

Estado, PodErEs E Jurisdição ConstituCional

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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo FErrEr MaC-GrEGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
JuarEz tavarEs
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
luis lóPEz GuErra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
toMás s. vivEs antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M477e
Mello, Cláudio Ari
Estado, poderes e jurisdição constitucional [recurso eletrônico] / Cláudio Ari
Mello. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-564-4 (recurso eletrônico)
1. Direito constitucional - Brasil. 2. Estado. 3. Separação de poderes - Brasil. 4. Delegação de poderes - Brasil. 5. Jurisdição - Brasil. 6. Livros eletrônicos. I. Título.
23-83785

CDU: 342 32/ 33(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-06-22-6494d83c2e644
03/05/2023 09/05/2023
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Estado, PodErEs E Jurisdição ConstituCional

introdução
Este livro é uma continuição de outra obra que publiquei recentemente, Direito Constitucional: Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais. 1 Desta vez, dedico-me a estudar a organização das instituições fundamentais de um Estado constitucional. Por isso o título escolhido, Estado, Poderes e Judisdição Constitucional, tem a pretensão de ser rigorosamente fiel ao conteúdo temático e ao objetivo doutrinário deste livro. Entre os dois textos, há uma base teórica comum. Ambos partem de um projeto de compreensão, exposição e justificação normativa de um modelo de Estado que em geral denominamos de democracia constitucional, isto é, um modelo que conjuga a estrutura do constitucionalismo enquanto governo limitado pelo direito com as instituições e as práticas de uma democracia representativa moderna. Nesse sentido, os dois livros dialogam com uma primeira obra em que explorei os fundamentos da democracia constitucional a partir da teoria constitucional2 e um texto seguinte, fruto de tese de doutorado, em que procurei investigar em que sentido podemos pensar uma teoria do constitucionalismo democrático que equilibre seus polos contemporâneos de tensão, democracia e jurisdição constitucional, a partir da filosofia política kantiana.3
Em todos esses livros há um fundamento teórico comum. Eu compreendo a democracia constitucional como um modelo de Estado em que o poder político é limitado e dirigido por meio do Direito com o objetivo de promover dois fins de natureza moral: (i) uma vida digna para cada indivíduo que pertence à comunidade e (ii) a justiça política dessa comunidade. Por vida digna compreendo o reconhecimento de que todos os indivíduos devem ser considerados como essencialmente iguais e devem gozar da mais ampla rede de liberdades pessoais, sociais e políticas, que sejam compatíveis entre si. Por justiça política entendo um modelo de organização social que garanta a mais extensa participação dos cidadãos nas decisões políticas da comunidade e nas instituições representativas do Estado e um sistema de distribuição de oportunidades sociais e econômicas que permita que cada indivíduo possa, por seu próprio esforço e com incentivos públicos adequados, gozar de uma vida digna durante a totalidade da sua existência. Portanto, eu compartilho a concepção amplamente aceita no pensamento
político ocidental de que a democracia constitucional moderna tem um fundamento kantiano que foi aperfeiçoado e atualizado por filósofos como John Rawls, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Por outro lado, todo o projeto da democracia constitucional moderna adotou a forma do Direito, algo que já aparecia na filosofia política tardia de Kant e nos primórdios da experiência constitucional norte-americana. A constituição do constitucionalismo democrático é uma lei fundamental que impõe autoritativamente limites e obrigações jurídicas às instituições estatais e aos membros da comunidade, e não mais apenas a estrutura política convencional e não coercitiva de uma determinada sociedade, como se pensava na tradição inglesa ou na Europa antes do século XX.
Neste livro, eu procuro estudar as principais instituições políticas do Estado brasileiro a partir da premissa de que a Constituição Federal de 1988 instituiu uma democracia constitucional extremamente ambiciosa e complexa. Como em qualquer Estado moderno, o desenho das suas instituições e as funções que lhe são atribuídas são elementos decisivos para o êxito do projeto político que lhe é subjacente. A organização do Estado brasileiro criada pela Constituição vigente contém várias fontes de complexidade. Adotamos um Estado federal com três níveis, o nacional, o estadual e o municipal, conjugando uma divisão de competências executivas e legislativas estanque a cada esfera com um regime de compartilhamento de competências entre todas as escalas federativas. Nosso modelo de organização dos poderes acolheu todos os principais elementos da doutrina clássica da separação dos poderes, com três poderes bem delimitados e com competências específicas, porém com múltiplos mecanismos de controles recíprocos entre eles e instrumentos de colaboração e diálogo interinstitucional. Embora tenhamos preservado o regime presidencialista de governo, as regras constitucionais revelaram possuir uma plasticidade que pode tanto incentivar o clássico hiperpresidencialismo latinoamericano quanto, paradoxalmente, tornar o Poder Executivo refém de um Poder Legislativo forte e autoconfiante. A Constituição de 1988 foi também muito criativa na formatação de instituições estatais que têm como missão precípua a proteção do Estado Democrático de Direito, transcendendo, dessa forma, o esquema tradicional de tripartição dos poderes do Estado. Por fim, mas de modo algum menos importante, a Lei Fundamental de 1988 desenhou um dos mais completos, complexos e poderosos sistemas de proteção judicial da constituição. Conquanto a jurisdição constitucional seja uma característica distintiva do constitucionalismo democrático contemporâneo, essa instituição ganhou contornos particularmente decisivos na ordem constitucional de 1988.
Há outro ponto de partida idêntico entre Direito Constitucional: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais e este livro. Em ambos eu mobilizo abordagens de teoria constitucional e de teoria, ciência e história políticas para qualificar nossa compreensão da Constituição Federal de 1988 e do direito constitucional brasileiro.
Isto é, em ambas as obras a Lei Fundamental brasileira é a grande protagonista, em que pese o recurso contínuo a reflexões teóricas e históricas. Por outro lado, há entre as duas obras uma diferença importante. Enquanto o primeiro livro foi sendo produzido ao longo de alguns anos no contexto das minhas aulas de Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais na Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, este segundo texto foi escrito praticamente de um só fôlego, nos anos de 2021 e 2022. Mesmo um escrito que utilizei em sala de aula ao longo de muitos anos no ensino de Processo Constitucional na mesma universidade foi praticamente abandonado em favor da redação de um texto inédito sobre a matéria. Um esboço das partes em que abordo o Estado e os poderes foi disponibilizado aos alunos da disciplina de Organização do Estado e dos Poderes, que lecionei nos últimos anos, e sou grato pelas várias correções e observações que recebi de estudantes nesse período. Tenho a impressão de que a diferença no contexto de escritura entre as duas obras deu a este texto uma maior simplicidade e homogeneidade.4
Este livro não teria sido escrito sem o estímulo e o apoio da minha esposa, Vanessa, que não apenas insistiu repetidamente para que eu publicasse o registro escrito de duas décadas e meia de dedicação acadêmica e prática do direito constitucional, como leu boa parte dos textos e fez sugestões e correções que tornaram o texto mais acessível e agradável. Além disso, dedicou-me uma paciência infinita ao longo das horas, dias, semanas, meses e anos de isolamento que o estudo e a escritura inevitavelmente impõem, assim como uma disposição permanente para o diálogo sobre tudo o que penso, escrevo e faço na minha vivência jurídica. A ela, meu mais profundo agradecimento. Também devo agradecer pelo incentivo para a redação e publicação deste livro a meu amigo Francisco José Borges Motta, assim como pela leitura crítica de parte da obra e pelo intercâmbio incessante de ideias sobre teoria do direito e direito constitucional no curso da última década, anualmente tornado público pelo gentil convite para palestrar uma ou duas vezes ao ano a seus alunos do curso de Mestrado da Faculdade do Ministério Público do Rio Grande do Sul. E não poderia deixar de fazer um último registro. Por uma estranha coincidência, eu finalizava a revisão da parte em que trato da organização dos poderes na tarde do dia 08 de janeiro de 2023 quando irromperam as notícias e imagens do ataque golpista às sedes dos três poderes em Brasília. Tivessem saído vencedores os tantos setores da sociedade brasileira que desejaram, planejaram e agiram para derrubar nossa democracia constitucional entre 2016 e 2023, nada do que eu havia escrito faria qualquer sentido. Assim, não apenas por mim, mas por todos os brasileiros que lutaram e lutam pela democracia, meu mais profundo reconhecimento àqueles que souberam resistir.
PriMEira PartE: Estado E PodErEs
1. o Estado
1.1. História do ConCEito dE Estado
Nessa primeira parte do livro, estudaremos dogmaticamente a estrutura do Estado brasileiro tal como foi organizado pela Constituição Federal de 1988. A mais típica função das constituições ao longo da história consistiu na organização do poder político nas comunidades humanas. Antes mesmo do surgimento do Estado moderno e das constituições escritas e codificadas da modernidade, a ideia de constituição política sempre esteve associada à organização do poder político. No entanto, com o desenvolvimento da forma moderna de Estado, o chamado Estado nacional, a sua organização passou a ser a principal função das constituições jurídicas, especialmente a partir do final do século XVIII.5 Por isso, antes de avançarmos no estudo dogmático da organização do Estado brasileiro instituída pela Constituição Federal de 1988, julgamos relevante e útil explorar, ainda que muito sinteticamente, o conceito teórico de Estado, levando em consideração a história do desenvolvimento desse conceito.
A partir do período neolítico, que se inicia em torno de 10.000 a.C., quando surgem as primeiras comunidades de humanos sedentários que desenvolvem a agricultura como forma de subsistência, começa a aventura da organização da vida coletiva humana. O aparecimento de coletividades compostas por diferentes grupos familiares deve ter levado à necessidade de organizar a vida comunitária por meio da definição de diferentes funções e do estabelecimento de regras de coordenação das diversas atividades individuais e coletivas e de punição de comportamentos considerados prejudiciais. Pode-se supor que a relação de comando e obediência, que parece ser inerente à relação entre pais e prole, dada a longa fragilidade de humanos jovens, deve ter sido transferida para a organização de agrupamentos na medida em que as sociedades foram se tornando mais populosas e complexas. O surgimento da agricultura “hidráulica” e seus grandes projetos de irrigação para o plantio, inicialmente nas regiões dos rios Tigres e Eufrates e dos vales do rio Nilo, gerou a necessidade da administração de um grande contingente de pessoas, e a concentração do poder de administrar e do uso da coerção como técnica de controle comportamental foram decisivos para a consolidação do que podemos chamar de “governo”. Se utilizarmos provisoriamente a expressão “po-
5 Expusemos esse aspecto da história constitucional em MELLO, Cláudio Ari. Direito Constitucional: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Tirant lo Blanch, 2023. Ver, ainda, GORDON, Scott. Controlling the State: Constitutionalism from Ancient Athens to Today. Oxford: Oxford University Press, 1999.
lítico” nesse sentido simples de organização da vida coletiva de uma comunidade de indivíduos que habita um mesmo território e compartilha de forma estável a existência, é possível dizer que a ordenação política das sociedades deve ter surgido precocemente na civilização humana.6
Na Idade Antiga, que tem início cerca de 4.000 a.C., desenvolvem-se as primeiras estruturas políticas mais complexas, que podemos compreender como a gênese do Estado no sentido em que empregamos essa expressão na modernidade. Nesse período florescem as cidades sumérias da Mesopotâmia, como Ur, Uruck, Lagash e Nippur; os reinos do Egito a partir de 3.200 a.C.; o Império Babilônico a partir de 1.700 a.C., no qual é elaborado o Código de Hamurábi, o primeiro código de leis que se tem notícia na história da humanidade; e o Império Persa, a partir de 549 a.C.. A Antiguidade Clássica, que se inicia a partir de cerca de 800 a.C., conhecerá as célebres cidades-estados da Grécia Antiga, como Atenas e Esparta, e as diferentes etapas do desenvolvimento da poderosa Roma, desde a Monarquia (circa 753 a.C. a 509 a.C.), passando pela República (circa 509 a.C. a 27 a.C.) até o Império Romano (27 a.C. a 476 d.C.). Na Ásia, encontraremos organizações políticas variadas, sendo que a China organiza-se na forma de um Império a partir de 221 a.C., o qual perdurará até o século XX.7
Na América pré-colombiana, por sua vez, existiram as longevas e estruturadas civilizações Maia e Azteca, na América Central, e Inca na América do Sul. Na Idade Média, que se inicia após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., também conheceremos formas muito diversas de organização do poder político. Embora o Império Romano do Oriente tenha sobrevivido em parte da Europa e no Oriente Médio até a queda de Constantinopla em 1453 d.C e em alguns períodos tenha sido possível restabelecer a forma imperial na Europa, como no Império Carolíngio (800 a 888 d.C), de modo geral houve um esfacelamento do poder político no continente europeu em uma multiplicidade composta de centenas de reinos, principados, ducados, cidades-livres e outras formações que, em boa medida, só encontravam alguma uniformidade por fazerem parte da cristandade e por submeterem-se ao poder espiritual e político da Igreja Católica.8
6 Para exposições aprofundadas sobre as origens da vida política na humanidade, ver FUKUYAMA, Francis. As origens da ordem política: dos tempos pré- modernos até a Revolução Francesa. São Paulo: Rocco, 2013, e GRAEBER, David; WENGROW, David. The Dawn of Everything: A New History of Humanity. Nova Iorque: Farrar, Straus e Griroux, 2021. Ver, também, GORDON, Scott. Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.
7 FUKUYAMA, Francis. As origens da ordem política: dos tempos pré- modernos até a Revolução Francesa. São Paulo: Rocco, 2013, p. 119- 176.
8 Em 1500, existiam cerca de quinhentas unidades políticas mais ou menos independentes no continente europeu, quantidade que havia se reduzido a cerca de vinte e cinco unidades em 1900, quando os Estados nacionais já estavam plenamente consolidados. Ver TILLY, Charles. Refletions on the History of European State- Making. In TILLY, Charles (editor). The Formation of National States in Western Europe. New Jersey: Princeton University Press, 1975, p. 15.
A preocupação em desenvolver uma teoria sobre a experiência política surge já no pensamento dos grandes filósofos da Grécia Antiga, particularmente em Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). A contribuição mais duradoura da filosofia grega para uma teoria política consistiu na elaboração de uma teoria das formas de governo, que se baseou fundamentalmente na definição da titularidade do poder político. A teoria das formas de governo elaborada naquele período baseava-se no critério do número de governantes, distinguindo entre o governo de um só, a autocracia, o governo de um grupo, a aristocracia ou a oligarquia, e o governo de muitos, do maior número ou de todos, a democracia.9 Conquanto existam importantes variações entre as teorias das formas de governo elaboradas por pensadores desse período, como, por exemplo, entre Aristóteles e o historiador greco-romano Políbio (203-120 a.C.), podemos dizer que essa estrutura teórica básica dominou o pensamento político até a modernidade.10
Por outro lado, para além do elemento descritivo das formas de governo conforme o número de governantes, vamos também encontrar em pensadores clássicos elementos de uma teoria crítica e normativa da política. Uma primeira abordagem nessa perspectiva aspiracional e normativa encontra-se já em Platão, que distingue entre formas de governo boas ou más, tratamento que reaparecerá em Aristóteles e dele receberá como critério distintivo o fato de o governo visar ao bem comum (formas boas) ou ao bem dos governantes (formas degeneradas).11 Uma segunda abordagem normativa consistirá no elogio da chamada “constituição mista”, presente desde as obras de Aristóteles e Políbio e descrita como uma forma de organização política que contemplava a divisão do poder entre os diferentes elementos do corpo político, o monarca, a aristocracia e o povo, com o objetivo de obter uma estabilidade política que se entendia inatingível com as formas clássicas. Já na modernidade, novas classificações teóricas das formas de organização política serão elaboradas, entre elas a divisão simplificada entre principados e repúblicas de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e a divisão entre monarquia, república e despotismo proposta por Montesquieu (1689-1755).12
9 Ver PLATÃO. A República. São Paulo: Perspectiva, 2010, e ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Editora Madamu, 2021.
10 Sobre a teoria das formas de governo, ver BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo na história do pensamento político. São Paulo: EDIPRO, 2017.
11 Sobre esse ponto, ver BOBBIO, Norberto. Estado , governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2007, p. 135 e ss. Aristóteles designava de politeia o bom governo de muitos ou de todos e de democracia o seu correspondente degenerado. Políbio, por seu turno, designava de democracia o bom governo de muitos ou de todos e de oclocracia (governo da plebe ou da ralé) a sua forma degenerada. Conforme assinala Bobbio, para Políbio a democracia é o pior regime entre as formas boas e o pior regime entre as formas más de governo.
12 O elogio da “constituição mista” também esteve presente na transição entre Idade Média e Era Moderna. A República de Veneza era geralmente considerada o principal exemplo de êxito na implantação e na estabilidade de uma “constituição mista”, sendo a obra do veneziano Gasparo Contarini a principal referência teórica sobre a organização política da Serenissima. Ver CONTARINI, Gasparo. The Republic of Venice. Nova Iorque: Lorenzo Da Ponte Italian Library, 2022. No entanto, Scott Gordon sustenta que a obra de Contarini revela que Veneza havia implantado um sistema de múltiplos poderes interdependentes sem hieraquia entre si, portanto não correspondia ao conceito aristotélico de constituição mista. Ver GORDON, Scott. Controlling the State. Constitutionalism from Ancient Athens to Today. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999, p. 155- 165.
Escrevendo algumas décadas depois de Montesquieu, Immanuel Kant (1724-1804) propôs que a classificação segundo o número de pessoas que possuem o poder supremo ou a soberania refere-se à forma de Estado. A partir desse critério, só podem existir três formas: a autocracia, a aristocracia e a democracia. No entanto, quando pretendemos classificar o Estado conforme o modo de governar o povo, então ou a constituição é republicana ou é despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo em relação ao poder legislativo; já o despotismo é o princípio da execução arbitrária das leis que o próprio Estado se deu, vale dizer, é uma forma de governar em que não há separação entre poder legislativo e poder executivo.13 Portanto, já no pensamento político kantiano identificamos a redução das formas de organização do poder político a duas espécies, república e despotismo. Mais recentemente, Hans Kelsen também propôs a redução das formas de governo a dois tipos básicos: a democracia e a autocracia, que são distinguidas entre si pelo grau de liberdade política existente em cada uma delas,14 embora, como ressalva Norberto Bobbio, a dicotomia efetivamente utilizada desde o século XX consista na polaridade entre democracia e ditadura.15
Ainda que a história da civilização humana já conhecesse uma antiga e diversificada experimentação de formas de organização política e, inclusive, já existisse um sólido pensamento político desde a antiguidade clássica, o conceito de Estado como um conceito que define abstratamente todas as formas de organização política das comunidades humanas só surge no início da Era Moderna no continente europeu. Até a modernidade, havia reinos, impérios, cidades-estados, repúblicas, etc., mas não conhecíamos um conceito que funcionasse como um gênero, que comportasse múltiplas variações e a partir do qual se pudesse compreender teoricamente a experiência política como um todo. Evidentemente, o emprego de um conceito teórico tão abstrato como Estado, utilizado com o objetivo de abarcar uma variedade tão grande de experiências políticas ao longo da história da civilização humana, pode revelar-se pouco frutífero. Sem embargo, nosso objetivo é mais modesto: pretendemos apenas mostrar como essa
13 KANT, Immanuel. À Paz Perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2004, p. 130- 131. Em determinada passagem Kant chama o despotismo de “cemitério da liberdade” (ob. cit. , p. 148), Kirchhofe der Freiheit no original (Immanuel Kant. Uber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis. Zum ewigen Frieden. Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 1992, p. 81).
14 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 406. Para Kelsen, um Estado é democrático quando prevalece a autonomia política, ou seja, as leis são feitas pelas mesmas pessoas que terão de se submeter a elas, e é autocrático quando prevalece a heteronomia, isto é, quando aqueles que se submetem às leis não participam de sua formação.
15 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2007, p. 158. Como explica Bobbio, a expressão ditadura recebeu, na modernidade, a conotação negativa atribuída a termos mais tradicionais, como tirania e despotismo, ou técnicos, como autocracia, embora a sua origem na República romana tivesse uma conotação positiva, ao menos até a ascensão de Otávio Augusto. Historicamente, o conceito de ditadura esteve associado ao exercício temporário de poderes executivos para o enfrentamento de um estado de necessidade; gradualmente, nos últimos dois séculos, a expressão passou a denotar uma forma de governo contraposta à democracia.
multiplicidade de formas de organização política que apareceram na história da humanidade foi convergindo a partir da modernidade para uma forma de organização que receberá o nome de “Estado” no âmbito da teoria política, e que gradualmente assumirá uma estrutura basicamente padronizada, que conhecemos genericamente por Estado nacional ou Estado-nação, um modelo de Estado que começa a surgir na Europa entre o fim da Idade Média e o início da Era Moderna, ou seja, entre os séculos XV e XVI, e que se torna hegemônico a partir dos séculos XIX e XX.16
Norberto Bobbio afirma ser “fora de discussão que a palavra ‘Estado’ se impôs através da difusão e pelo prestígio do Príncipe de Maquiavel”.17 De fato, o clássico do pensador florentino começa com a seguinte frase: “Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens ou foram e são repúblicas ou principados”.18 Portanto, Maquiavel já emprega a expressão Estado como o gênero que engloba as diferentes espécies de organização política. Por outro lado, Quentin Skinner, em seu estudo sobre a genealogia do Estado moderno, registra que o conceito de Estado começa a ser utilizado entre o fim do século XVI e o início do século XVII nas discussões escolásticas sobre o problema da summa potestas nos conflitos entre o poder secular e o poder da Igreja, assim como na literatura francesa e italiana que se ocupava de temas como soberania, política e razão de Estado.19 Nesse período, “o termo Estado começa a ser usado com crescente confiança para fazer referência a um tipo específico de união ou associação civil, aquela de uma universitas ou uma comunidade de pessoas vivendo sujeita à autoridade soberana de um monarca ou um grupo governante reconhecido”.20 Conquanto outras expressões ainda continuassem a ser utilizadas no período, principalmente o termo “corpo político” (corpus politicum) para se referir à organização do poder público, aos poucos o conceito de Estado foi se tornando o termo que passou a significar o gênero das formas políticas. Skinner chama a atenção para o fato de que já em Jean Bodin (1530-1596), nos seus Seis Livros sobre a República, do final do século XVI, aparece a definição de que “não são os muros nem as pessoas que fazem uma cidade, mas a união das pessoas sob o mesmo governo soberano”.21 Quando a monarquia absolutista se forma e se consolida na Europa entre os séculos XVI e XVII, a noção de que o conceito de
16 Para uma exposição dessa evolução desde a Idade Média, ver LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 17- 59.
17 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2007, p. 65.
18 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Penguin, 2020, p. 47.
19 No mesmo sentido, Charles Tilly propõe que o nascimento do Estado europeu moderno ocorreu entre os séculos XVI e XVIII. Ver TILLY, Charles. Reflections ond the History of European State- Making. In TILLY, Charles (editor). The Formation of National States in Western Europe. New Jersey: Princeton University Press, 1975, p. 3- 83.
20 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 327.
21 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 328.
Estado significa uma união civil ou uma comunidade de pessoas unidas sob um governo soberano era já bastante comum na literatura política, independentemente de estar associada ao conceito de soberania monárquica ou popular. Ainda de acordo com Quentin Skinner, um novo elemento teórico é introduzido na filosofia política quando Thomas Hobbes (1588-1679) formula pela primeira vez a ideia de que o Estado é uma pessoa fictícia que representa o corpo político. No primeiro parágrafo do capítulo XVI do Leviathan, Hobbes afirma que “uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como as suas próprias, quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja verdade ou ficção”. Quando a pessoa pronuncia suas próprias palavras, consideramo-la uma pessoa natural; quando são consideradas como representantes de palavras ou ações de outro, chamamos de pessoa fictícia ou artificial. 22 Após explicitar a diversidade de coisas inanimadas (uma igreja, um hospital, uma ponte) que podem ser personificadas (por um reitor, diretor ou supervisor), assim como de indivíduos humanos que também podem ser representados (crianças, débeis, loucos), Hobbes afirma que “uma multidão de homens se torna uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz a pessoa ser uma”.23 Conforme adverte Skinner, Hobbes está aqui nos dizendo que “um representante é o nome de uma pessoa que assume o papel artificial de falar ou agir em nome de outra pessoa (ou outra coisa), de tal forma que as palavras e ações do representante podem ser atribuídas à pessoa sendo representada”.24
Quando uma multidão de indivíduos humanos firma um pacto pelo qual reconhece alguém como o seu representante comum a quem atribui uma autoridade soberana, essa multidão passa a ser uma unidade formada por indivíduos que se submetem a uma única vontade, cujas palavras e atos contam agora como sendo as palavras e atos de todo o corpo político como uma unidade. Ao firmar esse “contrato social”, a multidão cria duas pessoas artificiais, que não existiam no estado de natureza que antecedeu o pacto: a primeira delas é o soberano, a quem a multidão garante autoridade para falar e agir em seu nome; a segunda é a pessoa artificial que a multidão cria quando se torna uma unidade ao adquirir uma única vontade por autorizar um homem ou uma assembleia para servir como seu representante.25 Hobbes designa essa segunda pessoa artificial de common-wealth
22 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 138.
23 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 141.
24 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 344.
25 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 345.
ou Civitas, expressões que para Skinner significariam Estado, na linguagem que a seguir se tornaria predominante.26 É exatamente a essa pessoa artificial chamada de Estado que Hobbes se refere quando intitula sua obra de Leviathan. Pois bem, segundo Skinner, essa passagem é um marco na história política justamente porque estava então nascendo o conceito de Estado como uma pessoa artificial que representa a união de indivíduos humanos que vive sujeita a uma mesma autoridade soberana. Como uma entidade fictícia, o Estado é uma pessoa diferente tanto dos governantes quanto dos governados. Enquanto os soberanos, no sentido hobbesiano, são substituídos e os membros do corpo político nascem e morrem, “a pessoa do Estado permanece, incorrendo em obrigações e impondo direitos bem além do tempo de vida de seus súditos”.27
A teoria do Estado como pessoa fictícia de Hobbes foi logo assimilada pelo pensamento político e jurídico. Um exemplo dessa influência encontra-se no filósofo alemão Samuel Pufendorf (1632-1694), que em sua obra Os deveres do homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural, de 1673, afirma que “uma sociedade e governo civil, assim constituída, é encarada como se fosse apenas uma pessoa, e ela tem direitos e privilégios peculiares, os quais nem cada um apenas, nem muitos, nem todos juntos podem pretender para si próprios, sem ele, que é o supremo, ou a quem a administração do governo é confiada. Donde uma sociedade civil é definida como sendo uma pessoa moralmente incorporada, cuja vontade, contendo as convenções de muitos unidos, é encarada e considerada a vontade de todos”.28 Ou seja, pouco tempo depois de Hobbes estava já em curso no pensamento político o conceito de Estado como uma pessoa moral distinta das pessoas naturais que formam o corpo de uma comunidade política. A partir da obra de Pufendorf, esse conceito influenciou teóricos que se dedicavam a refletir sobre o que hoje chamamos de direito internacional e à época denominava-se jus gentium, ou direito das nações, entre eles destacando-se o suíço Emer de Vattel (1714-1767). O seu livro Le Droit des Gens, de 1758, teve enorme impacto nesse tema e marcou a consolidação da noção de Estado como pessoa ficta.29 A repercussão da obra de Vattel explicita o quanto o conceito de Estado como uma pessoa moral foi decisivo para pensar a teoria do Estado a partir também das relações internacionais, que passam a ser compreendidas como relações jurídicas entre Estados soberanos.30
26 A expressão inglesa common- wealth, empregada no original, é traduzida por “república” na tradução da Editora Martins Fontes, citada acima.
27 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 346.
28 PUFENDORF, Samuel. Os deveres do homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural. São Paulo: Topbooks, 2007, p. 293- 294.
29 VATTEL, Emer. O Direito das Gentes. Brasília: Editora UNB, 2004.
30 SKINNER, Quentin. The Genealogy of the Modern State. In: Proceedings of the British Academy, n. 162, 2009, p. 353- 354. Na obra política de Immanuel Kant, escrita nas últimas décadas do século XVIII, o conceito de Estado estava plenamente
O desenvolvimento do conceito teórico de Estado com o objetivo de compreender a experiência política ocorre justamente quando a história política começava a mudar radicalmente com a formação do Estado moderno na Europa, especialmente com o surgimento do Estado nacional. A estrutura do poder político na Idade Média havia sido caracterizada pela dispersão que se segue ao fim do Império Romano, no século V (476 d.C.), e pela multiplicação e diversificação de unidades de poder que foi típica da sociedade feudal. O que podemos chamar de poder político na Idade Média deixa de ser público e se torna um poder privado do senhor feudal sobre a pequena população que vive da produção agropecuária na propriedade senhorial. O elemento público do poder político europeu sobrevive na medida em que a Europa é toda ela o continente da cristantade (a Res publica Christiana) e o poder religioso e político da Igreja Católica unifica o território europeu e perpassa as centenas de unidades de poder que existiam na Europa Medieval.31
No entanto, a Idade Moderna caracteriza-se também pelo êxito do processo de centralização e consolidação territorial do poder político que resulta da capacidade de muitos líderes, reis, príncipes e assemelhados de imporem o seu domínio em todo um território delimitado e sobre ele governarem de modo estável como seu único soberano. Os novos soberanos dos Estados europeus enfrentaram e derrotaram tanto seus adversários internos quanto o poder político da Igreja Católica e passaram a dominar o poder temporal e o próprio poder espiritual, ao submeterem a religião ao seu comando.32 Conforme sintetizou o grande historiador britânico Eric Hobsbawn, “O típico estado moderno, que estivera se desenvolvendo por vários séculos, é uma área ininterrupta e territorialmente coerente, com fronteiras claramente definidas, governada por uma só autoridade e de acordo com um só sistema fundamental de administração e de leis”.33
Esse processo levou o moderno Estado nacional europeu a impor sobre toda a população que vivia em seu território aquilo que Max Weber denominou de “monopólio da violência legítima”, ou seja, o reconhecimento de que detém
consolidado e foi usado tanto para o estudo do conceito de direito público interno quanto nas reflexões sobre as relações entre os Estados nacionais. No ensaio Über den Gemeinspruch: Das mag in ter Theorie rightig sein, taugt abert nicht für Praxis (Sobre a expressão corrente: isso pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática), Kant usa a expressão Staat tanto para tratar do Staatsrecht, como direito público do Estado, como para tratar do Völkerrecht, ou seja, do direito dos povos no plano internacional. Ver KANT, Immanuel. Über den Gemeinspruch: Das mag in ter Theorie rightig sein, taugt abert nicht für Praxis. Zum Ewigen Frieden. Hamburgo: Feliz Meiner Verlag, 1992, p. 20- 48.
31 Por outro lado, conforme destaca Charles Tilly, às vésperas da formação do moderno Estado nacional, apesar das muitas diferenças internas, a Europa compartilhava uma homogeneidade cultural muito significativa, oriunda ainda da unificação do continente durante o Império Romano, que havia produzido na região “convergência de linguagem, direito, religião, prática administrativa, agricultura, posse de terras e talvez parentesco também”. Ver TILLY, Charles. Reflections ond the History of European State- Making. In TILLY, Charles (editor). The Formation of National States in Western Europe. New Jersey: Princeton University Press, 1975, p. 18.
32 LOUGHLIN, Martin. Foundations of Public Law. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 17- 90.
33 HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções: 1789- 1848. 9ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1994, p. 106.