
Organizadores

Gustavo Borges
Maria Aparecida Dutra Bastos
Maurilio Casas Maia
Vitor Guglinski
Organizadores
Gustavo Borges
Maria Aparecida Dutra Bastos
Maurilio Casas Maia
Vitor Guglinski
PersPectivas sul-americanas da lesão temPoral
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Diagramação e Capa: Analu Brettas
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
eduaRdo FeRReR maC-GReGoR poisoT
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
JuaRez TavaRes
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
luis lópez GueRRa
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owen m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
Tomás s. vives anTón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
E67 Eroud, Aicha de Andrade Quintero
Tempo e responsabilidade civil : perspectivas sul- americanas da lesão temporal [livro eletrônico] / Aicha de Andrade Quintero Eroud...[et al.]; Gustavo Borges, Maria Aparecida Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia, Vitor Guglinski (org); prefácio Nelson Rosenvald; prelúdio Fernando Rodrigues Martins. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.
1Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-604-7.
1.Responsabilidade civil. 2. Direito do consumidor. I. Título.
CDU: 347.5(8)
Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
DOI: 10.53071/boo-2023-07-10-64ac738c3a533
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Organizadores
Gustavo Borges
Maria Aparecida Dutra Bastos
Maurilio Casas Maia
Vitor Guglinski
PersPectivas sul-americanas da lesão temPoral
Apresentação
Claudia Lima Marques e Laís Bergstein
Prefácio
Nelson Rosenvald
Prelúdio
Fernando Rodrigues Martins
Autores
Aicha de Andrade Quintero Eroud
Arturo Caumont
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
César Carranza Álvarez
Dora Szafir
Fábio Campelo Conrado de Holanda
Fernando Antônio Lima
Gustavo Borges
Hillary Marks
Jeremias Reis Comaru
Luis Carlos Pineda Acosta
Luiz Fernando Perez Pinto Tonholi
Manoela Marli Jaqueira
Marcela Guimarães Barbosa da Silva
Mariana M. Carlessi
Maurilio Casas Maia
Milena Pires Fajardo
Olga Alejandra Alcántara Francia
Roberta Pereira Ramos
Rodrigo da Guia Silva
Sergio Sebastián Barocelli
Tammy Fortunato
Livro em homenagem a maRCos dessaune (Espírito Santo-Brasil), proponente da “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor”, que há mais de uma década inspira debates protetivos aos mais vulneráveis em sua dimensão temporal.
“Tempo e Responsabilidade Civil” - obra coletiva organizada por Gustavo Borges, Maria Aparecida Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia e Vitor Guglinski
Sobre os ombros de gigantes: a conhecida expressão em latim nanos gigantum humeris incidentes bem representa o desenvolvimento da ciência e da técnica. Mas também no Direito as contribuições científicas frequentemente são desenvolvidas com base nas descobertas e pesquisas anteriores. A presente obra coletiva, intitulada “Tempo e Responsabilidade Civil” e organizada por Gustavo Borges, Maria Aparecida Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia e Vitor Guglinski, é um belíssimo exemplo do aperfeiçoamento e da sofisticação técnica alcançados nos últimos anos nos estudos jurídicos acerca da tutela do tempo do consumidor, o que foi possível a partir de um esforço coletivo.
Há muitos anos pesquisas de grandes juristas apontam a necessidade de se pensar e cuidar desse aspecto da personalidade humana, a exemplo de Carlos Alberto Ghersi, demonstrando que o dano ao ócio é valorável e quantificável1, Cristiano Paixão Araujo Pinto2, abordando uma dimensão temporal do Direito a partir da obra de Niklas Luhmann, mas em especial François Ost, com a obra fundamental “Le temps du droit”3, que renovou o pensamento francês quanto à divisão dos ônus do passar do tempo. Diversos estudos apontavam à conclusão de que “a valorização do tempo, e consequentemente, seu menosprezo, passam a ser identificados como fatores relevantes pelo direito.”4
Em 2011, ao prefaciar a obra monográfica de Marcos Dessaune, intitulada “Desvio produtivo do consumidor”5, percebemos no tema uma verdade intuitiva: uma nova consciência sobre o tempo que nos conduz à conclusão de que a passagem do tempo deveria ser favorável ao consumidor, sujeito vulnerável constitucionalmente protegido em suas relações com os fornecedores. E quando da publicação da primeira edição da obra O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis6,
1 GHERSI, Carlos Alberto. Valuación económica del dano moral y psicológico: dano a la psiquis. Buenos Aires: Astrea, 2000. p. 128 e ss.
2 PAIXÃO ARAUJO PINTO, Cristiano. Modernidade, tempo e direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 299.
3 OST, François. Le temps du Droit. Paris: Editions Odile Jacob, 1999. No Brasil, veja: OST, François. O tempo do direito. Tradução: Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005.
4 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 205.
5 DESSAUNE, Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
6 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 1. ed. São Paulo: Revista dos
escrita em coautoria com Bruno Miragem, a valorização do tempo do consumidor já era considerada uma tendência de futuro.
A Revista de Direito do Consumidor assumiu, dado o seu enfoque editorial, o protagonismo na publicação de pesquisas relacionadas à tutela do tempo do consumidor. Talentosos pesquisadores abordaram essa problemática com diferentes vieses, como Sergio Sebástian Barocelli7, Maurilio Casas Maia8, Vitor Vilela Guglinski 9, Rene Edney Soares Loureiro e Héctor Valverde Santana 10, Gustavo Borges11, Lucas Abreu Barroso e Lúcio Moreira Andrade12, Simone Maria Silva Magalhães13, dentre outros. Na sequência, novas obras e perspectivas foram lançadas sob o menosprezo ao consumidor14, o dano temporal15 e a responsabilidade civil pelo tempo perdido16.
Mais recentemente, a Lei do Estado do Amazonas, Lei 5.867/2022, lançou novas luzes sobre o tema17, o que releva que a necessidade de proteção a esse especial bem jurídico extrapolou a doutrina e jurisprudência e foi percebida também pelo legislador. O potencial de reprodução dessa iniciativa e o amadurecimento das discussões doutrinárias observado nos últimos anos justifica a ampliação dos debates e pesquisas sobre a responsabilidade civil relacionada à lesão ao tempo.
E sobre essas bases sólidas de pesquisa nacional e internacional que chegamos à presente obra, organizada pelos pesquisadores Gustavo Borges, Maria Aparecida
Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia e Vitor Guglinski, em uma perspectiva inova-
Tribunais, 2012.
7 BAROCELLI, Sergio Sebástian. Cuantificación de daños al consumidor por tiempo perdido. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 90, p. 119-140, nov.-dez., 2013.
8 MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo: quando o tempo é mais que dinheiro - é dignidade e liberdade. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 92, p. 161-176, Mar./Abr., 2014.
9 GUGLINSKI, Vitor Vilela. O dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 99, p. 125-156, maio-jun., 2015.
10 LOUREIRO, Rene Edney Soares. SANTANA, Héctor Valverde. Dano moral e a responsabilidade objetiva do fornecedor pela perda do tempo produtivo do consumidor. São Paulo, Revista de Direito do consumidor, v. 106, p. 357-378, Jul./Ago. 2016.
11 BORGES, Gustavo. O paciente, sua percepção do tempo e o dano temporal. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 110, p. 187-209, Mar./Abr. 2017.
12 BARROSO, Lucas Abreu; ANDRADE, Lúcio Moreira. A reparação integral ao consumidor pelo fato do produto e do serviço. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 112, p. 93-111, Jul./Ago.; 2017.
13 MAGALHÃES, Simone Maria Silva. Violação positiva do contrato e a percepção do tempo como bem jurídico, Revista de Direito do Consumidor, v. 126, p. 115-132, Nov.-Dez, 2019.
14 A exemplo da tese de doutorado de Laís Bergstein, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2018, que volta o olhar para a conduta do fornecedor como fundamento do dever de indenizar, sobretudo no menosprezo ao consumidor e a falta de planejamento em efetiva prevenção de danos. Premiada com menção honrosa no Prêmio CAPES de Teses 2019, a tese foi publicada pela Thompson Reuters/Revista dos Tribunais: BERGSTEIN, Lais. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação das suas causas. Revista dos Tribunais, 2019.
15 Uma belíssima obra coletiva, intitulada “Dano Temporal”, que já alcançou sua segunda edição, reúne estudiosos do tema e novas perspectivas sobre a sua aplicação, trazendo inclusive exemplos de decisões judiciais que reconheceram a autonomia do dano pelo tempo pedido. Veja: BORGES, Gustavo; MAIA, Maurílio Casas. Dano temporal: o tempo como valor jurídico. Florianópolis: Empório do Direito, 2018.
16 Veja: AMORIM. Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
17 Já se sugeriu tratar-se de “um estatuto de tutela do tempo do consumidor”. Veja mais em: MAIA, Maurilio Casas. Vulnerabilidade temporal e estatuto do tempo do consumidor (etc): comentário à lei amazonense 5.867/2022 – um subsistema protetivo em diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor, v. 142, p. 307-326, Jul./Ago 2022.
dora e relevantíssima. “Tempo e responsabilidade civil: perspectivas sul-americanas da lesão temporal” é um conjunto de sérias reflexões acerca dos caminhos traçados pela doutrina, jurisprudência e legislatura para a consolidação das bases jurídicas e, mais do que isso, de uma consciência coletiva acerca da importância da tutela do tempo do consumidor.
A presente obra reúne talentosos pesquisadores do Brasil18, assim como grandes mestres e professores da Argentina (Sergio Sebastián Barocelli), do Uruguai (Arturo Caumont, Dora Szafir e Hillary Marks), do Peru (César Carranza Álvarez), da Colômbia (Luis Carlos Pineda Acosta) e da Espanha (Olga Alejandra Alcántara Francia), que apresentam novas perspectivas e contribuições para o incremento da segurança das relações de consumo e a valorização do tempo do consumidor.
É notável riqueza das contribuições de cada um dos doutrinadores e profissionais reunidos nessa obra, que apresentam diferentes formações e pontos de vista. O leitor se beneficia de encontrar, em um volume, perspectivas verdadeiramente enriquecedoras sobre o presente e o futuro da tutela jurídica do tempo do consumidor, com base científica sólida e notável rigor técnico. As pesquisas foram estruturadas em treze capítulos que se complementam e dialogam entre si, revelando que a preocupação com a salvaguarda do tempo do consumidor não encontra fronteiras, assim como que muitos dos obstáculos enfrentados à sua efetividade são comuns, além-mar.
Nossos mais sinceros cumprimentos aos coautores e coautoras desta obra, pelas significativas contribuições ao aperfeiçoamento do tema a partir do compartilhamento de suas diferentes visões e experiências. Cumprimentos, em igual medida, à equipe editorial, pela qualidade da publicação.
A todos, desejamos uma excelente leitura!
Claudia lima maRques19 laís beRGsTein2018
Aicha de Andrade Quintero Eroud, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Fernando Antônio Lima, Gustavo Borges, Maria Aparecida Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia, Vitor Guglinski, Fábio Campelo Conrado de Holanda, Jeremias Reis Comaru, Luiz Fernando Perez Pinto Tonholi, Manoela Marli Jaqueira, Marcela Guimarães Barbosa da Silva, Mariana M. Carlessi, Milena Pires Fajardo, Roberta Pereira Ramos, Rodrigo da Guia Silva e Tammy Fortunato
19 Professora Titular e Diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, Professora Permanente do PPGD UFRGS. Doutor Honoris Causa pela Justus-Liebig-Universität Gießen, Alemanha (2018) e pela Université Savoie Mont Blanc, França (2019). Tem Pós-doutoramento (2003) e Doutorado summa cum laude (Doctor Iuris Utriusque) pela Universidade de Heidelberg (1996). Mestre na Universidade de Tübingen (1987). Relatora-Geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Atualização do Código de Defesa do Consumidor. Ex-Presidente do Brasilcon - Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, Brasília. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq ‘Mercosul, Globalização e Direito do Consumidor’ UFRGS. Coordenadora brasileira da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor (DAAD-CAPES). Bolsista produtividade 1A do CNPq.
Doutora em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Alumni do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Docente permanente do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Mercado, Compliance e Segurança Humana da Faculdade CERS. Advogada.
Sinto-me honrado pela oportunidade e responsabilidade de prefaciar a obra coletiva “Tempo e responsabilidade civil - perspectivas sul-americanas da lesão temporal”, organizada por Gustavo Borges, Maria Aparecida Dutra Bastos, Maurilio Casas Maia e Vitor Guglinski. O livro é composto por 22 artigos e apresenta o estágio da arte da temática em nosso continente.
Expressões como perda do tempo livre, perda do tempo útil, desvio produtivo e dano cronológico também são utilizadas para descrever aquilo que deve ser corretamente apreciado como uma lesão ao tempo.
MARCOS DESSAUNE – autor a quem o livro é justamente dedicado - há mais de uma década subscreveu publicação pioneira sobre a temática abordada. Quem não seria capaz de concordar com o autor quando afirma que o tempo é o “bem jurídico mais valioso de que cada ser humano dispõe em sua existência –possivelmente só comparável à sua saúde física e mental, que são bens jurídicos distintos embora igualmente valiosos e indispensáveis para que se possa gozar plenamente o primeiro”? Dessaune descreve, no artigo “Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama”, que o desvio produtivo é o evento danoso que se consuma quando o consumidor, sentindo-se prejudicado em razão de falha em produto ou serviço, gasta o seu tempo de vida – um tipo de recurso produtivo – e se desvia de suas atividades cotidianas para resolver determinado problema. Segundo o doutrinador, a atitude do fornecedor ao se esquivar de sua responsabilidade pelo problema, causando diretamente o desvio produtivo do consumidor, é que gera a relação de causalidade existente entre a prática abusiva e o dano gerado pela perda do tempo útil1
É inquestionável que avulte a discussão quanto a lesão ao tempo. Inicialmente tido como grandeza física, converteu-se em bem jurídico inestimável e escasso. Se antes o tempo influenciava outras situações jurídicas, como a prescrição, usucapião e o fenômeno da supressio dentro da teoria do abuso do direito, hoje o tempo, em si, passou a ser objeto de tutela autônoma: Por vezes consiste na própria prestação principal de uma relação obrigacional (v.g. sedex), como em outras
1 DESSAUNE, Marcos. Direito em movimento. Vol. 17, n. 1 – 1. Semestre de 2019, p. 15 : “ É notório que inúmeros fornecedores cotidianamente empregam práticas abusivas e colocam produtos e serviços com vícios ou defeitos no mercado de consumo. Além disso, muitos desses fornecedores, diante da reclamação dos consumidores, ainda resistem à rápida e efetiva resolução desse problema de consumo que eles próprios criam. Tal comportamento induz o consumidor em estado de carência e condição de vulnerabilidade a despender seu tempo vital, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades existenciais e a desviar suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano. Tal serie de condutas caracteriza o ´desvio produtivo do consumidor´, que é o evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial, de natureza existencial, indenizável in re ipsa” .
circunstâncias se especifica dentre os deveres anexos emanados da boa-fé objetiva (v.g. a expedição de diploma). Na jurisprudência, o tempo é objeto de demandas autônomas, como na espera por atraso de voo ou mesmo, incidentalmente, como adicional pelo agravamento da própria causa da pretensão, tal como na indevida negativação, em que o demandado demora para sanar a falha, majorando-se o quantum. 2
E nesta trajetória de alargamento do fato jurídico “tempo” alcançamos o atual estágio do dano temporal. Cremos que o grande trabalho de lapidação doutrinária consiste em aceitar o desafio – diante da própria vagueza semântica das cláusulas gerais –, de selecionar o dano temporal como verdadeiro interesse existencial merecedor de tutela, através de ponderados argumentos, de forma a evitar a “guerra de etiquetas” e uma precipitada proliferação de danos indenizáveis, que, se não contida pelo próprio direito privado, culmina por implodir o próprio sistema compensatório do dano extrapatrimonial.
A doutrina oferece plural justificação quanto à possibilidade de indenização da usurpação indevida do tempo, como valor jurídico a ser tutelado na sociedade contemporânea.
De um lado, situam-se aqueles que negam a existência de um novo interesse juridicamente tutelado, pois o verdadeiro interesse em jogo consiste na tutela de um aspecto da liberdade, referente a possibilidade de disposicão do próprio tempo. A lesão à liberdade “pressupõe que o consumidor se desvie de suas atividades rotineiras, quaisquer que sejam elas, e empregue tempo excessivo no desempenho de certa atividade em razão da inobservância de dever imputado ao contratante, qualquer que seja a sua natureza”.3 Na mesma senda – negando a lesão ao tempo como espécie de dano autônomo - outros somam à já referida violação à liberdade do ofendido, uma ofensa ao bem da integridade psicofísica, pela perda da paz e do sossego.4
Em um giro de 180 grau se colocam os que situam o dano temporal como autônomo em relação aos demais danos – um tertium genus entre o dano patrimonial e o extrapatrimonial - sobremodo pela desnecessidade de caracterização da dor, do amargor, da direta ofensa à honra ou até de qualquer consequência econômica e até mesmo a inviabilidade de se provar o dano decorrido da usur-
2 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do direito civil, p. 205-6. O doutrinador realiza um rico percurso histórico e jurídico sobre o tempo como bem jurídico.
3 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, v. 4, p. 70. Os autores ilustram com a conduta do fornecedor que não sana o vicio do produto no prazo de 30 dias (art. 18, CDC), impondo ao consumidor dispêndio de tempo superior ao necessário para pleitear a solução adequada, dirigindo-se diversas vezes a loja ou despendendo tempo excessivo em ligações para o call center, deixando de se dedicar a qualquer outra atividade que mais lhe apraz, mesmo que seja período de ócio deliberado, o “dolce far niente”, p. 71.
4 BONNA, Alexandre. Dano moral, p. 69.
pação indevida do tempo, ou seja, a dispensabilidade da prova da atividade que teria sido realizada no período improdutivo.5
A nosso viso, não é possível aceitar o dano temporal como uma categoria lateral ao binômio dano patrimonial/extrapatrimonial. A lesão ao tempo produz danos patrimoniais ou não patrimoniais, mas não acresce a eles. Um “trinômio” desta natureza importaria em equiparar indevidamente o dano-evento ao dano-consequência, quando, em verdade, conforme aponte a causalidade, a lesão ao bem jurídico “tempo” eventualmente produzirá repercussões econômicas (desfalque econômico ou frustração de ganhos) ou existenciais, quando da gravidade da lesão se aferir pelo contexto probatório que não se trata somente de um contratempo razoavelmente esperado em certas atividades cotidianas, porém de uma efetiva vulneração do tempo, ponderando-se os inúmeros fatores da concretude do caso.
E justamente este cuidado com as circunstâncias do caso nos impede de aceitar uma presunção de dano temporal, in re ipsa. A prova da lesão ao tempo não apenas propicia espaço ao contraditório, como também desestimula demandas banais e/ou infundadas. Nas hipóteses mais árduas, o consumidor poderá pleitear a redistribuição do ônus da prova, com espeque no, art. 6o, VIII do CDC e art. 373, § 1º do CPC.
Pois bem, equidistantes aos extremos, preferimos abraçar posição intermediária. Aceitamos o tempo como bem jurídico autônomo inerente à pessoa humana, sendo que a sua lesão pode ser considerada como dano-evento que, conforme as circunstâncias ocasionará reflexos de natureza patrimonial e/ou extrapatrimonial. Não se trata aqui de uma isolada derivação da liberdade, integridade psíquica, privacidade ou outro bem da personalidade. No processo de paulatina concretização da cláusula geral da dignidade da pessoa humana, aderimos ao ensinamento de MONTEIRO FILHO6 no sentido de que, na confluência entre o dano e tempo, o dano temporal se traduz em violação à liberdade da vítima, com omissão do dever de solidariedade pelo ofensor, consistente na supressão injustificada de escolhas existenciais próprias de cada pessoa a seu direito ao tempo livre, independentemente de uma específica “produtividade”.
5 Aliás, é o que consta na redação do art. 25-E do PL 2856/2002: O texto projetado para esse artigo também afirma que a reparação do dano extrapatrimonial decorrente da lesão ao tempo pode se dar “concomitantemente com a indenização de dano material ou moral”.
6 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do direito civil, p. 209. Justamente por isto, defende o autor que a lesão ao tempo seja abordada em um processo de duas formas: a) como objeto específico de demanda autônoma em casos que o consumidor quer se ressarcir pela perda do tempo em si (v.g. atrasos de voos); b) como uma adicional indenizatório de caráter incidental, nas hipóteses em que o magistrado defere indenização por outro motivo (v.g cartão de crédito fraudado e mesmo após perda de valioso tempo não conseguiu resolver o problema.
Aliás, em razão desta específica qualificação do dano temporal, despicienda resta a necessidade de uma previsão legal expressa sobre o dano ao tempo.7 A sua tutela jurídica é expressão de uma cláusula geral de tutela à pessoa, própria as sociedades contemporâneas nas quais a privação do tempo de descola de sua carga nitidamente acessória e utilitarista de geração de riquezas, passando a ser compreendida com a autonomia de algo que é raro e essencial em nossas vidas, independentemente de seu proveito patrimonial (daí inclusive à crítica às expressões “desvio produtivo do consumo” ou “perda do tempo útil”).
Como obtempera FREITAS CÂMARA,8 não há um “desvio produtivo” do consumidor. O que há, isso sim, é responsabilidade civil pela lesão ao tempo. E o tempo da pessoa é, em si próprio, um bem jurídico digno de tutela.
Não obstante o raciocínio aqui defendido, concordamos com o posicionamento de BORGES e CASAS MAIA no sentido de, tal como se deu com o dano estético – o qual foi reconhecido como cumulável ao dano moral pelo STJ -, seja o dano temporal emancipado “como lesão típica da sociedade pós-moderna, novo dano cujo efeito pedagógico de seu reconhecimento transborda as relações de consumo, alcançando outros campos das relações sociais”.9 Ora, quando o Superior Tribunal de Justiça10 alcançar um consenso sobre a necessidade de sumular a autonomia das repercussões existenciais do dano temporal em relação ao dano moral em sentido estrito, teremos no Brasil mais uma espécie de dano extrapatrimonial. Enquanto isto, resta a doutrina se esmerar na qualificação jurídica da lesão ao tempo.
7 Há um Projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, «para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor». O projeto é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto («Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor») e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção («Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor»), formada pelos arts. 25-A até 25-F).
8 CÂMARA, Alexandre Freitas. Uma crítica ao PL 2856/2002: O tempo como bem jurídico passível de lesão. Extraido da coluna Migalhas de responsabilidade civil. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/377908/critica-aopl-2856-2002-o-tempo-como-bem-juridico-passivel-de-lesao
9 BORGES, Gustavo; CASAS MAIA, Maurílio. Ainda sobre a emancipação do dano temporal, In Novo danos na pós-modernidade, p. 122.
10 A teoria do desvio produtivo teve aplicação expressa no STJ a partir de meados de 2018. Os casos analisados envolveram, em especial, a possibilidade de condenação dos fornecedores por danos morais coletivos, e tiveram como relatora a ministra Nancy Andrighi. No âmbito dos julgamentos colegiados, um dos primeiros precedentes foi o REsp 1.634.851, no qual a Terceira Turma analisou ação civil pública em que o Ministério Público do Rio de Janeiro buscava que a empresa Via Varejo sanasse vícios em produtos comercializados por ela no prazo máximo de 30 dias, sob pena da substituição do produto ou do abatimento proporcional do preço. Relatora do recurso, a ministra Nancy Andrighi apontou que o consumidor, não raramente, trava verdadeira batalha para ter atendida sua legítima expectativa de obter o produto adequado ao uso, em sua quantidade e qualidade, começando pela tentativa frustrada de localizar a assistência técnica mais próxima, envolvendo também o esforço de agendar uma visita técnica da autorizada. Para a ministra, essas tarefas “têm, frequentemente, exigido bastante tempo do consumidor, que se vê obrigado a aguardar o atendimento no período da manhã ou da tarde, quando não por todo o horário comercial”. Nesse sentido, a relatora apontou que o fornecedor, ao desenvolver atividade econômica em seu próprio benefício, tem o dever de participar ativamente do processo de reparo do bem, intermediando a relação entre cliente e fabricante e diminuindo a perda de tempo útil do consumidor.
Concluindo, a obra coletiva “Tempo e responsabilidade civil” chega ao mercado em um momento em que as discussões sobre o tema já estão relativamente uniformizadas no Brasil e prontas para aceder ao proposto diálogo com a doutrina de outras jurisdições da porção meridional da América. Ganha com isto o leitor, que terá neste livro uma preciosa fonte de conhecimento. Parabenizo os organizadores - expoentes do assunto – pela escolha do distinto grupo de autores, desejando merecido êxito à publicação.
Belo Horizonte, fevereiro de 2023. nelson Rosenvald11
11 Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Iberoamericano de Responsabilidade Civil. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF
A entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor há trinta e dois anos atrás ressignificou a relação jurídica como instituto de direito. O microssistema concedendo máxima efetividade aos preceitos e direitos fundamentais inseriu a pessoa humana como centro epistemológico do sistema normativo, albergando os chamados ‘sujeitos identificados constitucionalmente’. Na visão constitucional solidarista, mas com outras palavras, se trata da positivação de direitos para promoção dos ‘invisíveis’, carentes dos deveres de proteção estatais e, por isso, verdadeiro ‘trunfo das minorias’.
Essa mesma preocupação (e tendência metodológica) seguiu na atualização do CDC, pela Le 14.181/21, que além de ocupar-se diretamente com o superendividado, pessoa natural – inclusive aqueles que diretamente sofrem pelo abuso da fraqueza (abus de faiblesse) provocado pelo mercado de crédito – ainda trouxe no âmbito da infraconstitucionalidade temas de aguda densidade valorativa como o direito básico ao mínimo existencial e o princípio da não exclusão social, marcadamente de aderência dogmática às constituições dirigentes.
Não sem razão, a constatação e o sofrimento reiterado com a enormidade de circunstâncias fáticas injustas perpetradas nas diversas atividades desenvolvidas na sociedade aos poucos permitiram a consequente reação do sistema jurídico para buscar a necessária ‘compensação’, ‘indenização’ e ‘prevenção’ quanto aos abusos e lesões sofridas por diversas vítimas dessas ignomínias.
O passo inicial coube ao direito do consumidor que corporificando a ‘reforma ética do direito privado’ contribuiu para o avanço, inovação e alargamento da ‘obrigação de indenizar’, considerando: i – o nexo de imputação (majoritariamente sem culpa); ii – às modalidades de responsabilidade civil (pelo fato do produto ou serviço, pelo vício do produto ou serviço, inclusive os de natureza pública); iii – as excludentes de causalidade e o ônus probante daí decorrente (com carga voltada aos fornecedores); iv – os deveres jurídicos próprios aos fornecedores (especialmente os deveres de
consideração resultantes da boa-fé objetiva qualificada); v – a identificação de danos específicos frente aos tipos e qualidade das lesões (dentre eles o ‘dano temporal’ e agora também o ‘dano de assédio’ ao superendividamento).
Ao dano temporal, nitidamente extrapatrimonial e com eventuais efeitos patrimoniais, logo se debruçou a doutrina e após a jurisprudência demonstrando que o consumidor em diversas nuances, por claro incumprimento dos comandos legais por parte dos fornecedores, tem sua condição humana e dignidade (leia-se livre desenvolvimento da personalidade) afetadas, especialmente porque passa a conviver, administrar, esperar e encarregar-se de encargos, ônus e obrigações das quais não é destinatário, vendo-se nitidamente ceifado na órbita existencial.
Isso se dá em diversas situações: tempo em fila delongado nas agências bancárias; falta de peças de reposição em veículos sob garantia contratual e legal; contratos de crédito não consentidos e realizados sem sua anuência com desconto em folha de pagamento; prestação de serviço de transporte aéreo interrompida ou adiada; serviços de água, luz ou telefonia bloqueados sem o constatação de inadimplemento ou mesmo sem aviso prévio ou com retorno tardio da prestação. Enfim, exemplos são caudalosos.
Cabe, contudo, séria advertência. O dano temporal não se afina somente com as relações de consumo ou com os consumidores, marcadamente vulneráveis. Sobretudo nas relações jurídicas jusfundamentais, mesmo que não de consumo, a extensão indevida do tempo de uma parte, para além do estabelecido nas condições negociais ou legais e desde que demonstrada a ausência de razoabilidade para o delongar da prestação a ser cumprida, dada a unilateralidade da posição jurídica do obrigado, também pode ensejar a responsabilização.
Daí uma forte e penetrável ligação dessa modalidade de dano com a dignidade humana, dado que o tempo das obrigações é totalmente diverso do tempo da pessoa, podendo ensejar atrasos, danos e comiseração na esfera intangível da qualidade de vida garantida pela legalidade constitucional.
A obra coletiva que agora vem a lume, coordenada por renomados pesquisadores e composta por festejados juristas, é de essencial consulta e de necessária composição nos escaninhos das bibliotecas, já que ‘compagina’ (literalmente) os valores jurídicos fundamentais com a renovada e harmoniosa evolução da responsabilidade civil.
Aos envolvidos neste rico projeto fica o nosso aplauso e, sobretudo, um reforço em nosso aprendizado.
FeRnando RodRiGues maRTins Presidente do Brasilcon