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Vinicios Batista do Valle

Colaboração Premiada em FaCe dos direitos Fundamentais

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduardo Ferrer maC-GreGor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil luis lóPez Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen m. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA tomás s. vives antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

V273 Valle, Vinicios Batista do Colaboração premiada em face dos direitos fundamentais [livro eletrônico] / Vinicios Batista do Valle; prefácio Nereu José Giacomolli. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.

1Kb; livro digital

ISBN: 978-65-5908-595-8

1. Persecução penal. 2. Inquérito policial. 3. Direitos fundamentais. 4. Colaboração premiada. I. Título.

CDU: 343.148

Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

DOI: 10.53071/boo-2023-06-22-6494c249e9c7c

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Vinicios Batista do Valle

Colaboração Premiada em FaCe dos direitos Fundamentais

aGradeCimentos

Aos colegas policiais civis, especialmente aqueles em que tive o privilégio de trabalhar nas árduas investigações criminais. Aos meus familiares (cariocas e gaúchos) por todos os estímulos, compreensões e apoios à obra. À minha esposa, pelo companheirismo nesta jornada da vida. Ao meu irmão, pela parceria incondicional. Ao Gustavo e Lívia, por todas inspirações, forças, ensinamentos e alegrias que me proporcionam diariamente. São tudo para o papai! Eternamente grato meus amados filhos. Ao meu padrinho (in memoriam) por seus exemplos. À minha mãe (in memoriam) por todas as lições, principalmente por sua dedicação, honestidade, coragem e educação. Símbolo de garra e inteligência diante das propostas pedagógicas apresentadas pela vida. Linda mãe, te amo e feliz pelos laços eternos. Muita luz e paz!

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A necessidade para o homem de viver em sociedade ocasiona-lhe obrigações particulares? Sim, e a primeira de todas é a de respeitar o direito dos seus semelhantes. Aquele que respeitar esses direitos será sempre justo. (...)

A vida social confere direitos e impõe deveres recíprocos.”

(O Livro do Espíritos – Alan Kardec)

PreFáCio

Prefaciar um livro é tarefa gratificante e, ao mesmo tempo, constitui-se em labor de alta responsabilidade. Primeiramente, se faz necessário ler a obra e pensar sobre ela, ademais de situar a temática e sua delimitação na ordem jurídica doméstica e supranacional. Não há uma orientação metodológica na elaboração de um prefácio, como existe em um projeto de pesquisa ou na redação de um artigo, para exemplificar. Entretanto, quando se conhece o autor e, principalmente seu trabalho, indispensável é dizer sobre. Competência, seriedade e alta responsabilidade no desempenho da função de investigar são algumas das tantas características do Delegado de Polícia Vinicios do Valle. E isso também se reflete no que escreve, na medida em que no momento em que escrevemos, vamos nos desvendando por entre as linhas, parágrafos, capítulos e texto integral.

O autor transcende a sua atividade técnica-investigativa e vai além. Utiliza o rico manancial fático da práxis investigatória e, com base nessa base empírica, de forma metodológica, submete os achados ao tensionamento da normatividade jurídica. E o faz com maestria, de modo que o texto propicia um rico diálogo do fato com a legislação ordinária, constitucional e convencional. Disso, é que emana a norma a incidir em cada caso concretizado, o caso penal.

O tema da colaboração premiada, na presente obra, de forma inédita, também por sua completude, é delimitado em face dos direitos fundamentais. O Professor Vinicios do Valle, num primeiro momento, analisa os direitos e os deveres do colaborador: proteção do colaborador; nemo tenetur se detegere; presunção de inocência; obrigatoriedade da defesa técnica e do acesso aos autos; fundamentação das decisões; acesso ao duplo pronunciamento jurisdicional; desfazimento do negócio jurídico processual; sigilo, direito subjetivo ao acordo; proteção da imagem e do colaborador enquanto detido. Em um segundo momento, a obra enfoca os direitos do sujeito delatado: direito à última palavra; acesso aos autos da investigação; impugnação do acordo; afastamento do sigilo e identificação dos co-

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laboradores: condenação com base na delação. Não descura o livro do problemático tema da colaboração cruzada, da cooperação institucional e da instrumentalidade das formas no acordo entabulado.

A colaboração premiada constitui-se em espécie de direito premial, um negócio jurídico processual sui generis, tendo por objeto uma metodologia investigativa de busca de elementos incriminatórios, mediante a colaboração do suspeito ou do investigado, quem, via de regra, incrimina terceiros (art. 3º-A, Lei 12.850/2013), diferentemente dos acordos sobre a pena (transação penal) e acerca do processo (suspensão condicional do processo), disciplinados na Lei 9.099/95, e do acordo de não persecução penal introduzido pela Lei 13.964/2019. Estes são atos de disposição formal e material, nos quais o objeto do acordo (prática de ilícito penal) não abarca terceiros, em face da impossibilidade de produção de efeitos incriminadores (intransmissibilidade da pena/responsabilidade penal individual – art.º, XLV, CF). Embora a colaboração também possa produzir efeitos penais, é instituto eminentemente instrumental.

A colaboração poderá evitar o ilícito (colaboração preventiva), desvendá-lo ou incriminar outros agentes (colaboração incriminatória ou repressiva). Em ambos os casos a colaboração possui como requisito o oferecimento de informações que possam confirmar o teor das declarações. Essas informações precisam, no mínimo, possibilitar a obtenção de provas. Vale dizer, a colaboração não é prova ou meio de prova e, por isso, as declarações dos delatores não servem, por si só, de suporte ao recebimento da denúncia, decretação de medidas cautelares ou condenações (art. 4º, § 16, I a III, Lei 12.850/2013).

Na última década passamos por um giro negocial no processo penal brasileiro. O incremento dos prêmios aos suspeitos e aos acusados de participarem da criminalidade inteligente (mafiosa, organizada, terrorista), em suas várias modalidades – confissão, informações, indicação de autores e partícipes, inclusive de provas -, também repercutiu na investigação criminal brasileira.

Além das críticas acerca da corrupção moral e da descaracterização do ser humano, garantias constitucionais e convencionais

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devem ser preservadas, na perspectiva dos direitos fundamentais, de modo a manter o estado de direito.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que, na perspectiva da estratégia defensiva, do exercício da ampla defesa, diminui ou evita o processo, a punição, a delação também atinge direitos e garantias de outros sujeitos. Sendo assim, não há que se limitar a compreensão ao conceito de limite de incidência do ius puniendi, situação em que deveria haver aplicação às hipóteses das demais leis, mas também à ampliação da incidência da potestade punitiva (aos demais agentes). Em razão dessa dupla face da delação, preponderam os princípios da especialidade e da legalidade.

Os acordos de delação premiada, na fase investigatória, onde soem ocorrer, aumentam a problemática, não só em razão da falta de observância da legalidade penal e processual, mas do cumprimento do devido processo constitucional. Isso porque o regime de cumprimento de pena, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, o reconhecimento de causas especiais de diminuição de pena e a declaração de isenção de responsabilidade são provimentos típicos do Estado-Jurisdição e não do Estado-Investigador ou do Estado-Acusador. O controle da legalidade da investigação, pelo juiz de garantias, diminuiria o atrito constitucional. O cumprimento do devido processo constitucional, isto é, de um processo justo, com todas as garantias, exige a normatização clara e objetiva do procedimento da delação premiada, tanto na fase preliminar quanto na fase judicial.

Ademais, o devido processo constitucional reclama a publicidade e transparência desses atos, sob pena de ofensa à ampla defesa e ao contraditório, aplicáveis a todos os imputados. Acordos sobre admissibilidade da licitude da prova, de renúncia de recurso, de renúncia prévia à impugnação situam-se à margem da legalidade e do devido processo constitucional.

A transformação do autor de ilícitos, quiçá, em muitos casos, do ator principal, em testemunha, há de receber uma valoração especial, com testagem de sua credibilidade e confiabilidade, uma vez admitida essa modalidade de prova. Por isso, se faz necessário saber

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se houve colaboração, qual sua extensão, quais os prêmios recebidos e quem foi afetado, sob pena de ruírem o contraditório e a ampla defesa, bem como de transformar-se o processo em um simulacro para obter um resultado já sabido e construído de forma obscura. Ademais, a testemunha colaboradora e seus familiares devem receber do Estado uma efetiva proteção. Há necessidade do estabelecimento de regras objetivas, claras e transparentes acerca da delação, aplicáveis ao delator, ao processo, aos demais envolvidos, ademais da medição dos prêmios, sob pena de ofensa à legalidade processual e constitucional. Os parâmetros ao estabelecimento da legalidade procedimental são os constitucionais, como asseverado pelo Professor Vinicios do Valle. Nessa perspectiva, o processo em que haja colaboração premiada também deverá terminar num prazo razoável (art. 5º, LXXVII, CF), em atendimento às especificidades do delito, da colaboração e do processo; deverá haver regramento dos elementos subjetivos (autoridade policial, colaboradores, advogados, Ministério Público e magistrados), objetivos (delitos, espécies de prêmios, v.g.) e de atividade (lugar, tempo e forma), com utilização de meios eletrônicos de documentação, procedimento prévio e efeitos jurídicos.

Em qualquer das modalidades de colaboração premiada são requisitos: vontade livre, consciente e esclarecida do colaborador; presença de defensor em todos os atos; afastamento do julgador da negociação da colaboração; possibilidade de retratação exclusivamente pelo colaborador; proibição da utilização da colaboração e de todos os elementos daí decorrentes na hipótese de resultar inexitosa a colaboração; e por si só, a colaboração não é prova, mas mero argumento de prova que deve indicar provas a obter para confirmar as declarações do colaborador.

Por isso, é indispensável a homologação do acordo de colaboração premiada pelo juiz de garantias para que seja possível falar-se em negócio jurídico acobertado pela devida segurança jurídica (ato jurídico perfeito). Outrossim, se cabe ao juiz de garantias decidir também sobre os meios de obtenção de prova (art. 3º-B, XI, CPP) e se os acordos de colaboração premiada são meios de obtenção de

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prova, viciado será o acordo celebrado sem a devida homologação judicial.

nereu José GiaComolli, Professor e pesquisador no Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUCRS, investigador integrado do Ratio Legis – Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal.

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lista de abreviaturas e siGlas

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

APF – Auto de Prisão em Flagrante

CF – Constituição Federal

CADH - Convenção Americana de Direitos Humanos

CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos

CNJ - Conselho Nacional de Justiça

CPP - Código de Processo Penal

CPPF - Código de Processo Penal Francês

DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

EOAB – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil

LEP – Lei de Execuções Penais

NFT - Non-Fungible Token

ORCRIM - Organização Criminosa

PIDCP - Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

STF - Supremo Tribunal Federal

TEI - Técnica Especial de Investigação

VPI – Verificação Preliminar das Informações

VPN - Virtual Private Network

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sumário aGradeCimentos ............................................................................ 5 PreFáCio ........................................................................................ 7 Nereu José Giacomolli, lista de abreviaturas e siGlas ...................................................... 12 introdução ................................................................................. 15 1. Colaboração Premiada ............................................................ 19 1.1. Aspectos Conceituais......................................................................... 19 1.1.1. O Colaborador ............................................................................ 19 1.1.2. Acordo de Colaboração Premiada ................................................ 22 1.2. Normativas Internacionais ................................................................ 29 2. dos direitos Fundamentais na Colaboração Premiada ............. 34 2.1. Direitos e Deveres do Colaborador.................................................... 36 2.1.1. Sistema de Proteção ao Colaborador ............................................ 36 2.1.2. Direitos ao Silêncio e à Não Autoincriminação 39 2.1.3. Da Presunção de Inocência .......................................................... 45 2.1.4. Obrigatoriedade de Defesa Técnica e Acesso aos Autos ................. 49 2.1.5. Obrigatoriedade de Fundamentação das Decisões das Autoridades Estatais .................................................................................................. 56 2.1.6. Direito de Recorrer ...................................................................... 58 2.1.7. Retratação, Rescisão, Anulação e seus Reflexos na Colaboração .... 61 2.1.8. Repercussões na Persecução Penal pela Qualidade de Colaborador ..... 66 2.1.9. Sigilo na Distribuição do Acordo e Proteção de Direitos Fundamentais ........................................................................................ 69 2.1.10. Direito Subjetivo ao Acordo ....................................................... 74 2.1.11. Da Liberdade de Imprensa e Tutela da Imagem do Colaborador ...... 79 2.1.12. Separação Física e Demais Investigados ...................................... 80 3.1. Direitos do Delatado ......................................................................... 82 3.1.1. Manifestação nos Autos Posterior ao Colaborador ........................ 82 3.1.2. Vista dos Autos da Investigação Criminal pelo Delatado .............. 85 3.1.3. Direito de Impugnação do Acordo pelo Delatado 88 3.1.4. Afastamento do Sigilo e Identificação dos Colaboradores ............. 91 3.1.5. (Não)Condenação do Delatado com Base Exclusiva no Acordo 93
4.1. Compartilhamento de Provas – Cooperação Institucional ................. 98 5.1. Vedação da Corroboração Recíproca ou Cruzada ............................ 100 3. relativização (ou não) da instrumentalidade das Formas na Colaboração ............................................................................. 103 4. Comparaison sur reConnaissanCe préalable de Culpabilité...... 107 Considerações Finais ................................................................. 109 reFerênCias biblioGráFiCas ........................................................ 113

introdução

Na ideia de fomentar práticas estatais harmonizadas com os ditames constitucionais e convencionais, pensamos em algumas de nossas experiências profissionais no cargo de Delegado de Polícia, notadamente na atuação na área de repressão aos crimes contra a Administração Pública e contra a Ordem Tributária, objetivando promover maior diálogo entre a temática acordo de colaboração premiada, em especial na vertente do combate à corrupção, e inserções inarredáveis de direitos fundamentais, apresentando ao leitor, principalmente aos profissionais que labutam na persecução penal, pontos vitais ao melhor êxito deste meio de obtenção de prova (função utilitarista), pautado em sua tutela por direitos fundamentais (função garantista).

Como instrumento útil à racionalidade e redução de subjetivismos ao processo penal (fase judicial da persecução penal), temos a investigação criminal, leia-se inquérito policial1 (fase investigativa da persecução penal), necessária para afastar ações penais precoces, evitar estigmas infundados, assegurar efetividade do sistema de justiça e garantir a preservação de direitos fundamentais de todos, constituindo-se, assim, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito na seara penal.

Em paralelo, nosso sistema de provas do atual CPP foi gestado ao tempo dos “crimes clássicos” (ainda existentes), como furto, dano, apropriação indébita e outros, permitindo, por exemplo, que meras confissões e/ou depoimentos de testemunhas fossem suficientes às elucidações.

1 Escolhemo-lo por ser o procedimento mais utilizado na esfera criminal. Trata-se de instrumento estatal lastreado no art. 144, §1º e §4º, da CF/ 88, art. 4º do CPP e Lei nº 12. 830/ 13, cujo manejo seria privativo das Polícias Judiciárias (Polícia Federal e Polícia Civil) voltado ao carreamento de elementos informativos e probatórios na persecução penal, notadamente na apuração das infrações penais por suas circunstâncias, autoria e materialidade.

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Atualmente, globalização, internet massiva e de ultravelocidade, melhoria da mobilidade de pessoas entre países, maiores intercâmbios entre sociedades, avanços tecnológicos, dentre outros fatores, propiciam, diariamente, novos nichos delitivos e respectivos modus operandi dessa atual criminalidade (macrocriminalidade), urgindo atualizações jurisprudenciais e alterações legislativas para acompanhar as demandas contemporâneas da sociedade.

Cada vez mais a delinquência objetiva dificultar, de toda sorte, as investigações criminais e, consequentemente, as respectivas responsabilizações penais de seus autores.

Para isso, o desenvolvimento de novas técnicas especiais de investigação mostra-se fundamental para darmos efetividade ao sistema de justiça criminal e atender aos anseios da sociedade contemporânea.

Assim, em atenção aos apelos da sociedade brasileira e convenções internacionais, o legislador positivou o instituto da colaboração premiada, por meio da Lei nº 12.850/13, constituindo-se como um dos meios de obtenção de provas especiais em nosso ordenamento jurídico capaz de proporcionar conhecimento pelas autoridades públicas, incumbidas da persecução penal, da integral engenharia delituosa, além de colaborar na produção de acervo probatório antes jamais vislumbrado pelo Estado naquele contexto da ORCRIM.

Nesta linha intelectiva, apesar dos malefícios causados pela corrupção e ruptura dos códigos de honra – omertà – com os demais infratores, faz-se importante que pessoas inseridas nos diversos estratagemas visualizem e obtenham estímulos em contribuir com o Estado-Investigativo, pois, sem elas, muitas das vezes, a persecução penal não alcançaria o mesmo sucesso perante a complexidade formatada na prática das infrações penais.

Ou seja, nuances e meandros da criminalidade jamais seriam descobertos por ações estatais se não houvesse contribuições daqueles indivíduos insertos no contexto ilegal.

Indivíduos submetidos à persecução penal não podem ser tratados como meros objetos nas ações estatais, em especial na preva-

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lência dos fins (açodados) sobre os meios no campo persecutório, sob pena de mácula severa aos direitos fundamentais que, de longa data (vide Constituição do Império de 1824), estão em constantes evoluções e espraiados pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Nosso art. 5º da CF/88 traz um rol extenso, mas não exaustivo, de direitos fundamentais que estão expressos por toda Constituição, obrigando às normativas ordinárias suas respectivas harmonias com tal paradigma de validade.

Visões garantista e utilitarista deverão ser adotadas, em simbiose, pelas autoridades públicas no exercício de suas funções a efetivar os anseios constitucionais, tais como o respeito de acesso aos autos, direito ao silêncio e de não autoincriminação, assim como o emprego do sigilo (temporário) e de medidas cautelares constritivas, exemplificativamente.

No ensejo de obter maximização na persecução penal e de dar efetividade ao sistema de justiça, o Estado deverá adotar medidas especiais relacionadas à proteção dos colaboradores e criar mecanismos de arrefecimento ao seu direito de punir, afastando ou minimizando eventual responsabilização criminal do colaborador em decorrência de troca dos seus relevantes contributos ao caso penal.

O pretenso colaborador (autor, coautor e/ou partícipe) poderá deixar sua “zona de conforto” e se travestir como “parceiro” do Estado desde que, na sua avaliação, as benesses superem os potenciais ônus de ser taxado de “traidor” por seus (ex-)comparsas e consequentes atentados à vida, integridade física e/ou patrimônio próprio e/ou de familiares, por exemplo.

A partir da perspectiva de relação jurídica entre Estado e indivíduo (autor da infração penal), em que ambos terão seus direitos relativizados (na troca de favores) ao melhor consenso avençado, ganham destaques os direitos fundamentais em papel crucial como limitadores do Estado, que não poderá primar apenas aos seus fins, bem como tutor do indivíduo frente às intempéries (legais) advindas de suas condutas (reprováveis), tudo em apreço ao devido processo legal e a critérios de pena justa.

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Neste sentido, a proposta da obra é apresentar estudo pontual dos direitos fundamentais no acordo de colaboração premiada, visando garantir viabilidade à homologação judicial, com harmonia aos demais aspectos legais e, consequentemente, permitir às partes celebrantes perspectivas de execução e segurança jurídica dos respectivos efeitos pretendidos na avença pactuada.

Boa leitura!

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1. Colaboração Premiada

Preliminarmente, registre-se que não adentraremos na obra sobre os aspectos procedimentais do acordo de colaboração premiada, tais como recebimento da proposta, início das negociações, marco de confidencialidade, indeferimento sumário da proposta, indeferimento superveniente com justa causa, além do trato aos prêmios legais, respectivas condições, resultados efetivos, dentre outros pontos.

Na proposta deste capítulo, abordaremos alguns aspectos conceituais e normativas internacionais específicos do tema a fim de que possamos melhor adentrar na sequência do livro, notadamente nos direitos fundamentais aplicados no acordo de colaboração premiada.

1.1. asPeCtos ConCeituais

1.1.1.

O COlabOradOr

Sabemos que o exercício da cidadania perpassa por condutas não violadoras das normas vigentes e, ao tomar conhecimento de suas burlas, também impulsionados por não as aceitar, promovem-se comunicações às autoridades públicas dos desvios observados e não pactuados.

Com lastro no direito à liberdade de expressão, direito de informações e no direito de inafastabilidade de acesso à justiça, toda pessoa tem o direito de comunicar qualquer fato, por qualquer meio, de condutas relacionadas à corrupção.

No ponto, vale reflexão ao proposto por TREVISAN e outros autores1, vejamos:

[...] É, comprovadamente, uma das causas decisivas da carência dos serviços públicos essenciais, da pobreza de muitos municípios e razão da penúria financeira de cidades e da miséria permanente de muitos países. A corrupção

1 TREVISAN, Antoninho Marmo; CHIZZOTTI, Antônio; IANHEZ, João Alberto; CHIZZOTTI, José; VERILLO, Josmar. AMIGOS ASSOCIADOS DE RIBEIRÃO BONITO – AMARRIBO. O Combate à corrupção nas prefeituras do Brasil. 5. ed. São Paulo: 24X7 Cultural, 2012, p. 11- 13.

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corrói a dignidade do cidadão, deteriora o convívio social, contamina os indivíduos e compromete a vida das gerações atuais e futuras. Os impostos pagos pelos cidadãos são apropriados por agentes gananciosos. [...] A corrupção afeta seriamente a educação e a assistência aos estudantes, pois os desvios subtraem recursos destinados ao material escolar, à melhoria dos espaços da escola, à merenda adequada para crianças, à formação dos professores, entre outras. Prejudica, desse modo, não só toda a educação escolar, como também o desenvolvimento intelectual e cultural de crianças e jovens, e os condenam a uma vida com menores perspectivas de um futuro melhor. A corrupção é, por isso, intolerável. A corrupção também subtrai verbas indispensáveis à saúde, comprometendo diretamente o bem-estar dos cidadãos, pois impede as pessoas de ter acesso à prevenção de males que poderiam ser debelados, ao tratamento de doenças que poderiam ser facilmente curadas ou de sofrimentos que poderiam ser aliviados. Pode até mesmo encurtar, injustamente, muitas vidas, condenando-as prematuramente à morte. [...] Aqueles que compartilham da corrupção, ativa ou passivamente, e os que dela tiram algum tipo de proveito comprometem, eticamente, a administração e o convívio decente e não podem gerir os negócios públicos; pelo contrário, devem ser responsabilizados civil e criminalmente por todos os atos comissivos e omissivos que solapam o erário público. [...] É também um dever social: de nada adianta uma sociedade organizada ajudar na canalização de esforços e recursos para projetos sociais, culturais ou de desenvolvimento se as autoridades responsáveis por esses projetos dedicam-se ao desvio do dinheiro público para seus interesses particulares ou para negócios escusos.

De outro lado, o pretenso colaborador (autor de infração penal), ao ver-se encurralado na esfera da persecução penal com potencial de condenação, tem, ao seu dispor, a possibilidade de concretizar um acordo com o Estado-Investigativo, devendo se travestir, na ocasião, de boa-fé inerente às avenças nos termos do acordo, em especial narrando todas as fraudes praticadas e/ou aquelas relacionadas com terceiros (coautores/partícipes).

O colaborador passaria a atuar ao lado do Estado no sentido de promover conhecimento de ilícitos (seus e/ou de terceiros), bem como assumindo compromisso em não praticar condutas desviantes, sob pena de perecimento do respectivo acordo.

BADARÓ2 reforça algumas obrigações do colaborador no acordo, vejamos:

2 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A necessidade de um regime legal próprio para o colaborador premiado. ConJur, Gustavo Badaró: a figura específica do colaborador premiado. Acesso em: 25 nov. 2022.

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