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O NOvO CONCeitO

Material de Culpabilidade:

O fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Jéssica Razia

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduardO Ferrer MaC-GreGOr pOisOt

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações

Jurídicas da UNAM - México

Juarez tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

luis lópez Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

OweN M. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

tOMás s. vives aNtóN

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M481n

Mello, Sebástian Borges de Albuquerque

O novo conceito material de culpabilidade [recurso eletrônico] : o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana / Sebástian Borges de Albuquerque Mello - [2 ed ] - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023 recurso digital ; 1 MB

Formato: ebook

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5908-530-9 (recurso eletrônico)

23-82835

CDU: 343 222(81)

DOI: 10.53071/boo-2023-06-29-649ddb4117fa6

03/03/2023 08/03/2023

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

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no Brasil / Printed in Brazil
1. Direito penal - Brasil. 2. Culpa (Direito). 3. Livros eletrônicos. I. Título. Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

O NOvO CONCeitO

Material de Culpabilidade:

O fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana

dez aNOs depOis...

É com grande satisfação que chega ao leitor esta nova edição do conceito material de culpabilidade, fruto da tese de doutoramento em Direito pela Universidade Federal da Bahia, concluída em 2008, e que se transformou em livro, cuja primeira edição, lançada em 2010, encontra-se esgotada há algum tempo.

Diante do sucesso do livro, surgiu o desafio de não apenas relançá-lo, mas incorporar alguns estudos feitos ao longo deste tempo. É difícil a escolha entre manter o trabalho original ou fazer uma releitura do conceito material de culpabilidade, com os novos aportes trazidos nesta década em que muito se escreveu sobre tal questão.

Meus estudos sobre o tema não se encerraram com a publicação do livro. Orientei diversos trabalhos de mestrado e doutorado sobre culpabilidade no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, participei de diversas outras bancas e vi os novos aportes dogmáticos e criminológicos sobre o assunto.

Cheguei a pensar que não seria uma nova edição, mas um novo livro. Certamente, algumas abordagens, não feitas no trabalho original, demandariam destaque: um tópico específico sobre as posições de Schünemann e sua concepção que parte de um interacionismo simbólico entre ontologismo e normativismo; outro para as contribuições de Vives Antón e sua particular visão sobre as relações entre inexigibilidade, injusto e culpabilidade; e não poderiam faltar os aportes sobre as contribuições da neurociência nos estudos sobre culpabilidade e livre-arbítrio.

Ditas referências, tangenciadas na tese original, mereceram uma ampliação neste novo trabalho, para que ele pudesse ficar mais completo do ponto de vista sistemático e metodológico.

Além disso, senti necessidade de aprofundar a dissociação entre culpabilidade e prevenção, tão cara às teorias funcionalistas sobre culpabilidade. Existem relações necessárias entre culpabilidade e pena. Tal relacionamento, no entanto, não implica a inclusão da prevenção como elemento integrante ou substituto do conteúdo da culpabilidade.

Considerei necessário apontar que a definição material de culpabilidade não depende de uma teoria legitimadora da pena. Para tanto, faz-se necessário mostrar um viés agnóstico, que permite correlacionar culpabilidade e vulnerabilidade.

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Nada obstante os novos capítulos introduzidos, fiz uma criteriosa releitura e atualização dos conceitos. Para esta nova edição, mais de 50 obras novas foram citadas, acrescidas às quase 300 referências originais, com o compromisso de proporcionar ao leitor a mais completa visão possível sobre os estudos dogmáticos acerca da culpabilidade.

Ainda assim, preferi manter a estrutura do trabalho, respeitando a metodologia original e o marco teórico humanista, que vê na dignidade humana – sobretudo na proibição de instrumentalização do ser humano e no respeito a um conjunto mínimo de direitos fundamentais – o pilar da ideia de culpabilidade.

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apreseNtaçãO

Paul Fauconnet1 já exprimiu com precisão os sentimentos despertados pela violação das normas penais, afirmando que a transgressão de regras desta natureza produz reações intensas na sociedade. Com uma visão aproximada daquela do funcionalismo sistêmico sobre a função da pena, o autor diz que, quando o crime parece afetar o sistema, este se manifesta com toda sua autoridade para inspirar o respeito que lhe é devido. O pensamento está ligado às primeiras formas de oposição ao crime nas sociedades primitivas, mas ainda pode ser convocado para ilustrar a atitude de grupos sociais em face da infração.

A reação portanto, pode-se dizer, ainda é muitas vezes retributiva, impiedosa, consistindo de penas que vão desde o apedrejamento, à morte e ao confinamento em regime fechado, o que se opõe à compreensão do homem como ser livre dotado de dignidade.

Já foram desprezadas, em face do crescente catálogo de tipos incriminadores (muitos desconhecidos), a visão de que haveria algo especial na natureza dos atos considerados como sendo delito, o que justificaria as respostas do Direito Penal ao crime e ao criminoso.

A ideia de bem jurídico, já no século dezenove, tornou-se a mais competente para legitimar a oposição intensa do Estado à ação do autor. A ancoragem nas motivações derivadas da moral, da emoção ou do costume foram superadas pelas racionalizações que exigiam novas terminologias e construções. Portanto, não se pensa mais no delito como uma ofensa, ou profanação, a normas que correspondem a estados intensos de consciência, ou no criminoso como aquele que incorpora o mal em si mesmo. O processo de expansão do conhecimento exigiu justificações oferecidas pelas ciências2.

Na marcha pela construção de uma dogmática presidida pela razão, surge uma indagação fundamental durante o processo, qual seja, por que uma pessoa é escolhida em detrimento de todas as outras que estão ao redor de um fato para ser considerada culpada da prática de uma infração?

1 FAUCONNET, Paulo. La responsabilité. Paris: Alcan, 1920, p 232.

2 Apesar dessa observação, há uma teoria elaborada por Ernest Beling e Helmuth Mayer que se funda nas necessidades emotivas. Com base em estudos da psicologia dinâmica, pensa então a pena como uma forma de contraposição do Estado às necessidades emocionais profundas e inconscientes de seus cidadãos. Em: MOSELLI, Hélio. A função da pena à luz da moderna criminologia. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 5, n. 19, julho-setembro 1997. 39-46, p. 30.

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Fauconnet entendia que a função da sanção era de anulação do crime. Este, entretanto era fato3 passado. Então, “a sociedade suscita um símbolo ou um sinal que ela possa fazer, de boa-fé, o substituto do crime ocorrido” que é o criminoso. Ele deve suportar a pena pelo fato, tornando-se por ele responsável.

Por certo, essas considerações não resistem às construções contemporâneas do direito penal sobre a culpabilidade. Sua insuficiência, se fez acompanhar de elaborações cada mais refinadas, mas sucessivamente destruídas por outras com maior capacidade de oferecer novas razões para a sanção penal.

O autor desse trabalho dedicou-se a encontrar essas razões mediante um trabalho sério de pesquisa que perpassou pelas teorizações mais importantes, buscando, e pondo nisso sua fé e sua razão, o fundamento material da culpabilidade.

Propõe um critério negativo para frear o alcance do Estado sobre o indivíduo, que é a ideia de dignidade humana, a qual permite traçar um limite à intervenção punitiva, opondo um marco, uma referência, entre “a proporcionalidade e o abuso, entre a justiça e o excesso”. p. 19.

Por isso mesmo, ultrapassa as doutrinas tradicionais sem as ignorar. Examina com cuidado as tentativas de fundamentar ontologicamente a culpabilidade, mas sua preocupação não é com estas, nem com as teorias preventivas e sim com a evitação da possibilidade de imputação de um fato a uma pessoa como responsável quando esta se encontra em determinadas condições de vulnerabilidade social e econômica. Nesse sentido, equipara à impossibilidade de exercício do direito fundamental de liberdade, a conduta de pessoas que não tiveram oportunidade de ter “assegurado o direito a firmar sua identidade social, política, racial, religiosa, e sexual” p. 397. Propõe, nesses casos, um juízo de inculpabilidade baseado na inexigibilidade de conduta diversa, porque os destinatários da norma são sujeitos que não tiveram como participar ou conhecer a construção da ilicitude. Posição assemelhada à de Klaus Gunther, que afirma ser a imposição do direito baseada em uma concepção comunitária de pessoa, ou seja, na capacidade de se comportar criticamente e “seguir os próprio motivos acolhidos, de executar, pois um ato volitivo”.

A ideia de culpabilidade restringida em sua primeira configuração ao dolo e à culpa, foi sendo aperfeiçoada, em razão de sua insuficiência teórica e político-criminal, passando a incluir cada vez mais elementos referidos a valor. Ter-se-ia perdido ou seria dispensável, delegando-se ao aplicador um juízo concreto em cada caso?

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3 Op. Cit. p. 229.

Klaus Gunther,4 diante da dificuldade de obtenção de um conteúdo limitativo da culpa, afirma que as posições que lhe conferem o fundamento de liberdade - possibilidade de agir de outro modo no momento do fato - baseiam-se numa ficção e tratam o autor como pessoa ética ou não de direito. Isso ocorreria porque o culpado atuaria contra seus “bons motivos agindo na contradição a si mesmo”. Já as teorias preventivo-funcionais assumiriam, no mesmo entendimento, a culpa jurídico penal como uma ficção, já que seu conteúdo possível é a necessidade social.

O autor do presente trabalho não dispensa o mesmo tratamento ao instituto, que compreende não ser uma criação exclusiva do direito penal e que entende ter, ademais, uma existência indispensável na determinação de critérios para atribuição do fato criminoso. Em verdade, o foco posto na finalidade parece indicar que ocorre uma racionalização do conceito, no sentido de que se caminha em um processo preocupado com considerações de natureza teleológica, no caso específico, atrelado às funções da pena.

Ou seja: a questão que remanesce diz respeito a existência de um sentido da expressão culpabilidade que se refira a um ente específico com atributos próprios. Em caso de resposta negativa, parece que, como nas sociedades primitivas, o fim da pena, seria mesmo pacificar a consciência coletiva, mas desta feita com justificativas elaboradas.

Há que se reconhecer que a escolha dos elementos que integram a culpabilidade tem inegáveis ressonâncias políticas, o que, de fato, pode pressupor essa conexão entre os seus elementos e suas consequências. Por isso mesmo, muito bem vindas as considerações de Sebastian Mello no sentido de propor novos elementos que impeçam a reação puramente emocional ao crime e ao culpado e se dirijam no sentido de concretizar a dignidade humana. A obra vasta, clara e sólida constitui um trabalho raro na literatura jurídico-penal brasileira leitura indispensável e fácil compreensão.

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Maria auxiliadOra MiNahiM Profa. Titular de Direito Penal da UFBa. 4 GUNTHER, Klaus. A culpabilidade no direito penal atual e no futuro. Revista Brasileira de Ciências. São Paulo: RT Criminais, ano 6, n. 24, out-dez. 1998, pp79-92, p. 79
iNtrOduçãO ...................................................................................................... 13 1. a diGNidade da pessOa huMaNa, direitOs FuNdaMeNtais e O direitO peNal ... 19 1.1. Poder Punitivo e Dignidade Humana ........................................................................ 19 1.2. A busca de um conceito de dignidade humana .......................................................... 22 1.3. A concepção moderna de dignidade. O pensamento de Kant .................................... 29 1.4. A dignidade da pessoa humana numa perspectiva jurídica: sua relação com Direitos Humanos e Direitos Fundamentais .................................................................................. 38 2. estadO de direitO, direitOs FuNdaMeNtais e direitO peNal. Os direitOs peNais FuNdaMeNtais que realizaM a diGNidade huMaNa ................................. 48 2.1. O Direito Penal e Estado De Direito. O respeito à dignidade humana como paradigma da intervenção punitiva .................................................................................................... 48 2.2. A legalidade como primeira concretização da dignidade humana no direito penal. A constituição e o direito penal ........................................................................................... 52 2.3. Outras dimensões penais da dignidade humana no direito penal: lesividade, intervenção mínima e humanidade das penas ..................................................................................... 68 3. a Culpabilidade e sua relaçãO COM a diGNidade da pessOa huMaNa ................ 79 3.1. As origens do moderno conceito de culpabilidade. A responsabilidade pessoal e subjetiva ........................................................................................................................... 80 3.2. A culpabilidade e o livre-arbítrio clássico 91 3.3. A derrocada do livre-arbitrio e a ascensão do positivismo .......................................... 96 4. O CONCeitO de Culpabilidade Na teOria dO delitO. da CONCepçãO psiCOlóGiCa até a Culpabilidade NOrMativa ........................................................................ 100 4.1. Teoria Psicológica da Culpabilidade......................................................................... 101 4.2. O caminho para a culpabilidade normativa. Frank, Goldschmidt, Freudhenthal, Eberhard Schmidt e Mezger ........................................................................................... 108 4.2.1. Reinhard Frank e a reprovabilidade da conduta .................................................. 115 4.2.2. Goldschmidt e a violação da norma de dever 118 4.2.3. Freudenthal e a causa geral de exculpação supralegal .......................................... 121 4.2.4. Eberhard Schmidt e a generalização da teoria normativa. A recorrência ao homem médio .......................................................................................................................... 126 4.2.5. Mezger e o conceito complexo de culpabilidade 127 4.2.6. Importância da teoria psicológico-normativa da culpabilidade e sua relação com uma concepção de dignidade da pessoa humana 131 4.3. O finalismo e a teoria normativa pura da culpabilidade ........................................... 134 4.3.1. O fundamento material da culpabilidade no finalismo. A concepção de livre-arbítrio em Welzel e o “poder atuar de outro modo” ................................................................. 140
suMáriO
5. a busCa de uMa alterNativa aO “pOder atuar de OutrO MOdO”. a Culpabilidade NO pós-FiNalisMO ............................................................................................ 144 5.1. A ascensão e a crise do finalismo na segunda metade do Século XX. As críticas ao “poder atuar de outro modo” 145 5.2. O contexto histórico do pós-finalismo. A nova dimensão da dignidade humana, o neoconstitucionalismo e a nova dimensão dos direitos fundamentais 154 5.3. Os novos direitos fundamentais decorrentes do neoconstitucionalismo. Ponderação com direitos fundamentais em matéria penal 162 6. a Culpabilidade pós-FiNalista Na dOutriNa aleMã ....................................... 176 6.1. A culpabilidade e o paradigma do homem médio. A atitude interna juridicamente desaprovada. Gallas, Jeschek e Wessels ............................................................................ 178 6.2. A culpabilidade e os fins preventivos na doutrina de Claus Roxin ............................ 190 6.3. A prevenção geral positiva como o fundamento da culpabilidade. A Tese de Jakobs..... 201 6.4. A culpabilidade como limite da pena e o princípio da proporcionalidade. A Tese de Winfried Hassemer ........................................................................................................ 215 6.5. A culpabilidade em decorrência da teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas: a pessoa deliberativa, de Klaus Günther, e a deslealdade ao direito, de Kindhäuser ............. 222 6.5.1. A pessoa deliberativa em Klaus Günther ............................................................ 224 6.5.2. A infidelidade ao direito em Kindhäuser 229 6.5.3. Análise crítica das concepções de culpabilidade inspiradas na legitimidade normativa através dos procedimentos discursivos que legitimam a formação das normas jurídicas... 236 6.6. Bernd Schünemann e o interacionismo simbólico entre ontologismo e normativismo .... 239 7. O pós-FiNalisMO e a Culpabilidade Na peNíNsula ibériCa .............................. 244 7.1. A negação da culpabilidade no pensamento de Gimbernat Ordeig .......................... 244 7.2. A ideia de liberdade desenvolvida por Figueiredo Dias ............................................ 250 7.3. A culpabilidade relacionada com motivabilidade na doutrina de Mir Puig e Muñoz Conde ............................................................................................................................ 255 7.3.1. Mir Puig e o conceito de imputação pessoal ....................................................... 256 7.3.2. A motivabilidade em Muñoz Conde ................................................................. 259 7.3.3. Observações críticas 263 7.4. A exigibilidade social no pensamento de Bustos Ramirez e Hormazábal .................. 267 7.5. O pensamento de Vives Antón e a culpabilidade a partir da ação significativa e da linguagem ...................................................................................................................... 274 7.6. A importância do paradigma normativista e a reação finalista no pensamento de Cerezo Mir, Gracia Martin e Hans Joachim Hirsch. Panorama das questões centrais sobre culpabilidade material na contemporaneidade 282 8. Culpabilidade, peNa e preveNçãO ................................................................ 287 8.1. A importância da pena na concepção material de culpabilidade. Culpabilidade e prevenção ....................................................................................................................... 298 8.2. A incompatibilidade entre a pena retributiva e um conceito material de culpabilidade num estado democrático de direito ................................................................................ 305
8.3. As diversas teorias da prevenção e sua relação com o conteúdo material de culpabilidade 310 8.4. A teoria agnóstica da pena e a irracionalidade no exercício do poder punitivo ......... 322 9. uM CONCeitO Material de Culpabilidade à luz dOs direitOs FuNdaMeNtais de liberdade e iGualdade .................................................................................... 328 9.1. A polêmica sobre o livre-arbítrio e o determinismo. A liberdade humana como decisão política e jurídica de um estado democrático de direito 332 9.1.1. As pesquisas neurocientíficas e o livre arbítrio ................................................... 334 9.1.2. A neurociência e as novas tensões no conceito de culpabilidade ......................... 337 9.1.3. A liberdade e o Estado Democrártico de Direito ................................................ 340 9.2. A insuficiência da liberdade humana como fundamento material da culpabilidade. A recorrência ao direito fundamental de igualdade ............................................................. 359 CONClusões .................................................................................................... 381 reFerêNCias bibliOGráFiCas ............................................................................. 388

iNtrOduçãO

Numa cidade do interior do Estado da Bahia, um sujeito dirigiu-se a uma delegacia de polícia para oferecer notitia criminis, alegando ter sofrido, por parte de um estranho, uma agressão que resultara em lesão corporal gravíssima. Alegava que o estranho, após uma discussão num bar, pegara um machado e desferira um golpe contra seu braço esquerdo, na altura do punho, decepando-lhe a mão. O sujeito compareceu à delegacia com o braço esquerdo ensanguentado, sem a mão, envolto numa faixa suja e manchada de sangue. Era visivelmente humilde, pouco esclarecido e estava muito nervoso.

O delegado de polícia, diante do referido quadro, começou a questionar a vítima sobre as condições e circunstâncias nas quais a agressão teria ocorrido, bem como em relação à identidade do seu autor. O sujeito narrava os fatos de maneira confusa e contraditória. A cada nova pergunta, surgiam versões conflitantes. Após alguns minutos, foi constatada a fraude: o homem, na verdade, não fora agredido. Ele cortara a própria mão com o escopo de obter a indenização do valor do seguro. Foi preso em flagrante.

O sujeito lesou o próprio corpo por dinheiro. O que o levou a tomar tal atitude? Ganância, usura, ambição, amor ao dinheiro fácil? Uma interpretação generalizante, que descartasse as circunstâncias concretas nas quais o indivíduo se encontrava, conduziria a uma resposta fácil e cômoda, porém equivocada. No entanto, uma análise detalhada demonstrou que a autolesão, ainda que para receber dinheiro, não fora ato de cobiça, mas de desespero; o sujeito foi de encontro à própria natureza humana e ao instinto de preservação da sua integridade física.

O indivíduo, ao cometer tal ato, fora motivado por uma necessidade premente e urgente de dinheiro, a tal ponto de mutilar-se. Quem o fez certamente não teve a dimensão da natureza e das consequências do ato que praticara. Ninguém deseja, como ideal de felicidade, ter partes do seu corpo mutiladas, com comprometimento sério e permanente da saúde, mesmo que isto represente um acréscimo financeiro. Na lesão dolosa ao próprio corpo, o segurado, ainda que ganhe dinheiro, sai perdendo, vez que dinheiro é bem fungível, e sua integridade física pode ficar definitivamente comprometida.

Não tendo o segurado de onde obter recursos, apelou para o que havia de mais íntimo e pessoal: sua integridade física, e, com ela, sua dignidade. Não é a cupidez que impulsiona um ato que atinge, muitas vezes em caráter permanente, a saúde do “ofensor”, mas a ausência de perspectivas, uma situação crítica, a ponto de se buscar uma fonte de receita à custa de uma mutilação.

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No entanto, a referida conduta é prevista como crime no artigo 171, § 2º, inciso V do Código Penal Brasileiro. Presentes os requisitos que configuram, em tese, o injusto típico, deve-se investigar a razão de se impor uma pena a este indivíduo concreto. Tomou-se conhecimento da situação de extrema penúria financeira em que se encontrava o indivíduo. E antes mesmo de se pensar na culpabilidade, pensa-se na dignidade deste sujeito, nas suas particularidades, características, condições e motivações. Mais do que ganância, desespero; mais piedade do que censura. Sua condenação, com a consequente imposição da sanção penal, certamente causaria um sentimento de injustiça, diante do mal sofrido, autoinfligido.

Há legitimidade para a imposição da pena nesse caso? Há algum fundamento jurídico-penal que possa justificar a absolvição desse homem? É possível buscar soluções no campo do injusto, ou mesmo nas finalidades preventivas da pena. Contudo, o caminho para justificar ou não a imputação da sanção penal ao referido sujeito está no juízo de culpabilidade.

A pena imposta e aplicada representa a forma mais intensa de atingir a pessoa humana e seus direitos fundamentais. Não se conhece uma forma oficial mais ignominiosa de se ofender, de modo supostamente legítimo, a dignidade humana. Justificar a imposição da pena a um indivíduo é caminhar no estreito limite entre o jus puniendi estatal e as garantias individuais que limitam o poder punitivo. Quando se tenta justificar a imposição da pena no caso concreto, os conflitos e as antinomias revelam-se mais contrastantes e dramáticos. E, com isso, recorre-se ao juízo de culpabilidade, que paulatinamente se firmou como forma de pessoalizar e subjetivizar a imputação penal, respeitando o valor intrínseco da pessoa humana.

A culpabilidade é dos conceitos mais difíceis, não apenas na Teoria do Delito, mas no conhecimento humano de um modo geral. A discussão sobre seu conteúdo envolve questões éticas, teológicas, sociológicas, filosóficas, estando longe de haver um consenso sobre seu alcance e delimitação. No âmbito jurídico-penal, a culpabilidade é vista como princípio, como fundamento e como limite da pena. Representa, formalmente, um juízo de imputação, pelo qual se estabelecem critérios para atribuir a pena a um indivíduo determinado. Do ponto de vista material, representa uma tentativa de legitimar o direito de punir no caso concreto. A busca desta legitimação tem acompanhado a história da humanidade, como uma justificativa para a imposição da pena.

A culpabilidade é o único instituto, na Teoria do Crime, capaz de individualizar a imputação e justificar a imposição da pena no caso concreto. E a dignidade da pessoa humana vai ser o princípio, o referente axiológico a partir do qual vai ser construída a noção de culpabilidade. Relacionando-se culpabilidade

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com dignidade humana, será possível justificar as razões pelas quais a pena, em abstrato, pode ser atribuída a um indivíduo concreto, sem que isso represente uma instrumentalização do ser humano através da funcionalização do Direito Penal que alude fins meramente preventivos.

Uma concepção de ser humano vai estar refletida em qualquer definição de culpabilidade, que desempenha uma função de garantia, para legitimar e limitar o exercício do jus puniendi, bem como fornecer critérios para a individualização da imputação, tendo como paradigma os direitos fundamentais que concretizam a dignidade humana no âmbito jurídico.

A hipótese deste trabalho é demonstrar que há um conceito material de culpabilidade, tendo como alicerce o princípio constitucional da dignidade da pessoa, bem como os direitos fundamentais de liberdade e igualdade dele decorrentes. A conceituação material de culpabilidade, mais do que limite, é sustentáculo da imposição da pena a um indivíduo concreto.

Objetiva-se, com isso, buscar um fundamento material de culpabilidade no reconhecimento do ser humano como fim em si mesmo, e que somente pode ser plenamente responsabilizado quando estiver no exercício dos direitos fundamentais inerentes à sua condição humana. A pessoa deve ser julgada como portadora de um valor mínimo intrínseco, igual para todo ser humano, mas também como ser único e irrepetível, com particularidades, valores, pormenores e idiossincrasias próprias da condição humana, os quais devem ser levados em consideração para que seja minimamente legítima a imposição da pena em face das condições e circunstâncias pessoais do autor da infração. Cumpre à culpabilidade analisar as peculiaridades do indivíduo concreto e averiguar se este deverá ou não, em face da ordem jurídica vigente, sofrer a ignomínia que a sanção penal representa, pois nem o conceito de injusto, nem as finalidades preventivas logram êxito em demonstrar as razões da imputação pessoal da pena.

Este trabalho está estruturado em capítulos que abordam, numa análise histórica e sistemática, a evolução das compreensões acerca da dignidade humana e sua relação com o Direito Penal; em seguida, situa-se a culpabilidade como densificação penal da dignidade humana, buscando, nessa perspectiva, a origem da ideia de culpabilidade como elemento integrante da Teoria do Crime, chegando às mais recentes contribuições para a delimitação de seu conceito.

A abordagem busca, sobretudo, trazer os principais aportes da doutrina ibérica e germânica sobre a culpabilidade, pela sua relevância no contexto jurídico internacional, e pelas repercussões trazidas pelas referidas escolas na doutrina brasileira.

Para investigar, então, o fundamento material da culpabilidade em face da dignidade da pessoa humana, é preciso delimitar os conceitos, tendo em vista que

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dignidade, culpabilidade, liberdade, igualdade e prevenção são expressões que possuem inúmeras definições divergentes e amiúde contraditórias, o que implica o risco de se transformarem em expressões meramente retóricas e formais, sem qualquer alicerce material para delimitar seus respectivos conteúdos.

Busca-se, no primeiro capítulo, uma concepção de dignidade humana, que corresponde a uma compreensão e valoração do homem sobre si mesmo. O ser humano, tido como pessoa, é visto como ser diferenciado, distinto dos demais seres e objetos presentes na natureza, por possuir características físicas, morais e intelectuais que o fazem valioso, especial, merecedor de um tratamento compatível com tal situação. É o que se costuma chamar de eficácia vertical da dignidade humana.

Vista inicialmente como um conceito graduável, dependendo de fatores como classe, raça, sexo, filiação ou condição social, a dignidade modernamente passou a ser compreendida como um atributo de todo e qualquer ser humano, independentemente de qualquer outra condição, no que se convencionou denominar eficácia horizontal da dignidade humana, que corresponde, no âmbito jurídico, à aptidão para ser titular de direitos fundamentais sem os quais a condição humana se vê diminuída, aviltada, atingida.

Na medida em que o sujeito é titular de direitos fundamentais adquiridos e acumulados historicamente, vão surgindo limites aos direitos de punir, justamente em respeito à dignidade humana e aos direitos dela recorrentes. Surgem princípios como legalidade, lesividade, intervenção mínima e humanidade das penas, todos eles visando limitar o poder punitivo e assegurar o mínimo necessário à preservação e à valorização do ser humano, que são tratados no segundo capítulo.

Entre os princípios limitativos do poder punitivo, destaca-se a culpabilidade, como juízo de imputação, capaz de personalizar e individualizar a imposição da pena, como resposta a modelos que pregavam a responsabilidade penal objetiva e solidária.

A culpabilidade, como mero juízo da imputação subjetiva e pessoal, é um pressuposto necessário, mas insuficiente à preservação da dignidade humana. Nesta linha, a doutrina tem buscado, com mais intensidade a partir do final do século XIX, justificar o fundamento material da imputação, para legitimar a imposição da pena.

Necessário, pois, fazer um histórico do embasamento material da culpabilidade, desde a concepção psicológica e determinista de Von Liszt, passando pelos diversos postulados normativistas, como as ideias de Frank, Goldschmidt e Freudenthal, mais voltadas para uma culpabilidade que representa um juízo de reprovação no caso concreto para que se atenda a postulados valorativos de justiça, contudo, fazendo referência a postulados mais generalizantes, também sob a

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égide do normativismo, como os posicionamentos de Graf zu Dohna, Eberhard Schmidt e Mezger.

Uma das questões centrais do conceito de culpabilidade, tratada no presente trabalho, é sobre o fundamento material da culpabilidade finalista, sustentada por Welzel como o “poder atuar de outro modo”, alicerçada numa visão de ser humano dotado de liberdade de escolha, uma liberdade inicialmente concebida como ontológica, própria da natureza das coisas.

Pode-se dizer que a discussão sobre a moderna compreensão de culpabilidade passa, necessariamente, por uma tomada de posição, aceitando ou rechaçando, o fundamento material de culpabilidade finalista. Neste trabalho, observa-se a referida compreensão a partir da perspectiva da dignidade humana, que ganhou espaço e dimensão constitucional nos anos que sucedera, ao fim da Segunda Guerra Mundial, época do apogeu da Teoria Finalista da Ação.

A contemporânea concepção de dignidade deve adequar-se a novos direitos decorrentes de um Estado Constitucional e Democrático que prega a diversidade, o pluralismo e tolerância. Isto contribui para que a culpabilidade se individualize, a despeito das dificuldades encontradas na sociedade de massas.

As críticas ao “poder atuar de outro modo”, por sua vez, representam o mote para a discussão acerca das mais relevantes teorias, nas doutrinas germânica e ibérica, sobre o conteúdo material da culpabilidade. Na doutrina germânica, discute-se o paradigma do homem médio como alternativa sustentada por Jescheck e Wessels; a tentativa de Hassemer de substituir a culpabilidade pela proporcionalidade; o funcionalismo de Roxin, em que culpabilidade e prevenção limitam-se mutuamente, e seu conceito de dirigibilidade normativa; o funcionalismo de Jakobs, em que a culpabilidade se rende à prevenção, além das relações entre culpabilidade e igualdade; as ideias de Habermas sobre legitimidade da formação das normas jurídicas, que se concretizam nas concepções de Gunther e Kindhauser; por fim, o interacionismo simbólico proposto por Schünemann.

Na doutrina ibérica, contesta-se a polêmica tese de Gimbernat sobre a inutilidade do conceito de culpabilidade; a concepção de liberdade de ser a que se refere Figueiredo Dias; a motivabilidade pelas normas, nas concepções de Muñoz Conde e Mir Puig; a exigibilidade social sustentada por Bustos Ramirez e Hormazábal, ou mesmo a ação significativa de Vives Antón. Todas estas concepções criticam o “poder atuar de outro modo”, ao que reagem finalistas contemporâneos como Cerezo Mir e Hirsch, os quais sustentam, cada um com seu fundamento, a sobrevivência da ideia sustentada por Welzel.

Recorre-se, no final, às tomadas de posição sobre a teoria da culpabilidade. Adequada aos preceitos constitucionais, uma culpabilidade jurídica e individualizada, que não se adapta a uma noção moralizante de censura, e se desvincula

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das supostas finalidades preventivas da pena. Culpabilidade esta que implica uma compreensão de ser humano nas dimensões de liberdade e igualdade, e que é responsável na medida em que pode exercer seus direitos e garantias fundamentais. Analisar a culpabilidade à luz da dignidade humana significa observar o ser humano e seus direitos fundamentais, como limites: 1) ao poder punitivo do Estado; 2) às alegadas funções preventivas da pena. Busca-se um embasamento que firme o direito de punir com algum grau de respeito à condição humana. Optou-se por não se fazer uma análise detalhada de cada uma das causas de exclusão da culpabilidade. Não se trata de um estudo esquemático sobre as causas de exculpação, em que se analisa imputabilidade, potencial conhecimento do injusto e exigibilidade. Os referidos elementos, que se firmaram como integrantes do conceito formal de culpabilidade, são mencionados para confirmar ou rechaçar o fundamento material aqui apresentado, em face dos direitos fundamentais que concretizam a dignidade humana, notadamente os de liberdade e igualdade.

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1. a diGNidade da pessOa huMaNa, direitOs FuNdaMeNtais e O direitO peNal

1.1. pOder puNitivO e diGNidade huMaNa

O exercício do poder punitivo pelo Estado representa, obrigatória e necessariamente, uma vulneração aos direitos fundamentais do ser humano. A intervenção penal é violenta, seletiva, discriminatória e estigmatizante. Cada pessoa, ao ser acusada, processada, julgada e punida pelo Estado, se vê aviltada, humilhada, diminuída em sua condição humana. Caso fosse possível enxergar a realidade da intervenção penal como um observador de Marte, este espectador ideal externo – na linha do que sugere Popper1 – certamente estranharia a maneira com a qual os seres humanos, por intermédio do Estado, tratam alguns de seus semelhantes através do Direito Penal. A pena, vista como ponto de referência comum a todos os preceitos jurídico-penais2, tida como aquilo que caracteriza o Direito Penal ante aos demais setores do ordenamento jurídico3, tem amiúde representado uma capitis diminutio da condição humana, mesmo em tempos contemporâneos. E, nessa linha de raciocínio, os critérios pelos quais se definem as condutas criminosas terminam por determinar situações em que seres humanos serão privados de direitos fundamentais, ou têm parte destes direitos – tidos como indispensáveis – diminuídos, reduzidos, de forma direta ou de forma reflexa, a partir do estigma que enseja uma investigação, um processo ou uma condenação penal.

O Direito Penal representa uma forma de impor sofrimento ao ser humano. Como assevera Basileu Garcia, ainda que se procure afastar da pena seu caráter aflitivo, é desta forma que ela é recebida por seus destinatários4. Embora represente violação à mínima condição humana de seus semelhantes, todas as culturas ou civilizações buscam justificar a pena. Tão antiga quanto a história da pena é a história da justificação do direito de punir. A intervenção penal retira ou diminui a condição humana das pessoas, tornando-as semelhantes a coisas ou

1 POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. Trad. Estevão de Resende Martins, Apio Claudio Muniz Acquarone e Vilma de Oliveira Morais e Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 20-21.

2 ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I: Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid: Thomsom-Civitas, 2003, p. 41.

3 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Conceito e método da ciência do Direito Penal. Trad. José Carlos Gobbis Pagliuca. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 19.

4 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4. ed. 36. tir. São Paulo: Max Limonad, 1973, v. 1, t. II, p. 406.

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a animais. Aquele que é processado tem seu valor humano afetado e diminuído. Contudo, em face da necessidade humana de justificar qualquer comportamento, ainda que absurdo, irracional ou arbitrário, discursos tentam legitimar tais ingerências, dando um aspecto de justiça, racionalidade ou utilidade à intervenção penal, que ocorre de maneira intensa e violenta. Ferrajoli sustenta que o problema de justificação do Direito Penal sempre veio acompanhado de indagações sobre o direito de punir, de proibir e de julgar. E, sobre tais direitos, pairam quatro perguntas específicas: se, como, quando e por que punir, proibir e julgar5.

O ser humano tem procurado legitimar a intervenção penal por meio de inúmeros fundamentos, aqui enumerados alguns: 1) porque se entende que o sujeito-objeto da intervenção mereceu sofrer a sanção penal (e, por consequência, foi diminuído ou privado de sua humanidade); 2) porquanto infringiu as normas mínimas de convivência; 3) porque violou as normas éticas, morais ou religiosas do grupo; 4) pelo motivo da punição servir como exemplo para evitar que outros seres humanos pratiquem novas infrações; 5) a fim de que o valor contido na norma seja confirmado; 6) por se entender que o condenado possui alguma espécie de “defeito” que necessita ser corrigido para que ele retorne ao convívio social. Qualquer que seja o fundamento, o Direito Penal, enquanto existir, estará no centro do debate sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais a ela inerentes. Esta controvérsia surge desde o questionamento acerca da necessidade ou utilidade da intervenção penal, bem como sobre suas razões e limites, isto é, saber por que, quando, como e em que medida é possível admitir a ingerência punitiva do Estado. E qualquer discussão nesta linha passa pela ideia de dignidade, de direitos fundamentais e de proporcionalidade. Não se pode pensar o Direito Penal sem ter em vista que aquele que é julgado, processado e condenado é um ser humano, e, como tal, possui um valor intrínseco mínimo que merece ser preservado.

A intervenção penal, seja qual for a justificativa pela qual é exercida, coloca-se em oposição à ideia de dignidade da pessoa humana. Isto porque é com a intervenção penal que a dignidade deixa de ser um valor absoluto, e é através do Direito Penal que o Estado atinge de forma mais intensa a dignidade humana, vez que representa a mais aguda ingerência do poder punitivo na esfera dos direitos fundamentais do ser humano. Desta maneira é que o exercício do jus puniendi caminha no limite entre a proporcionalidade e o abuso, entre a justiça e o excesso. Existe um paradoxo que envolve Direito Penal e dignidade da pessoa humana. Dizem Jescheck e Weigend que o poder punitivo do Estado é, ao mesmo tempo,

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5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 169.

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