o leitor, neste momento, tem em mãos.
Um encontro de autores brasileiros e espanhóis que juntos procuram discutir temas jurídico-penais que interessam a ambos os países, dentro de um recorte favorável à proteção dos pilares que dão sustentação ao Estado democrático.
No que toca ao âmbito acadêmico penal, Brasil e Espanha são países bastante próximos, que vêm sempre num processo ascendente de intercâmbio de conhecimentos. Inúmeros são os professores brasileiros, que fazem parte de importantes escolas espanholas, alguns dos quais participam deste livro. Muitos são
os professores espanhóis que frequentemente publicam, participam de pesquisas, trabalhos, cursos e eventos no Brasil.
A proximidade desses universos e do diálogo entre tais academias nos motiva a estreitar ainda mais esses laços, com a motivação de consolidar um espaço de interação multilateral e de facilitar a leitores brasileiros, que ainda não tiveram a oportunidade de aproximar-se de tais debates, o contato com o pensamento de autores que têm muito o que dizer e que precisam ser ouvidos, sobretudo em um momento tão complexo no qual a opinião amadora parece ter o mesmo peso da profissional, aos olhos do cidadão.
Por essa razão, todos os textos que compõem este livro encontram-se em português, esforço que contou com a contribuição de tradutores brasileiros, todos penalistas que fazem parte da escola de Sevilha, aos quais os organizadores agradecem enormemente: Cézar Roberto Bitencourt, Paulo César Busato, Rodrigo Leite Cabral, Luiza Terra, Alexey Choi Caruncho, Lucas Dalmolin e Izabella Barros-Melo, que também é co-organizadora da publicação.
Como entendemos que o leitor lusófono pode se interessar por dar continuidade à pesquisa de textos espanhois, decidimos preservar alguns termos e palavras relativas ao sistema jurídico ou a instituições espanholas, porque buscar traduções e paralelos nacionais poderiam gerar ruídos interpretativos, a exemplo de termos como Ministério Fiscal, Tribunal Superior, Juzgado de lo penal, Govern, entre outros, que embora sejam traduzíveis, carregam particularidades, em comparação com o sistema brasileiro. Preservar os termos originais, nos casos em questão, ademais facilita a busca por palavra-chave, por parte do pesquisador, de conteúdo acadêmico adicional, assim como de notícias e também de decisões judiciais.
Esperamos verdadeiramente que esta publicação possa contribuir com a construção do conhecimento jurídico penal brasileiro e com a aproximação ainda maior de ambas as academias, de maneira que novos projetos com esse perfil possam ganhar ainda mais espaço, que mais textos de autores espanhóis possam interessar a estudantes brasileiros e que estes possam ser encorajados a integrarem escolas espanholas.
Que o pensamento nacional possa romper fronteiras e que o espaço que o debate multicultural permite possa contribuir para uma melhor compreensão do mundo que nos rodeia.
Recife-Sevilla, 2022.
Em primeiro lugar, gostaria de desculpar-me com o Mestre Gabriel Garcia Márquez por apropriar-me, embora com pequena variação, do título de sua famosa novela, “O amor em tempos do cólera”. Na realidade, como vocês devem ter adivinhado, não me refiro à cólera como uma doença, nem mesmo como aquele vírus assassino é chamado, Covid 19, que, inesperadamente, se espalhou no ano 2020 por todos os países do mundo, causando uma das mais graves crises de saúde na História da Humanidade. Refiro-me sobretudo à cólera como um sentimento de irritação, de indignação, de raiva permanente que hoje, diante da crescente insegurança e da temível crise, não só de saúde, mas também econômica, social e política, que viaja pelo mundo como um fantasma. Uma cólera que repercute especialmente sobre uma concepção de Direito Penal que se situa entre a “tolerância Zero” e o direito penal do inimigo e que ameaça levar-nos de volta aos tempos de uma lei penal de sangue e de lágrimas, do qual parecia que pouco a pouco estávamos saindo como se sai de uma recordação ruim, de um pesadelo, do qual, como disse Cervantes, é melhor não lembrarmos. No entanto, não só não chegamos naquele estágio em que o famoso Filósofo e penalista alemão, Gustav Radbruch, dizia que “no futuro não haveria mais um Direito Penal melhor, mas algo melhor que o direito penal”, pois, a rigor, estamos em uma fase em que se poderia dizer, com Groucho Marx, que “o direito penal está saindo da pobreza, para entrar na mais terrível miséria”.
Explicar por que chegamos ou estamos chegando a esse estágio de regressão do Direito Penal, em nível mundial, descobrir suas causas e sugerir algumas alternativas é o objetivo central da minha conferência, embora não haja necessidade de dizer que não tenho uma varinha mágica, nem posso ir além do que minhas luzes me permitem, para oferecer uma solução mais justa e humana para os problemas que atualmente nos afligem e que afetam diretamente essa parte do Direito e da Justiça que se chama Direito e Justiça criminal.
Antes de continuarmos, quero deixar uma coisa bem clara: não sou abolicionista. Pelo contrário, creio que, atualmente, o direito penal tem uma importante missão a cumprir e que deve fazê-lo da forma mais eficaz possível. Certamente, seria melhor para a sociedade que as pessoas se abstivessem de matar, sequestrar, roubar ou estuprar, não por medo de punição, mas por respeito e amor ao próximo. Mas em uma comunidade de seres imperfeitos como é a sociedade humana, não se pode esperar apenas boa vontade, amor e respeito ao próximo, senso de solidariedade, para que as pessoas se abstenham de violar as proibições mais elementares que permitem a convivência humana.
A mensagem evangélica para “oferecer a outra face” é louvável no âmbito religioso e talvez no moral, mas não no âmbito jurídico. O direito não só estabelece normas de conduta, como recomendações simples de bom comportamento, mas também de cumprimento obrigatório, cuja infração deve ser punida para restabelecer a vigência do ordenamento jurídico. Seria inimaginável uma norma jurídica que diga simplesmente: “não matarás”, sem estabelecer uma sanção para a hipótese de alguém matar um semelhante.
O direito penal é antes de tudo e sobretudo, como o seu próprio nome sugere, um direito punitivo, sancionador e repressivo, que restaura e assegura através da pena a validade das normas básicas que regem a convivência dos seres humanos. Antes das normas penais existem outras regras sociais e jurídicas, mas nenhuma delas tem a força coercitiva das normas penais, nem seriam eficazes se não fossem, em última instância, reforçadas por estas. Imagine-se como seria o cumprimento das obrigações ou pagamento dos impostos, se não houvesse a proteção pelas normas penais – nas hipóteses de graves violações ou descumprimentos –, que punem as fraudes ou crimes fiscais.
Felizmente, ainda vivemos em sociedades onde a maioria de seus membros respeita normas sociais e jurídicas fundamentais, não porque temem a punição, mas porque acreditam piamente, por convicção moral, religiosa ou de outra natureza, que elas devem ser cumpridas. Desgraçada seria uma sociedade que seus membros se abstivessem de matar ou roubar apenas porque é proibido e punido pelo Código Penal. O direito penal, por si só, não tem eficácia suficientemente motivadora do comportamento humano; tem-na somente na medida em que seja acompanhado por outros fatores de natureza cultural, ideológica ou moral
3 Sobre el contenido de este epígrafe me remito a mi libro Derecho penal y control social, Jerez de la Frontera 1985 (reeditado con el mismo título, en Bogotá, 2000). Una exposición resumida de mis tesis puede encontrarse también en Muñoz Conde/ García Arán, Derecho penal, Parte General, 9ª ed., Valencia 2010. p. 29 s.
que, como um continuum, vão moldando o super ego e o processo de socialização dos seres humanos.
Às vezes, a coincidência entre fatores motivadores sociais e os criminais pode ser muito grande, e, nessas circunstâncias, então o direito penal terá grande eficiência motivadora, culminando no processo de aprendizagem e socialização que chamamos de controle social.
Por outro lado, quando não há tal coincidência entre os diversos fatores de controle social, ou entre eles e os de natureza penal, a eficácia do direito penal diminui consideravelmente ou se torna praticamente nula. Este é o verdadeiro problema que surge em sociedades pouco homogêneas, nas quais haja abundância de subculturas conflitantes entre si e, inclusive, algumas até se opondo às proibições criminais. No entanto, isso acontece, especialmente em sociedades com grandes desigualdades econômicas e sociais, onde alguns têm muito e, por outro lado, muitos não têm nada ou quase nada. Enfim, como pode o Direito Penal ser eficaz e cumprir corretamente a função motivadora do comportamento dos cidadãos em uma sociedade desse tipo?
Nem mesmo nas sociedades mais homogêneas, econômica e culturalmente, se pode prescindir do Direito Penal. Não se ignora que também nas sociedades mais perfeitas há um número mais ou menos grande de condutas desviadas, que vão desde inadaptação e marginalização social até as formas mais graves de crimes contra a vida, a liberdade e a propriedade. O Direito Penal ocupa-se, fundamentalmente, de prevenir e punir a ocorrência de referidas infrações, e, nessa tarefa, aparece a sua face mais sombria e dramática, qual seja, a repressão e punição, empregando coação, intimidação e violência.
Falar sobre Direito Penal supõe, portanto, falar, de uma forma ou de outra, de violência, uma vez que violentos são os casos de que se ocupa, principalmente, o direito penal (assassinatos, roubos, sequestros, estupros, terrorismo). Violenta também é a forma como o direito penal trata desses casos com penas como, ao menos em muitos deles, a pena de morte e a prisão perpétua.
E, de um modo geral, em todo o mundo, os países adotam longas penas de prisão, inabilitações para exercer determinados direitos, elevadas multas etc.
O direito penal é, portanto, violento, tanto nos casos que sanciona quanto na forma de sancioná-los. Mas a violência usada pelo direito penal para restabele-
cer a vigência das normas jurídicas, para proteger um determinado sistema de convivência e seus interesses fundamentais, não é uma violência cega, irracional, conjuntural e espontânea.
É provável que na origen do Direito Penal se encontre a vingança, mas na medida em que as sociedades evoluíram foi-se criando instituições encarregadas de reagir objetivamente ao crime, de forma imparcial e desapaixonada. A resposta punitiva foi sendo formalizada, cristalizando-se em normas e procedimentos que constituem a medula e a razão de ser do moderno Estado de Direito, que é precisamente o que o distingue de outras formas de estados absolutos, autoritários, teocráticos ou ditatoriais, por submeter seu imenso poder punitivo a determinadas normas que, como regras do jogo, devem ser respeitadas por todos, inclusive pelo próprio Estado que as cria, em nome do povo e dos valores que lhe servem de base: liberdade, pluralismo, Justiça e democracia.
Essa formalização do poder punitivo do Estado se traduz, principalmente, no princípio da legalidade dos crimes e das penas (nullun crimen, nulla poena sine lege), atualmente reconhecido como princípio básico do Direito Penal em nível nacional e internacional, em todas as Constituições e Declarações Universais dos Direitos Humanos.
Mas esse princípio não apenas significa que só o legislador, ou seja, os órgãos legislativos constituídos pelos representantes do povo, escolhidos em eleições livres e democráticas, têm o poder para criar as leis penais e também os princípios de certeza e segurança jurídicas, para que o cidadão possa saber o que respeitar, pelo o que é punido como crime e quais penalidades podem ser aplicadas ao infrator. Deles derivam-se, por sua vez, outros princípios como os que, brevemente, passo a expor.
A segurança jurídica e a certeza exigem que a lei criada só se aplique a atos cometidos após a sua entrada em vigor. Isso é o que se denomina proibição de retroatividade das leis penais, na medida em que tipifiquem novos crimes ou agravem a pena dos já existentes, desde que sejam nocivos ou restrinjam direitos adquiridos5. É importante destacar esse princípio, pois é comum que a ocorrên-
5 Este principio se encuentra recogido de un modo general en el art. 9, 3 de la Constitución española: “La Constitución garantiza el principio de legalidad, la jerarquía normativa, la publicidad de las normas, la irretroactividad de las disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales, la seguridad jurídica, la responsabilidad y la interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos”.
cia de determinados eventos, que produzem grande alarma social, motive o legislador a criar novos tipos penais ou agravar as penas existentes. Mas esse recurso, muitas vezes movido por razões eleitorais para ganhar simpatia ou acalmar a indignação popular, somente poderá incidir sobre os fatos praticados a partir da entrada em vigor das novas leis penais. Não poderão ser aplicadas a fatos cometidos antes de sua vigência, mesmo que sejam aqueles que motivaram a elaboração dessas novas leis.
E tudo isso, que é uma verdade de Perogrullo, para qualquer jurista ou cidadão com conhecimento elementar das leis penais, deve ser muito claro para o povo e não dar-lhe a entender que quem motivou a sua criação pode agora ser julgado e condenado com base nelas. E devemos insistir nesse aspecto, mesmo quando se pretende ampliar o efeito retroativo dos prazos prescricionais de alguns crimes graves, cometidos no passado, quando os períodos prescricionais eram outros, e já decorridos.
As razões de segurança jurídica também sustentam, a meu ver, a proibição da retroatividade de novos prazos de prescrição mais longos do que aqueles que os regiam no momento em que tais fatos foram cometidos, para poder julgá-los de acordo com os novos prazos. Inquestionavelmente, a impunidade em que muitas atrocidades cometidas no passado permaneceram chocam-se com o sentimento elementar de Justiça, especialmente quando se trata de genocídios e de crimes contra a Humanidade.
Admito, pessoalmente, a correção do reconhecimento da imprescritibilidade de tais crimes, a exemplo do que ocorre no Estatuto de Roma6, o qual deu origem à criação do Tribunal Penal Internacional. Contudo, a imprescritibilidade dos crimes de competência deste Tribunal só pode ser aplicada, na minha opinião, a fatos cometidos a partir de sua entrada em vigor.
E se digo isso relativamente aos crimes internacionais julgados por um Tribunal Internacional, digo mais enfaticamente em relação aos crimes de âmbito nacional, os quais devem ser julgados por um tribunal nacional. Certamente, gostaria que o General Franco e seus cúmplices no Golpe de Estado de 18 de julio de 1.936 tivessem sido julgados e condenados pelos crimes que cometeram. No entanto, atualmente, isso somente seria possível se ainda estivessem vivos e tivessem capacidade para serem julgados, e desde que os prazos prescricionais, de então, para esse tipo de crimes (rebelião, crimes contra a forma de governo, as-
6 El art.29 del Estatuto de Roma dice expresamente que “Los crímenes de la competencia de la Corte no prescribirán”, pero no dice que esta no prescripción pueda aplicarse con efectos retroactivos a los delitos que se hayan cometido antes de su entrada en vigor, y desde luego en ningún caso existe en el Derecho penal español una disposición que admita expresamente la aplicación retroactiva de esta no prescripción (cfr. texto del art.9, 32, de la Constitución española, en nota anterior)
sassinatos, prisões ilegais etc)7 ainda não houvesse transcorrido. Adoto o mesmo entendimento relativamente aos crimes praticados pelos nazistas ou por qualquer outro grupo criminoso, em qualquer lugar do mundo, em momentos em que os períodos prescricionais já se passaram, mesmo que alguns deles tenham sido depois declarados imprescritíveis, seja por Convenções Internacionais ou por reformas penais nacionais.
Não me parece convincente o argumento de a prescrição ser um instituto processual e afetar somente o aspecto procedimental, mas não o conteúdo material da ilicitude, que foi utilizado pelos juristas alemães, nos anos sessenta do século passado, para poder perseguir os criminosos nazistas, mesmo depois de transcorridos os prazos prescricionais, vigentes à época de referidos crimes8. Com efeito, além de ser um argumento puramente formalista, viola os fundamentos da irretroatividade de leis penais desfavoráveis; ou seja, não pode ser aplicada retroativamente leis que prejudiquem ou restrinjam direitos adquiridos sob a vigência de leis anteriores. E se, por qualquer razão, o infrator não for julgado dentro de vinte anos, marco prescricional, pelo crime que pratica hoje, uma lei subsequente não pode alterar esse marco prescricional para trinta anos, por exemplo, para que possa ser julgado, porque isso, obviamente, prejudica seu direito à segurança jurídica e sempre deixaria uma porta aberta para qualquer mudança semelhante no futuro.
Estou consciente de que o que acabo de dizer não goza da simpatia de grandes setores da população e contraria, inclusive, a opinião de muitos e qualificados professores e juristas. Contudo, acredito que a segurança jurídica e o próprio instituto da prescrição devem ser levados a sério em um Estado Democrático de Direito.
Claramente não tenho problema em admitir que o fato seja julgado, quando o prazo prescricional for interrompido, seja porque praticados novos crimes
7 Ciertamente, muchos de estos delitos, sobre todo por lo que se refiere a la forma sistemática en que fueron ejecutados para eliminar físicamente a los partidarios del Gobierno legítimo de la República, podrían hoy calificarse al menos como Crímenes contra la Humanidad, pero ésta tipicidad ha sido una creación reciente de los Tribunales internacionales a partir de los Juicios de Nuremberg y mucho más tarde ha sido acogida en el Estatuto de Roma (Véase Werle, Tratado de Derecho penal internacional, Valencia 2005, p. 349 ss.). En el Derecho español estos delitos fueron introducidos, tras la ratificación del Estatuto de Roma, en el Código penal español en la reforma del 2003 (art. 607 bis) (véase Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial, 18. ed., Valencia 2010, p. 780 s). Difícilmente puede, por tanto, aplicarse esta calificación a hechos que se cometieron muchos años antes, aunque luego en su moderna tipificación como delitos lesa humanidad se hayan declarado imprescriptibles (véase, por ejemplo, art. 131, 4 del Código penal español).
8 Véase al respecto sentencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán, BVerfGE 25, 1969, 269. La doctrina alemana sigue en general esta opinión, si bien distingue entre la aplicación con efecto retroactivo de los nuevos plazos de prescripción cuando aún no han transcurrido los que había en el momento en que se cometió el delito, y la aplicación con efecto retroactivo de los nuevos plazos de prescripción o de la no prescripción cuando los plazos de prescripción vigentes en el momento en que se cometió el hecho ya han transcurrido, admitiendo la primera pero no la segunda; véase, por ejemplo, Jescheck, Tratado de Derecho penal, traducción de Mir Puig y Muñoz Conde, Barcelona 1983, vol. II, p. 1239; Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 4. ed.,2006, p. 167 Respecto a la no aplicación de esta tesis en algunos países del Este europeo tras la caída de los regímenes comunistas, y particularmente en el caso de Hungria, véase Fletcher, Conceptos básicos de Derecho penal, traducción de Muñoz Conde, Valencia 1997, p. 31, quien se inclina por el carácter procesal de la prescripción y, en consecuencia, admite la ampliación retroactiva de los plazos de la misma (véase mi nota contraria a esta tesis, p. 31/ 32 del libro citado de Fletcher).
(como a Ditadura de Franco que durou quase quarenta anos), seja porque obstáculos à sua persecução penal tenham sido opostos por concessão dos próprios criminosos antes do curso dos prazos prescricionais, v. g., Leis de “ponto final” ou de autoanistia, ou se tenham aprovado estas em nova fase democrática pela fraqueza dos novos regimes democráticos9. Aqui nos deparamos com outro problema, como o da chamada “Justiça de transição”, que coloca o dilema de for para mudar de ditaduras para democracias é melhor fazer uma espécie de “ajuste de constas”, “limpando” o passado, uma espécie de “conciliação” entre as partes, ou seja, perdão ou punição aos criminosos de ontem?!
Nas transições dos últimos anos, em muitos países latino-americanos, e também na Espanha, Portugal, bem como nos países do Leste Europeu após a queda do Muro de Berlim, vários modelos de transição foram testados, embora nenhum tenha sido plenamente satisfatório para as partes envolvidas10. Mas, de qualquer forma, isso não deve afetar os prazos prescricionais quando os fatos foram cometidos.
Enfatizo tudo isso com especial ênfase no momento em que na Espanha está sendo considerada a possibilidade de abertura de processo penal aos responsáveis pelo golpe de Estado de 1936, mas também em um momento em que uma recente reforma do Código Penal em que se declara imprescritíveis os crimes de terrorismo com resultado morte11. Não questionarei agora se esta é uma política criminal acertada, apenas ressalto que a imprescritibilidade de terrorismo com resultado morte somente se aplicará a crimes dessa natureza cometidos a partir da entrada em vigor dessa reforma. Portanto, somente quando passados muitos anos que, em qualquer caso, também com a regulamentação anterior, para que tais crimes sejam prescritos, e a realidade política bem como a necessidade político-criminal desta declaração poderão ser avaliadas. Claramente, a atual declaração
9 En este argumento se apoyó la Corte Suprema argentina para anular la llamada Ley de Punto de Final y de Obediencia debida que se había aprobado para dejar sin castigo las violaciones de derechos humanos y los crímenes de lesa humanidad que se habían cometido durante el mandato de la Junta militar (Sentencia de la Corte Suprema de Justicia argentina de 14 junio del 2005). Por supuesto que el mismo argumento se podría utilizar en aquellos otros países en los que la no persecución de estos delitos se debió a la imposibilidad de hacerlo mientras estuvo vigente el régimen político que los amparó. En este caso, debería aplicarse el mismo criterio que se utiliza ahora para poder perseguir los delitos contra menores, incluso aunque hayan transcurrido los plazos de prescripción de los mismos, computándolos no desde el momento en que se cometieron, sino desde el momento en que el menor haya cumplido la mayoría de edad o, en caso de fallecimiento, éste hubiera fallecido (véase, por ejemplo, art. 132, 1, segundo párrafo del Código penal español). Sin embargo, me parece excesivo la ampliación del plazo de prescripción de los delitos de los que haya sido víctima un menor a treinta o incluso cincuenta años, tal como se prevé en un Proyecto de Ley de protección del menor que en estos momentos (enero 2019) prepara el Gobierno español. En todo caso, estos nuevos plazos, caso de que el Proyecto se convierta en Ley, no podrán ser aplicados a los delitos que se hayan cometido antes de la entrada en vigor de esa Ley. Sobre las distintas causas de suspensión e interrupción de los plazos de prescripción, me remito a la nueva regulación que prevé el art. 132, 2 del Código penal español tras la reforma del 2010, y a mi comentario a esta regulación en el Anteproyecto de esta reforma: Muñoz Conde, Análisis de algunos aspectos del Anteproyecto de Reforma del Código penal español, en Revista Penal, 2009, p. 117 ss.
10 Véase al respecto Muñoz Conde/ Vormbaum, Humboldt-Kolleg, “La transformación jurídica de las dictaduras en democracias y la elaboración jurídica del pasado”, Valencia 2009 (hay también edición en alemán, Berlín 2010).
11 Véase art. 131, 4, párrafo segundo: “Tampoco prescribirán los delitos de terrorismo, si hubieran causado la muerte de una persona”. Téngase en cuenta que el estricto tenor literal del precepto permite considerar que tampoco prescriben los casos en los que la muerte de una persona se haya causado de forma imprudente o incluso fortuitamente.
de imprescritibilidade busca mais acalmar as demandas punitivas que na opinião pública espanhola suscitam os atos terroristas assassinos, do que satisfazer qualquer outro propósito preventivo de intimidação a terroristas, que se situam em outras coordenadas ideológicas ou mentais.
As mesmas razões que sustentam a não aplicação retroativa do aumento dos prazos prescricionais para crime anteriormente praticado são as mesmas que, a meu ver, impedem a aplicação retroativa de medidas de segurança que não existem no momento da prática de um crime12. Essa questão também é debatida e o argumento em que se apóiam os defensores da aplicação retroativa das medidas de segurança é que não se trata de modificação do conteúdo material da ilicitude do crime cometido, mas somente objetiva prevenir a periculosidade do autor de crime que pode não ter sido detectada no momento em que foi condenado, mas só posteriormente13. Olvida-se, por outro lado, que uma medida de segurança pode, inclusive, ser mais grave que uma pena, especialmente quando se trata de medida privativa de liberdade, embora o motivo de sua imposição, com efeito retroativo, seja prevenir a perigosidade atual e não passada (com efeito, não se refere ao crime cometido, mas ao que se imagina possa vir a cometer no futuro), o impacto sobre o direito à segurança e à liberdade do infrator, no entanto, é o mesmo ou até mais grave que a aplicação da própria pena14. Mas o que não se pode dizer é que esse internamento se origina no crime cometido e pelo qual já foi condenado a uma pena de prisão. Por isso, me parece criticável o regulamento alemão que, após sucessivas reformas realizadas em 2002 e 2003, para evitar a liberação de infratores (geralmente autores de crimes sexuais, mas também habituais de crimes patrimoniais), que estavam prestes a cumprir sua pena, permite que o tribunal sentenciador aplique, retroativamente, àqueles que no ato de sua condenação não se lhe havia sido imposto a denominada “medida de segurança”, inclusive privativa de liberdade, por tempo indeterminado15
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos considerou, com razão, que este regulamento viola os princípios básicos da Convenção Europeia sobre Direi-
12 En este sentido se expresa claramente el art. 2, 1 del Código penal español: “Carecerán, igualmente, de efecto retroactivo las Leyes que establezcan medidas de seguridad”.
13 Este es el argumento empleado fundamentalmente por la doctrina penal alemana, cuyo Código penal permite en su parágrafo 2, 6 la aplicación retroactiva de las medidas de seguridad: “Sobre las medidas de mejora y seguridad debe decidirse, en tanto legalmente no se diga otra cosa, conforme a la Ley que esté vigente en el momento de la decisión”. Roxin, Strafrecht cit., p. 166, muestra, sin embargo, sus reservas respecto a que se pueda aplicar con efecto retroactivo la medida de internamiento en custodia de seguridad, dada la similitud de la misma, en cuanto a sus efectos sobre el condenado, con la pena de prisión. A favor de la aplicación retroactiva de esta medida a los que no fueron condenados a la misma en el momento de la sentencia, pero muestran peligrosidad tras haber cumplido la pena de prisión que se les impuso, la sentencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán, BVerfGE, 109, 133, anulada posteriormente por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, véase infra.
14 Véase la regulación de este procedimiento en el art. 763. de la Ley española de enjuiciamiento civil.
15 Sobre la redacción originaria del parágrafo 66 del Código penal alemán, véase Jescheck/ Weigend, Lehrbuch des Strafrechts, 5. ed., 1996, p. 811 ss.; y sobre las sucesivas reformas y su aplicación retroactiva, Roxin, lug. cit.
tos Humanos16. Pelos mesmos motivos, a nova medida de liberdade condicional adicional só pode se aplicar ao cumprimento da pena introduzida no artigo 105,2 do Código Penal Espanhol pela reforma de 2010, às pessoas que cometeram os crimes em que essa medida é aplicável (sexual e terrorismo), a partir da entrada em vigor dessa reforma (23 de dezembro de 2010) 17 .
b) A proibição da analogia: o controle do Poder Judiciário pelo Poder Legislativo Outro princípio importante decorrente da legalidade dos crimes e das penas é a proibição da analogia na aplicação das leis penais. Certamente, é difícil distinguir entre a interpretação possível da lei e o significado literal dos termos legais, e a analogia que ignora esse possível significado literal da lei para aplicá-la a casos similares nela não previstos, mas que não se enquadram em suas previsões.
O exemplo clássico que ocorreu quando Tribunais de Justiça de muitos países incluíram no crime de furto o uso ilícito da energia eléctrica, acrescenta-se atualmente os casos derivados do emprego de novas tecnologias, especialmente as derivadas da internet, para o cometimento de crimes contra a intimidade ou a propriedade com ataques (hackers, introdução de virus etc,) que dificilmente podem ser incluídos nas definições tradicionais dos crimes existentes. Certamente, o legislador de hoje, consciente das lacunas existentes, está se esforçando para introduzir nas legislações criminais novas tipificações, em casos como acesso a correio e dados de terceiros pelos chamados hackers, sabotagem de computador ou o uso da Internet para cometer fraude econômica18.
Mas a proibição da analogia é, sobretudo, uma determinação endereçada ao Juiz para que se abstenha de aplicar qualquer outra coisa que não seja a Lei, e tampouco a substitua por seu pessoal critério de justiça. Dentro do regime de divisão dos Poderes proposto por Montesquieu, ao Juiz e ao Judiciário corresponde-lhe somente a aplicação da Lei, e se esta não prevê um fato como crime ou os prazos prescricionais para o momento de sua prática, o Juiz deve abster-se de qualquer procedimento, por mais que lhe repugne sua impunidade ou considere que tal fato deva ser punido.
16 Véase sentencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos de 19 diciembre del 2009, y comentario a la misma de Silva Sánchez, en nota editorial de la Revista en Internet, Indret. com, 2010.
17 Véase sentencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos de 19 diciembre del 2009, y comentario a la misma de Silva Sánchez, en nota editorial de la Revista en Internet, Indret. com, 2010. Pero en Brasil está incluso en su propio CP de 1940 (§ 3° del art. 155 que tipifica el mismo crimen.
18 Para colmar estas lagunas, difícilmente solucionables con una mera interpretación de los preceptos existentes en el Código penal, la reforma del Código penal español operada por Ley Orgánica 5/ 2010, de 22 de junio, ha introducido nuevos tipos de delitos como el acceso a datos y sistemas informáticos (art. 197, 3), y el sabotaje informático (art. 264). Ya en la reforma del 2003 (Ley Orgánica 15/ 2003, de 25 noviembre), se introdujo dentro del delito de estafa una nueva tipicidad que castiga con las mismas penas que el delito de estafa consumado la posesión de programas de ordenador específicamente destinados a la comisión de estafas (art. 248, 3): Véase sobre estas nuevas tipicidades, Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial 10ª cit. p. 277, 430 y 479 y s.; y 21ª ed., editorial Tirant Lo Blanch Valencia 2017 (3ª edición mejicana en la misma editorial).
No entanto, nas últimas reformas legislativas, pelo menos na Espanha, está havendo um fenômeno curioso, causado pela desconfiança do legislador sobre a possibilidade de os juízes interpretarem leis penais em desacordo com o entendimento que expressaram no texto legal. Assim como ocorreu nos primeiros Códigos Penais que pretendiam controlar o arbítrio judicial, fazendo com que os Juízes não fossem outra coisa que, como dizia Montesquieu, “a boca que pronuncia as palavras da lei”, através de legislações casuísticas com limites penais interpretativos muito estreitos, o legislador atual acredita que não se pode confiar muito na capacidade dos juízes de adequar, através de sua interpretação, as leis penais à realidade atual, e que eles, ao contrário do que fizeram no início do século XX, considerando como furto o uso ilegal de energia elétrica, atenham-se à estrita redação literal e deixem impunes fatos que com uma interpretação extensiva (mesmo banal) poderiam ser incluídos no preceito penal correspondente.
Assim ocorreu, por exemplo, com a interpretação estritamente literal da Suprema Corte espanhola que, após a reforma do crime de estupro, que considerava como tal a introdução de objetos nas cavidades vaginal ou anal, interpretou repetidamente que a introdução dos dedos nessas cavidades não constituía esse crime (cf., por exemplo, STS 14 de fevereiro de 1994). Essa interpretação obrigou que o legislador, na revisão do Código Penal de 2003, destacasse expressamente no artigo 179 do Código Penal que, juntamente com a introdução de objetos, também a de “membros do corpo, deixando clara a equiparação valorativa entre as duas formas de conduta, ao contrário da interpretação excessivamente literal do Tribunal Supremo19.
Embora por diferentes razões, ou, de qualquer forma, para evitar interpretações excessivamente literais, na reforma do Código Penal espanhol, realizada em 2003, foi introduzida expressamente no art. 149,3 a “mutilação genital” como mutilação de órgão principal, embora, a meu ver, não haja dúvida alguma de que, por exemplo, a manipulação do clitóris, configure essa hipótese, podendo, por consequência, ser considerada como tal, com uma simples interpretação literal do conceito de “órgão principal”20.
Vemos mais claramente esse direcionamento legislativo, limitando a discricionariedade judicial, na valoração de provas, na reforma das infrações de segurança viária operada pela LO 15/2007 de 30 de novembro. Diante da jurisprudência que considerava condução temerária, algumas vezes, com as mesmas taxas
19 Véase al respecto Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial, cit., 16. ed., Valencia 2005, p. 673 ss.
20 No cabe duda de que en esta reforma tuvieron un peso decisivo las reivindicaciones feministas, pero también la realidad de que tales prácticas se realizaban con las hijas de las familias emigrantes procedentes de países África central; lo que llevó a ampliar el principio de extraterritorialidad en una reforma de la Ley Orgánica del Poder Judicial para juzgar en España estos hechos cuando se cometieran fuera del territorio español. Sobre esta reforma, véase Muñoz Conde, Parte especial cit., p. 116.
de álcool superior às miligramas permitidas, e outras não, ou, em outras circunstâncias, a condução com velocidade excessiva (condução temerária), a existência de uma infração contra a segurança viária21, e outras não22, dirigir um veículo motorizado ou ciclomotor a uma velocidade superior a sessenta quilômetros por hora em via urbana ou superior a 80 em via interurbana, permitidas pelo Código de Trânsito23.
Mas esse direcionamento legislativo pode ser visto como uma tendência político-criminal muito difundida nas últimas reformas, e que resultou, no que se denominou, na Escola de Frankfurt encabeçada por Hassemer – e não o digo no sentido laudatório –, de “Moderno Direito Penal”, e que, muitas vezes, com o objetivo de evitar lacunas, levou à introdução de “novos crimes” tipificando condutas que, com uma interpretação dos tipos existentes, também poderiam ser punidos24.
Assim, por exemplo, ocorreu com o crime de “administração societária desleal” (art.295) introduzido no Código Penal espanhol de 1995, e que, no fundo, coincidia com o crime já existente de “apropriação indébita”, ou com o crime introduzido na reforma de 2010, de fraude ao investidor (art.282 bis), que também poderia, na minha opinião, ser punido como fraude comum. O problema dessas tipificações é que, além das dificuldades interpretativas, para distingui-las das tipificações tradicionais de apropriação indébita e de estelionato, é que dão a impressão de que referidas condutas, antes de sua tipificação, não necessitavam ser criminalizadas25.
Esse direcionismo excessivo do Poder Legislativo, obviamente é influenciado por campanhas midiáticas que pressionam o legislador a tipificar (quase com nomes e sobrenomes dos responsáveis) fatos que tiveram grande repercussão e que provocaram ou provocam alarme social. Isso explica porque, nos últimos tempos, também por pressão dos movimentos feministas, foram feitas reformas relativas à violência de gênero que, de forma discutível, discriminam positivamente as mulheres como vítimas da mesma. Forçam, praticamente, que o juiz classifique como crime e puna com prisão ameaças e coerções leves, as quais, quando não têm como sujeitos passivos as mulheres, são classificadas como um crime menor e não têm pena de prisão26. As mesmas pressões feministas levaram
21 Véase Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial, Cit., 16. ed., Valência 2005, p. 673 Ss.
22 Sobre esta reforma véase Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial cit. 18. ed. 2007, p. 702 ss.
23 Sobre esta reforma véase Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial cit. 18. ed. 2007, p. 702 ss
24 Véase, por ejemplo, Hassemer/ Muñoz Conde, La responsabilidad por el producto en Derecho penal, Valencia 1995
25 Sobre ello véase Muñoz Conde, Parte especial cit., p. 512 s., 544 ss. Tras la reforma del Código penal del 2015, se ha derogado el delito de administración desleal como delito societario, y se ha transformado en un delito similar al de apropiación indebida, tipificándolo en el art. 252, ampliando su aplicación y suprimiendo cualquier óbice procesal para su persecución penal (véase Muñoz Conde, Parte especial, cit,. 21ª ed., p. 396 ss,
26 Cfr. arts. 171, 4, 172, 2 y 173, 3. Sobre esta regulación véase Muñoz Conde, Derecho penal, Parte especial cit, 21ª ed. p. 179
também à introdução de assédio sexual, ampliando a abrangência dos crimes contra a liberdade sexual, além dos ataques nos quais se utiliza de violência ou intimidação27. Mas essa forma de perturbação da liberdade e tranquilidade nas manifestações da vida cotidiana por condutas não diretamente intimidadoras ou violentas, mas apenas irritantes ou desagradáveis levaram também à criminalização do assédio em outras áreas, como a laboral (mobbing) e o imobiliário28.
O efeito dessa expansão e intensificação do direito penal no âmbito legislativo pode ter, no entanto, repercussões negativas no campo judicial, uma vez que muitos juízes, seja por dificuldades de prova, seja por considerarem a resposta criminal excessiva, absolvem ou continuam aplicando os tipos penais tradicionais, ignorando olimpicamente os novos, o que, certamente, pode transformar essas reformas em “papel molhado” ou em um exemplo típico de “direito penal simbólico”, puramente eleitoreiro, sem qualquer influência na realidade penal. Ambos os procedimentos, seja o (i) da excessiva discricionaridade do Judiciário, que se quer evitar com a proibição da analogia, seja (ii) o do excessivo direcionismo legislativo, que querem impor critérios limitadores da discricionariedade judicial na interpretação das normas legais, refletem as tensões entre os dois Poderes que, constitucionalmente, têm maior impacto no Direito Penal. O desequilíbrio ou o desacordo entre ambos pode ser, provavelmente, uma das causas da ineficácia do Direito Penal (ou no mínimo, a ampliam), além de ser também um dado a considerar para analisar o papel do Judiciário na adoção e criação de uma política criminal que é vedada constitucionalmente29.
E se tudo o que acabei de dizer sobre a formalização do direito penal material é importante na hora de interpretar e aplicar a lei penal, com igual razão ou mais, deve-se levar em consideração quando se instrua uma causa ou se dê andass.
27 Sobre este delito véase Muñoz Conde, Parte especial cit. 21ª p. 215 ss. En esta tendencia se encuadra el Proyecto de reforma del Código penal que actualmente (enero 2019) prepara el Gobierno español para suprimir la distinción entre agresión sexual, abuso y acoso sexual, incluyendo en un mismo concepto de agresión sexual cualquier ataque a la libertad sexual, y calificando como violación todos los supuestos en los que haya penetración.
28 Sobre este delito véase Muñoz Conde, Parte especial cit. 21ª p. 215 ss. En esta tendencia se encuadra el Proyecto de reforma del Código penal que actualmente (enero 2019) prepara el Gobierno español para suprimir la distinción entre agresión sexual, abuso y acoso sexual, incluyendo en un mismo concepto de agresión sexual cualquier ataque a la libertad sexual, y calificando como violación todos los supuestos en los que haya penetración.
29 Un claro ejemplo de esta clase de discrepancia, ha dado lugar a la reforma del num. 4 del art. 23 de la Ley Orgánica del Poder Judicial, operada por LO 1/ 2009, de 3 noviembre, por la que se restringe el ámbito de competencias de la Jurisdicción española, en relación con la aplicación del principio de Justicia universal, consagrado en dicho artículo, evitando así que la Justicia española (o mejor dicho, la Audiencia Nacional) se convierta en una especie de Tribunal internacional para juzgar cualesquiera de los delitos mencionados en dicho artículo, pero sobre todo los de Genocidio y Lesa Humanidad, cometidos por extranjeros fuera del territorio nacional, exigiendo, entre otros requisitos, que se de “un vínculo de conexión relevante con España” (sobre el alcance de esta reforma, véase Isidoro Blanco Cordero, Sobre la muerte de la jurisdicción universal, en Revista de Derecho penal, num12, 2009).