1_9786559085422

Page 1

Caíque Tomaz Leite da Silva

A FrAgmentAção do estAdo

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de direitos humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de direitos humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S579f v 1

Silva, Caíque Tomaz Leite da A fragmentação do estado [recurso eletrônico] / Caíque Tomaz Leite da Silva1 ed - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023 recurso digital ; 1 MB (Sincretismo constitucional ; 1)

Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5908-542-2 (recurso eletrônico)

1 Estado 2 Soberania 3 Estado de direito 4 Razão de Estado 5 Justiça de transição 6 Direitos humanos 7 Livros eletrônicos I Título II Série

CDD: 320 15

23-83328

CDU: 321 011

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439 05/04/2023 06/04/2023

DOI: 10.53071/boo-2023-04-13-64382f97ee589

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n° 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com

tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/ Impresso

no Brasil / Printed in Brazil

Caíque Tomaz Leite da Silva

A FrAgmentAção do estAdo

COLEÇÃO SINCRETISMO CONSTITUCIONAL

Volume I

AgrAdecimentos

Escreve-se, no tempo em que se vive. Aprende-se, no tempo em que se escreve. Ensina-se, no tempo em que se aprende. Vive-se, de aprender e de ensinar, para ampliar o conhecimento e para ampliar o amor – como meus pais, Vanda Souza Tomaz da Silva e Mário Luiz Leite da Silva, e o casal Cerca da Silva, José Alberto (in memoriam) e Maria Emília.

Ao Mário Frota, com uma vivacidade que torna cada uma de suas lições uma expressão do seu justo modo de ser, à Sara Leitão Moreira e o Victor Ribas Pereira, companheiros de partilha de medos e dúvidas e ouvintes omnipresentes nos seminários de doutoramento, ao João Pedro Serra Mendes Bizarro e o Marcelo de Almeida Ruivo, arguentes exigentes e conselheiros precisos, e ao João Paulo Lenardon, pela seleção e tradução de muitas referências utilizadas no percurso histórico.

Ao Instituto de Direitos Humanos e à Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, aos Professores Mestre Carla de Marcelino Gomes e Doutor Jónatas Eduardo Mendes Machado, ao Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo, e ao Professor Doutor Sérgio

Tibiriça Amaral, pelo constante da minha formação pessoal e profissional (“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermediário”. Mário de Sá Carneiro).

Ao João Pedro Gindro Braz, Thiago Maluf e Ricardo Mustafá Filho, pela multiplicação da minha presença em cada uma das responsabilidades pessoais, profissionais e académicas. O tempo é a medida da alteridade (alteritas).

À Editora Tirant lo Blanch Brasil, que alegremente mantém vívida a tradição e a cultura que resiste à transformação da comunicação jurídica em técnico-profissionalizante, à Aline Gostinski e Analu Brettas, pelo paciente, zeloso e artesanal trabalho editorial.

Por fim, muitos são os jardineiros, embora nem sempre haja flores.

5

ApresentAção dA coletâneA sincretismo constitucionAl

A coletânea, que vive pelo selo da editora Tirant lo Blanch, é resultado de investigação de doutoramento em direito público, iniciada no ano de 2010 e concluída em 2021, com arguição em prova pública no dia 14 de janeiro de 2022, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, resultando em aprovação com distinção. A dissertação, cujo título original é “Sincretismo Constitucional. Fragmentvm Corpvs Ivs Publicvm”, foi apresentada em três partes, que, nesta versão editorial, receberam os seguintes títulos:

“A Fragmentação do Estado”, “A Constitucionalização do Direito Pós-nacional” e “Da Hierarquia à Interconstitucionalidade”, com o propósito de facilitar o acesso e a aderência ao curriculum académico, nas cátedras de direito público, mas preservando-se, na íntegra, o conteúdo original. No mesmo sentido, optou-se pela apresentação espontânea e sistemática da investigação, capitulando-se a exposição teórica, a resposta aos quesitos da qualificação, e os debates por ocasião do júri, retratadores, com maior honestidade, dos seus acertos e desacertos, nos termos subsequentes.

1. Cumprimentos: Muito boa tarde aos Senhores Professores e às Senhoras Professoras. Faço muito gosto e agradeço o tempo destacado das vossas responsabilidades pessoais e académicas para a análise da investigação. Cumprimento ainda os demais presentes nesta sessão pública de arguição. Sem embargo, consulto a Excelentíssima Senhora Professora Doutora Anabela Miranda Rodrigues, Presidente do Júri, sobre a possibilidade de que os meus agradecimentos sejam apresentados ao final do júri, para que o tempo correspondente não seja deduzido daquele conferido à apresentação da tese, nos termos do artigo 74 do Regimento.

2. Sobre as opções metodológicas da investigação: para além dos fragmentos ordenados para a construção da narrativa investigativa, existe um universo de infinitas probabilidades. Assim

6

sendo, o investigador é solipsista e as suas opções podem ser arbitrárias. Por esse motivo, procurou-se atenuar referido risco estabelecendo critérios objetivos: (i) para a seleção das referências bibliográficas: o impacto da publicação por autor e por periódico (número de referências) e a diversidade linguística e cultural. Além disso, procurou-se conferir uma perspectiva intergeracional, em razão da mudança do objeto de referência, de determinadas palavras, devido ao contexto histórico e jurídico-político de sua utilização; (ii) para a identificação de casos comentados: procurou-se antinomias entre os três sistemas normativos do sincretismo constitucional, sem que a identificação de critérios de julgamento mobilizados tenha pressuposto qualquer hierarquização e sem que a norma do caso tenha afirmado qualquer hierarquia peremptória; (iii) por fim, a consolidação do quadro comparativo das construções teóricas para o pluralismo constitucional foi orientada, a princípio, por uma autodefinição dos autores incluídos, não obstante também se tenha deduzido alguma inclusão, em razão do contexto da produção bibliográfica preponderante, analisando-se as fontes normativas do pluralismo constitucional, a relação de preferência entre elas e a realização judicial.

3. Prefácio do volume 1: (i) com efeito, como o sincretismo propõe o abandono da hierarquia como critério ordenador das fontes que compõe o corpus iuris de direito público, o ponto de partida da investigação foi a análise da soberania, enquanto estrutura dogmática que representa essa ordenação hierárquica na ciência jurídico-política. Sem embargo, as consequentes e propostas igualdade fundamental e substituibilidade mútua das fontes (fungibilidade) justificam que as memórias consideradas na evolução histórica do direito público tenham sido aquelas das relações internacionais, mais profícuas na construção de parâmetros de coexistência entre distintos e autónomos sujeitos políticos que a apreensão de uma realidade constitucional, ordenadora de particular fonte de poder político.

(ii) a investigação catalogou diversas referências a parâmetros para as relações públicas internacionais na Antiguidade, no Oriente Médio (2800-700 a.C.), na Grécia (500-338 a.C.) e em Roma (358167 a.C). Em particular, o “equilíbrio de poder” e a “territorialidade”, vinculados a um tratado entre Ramsés II do Egito e Hatusil

7

III dos Hititas, em 1280 a.C. Sem embargo, foi lugar comum na produção literária das alegorias, da política, da filosofia e da religião, no ocidente e no oriente, a referência a parâmetros de conduta no âmbito do direito dos tratados, limitação da conduta de guerra, relações diplomáticas, asilo, cidadania e nacionalidade, federalização, promoção da paz, relações comerciais, arbitragem e boa-fé. Na idade média, o Cristianismo, com a unificação do latim e a atuação do papado na mediação e solução de conflitos, a incorporação do conceito de guerra justa, dos romanos, e a formação das ligas, impulsionadas pelas Cruzadas. Os antecedentes apontam que provavelmente os tratados de Paz de Vestefália sejam um “mito etiológico” ou um “atalho”, para alguns desses parâmetros, particularmente a autonomia territorial e o equilíbrio de poderes.

(iii) a mais antiga referência nominal à soberania é de 1290, do latim supremus (superioridade), preservando-se este significado até o final do século XIX, dentro do Estado (“força absoluta”, “força suprema imaterial” e “irresistibilidade” (Unwiderstehlichkeit) e fora dele (“independência” ou “autonomia”). No início do século XX, e, particularmente, após a Primeira Guerra, o objeto de referência começou a mudar, para designar “responsabilidade”, “serviço público” e “dever de proteção”, associada à reivindicação de uma existência ética (dever-ser). Por sua vez, a globalização gerou uma limitação material, provocada pelas desterritorialização das relações jurídicas e pela fragmentação funcional das competências soberanas, com o surgimento de atores públicos e privados transnacionais que passaram a desenvolver atividade de produção e execução do direito, substituindo-se o monismo pelo pluralismo de fontes (v.g. normas, contratos, códigos de conduta) e de formas de legitimação (v.g. ciência, conhecimento e tecnologia). Por último, a imunidade processual dos Estados, atributo dessa superioridade, tem sido pressionada por precedentes que reivindicam sua adequação a um ético modo de ser e de agir.

4. Prefácio do volume 2: (i) descreve-se um processo de constitucionalização do direito internacional para a proteção da comunidade internacional enquanto bem-jurídico, a partir de fundamentos substantivos qualificados como “erga omnes”, segundo precedentes

8

da CIJ, em matéria de ataque armado, genocídio, autodeterminação dos povos, tratamento dos diplomatas, meio ambiente e direitos fundamentais, como limites ao voluntarismo e unilateralismo da soberania e como tentativa de conter a fragmentação normativa e dos instrumentos de pressão e controlo do tradicional direito internacional, que na sua teoria de fontes não delimita fenómenos empíricos e valores dirigentes da criação e modificação de suas normas, consideradas produto social sem conteúdo normativo particular.

(ii) por sua vez, no âmbito do direito da União, vê-se com maior nitidez um processo de constitucionalização, associado aos princípios da lealdade, do primado, do efeito direto e da competência da competência reivindicada pelo TJUE, e, ainda, pela produção de direito institucional (v.g. tratados, diretivas e regulamentos), democratização transnacional, desestatização e separação de competências, responsabilidade executiva, controlo judicial rígido e pela carta de direitos fundamentais, contribuindo, assim, em termos políticos, institucionais e normativos, para a cosmopolítica constitucionalização do direito internacional.

(iii) como sugestão, a tese propõe: a criação de um órgão de resposta rápida, que dispense o consenso prévio dos Estados (v.g. crise do euro e covid-19); a limitação do direito de opting out sobre problemas erga omnes; um sistema de identificação e gerenciamento de riscos, de orientação técnica (v.g. recursos energéticos, controlo de capitais, gestão da dívida soberana, alterações climáticas), com opção política limitada à deliberar sobre as formas de contenção; e, mecanismos que impeçam a construção de dependências que possam ampliar as instabilidades em momentos de risco.

(iv) legitimação com racionalidade adequada ao contexto político pós-nacional: ênfase na gestão (controlo de contas, transparência, eficiência, tecnicidade, cientificidade e combate à corrupção) e nos resultados (controlo do destino dos recursos, para melhora do bem-estar) e não na origem do poder político, para um conceito de cidadania mais abrangente, além do vínculo jurídico-político nacional, que satisfaça necessidades humanas e minimize os riscos de um mundo globalizado, ampliando as possibilidades de coexistência

9

sustentável e intergeracional. São requisitos para a cidadania cosmopolita, uma justiça: distributiva, intergeracional, administrativa, comparativa e informativa.

5. Prefácio do volume 3: explora-se as pretensões de metanarrativa, do direito internacional e do direito da União, e propõe-se o sincretismo, fundamentado na tolerância:

(i) no direito internacional, normalmente associada ao direito dos tratados (pacta sunt servanda, CVDT, art. 27), à Carta da ONU (art. 103) e ao regime jurídico da responsabilidade internacional dos Estados. Há também versões plurais, que ressaltam a ausência de uma hierarquia de fontes formais ou reivindicam a supremacia material de uma “consciência jurídica universal”, resultante da solidariedade cívica quanto àquilo que choca (v.g. jus cogens, CVDT, CVRC e CEDH); (ii) no direito da União, aplicabilidade e efeito diretos, primado e aplicação preferente, responsabilidade dos Estados, da União e do Conselho de Segurança da ONU.

(iii) como nova ontologia, propõe-se uma abordagem unitária do direito público, sem limites preciso de conteúdo, espaço e tempo, em decorrência da: (a) unidade da consciência jurídica; (b) unidade empírica da evolução histórica; (c) conceção teleológica do indivíduo no direito; (d) comum racionalização do poder. Não obstante, os nomos competidores apresentam curvas de coincidência e não coincidência, preservando autonomia, e mobilidade intersistemática na realização judicativa do direito, que pode pressupor um juízo de constitucionalidade conglobante.

(iv) sem prejuízo, o objeto de referência do sincretismo constituído pela tese, propõe: (a) valor normativo da tolerância na construção dos fundamentos, tendo-se em conta que há uma diferença originária (ambiental, natural e psicossocial) e não uma igualdade originária, no momento de formação de uma comunidade política constitucional, e por isto a dimensão material não é categórica, mas reflexiva no sentido do eu consigo, e dialética no sentido do eu no mundo e do eu com o outro –, o que permite a construção, revisão e assunção dos fundamentos materiais-constitucionais, sem degeneração em opção procedimental ao exercício do poder político; (b)

10

modo (não hierárquico) de interação das fontes constitucionais, sem um combate dogmático que tenha por finalidade a neutralização das divergências, admitindo-se a modificação do nosso constitucional sem abandoná-lo, pois a preferência é circunstancial; (c) ampliação dos participantes do processo de constitucionalização – que passa a ser interconstitucional, interpessoal e interinstitucional desenvolvimento da política, aberto, infindável, público e com mobilidade intersistemática, identificando-se nos problemas, e não nas normas, as características que justifiquem as preferências (v.g. extensão territorial do problema e titularidade dos interesses objeto da relação jurídica).

Assim sendo, a hierarquização dos sistemas constitucionais é prática, normativa, argumentativa e não linear, em razão dos princípios da simetria e substituibilidade mútua das fontes, que passam a dispensar a necessidade de uma renúncia apriorística ou posterior da fonte de julgamento preterida, valorizando-se o diálogo constitucional e concretizando-se sua tolerância normativa.

6. Resposta aos quesitos da qualificação:

6.1 Fundamentação teórica do sincretismo: (i) a proposta do sincretismo constitucional orienta-se por uma compreensão descritiva (empírica) do pluralismo de fontes de produção do direito. As relações jurídicas, outrora desenvolvidas e vinculadas a um contexto normativo, passaram a apresentar características que não possibilitam a subsunção de seus elementos (objeto, sujeitos e matéria) a um particular sistema jurídico, especialmente em razão da desterritorialização dos agentes económicos. No mesmo sentido, a dinamização de interesses jurídicos não compreendidos pela intencionalidade normativa dos sistemas jurídicos tradicionais (v.g. direito esportivo, direito digital), possibilitou uma efetiva autonomia de subsistemas funcionais da sociedade transnacional, na produção e execução do direito. Pontuo esse pressuposto como um fato social apreendido pela razão prática, que não implica um particular juízo de valor ou construção teórica plural. Outrossim, aponta-se literatura de pluralismo das fontes, na França, Alemanha e Portugal, a partir da década de 70, com grande impulso na década de 80; (ii) quanto

11

ao pluralismo constitucional: no vol. 3, a tese analisa diversas teorias, descrevendo as principais características de cada uma e avaliando as suas virtudes e lacunas, consolidadas no quadro comparativo. Sem prejuízo, também foram analisadas as (im) precisões semânticas utilizadas para sua definição; (iii) por sua vez, a expressão “sincretismo constitucional” não possui referência teórica anterior, sendo que a utilizo em razão da sua etimologia e semântica apontarem para as características que a tese propõe para o pluralismo constitucional:

(a) valor normativo da tolerância na construção dos fundamentos;

(b) modo não hierárquico de interação das normas constitucionais;

(c) ampliação dos participantes do processo de constitucionalização e o modo de interação entre eles, conceituando-o como internormativo, interpessoal e interinstitucional desenvolvimento da política, aberto, infindável, público e com mobilidade intersistemática.

6.2 Fundamentação ético-jurídica

do

sincretismo:

a filosofia política propõe a incorporação de um dever-ser à ciência jurídico-política (ao constitucionalismo), como parte de seu processo de fundamentação, limites e de orientação da conduta política. No pensamento iluminista de suporte às nossas tradições constitucionais liberais, vê-se diversas tentativas de justificar e orientar a coisa certa a fazer. No utilitarismo, com a dor e o prazer, segundo um critério objetivo e universal, depois com o afastamento das comparações interpessoais de utilidade; no contratualismo, com a vida, liberdade, propriedade e o princípio do consentimento; no anti-iluminismo, com a preservação da tradição ou conservadorismo; no neocontratualismo, com as teorias procedimentais de justiça e aquelas que propõem imperativos categóricos. O que há de comum em todas elas: (a) a filosofia política procura um dever-ser que oriente o nosso modo de conviver. O conviver é pressuposto da necessidade da ciência jurídico-política; (b) penso que essas teorias de filosofia política se orientam por algum princípio da igualdade – na dor e no prazer, no consentimento, na tradição, no procedimento, nos imperativos categóricos –e, assim, apresentam grande dificuldade de justificar e admitir que os resultados diferentes podem também contribuir para a elevação geral dos níveis de renda e bem-estar. À vista disso, o sincretismo propõe a atribuição de sentido normativo à tolerân-

12

cia, pressupondo que: (a) há uma diferença originária (ambiental, natural e psicossocial) e não uma igualdade originária, no momento de constituição de uma comunidade política constitucional; (b) a dimensão material não é categórica, mas reflexiva, no sentido do eu consigo, e dialética, no sentido do eu com/no mundo e do eu com o outro –, o que permite a construção, revisão e assunção dos fundamentos materiais-constitucionais.

6.3 Sincretismo, direitos fundamentais e Estado de direito: (i) penso que o sincretismo contribui para a consolidação de uma responsabilidade constitucional de preservação dos direitos fundamentais. No âmbito normativo, proporciona um corpus iuris de instrumentos de diferentes sistemas, cujas lacunas podem ser compensadas mutuamente. No âmbito judicativo, o juízo de constitucionalidade conglobante possibilita a exequibilidade, suprindo, a este respeito, a ausência de um controlo judicativo do direito internacional global; (ii) Estado de direito: é a razão prática que provoca a teoria do Estado, apresentando-lhe problemas organicamente constitucionais, em contextos políticos de maior amplitude. Com efeito, a ciência jurídico-política precisa apresentar resposta às novas exigências das relações sociais e jurídicas, que denunciam uma interdependência material para a solução de problemas políticos, como a escassez de recursos energéticos, a criminalidade transnacional, as pandemias, o desabastecimento da cadeia de suprimentos, as prioridades no acesso a insumos da indústria farmacêutica e a solução de conflitos armados, reduzindo o estatuto do Estado, com seu poder, influência e capacidade material, nos procedimentos jurídico-políticos de solução dos problemas maiores que os Estados. Sem embargo, o sincretismo constitucional não é adversário do Estado de direito: antes, compensa suas deficiências, com a ampliação da capacidade de resposta normativa e material, e com a institucionalização de instância crítica à autolimitação política nos Estados constitucionais. Assim, tem-se o fortalecimento da envergadura dos Estados em face dos problemas pós-nacionais que impactam sobre os níveis de bem-estar social, e, igualmente, uma disciplina de direito mais adequada à nova dinâmica de sujeitos de direito e políticos globais.

13

6.4 Sincretismo e interpretação constitucional (STF, tribunais), segurança jurídica e uniformidade da jurisprudência: Penso que a substituição do princípio hierárquico pelo princípio da simetria das fontes constitucionais contribui para a realização judicativa, pois, ao ampliar os subsídios materiais/normativos dos critérios de julgamento, confere mais segurança jurídica e previsibilidade na supressão de lacunas (substitui uma solipsista interpretação, por uma objetiva fonte) (v.g. Casos Ibrahim Alo e Amira Osso – diretiva não dispunha sobre o direito de residência). No caso de antinomias, não se está a propor uma preferência randômica, mas orientada por critérios objetivos identificados no problema, como a extensão territorial dos efeitos e os sujeitos que participam da relação jurídica decidenda (v.g. Casos Sahara e Gibraltar). Ressalta-se que a mobilidade dos sistemas não implica em arbitrariedade, se são estabelecidos critérios objetivos a serem verificados nos problemas, para identificar as preferências aplicativas circunstanciais. Por sua vez, a uniformidade da jurisprudência pressupõe a adoção de critérios para a solução das lacunas e antinomias, e não decisões iguais: as soluções só podem ser iguais, se os casos forem iguais – isto é – não se pode dizer que todas as antinomias serão solucionadas com a preferência de uma fonte em particular, se os problemas apresentam características diferentes, pois é querer que a norma do caso esteja concluída antes do caso. Isto é arbitrário, porque não tem em conta a distinção e singularidade dos problemas. Veja-se, a propósito, a atuação pretoriana na solução de conflitos entre princípios.

6.5 Sincretismo, constitucionalismo global e constitucionalismo nacional: (i) o sincretismo constitucional mantém a sobreposição entre direito e política, observando que o espaço cívico de sua ocorrência não é apenas aquele do Estado-nação, cuja participação no processo de produção do direito público transita do monopólio, no constitucionalismo liberal, passa pelo protagonismo, no direito internacional clássico, e parece incorporar um estatuto de sujeito, disperso entre outros, do direito público institucionalizado no âmbito comunitário e internacional, onde a atividade política de gestão de necessidades e interesses transfronteiriços e o estabelecimento de prioridades são preponderantes e normativamente subor-

14

dinadas (v.g. União Europeia e ONU). Desse modo, não se propõe a substituição do constitucionalismo nacional por outra teoria da constituição, mas a sua coexistência com regimes jurídicos que se desenvolveram em simetria, como projeção das suas exigências sociológicas, filosóficas e normativas, para espaços públicos pós-nacionais. Veja-se, nesse sentido, o valor normativo que o sincretismo atribui à tolerância, antevendo a necessidade de acomodação das diferenças na construção dos fundamentos materiais constitucionais, estimuladas pela coexistência de regimes jurídicos; igualmente, a passagem do critério hierárquico para a igualdade e fungibilidade das fontes do corpus iuris de direito público; e o controlo de constitucionalidade conglobante, exigente da compatibilidade normativa com o constitucionalismo nacional, comunitário e internacional, se concomitantemente incidentes sobre os mesmos problemas. Por fim, como apontei alhures, a sinergia pode contribuir para aprimorar responsabilidades do constitucionalismo nacional (v.g. na solução de problemas transnacionais; na instituição de parâmetros normativos e judiciais de proteção de direitos; com a incorporação de métodos de legitimação pelos meios e resultados; nas fontes objetivas de critérios de julgamento para situações de lacunas); (ii) quanto ao constitucionalismo global, anoto que a investigação não identificou a utilização desta expressão com contornos teóricos objetivos e delimitados, quanto aos instrumentos normativos que o compõe, a relação de preferência entre eles e a sua realização judicial. Por conseguinte, considerando esses três aspetos, catalogou-se diferentes construções teóricas que incorporam alguma aspiração de regulamentação pós-nacional em linguagem constitucional, sumarizando as diferenças no quadro comparativo das construções teóricas constitucionais (v.g. constitucionalismo global procedimentalista; constitucionalismo multinível; direito administrativo global; constitucionalismo transnacional; constitucionalismo supranacional). Sem embargo, aparentemente, o objeto de referência originário da expressão “constitucionalismo global”, incorpora alguma tentativa de ordenação hierárquica, na ciência jurídico-política, a partir de fonte externa, normativa ou axiológica, de concretização descendente e força matriz unívoca. O sincretismo, por sua vez, pressupõe a pluralidade de

15

fontes, sem hierarquia entre elas, e com preferência normativa estabelecida a partir de características dos problemas, e não das normas.

7. Apreciação da Tese de Doutoramento do Mestre Caíque Tomaz Leite da Silva, intitulada «Sincretismo Constitucional. Fragmentvm Corpvs Ivs Publicvm». Paula Veiga. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Começo esta alocução, cumprimentando a Senhora Presidente do Júri, em representação do Magnífico Reitor, Senhora Doutora Anabela Miranda Rodrigues. Dirijo-me, depois, à Professora Doutora Alessandra Silveira e ao Professor Doutor Ulisses Cortês, ambos em teleconferência (sinal dos tempos…), dando-lhes as boas-vindas ao Colégio da Trindade da Universidade de Coimbra. Cumprimento, igualmente, os meus queridos Colegas e Amigos, Senhores Doutores Jónatas

Machado, Ana Gaudêncio e António Malheiro de Magalhães. Permitam-me, ainda, um cumprimento a todas as pessoas que presenciam este ato solene. Dirijo-me, agora, ao candidato, Mestre Caíque Tomaz Leite da Silva, dizendo-lhe que é com gosto que percebo a sua preocupação em pensar a ordem jurídica em moldes diferentes daqueles a que a teoria clássica nos habituou, sobretudo depois da recente decisão do Tribunal Constitucional polaco, em torno da questão do primado do direito da União Europeia. O candidato apresenta uma tese sobre um tema muitíssimo atual, tentando efetuar um trabalho também muitíssimo necessário. Posso adiantar, desde já, que se trata de uma análise que revela uma investigação séria, dotada de um esforço de reflexão e teorização, convocando numerosos e importantes autores, em variados idiomas, bem como abundante jurisprudência, que enriqueceram a elaboração da tese, sem prejuízo de aspetos menos bem conseguidos, como se depreenderá das palavras que se seguem. Caíque Tomaz Leite da Silva é Professor no Brasil, nomeadamente no Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente, na Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil e na Pós-Graduação do Centro Universitário Unitoledo de Araçatuba. Do seu currículo destaco, ainda, as suas ligações aos direitos humanos, designadamente através da participação na Inter American Human Rights Moot Court Competition e na frequência da Pós-Graduação em Direitos Humanos pelo

16

Centro de Direitos Humanos do Ius Gentium Conimbrigae, aqui junto de nós. Apresenta-se, agora, a provas públicas para a obtenção do grau de Doutor, com uma tese intitulada «Sincretismo Constitucional. Fragmentvm Corpvs Ivs Publicvm», composta por 575 páginas de texto e 72 de bibliografia. A nossa arguição terá dois momentos: apreciação formal (primeiro momento) e apreciação substantiva (segundo momento).

7.1 Apreciação formal (primeiro momento): O roteiro da tese é simples e claro: parte I, diagnóstico da situação; parte II, fenómenos de constitucionalização do direito internacional e do direito da União Europeia; parte III, de acordo com a nova gramática identificada, qual o futuro destes ramos do direito nas suas interações com os sistemas jurídicos. No essencial, trata-se de saber como pode o constitucionalismo (nacional, europeu e global) facilitar essas interações. Vamos, pois, ver se há, ou não há, sincretismo, como o candidato nos propõe. É uma tarefa ambiciosa, essa. Mas este trabalho possui o que o diploma relativo a graus de ensino superior dispõe, ou seja, tem (e cito) «um conjunto significativo de trabalhos de investigação original que [contribui] para o alargamento das fronteiras do conhecimento» (fim de citação). Em primeiro lugar, uma tese que povoa o direito internacional, o direito da União Europeia e o direito constitucional, como é o caso desta, denota que o candidato tem uma visão integrada de todo o sistema jurídico. Depois, o título é bem adequado - «Sincretismo Constitucional. Fragmentvm Corpvs Ivs Publicvm». Remete-nos para o Direito Público em geral, abordando, como já dissemos, direito internacional, direito da União Europeia e direito constitucional. Mostra-se, igualmente, bem escrita e de leitura agradável. A linguagem é usada de forma culta, embora, por vezes, consideremos demasiado o hermetismo de algumas passagens. Por outro lado, devemos também assinalar que sentimos falta de um conjunto de conclusões no final de cada parte, conclusões essas que poderiam auxiliar o leitor e tornar as ideias expendidas mais percetíveis.

7.2 Críticas substantivas (segundo momento): A principal ideia do trabalho é a inter-normatividade, e a sua promoção, nomeadamente através da forma como as várias jurisprudências se vêm

17

confrontadas com a necessidade de fundamentar as suas decisões «em diálogo» com outras decisões. Mas teríamos visto com bons olhos que o candidato não tivesse assumido o constitucionalismo global como uma inevitabilidade, ou seja, tivesse preferido equacionar se este será o caminho. Com efeito, o Mestre Caíque Tomaz quase esquece a doutrina que contesta a opção metodológica do constitucionalismo global. Também não se questiona sobre quais serão os valores sociais em que se deve basear essa opção. É que a uma opção pode subjazer valoração social diversa. Como bem sabe, o mundo real mostra que o grau de universalização almejado pelas cartas, declarações, tratados e pactos não ganhou os contornos desejáveis. Na minha visão, esses valores serão, necessariamente, o ideal transformativo do princípio da igualdade na diversidade (com efeito, diálogo rima com reconhecimento da diversidade), mas são, também, a justiça social e a hoje tão necessária justiça ecológica. Outra deficiência, ainda relativamente a este tópico, reside no facto de o Mestre Caíque Tomaz não se questionar sobre as reais possibilidades de convergência dos discursos entre os Estados. Por outras palavras: o candidato não acentua suficientemente a inevitável rivalidade ou conflito entre Estados, quase que parecendo acreditar num ideal «diálogo de soberanias», como escreve, na p. 577, em sede de conclusões. Daí que tudo somado pudesse, e devesse ter-se questionado sobre a opção do constitucionalismo global, não a assumindo, como o fez, como uma inevitabilidade.

Por outro lado, o trabalho assenta na ideia de diálogo, é certo, mas esse diálogo foca-se em demasia ao âmbito jurisprudencial, ou, por outras palavras, num diálogo entre juízes. Com efeito, ainda que tente apresentar a sua tese de sincretismo constitucional em termos mais amplos, a verdade é que, a pp. 503 e ss., escreve, e cito: «Como alternativa à jurisdição global de direitos humanos, o sincretismo constitucional impõe aos órgãos judiciários da UE e nacionais uma responsabilidade complementar relativa àquela de controlo judicial dos instrumentos normativos de seus respetivos sistemas jurídicos, ao credenciá-los como órgãos jurisdicionais de tutela do direito internacional dos direitos humanos. Essa responsabilidade é um problema institucional do poder judiciário e não um problema jurídi-

18

co-político e, portanto, constitucional» (fim de citação). O que lhe pergunto é, será que a responsabilidade no cumprimento do direito dos direitos humanos é só uma responsabilidade do poder judicial, como diz nesta sua afirmação? Então não é uma responsabilidade do poder jurídico-político no seu todo? O que, no fundo, lhe estou a dizer é que me parece que vê o fenómeno de constitucionalização do direito internacional mais em termos jurisprudenciais do que em moldes institucionais ou normativos. Será assim?

A esta questão anda atrelada uma outra: a excessiva confiança que o candidato parece devotar à jurisdição esconde, ou não, uma desconfiança no funcionamento do poder político nas democracias contemporâneas? É que essa é uma questão muitíssimo pertinente, porquanto o sucesso da expansão dos órgãos jurisdicionais (como se tem verificado nos últimos anos, e que tem sido largamente aplaudido) pode obscurecer experiências não democráticas, associadas a fenómenos populistas, além de poder habilitar os juízes a fazerem política. Por isso, lhe pergunto novamente: a excessiva confiança que parece devotar à jurisdição esconde uma desconfiança no funcionamento do poder político?

A pp. 160 e ss., a propósito da «Regulamentação normativa autónoma dos poderes privados», o Mestre Caíque Tomaz analisa o que apelida de «Lex Electronica», análise que, de resto, parece assumir importância para a construção da sua tese, uma vez que ela é um dos elementos que volta a convocar em sede de conclusões (vide p. 574). Resumindo, recordarei que, para o candidato, a internet é um subsistema de ação social que goza de autonomia normativa. Relativamente a este tema peço-lhe que se foque nas principais mutações operadas pela digitalização em vários pilares (designadamente, no pilar dos direitos, no pilar institucional e no pilar da legitimidade). Considera que é possível avançarmos neste «subsistema» (estou a adotar a sua designação) apenas numa lógica de autorregulação, como parece defender? Se assim é, o que nos tem a dizer sobre a compatibilidade entre o modelo que nos apresenta nesta tese (no trabalho em geral) e o facto de os Estados reivindicarem o direito de controlar as suas infraestruturas e fluxos de dados? Não será essa uma nova manifestação de soberania (a soberania digital)? É que,

19

como sabe, alguns países já têm avançado com a ideia de criação de uma internet nacional independente, que pode vir a favorecer a fragmentação do direito, novamente…

Na p. 445, alude o candidato ao modelo proposto por David Held de «Constitucionalismo global de suporte à autonomia democrática», referindo, nas páginas seguintes, nomeadamente (e cito) o «declínio de instrumentos políticos localizados e do controlo de fronteiras» e «a expansão de forças e interações transnacionais que restringem a influência dos governos» (fim de citação). Peço-lhe que olhe para o que sucedeu nos últimos dois anos…e que reflita se houve, ou não, uma exposição das desigualdades e das debilidades. Por outras palavras, pergunto-lhe se a pandemia não veio propiciar que o vácuo que ainda sobrevive nas relações internacionais se acentuasse, e que a velha soberania renascesse, estabelecendo relações desiguais entre países desiguais. É que é indiscutível o que eu apelidaria de nacionalismo vacinal, a par da inexistência de uma solidariedade global…

Como vê, temos aqui já dois fenómenos – digitalização e pandemia – que fizeram ressurgir aspirações soberanas e que podem pôr em causa a construção do seu trabalho na parte I.

A partir das pp. 494 ss., acentua-se a ideia de organização dos ordenamentos de múltiplos espaços num espaço único de tridimensionalidade do direito – justamente, o que o candidato apelida de constitucionalismo sincrético. Parece, pois, considerar a existência de uma unidade material na realização do direito, aos níveis nacional, europeu e internacional. O que lhe pergunto é se acha que têm todos a mesma espessura? É que não ficou claro para mim quais seriam, no quadro do direito formal, os critérios de objetivação das relações de primazia em cada caso.

Continuando na sua proposta de «sincretismo constitucional», nomeadamente atendendo à tabela apresentada na p. 562 ss., que aplaudimos, refere que, ao contrário do seu Orientador, Prof. Doutor Jónatas Machado, e do Mestre deste, Prof. Doutor Gomes

Canotilho, a sua proposta: (e cito) «Mantém a sobreposição entre direito e política como objeto do direito constitucional» (fim de cita-

20

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
1_9786559085422 by Editorial Tirant Lo Blanch - Issuu