EXECUÇÃO PENAL BANAL COMENTADA

escritos dogmáticos e críticos sobre o sistema penal pátrio

Marcio Nepomuceno
Paloma Gurgel
escritos dogmáticos e críticos sobre o sistema penal pátrio
Marcio Nepomuceno
Paloma Gurgel
Escritos dogmáticos E críticos sobrE o sistEma pEnal pátrio
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Analu Brettas
Eduardo FErrEr mac-GrEGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
JuarEz tavarEs
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
luis lóPEz GuErra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
tomás s. vivEs antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
Execução penal banal comentada : escritos dogmáticos e críticos sobre o sistema penal pátrio [livro eletrônico] / Luciano
Tourinho, Marcio Nepomuceno, Paloma Gurgel; prefácio Siro
Darlan. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.
3.132Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-618-4
1.Direito. 2. Direito penal. I. Título.
CDU: 343
Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
DOI: 10.53071/boo-2023-07-24-64bea427d26e5
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Escritos dogmáticos E críticos sobrE o sistEma pEnal pátrio
As palavras a seguir serão relacionadas a um dos mais nobres sentimentos que podemos ter: gratidão. Participar de um projeto de tamanha envergadura trouxe uma satisfação singular e, por essa razão, devo agradecer pelo convite inicial de Marcio Nepomuceno, bem como pelas aprendizagens a partir da leitura de suas cartas que serviram para subsidiar esse livro. Meus agradecimentos, ainda, a Paloma Gurgel, advogada que inspira a todos que desejam seguir pelos caminhos da busca pela realização da justiça, por proporcionar esse encontro. Aos revisores e colaboradores, pelo trabalho empenhado, bem como aos leitores, pela confiança depositada.
A Deus e aos Doutores Paloma Gurgel e Luciano tourinho.
Marcio dos Santos Nepomuceno
Agradeço a minha mãe que nunca me deixou faltar um livro. À minha Madrinha, Maria das Neves Gurgel, que é a musa inspiradora da minha vida acadêmica, e ao Márcio que me deu a oportunidade de escrever com ele tão importante obra jurídica. É uma obra que todos devem ler, pois além de ser muito contemporânea, apresenta a real situação do Brasil nas “execuções Banais” boa leitura !
Paloma Gurgelluciano tourinho
Advogado criminalista. Pós-doutor em Direitos Humanos (Direitos Sociais) pela Universidad de Salamanca. Doutor em Direito Público – Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Público – Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Especialista em Ciências Criminais. Especialista em Inovação, Gestão e Práticas Docentes no Ensino Superior. Especialista em Educação, Bem-estar e Felicidade. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Graduado em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste. Professor Adjunto de Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Diretor Geral da Faculdade Santo Agostinho de Itabuna. Professor de Trabalho de Conclusão de Curso, no curso de Medicina, da Faculdade Santo Agostinho de Itabuna. Coordenador do Núcleo de Estudos de Direito Contemporâneo – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coordenador do Núcleo de Estudos de Direito Contemporâneo. Membro do Núcleo de Apoio Pedagógico e Experiências Docentes da Faculdade Santo Agostinho de Itabuna. Escritor de obras jurídicas. Avaliador do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (BASis).
marcio nEPomucEno
Ensino Médio. Custodiado na Penitenciária Federal de Catanduvas-PR há 26 anos. Autor dos livros Verdades e Posições: o Direito Penal do Inimigo (2017) e Preso de Guerra (2021).
Paloma GurGEl
Especialista em direito penal, Processo Penal e Criminologia pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Doutoranda pela Universidade Nacional de Mar Del Plata, Pós Doutora pela Universidade de Salamanca (Espanha) e Pós Doutora pela Universidade de Messina (Itália). Estudou Ciências Criminais e Dogmática Penal Alemã na Universidade Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha/2021), cursou em Harvard Financial analisys and valuation for lawyers, em 2021. Congressista Internacional; Graduanda em Psicologia pela Unifor. Advogada Fundadora da Sociedade Unipessoal Paloma Gurgel Advocacia. Advogada Criminalista com ênfase em transferências de presos custodiados em Penitenciárias Federais, de 2012 até os dias atuais. Inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Norte nº 9.654 e Seccional Ceará sob o nº 37.186-A.
Desde que Caim matou Abel, os humanos promoveram uma divisão moralista e determinaram o que é bom e o que é mau nas ações humanas. Santo Agostinho definiu o mal como a ausência do bem, o ódio como a falta de amor. São vários os critérios adotados pelas diversas culturas. Mas como se trata de escrever a apresentação de um livro, um ato de manifestação livre do pensamento, um ato representativo de uma abordagem cultural, não há grades que consigam prender o pensamento, daí porque, mesmo estando preso em uma cela de segurança máxima há mais de vinte e cinco anos, Marcio Nepomuceno sente necessidade de se comunicar e o faz escrevendo livros. Essa pena de mutar os detentos foi abolida civilizatoriamente do rol de penalidades. Portanto ouçamos a voz que vem do fundo do poço, do mais profundo silêncio dos cárceres.
Vários foram os desterrados e excluídos do meio social que se manifestaram através da literatura. O mais recente deles, Nelson Mandela, falou alto e deu lições ao mundo de como se dá a volta por cima contando suas experiências de cárcere sem ódio nem vingança. Entre nós, o presidente Lula, após ter seu nome sufragado em dois mandatos presidenciais, foi impedido de um terceiro pelas mãos da injustiça que o manteve atrás das grades por mais de 500 dias, impedindo-o de ser mais uma vez presidente do Brasil.
A história mais famosa e repassada a respeito de Robin Hood conta sobre um homem chamado Robin De Locksley. Este, após servir ao lado do rei Ricardo em uma grande Cruzada, retorna para casa. Ao chegar, encontra seu feudo devastado pela tirania dos regentes, além de leis abusivas, e a proibição da caça como sustento ao homem comum. Indignado, ele se recusa a aceitar a situação, e é declarado um fora da lei.
Aproveitando seu conhecimento em cavalaria, arquearia e combate adquirido na guerra, ele une um grupo de fora da lei, e inicia um
combate à tirania da nobreza, roubando dos ricos para dar aos pobres. Se existiu de fato, viveu durante o século XIII, provavelmente entre 1250 e 1300. Jean Valjean é o protagonista do romance de Victor Hugo, Os Miseráveis, de 1862. A história retrata a luta de 19 anos do personagem para levar uma vida normal depois de cumprir uma pena de prisão por roubar pão para alimentar os filhos de sua irmã durante um período de depressão econômica e várias tentativas de escapar da prisão.
Em liberdade condicional, Valjean recebe um passaporte amarelo com ordens de marcha para Pontarlier, onde será forçado a viver sob severas restrições. Este documento, muitas vezes chamado de “passeport jaune” (passaporte amarelo), o identifica para todos como um ex-presidiário e imediatamente marca Valjean como um pária onde quer que ele viaje.
Sua vida muda quando Bishop Myriel de Digne, de quem ele rouba talheres valiosos, diz à polícia que ele deu o tesouro a Valjean. Fora desse encontro, Valjean se torna um homem arrependido, honrado e digno. Ele se torna gentil, uma figura paterna dedicada a uma garota, Cosette, que perde a mãe, e um benfeitor para os necessitados. Embora um criminoso conhecido e em liberdade condicional, Valjean ainda cresce moralmente para representar os melhores traços da humanidade. Apesar de ser classificado como um pária criminoso, Valjean mantém a mais alta das virtudes e ética humanas.
Hugo então detalha o passado de Valjean. Ele nasceu em algum momento de 1769 em uma pequena cidade e ficou órfão quando criança. Ele se tornou um podador e ajudou a sustentar sua irmã viúva e seus sete filhos. No inverno de 1795, quando os recursos eram escassos, Valjean roubou um pão de um padeiro local quebrando a janela.
Ele foi pego e preso por cinco anos no Bagne de Toulon, a prisão de Toulon. Ele tentou escapar quatro vezes, e cada vez sua sentença foi prolongada em três anos; ele também recebeu dois anos extras por resistir uma vez à recaptura durante sua segunda fuga. Depois de dezenove anos na prisão, ele foi libertado, mas por lei deve portar um passaporte amarelo que anuncia que ele é um ex-presidiário.
Se a guerra é contra as drogas, por que a letalidade dessa guerra se mostra esmagadoramente maior com relação às pessoas negras? Por que os negros representam grande parte das pessoas no regime carcerário brasileiro? A esmagadora maioria dos presos brasileiros nos obriga a problematizar a política “proibicionista” sobre drogas brasileira assumindo que não é possível fazer uma análise sobre a guerra às drogas apartada das relações sociais brasileiras que foram conformadas pela escravidão, expropriação, colonialismos, desigualdade social, racismo estrutural e o ódio de classes.
A partir de reflexões desde uma perspectiva antiproibicionista e antirracista, ancorando-se na sociologia, na psicologia social, na criminologia crítica e no serviço social para aportar às análises e ponderações. A morte sistemática de jovens negros precisa ser reconhecida enquanto um genocídio da juventude negra, esse é o passo inicial para seu enfrentamento. “Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial” diz respeito a todos que sonham e lutam por uma sociedade mais justa e igualitária.
A guerra às drogas é uma ferramenta da qual a sociedade contemporânea depende para manter negros e pobres oprimidos e marginalizados. Esta é a opinião da ativista do movimento negro norte-americano Deborah Small, formada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard.
Esse esforço policial é concentrado nas favelas, como se este fosse o único lugar onde as drogas estão, mesmo que nós saibamos que em todos os países o uso de drogas é igualmente distribuído e atinge todos os grupos sociais e econômicos. O problema é que, assim como nos Estados Unidos, há certa negação a respeito da existência de usuários de drogas e dependentes químicos entre os ricos e poderosos, e o foco é sempre a população pobre.
Circular com armas para fora do carro, apontando para as pessoas, deve ser considerado um comportamento policial extremamente inapropriado, porque a mensagem que isso passa para a comunidade é que, basicamente, todos são suspeitos, todos são criminosos e todos estão sujeitos a ser alvejados por tiros a qualquer momento.
Sim, apenas na favela, onde a maioria é negra. Então é basicamente a população negra que está sendo obrigada a viver em um estado de medo. É como se dissessem que a culpa também é deles, porque, se não houvesse traficantes entre eles, não teriam de viver desse jeito.
Então fica patente que grande parte das razões pelas quais as pessoas não reagem a essas mortes é porque lhes foi dito que aqueles que foram mortos eram traficantes ou tinham algum envolvimento com o tráfico. E a maioria das pessoas acredita nisso, até que os filhos deles sejam presos ou mortos. Só então eles pensam: “Não, isso não é correto”.
Para os estudiosos e historiadores, isso é parte do legado da escravidão e da segregação racial, que fez os negros acreditarem que eles próprios são criminosos. Você quase tem que provar que a pessoa que foi morta não era uma criminosa para que a comunidade sinta alguma empatia por ela. Quando as pessoas são classificadas como criminosas, a sociedade não se sente obrigada a pensar quais são as causas disso.
O sucesso da guerra às drogas foi fazer as pessoas acreditarem que um grupo está mais propenso à criminalidade que outro. E também teve sucesso ao fazer com que esse mesmo grupo acreditasse nisso.
Quando nós falamos de drogas, por algum motivo nós deixamos de lado a nossa racionalidade para acreditar que esta é uma realidade exclusiva dos pobres, dos negros. Isso não faz sentido, exceto se você pensar que a guerra às drogas é um mecanismo de manutenção da hierarquia racial da qual a sociedade depende.
Então, a questão do racismo que não é comentada é que grande parte da riqueza e dos privilégios dos quais as pessoas brancas desfrutam hoje é porque elas não tiveram que competir com os negros. Mas elas acreditam que merecem tudo aquilo que têm.
A polícia é o instrumento que a sociedade usa para manter o status quo racial, ou seja, parte da função da polícia é manter esse status quo. Então os privilegiados podem manter seus privilégios, e as pessoas da base são mantidas na base, sem condições de ascender socialmente.
O Brasil tende a atrair a população mais pobre para compor a sua força policial. Então, basicamente, você tem pobre oprimindo pobre,
mas, de maneira geral, são pessoas com as quais a sociedade não se importa.
A academia tem dito que a melhor política de drogas é não ter política criminal de drogas. Nós precisamos de políticas de saúde para tratar problemas de uso de drogas, da mesma forma como lidamos com tabaco, álcool e outras substâncias que causam dependência.
A proibição prejudica completamente a economia dos países, porque toma esses produtos e os torna mais valiosos que qualquer coisa que as pessoas possam cultivar ou produzir. E os mais afetados são os países produtores.
Quando você observa a história das Américas, do Canadá ao Chile, há uma implicação do passado de escravidão, colonialismo e genocídio da população indígena. Até estarmos dispostos a lidar com isso honestamente, nós iremos sempre desenvolver nossas políticas de justiça criminal, incluindo a política de drogas, em termos raciais e discriminatórios. E uma das coisas que a gente pode fazer para mudar isso é não repetir no século XXI a história dos séculos XIX e XX.
Márcio dos Santos Nepomuceno, mais conhecido como Marcinho VP, é um condenado brasileiro que encontra-se recolhido na penitenciária federal de Catanduvas, no Paraná. Produto direto da famigerada “guerra às drogas”. Se há uma guerra tem que haver os dois lados. De um lado, os agentes do proibicionismo, do outro, aqueles comerciantes que vivem do lucro da venda de determinado produto. Qual a explicação de estar liberado o álcool que mata e causa mais problemas de saúde, segundo dados do SUS, e termos drogas menos letais proibidas? Esse é o grande debate a ser posto na sociedade.
Marcinho VP estava preso numa penitenciária do Rio de Janeiro e foi transferido para um presídio de segurança máxima em Catanduva, no Paraná, cidade a aproximadamente 60 km de Cascavel, por conta de ataques no Rio de Janeiro supostamente comandados por ele e traficantes de drogas. Ao ser transferido para longe de seus familiares, gerou-se a ilegalidade da prisão cujo objetivo maior seria sua reintegração social e familiar.
Marcinho VP foi preso no ano de 1996, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, por policiais comandados pelo detetive de polícia José Carlos Guimarães, da extinta METROPOL V da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Depois da nova onda de ataques no Rio de Janeiro, iniciada no dia 20 de novembro de 2010, Marcinho VP foi transferido novamente de presídio, desta vez para Porto Velho, em Rondônia, juntamente juntamente com o traficante conhecido por Elias Maluco, e aí nasceu o escritor que, aproveitando o fato de ter sido preso em plena “guerra às drogas”, autodenomina-se “Prisioneiro de Guerra”. Tornar-se um escritor é um sinal de sua recuperação, mas seu texto é tomado por uma grande indignação, a mesma que é narrada nos grandes romances que contam como os homens excluem e punem seus semelhantes sem discutir suas angústias.
O juiz João Marcos Buch, de Santa Catarina, é um exemplo de magistrado que dialoga e dá voz aos que estão nos cárceres e já fez publicar vários livros contando essa rica experiência com os encarcerados.
Uma das obras nos traz oito relatos de apenados privados de suas liberdades em uma unidade prisional de Joinville, Santa Catarina, relatos estes que são frutos de atividades de cunho literário que trouxeram textos ficcionais já publicados em outros livros pela mesma editora.
Em meio às atividades, que proporcionaram escritos, publicações e lançamentos de livros na própria unidade, foi proposto pelo editor
Alex Giostri e pelo Dr. João Marcos Buch, Juiz Corregedor do Complexo Prisional da comarca do município, que os mesmos participantes encarcerados apresentassem voluntariamente seus relatos pessoais a fim de que pudéssemos levar cada relato a um juiz convidado e que cada juiz fizesse um texto próprio e independente a partir do relato que leu, sempre pensando as questões do sistema penal como um todo, nas questões do desencarceramento e, sobretudo, nas questões sociais, educacionais e de estruturas familiares, que são pilares responsáveis evidentes e escancarados do atual quadro dos aproximados 700 mil encarcerados em regime fechado no Brasil.
Feito isso, surgiu a obra Prisioneiros e Juízes – Relatos do Cárcere. Muitas pessoas têm o conceito de que a Justiça, com inicial maiúscula, serve para punir os indivíduos por seus malfeitos, a fim de que aprendam e não repitam os delitos. Além do encarceramento, que em si já é algo bastante punitivo, há pouca preocupação com as condições mais mínimas de vida dos apenados e presos, já que supostamente representam a escória da sociedade e ameaçam-na com sua presença. Não é a visão do juiz João Marcos Buch, que elegeu as crônicas reunidas neste livro, que as escreveu com base em reflexões surgidas de seu dia a dia como juiz. Um livro para todos que se interessam pela busca de um mundo com Estado e Justiça preocupando-se não apenas em punir, mas em fazer por onde punir seja a última alternativa.
Neste livro de crônicas, o humano juiz da Execução Penal João Marcos Buch traz ao leitor o mais profundo de todos, uma vez que os textos aqui apresentados exalam um experiente e sensato olhar sobre a vida dentro e fora das prisões. As crônicas são tratados de vida, são aulas de Direito, são ponderações e reflexões acerca de um sistema prisional doente e prestes a ruir cada vez mais. Nesta obra, Buch consegue apresentar olhares de todos os lados. Há nos textos o seu olhar enquanto cidadão brasileiro, magistrado, aluno de Direito, autor de livro. Mas há também – e isso é um dos maiores méritos desta obra – o olhar de todos os envolvidos nesta teia humana ligada à justiça e às prisões. Falam os apenados, os familiares, os códigos e leis, falam outros magistrados. Fala o espelho.
Os historiadores contam que a primeira parte do livro Dom Quixote foi escrita enquanto Miguel de Cervantes estava preso em Argamasilla del Alba, entre 1601 e 1603. Graciliano Ramos escreveu Memórias do Cárcere no período em que ficou preso entre 1936 e 1937, durante a ditadura de Getúlio Vargas. Oscar Wilde escreveu durante sua prisão, por conta de sua opção sexual, o livro De Profundis, uma longa carta escrita e endereçada para seu amor proibido Alfred Douglas, no final do século XIX. São Paulo escreveu 4 das 14 epístolas que compõem o Novo Testamento durante sua prisão. Martin Luther King Jr., Premio Nobel da Paz e um dos maiores defensores dos direitos civis, escreveu, enquanto estava preso na prisão de Birmingham, o mais importante
documento aconselhando os negros norte-americanos que lutassem por igualdade de forma pacífica, buscando os tribunais, e não por meio de manifestações violentas.
O cárcere tem inspirado grandes escritores e suas lições têm ecoado na sociedade ao longo dos séculos, como é o caso do filósofo e cientista Antônio Gramsci, que durante o período em que esteve preso pela ditadura fascista italiana escreveu Cartas do Cárcere e Cadernos do Cárcere, com reflexões filosóficas e científicas da maior grandeza. O Marquês de Sade escreveu Justine, obra clássica do prazer sexual com a dor física, enquanto estava preso nas prisões da Bastilha, em Paris. E Miguel Hernández escreveu Cancioneiro e Romanceiro de Ausências enquanto estava preso, em 1942, aos 31 anos, por se opor à ditadura franquista. E Fidel Castro escreveu, quando estava preso, A História me absolverá.
Finalmente o frade agostiniano espanhol frei Luiz de León escreveu o mais belo exemplar da poesia espanhola enquanto estava preso em Valladolid, entre março de 1572 e dezembro de 1576, denominado De los nombres de Cristo e traduziu o Cantar de los Cantares. Durante a prisão injusta a que foi submetido, escreveu:
“Aquí la envidia y mentira me tuvieron encerrado. Dichoso el humilde estado del sabio que se retira de aqueste mundo malvado, con pobre mesa y casa, en el campo deleitoso, con solo Dios se compasa y a solas su vida pasa, ni envidiado, ni envidioso!”
Nesses momentos difíceis de sua vida, frei Luiz de León, que era filho de um advogado, reclamou e criticou a maneira como o sistema age. Com argumentos sólidos, denunciou o quão lento o processo judicial agiu, bem como a má intenção daqueles que o acusaram. Dizem que nas paredes da masmorra, ele escreveu: “Aqui a inveja e a mentira
me prenderam”. Frei Luiz de León defendia constantemente o direito do homem de ter liberdade, o que foi uma das causas da perseguição que sofreu e da proibição de ensinar as ideias que ele sustentava. Alguns hão de perguntar: o que faz um “desembargador” escrever o prefácio do livro de um condenado que cumpre pena há mais de um quarto de século? Usando as palavras de outro prisioneiro, frei Luiz de León, respondo: só a inveja e a mentira são capazes de inspirar esse mundo mau. Tais pessoas dão aquilo que possuem, ou seja, o mau, porque os que possuem o bem exalam o bem, respiram o bem e transpiram o bem. O mau é a ausência do amor, disse Santo Agostinho.
O Marcio Nepomuceno que escreve é um literato, e não um criminoso. Devemos ouvi-lo e acolher sua mensagem que vem de onde nunca estivemos, mas que algum dia, e mesmo sem motivo, poderemos estar, como muitos já estiveram, vítimas da justiça dos homens. Eu mesmo fui réu de um processo persecutório, invejoso e vingativo que me afastou durante dois anos de minhas atividades judicantes. Esses criminosos estão soltos, armando trapalhadas impunemente, usando a capa e a toga para obter seus interesses pessoais, advogando administrativamente, manipulando decisões judiciais e “comprando” falsos delatores. “Deste mundo mau, com mesa e casa pobres, no campo delicioso, só Deus tem compaixão e só sua vida passa nem invejado nem invejoso.”
siro darlan
No ano de 2019, nasceu um projeto audacioso: uma obra conjunta que objetiva abordar, de forma dogmática e crítica, a execução penal brasileira. Em tom de denúncia, a proposta vai além de comentários aos dispositivos de normas aplicáveis à área do cumprimento de penas, de medidas de segurança e de medidas cautelares. Nas próximas páginas, abordaremos, por inspiração de diversos teóricos, o distanciamento entre as disposições normativas estatuídas na Constituição da República Federativa do Brasil, do Código de Processo Penal, do Código Penal, da Lei de Execução e de tratados e convenções internacionais, e a realidade do sistema penal pátrio. Poderíamos afirmar, de forma antecipada, a existência de um verdadeiro abismo entre o mundo deontológico, assim considerado como a esfera do dever ser, e o cenário ontológico, o que de fato acontece.
Nesse panorama, apresentamos a presente obra, que, não por outra razão, foi intitulada como Execução Banal Comentada, em forte alusão à banalização do mal, tão bem desenhado nas palavras de Hannah Arendt, bem como às obscuras finalidades da execução penal pátria. Assim, nosso contexto teórico é constituído de uma verdadeira síntese da falibilidade da aplicação da lei penal, em um panorama de afronta às normas relativas aos direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição Federal de 1988, em virtude de ações e omissões ilegítimas protagonizadas pelo aparato de controle formal estatal e pela sociedade.
Vivemos sob a égide de um estado democrático de direito, todavia, os direitos fundamentais são constantemente violados, em uma evidente relação entre oprimidos e opressores. A relativização de direitos, tomando por argumento o fato de inexistir direito absoluto, transforma em regra um estado de penitência, polarizando a estrutura social que declara a existência de inimigos que devem ser combatidos, retirando-lhes, portanto, o status de cidadão.
Ao longo da história, não apenas em território nacional, situações de ameaça, de crises e de necessidade de maior rigidez no âmbito da
segurança pública, em virtude de um suposto perigo iminente, sempre foram criadas por estruturas estatais, como forma de legitimar o autoritarismo que, para além de outros males, eterniza medidas excepcionais, fundamentadas em argumentos ad terrorem.
No Brasil, o Golpe Militar de 1964, que inaugurou um estado de exceção que perdurou por longos vinte e um anos, pode ser considerado como um exemplo: a alegação de necessidade de proteção do povo em face da ameaça comunista foi capaz de fundamentar a prática de uma verdadeira barbárie.
Na história recente, outras medidas excepcionais foram implementadas, como a criação de estabelecimentos penais federais de segurança máxima, alicerçada na fracassada política “lei e ordem”. Estruturados, inicialmente, para situações temporárias, transformaram-se em modelo definitivo de regime de cumprimento de pena, ao arrepio das limitações constitucionais elevadas ao nível de cláusulas pétreas.
O desvirtuamento do espírito da lei 11.671/2008 conduziu dezenas de pessoas presas a mais de uma década de permanência em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, o que comprova a inversão de uma exceção em regra1, mesmo não existindo fato novo que justifique a perpetuação da medida, salvo a utilização de uma abstração jurídica resumida em “interesse da segurança pública”.
No Estados Unidos, em meio à crise de segurança nacional que se instaurou após os ataques terroristas às Torres Gêmeas do World Trade Center, no dia 11 de setembro de 2001, o então presidente George W. Bush, adepto às políticas criminais de maior relativização de direitos, viu sua aprovação subir de 53% para cerca de 90%, considerada como a maior aprovação que o Gallup já registrou. Diante desse cenário, Bush aproveitou para, sem que sofresse qualquer espécie de controle, implementar medidas excepcionais e inconstitucionais, permitindo, inclusive, a prática de tortura. Foi nesse momento que nasceu a Lei Patriótica, assinada pelo presidente Bush em outubro de 2001.
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