
Valquiria de Jesus Nascimento

a mulher como sujeito de direitos
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
eDuarDo Ferrer Mac-GreGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
Juarez tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis LóPez Guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
oweN M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA toMás s. vives aNtóN
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
N199d
Nascimento, Valquiria de Jesus Discurso, narrativa e poder [recurso eletrônico] : a mulher como sujeito de direitos / Valquiria de Jesus Nascimento. - 1. ed. - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023. recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-598-9 (recurso eletrônico)
CDD: 305 42
23-84753
CDU: 316 346 2-055 2
1. Direitos das mulheres. 2. Mulheres - Condições sociais. 3. Mulheres - Atitudes. 4 Papel social 5 Livros eletrônicos I Título Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-06-28-649c9a47f0c3a
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a mulher como sujeito de direitos
Dedico esta obra a todas as mulheres – às de outrora, às de hoje e às que virão – que com garra e determinação lutam contra o silenciamento de todas nós. Não vão nos calar!
“Minha luta diária é para ser reconhecida como sujeito, impor minha existência numa sociedade que insiste em negá-la”
(Djamila Ribeiro).
A linguagem é condição primária para a constituição do sujeito, tanto do ponto vista psíquico quanto social ou, ainda, jurídico. Isso porque sem o domínio da linguagem1 torna-se impossível produzir narrativas, e o indivíduo que não produz narrativas sobre si mesmo – seja em decorrência de fatores intrínsecos ou extrínsecos – fica reduzido à posição de mero objeto da narrativa do outro.
Pensar as dificuldades de reconhecimento social e de legitimação jurídica da mulher como sujeito de direitos requer investigar os obstáculos que as mulheres enfrentam no acesso à linguagem e as limitações impostas às suas possibilidades de produção de narrativas próprias, problematizando sua vulnerabilidade e sua invisibilidade social, face às narrativas que são historicamente produzidas sobre elas.
Considerando tal contexto, vislumbra-se pensar que a violência contra a mulher, sobretudo a violência psicológica – que sempre acompanha os demais tipos de violência–, se concretizaria devido à falência da constituição da mulher enquanto sujeito do desejo, sujeito do seu próprio discurso e, portanto, sujeito de direitos (KARAM, 2000; 2002). As estatísticas referentes à violência contra a mulher, além de alarmantes, apresentam crescimento contínuo de índices e exigem que se compreenda que, na realidade, os dados são ainda mais numerosos, considerando as subnotificações. Esse tipo de violência é praticado, sobretudo, por pessoas próximas àquelas que são
1 É importante explicitar que “domínio da linguagem” é compreendido em duplo sentido: como competência e atuação linguística (CHOMSKY, 1978), de um lado; e, de outro, em sua relação com as articulações entre “campo da linguagem” e “função da fala”, no paradigma lacaniano, que entende “a linguagem como constituinte do ser humano” (LACAN, 1998). Ademais, embora se reconheça a capacidade de compreensão e de comunicação, em diferentes graus, de animais não-humanos, não se pode desconsiderar a fundamental distinção apontada por Martin Heidegger: “a pedra é sem mundo, o animal é pobre em mundo e o homem é formador de mundo” (2006, p. 2015). Registra-se o agradecimento ao professor Daniel Lourenço pela sugestão de explicitar essas compreensões e as reflexões dele sobre a linguagem e capacidade comunicativa dos “animais não-humanos”.
vitimadas e pode se apresentar sob a forma de ameaças, constrangimentos e manipulações, por exemplo.
De acordo com o Mapa da violência contra a mulher de 2018, a cada 30 minutos uma mulher sofre violência psicológica ou moral, no Brasil. Entre 2009 e 2016, as notificações de violência psicológica contra a mulher, praticada por cônjuge ou namorado, saltaram de 2.629 para 18.219. Somente em 2017, houve registro de 78.052 casos de violência psicológica no país (BRASIL, 2018). Com relação às regiões, o Nordeste recebe destaque. Uma pesquisa feita no final de 2017 apontou que, nos 12 meses que a antecederam, 11% das mulheres nordestinas sofreram violência psicológica (ONU MULHERES BRASIL, 2017). Mais especificamente na Bahia, em 2019, foram registradas quase 15 mil denúncias de violência contra a mulher, apenas no mês de janeiro (G1, 2019). É nesse estado que se situa Guanambi, município sede da instituição onde se desenvolveu a pesquisa que deu origem a esta obra.
O referido município não se diferencia do restante do país. No dia 12 de dezembro de 2021, mãe e filha foram brutalmente assassinadas em Guanambi, após tentativas de estupro. O delegado encarregado pelo caso, durante coletiva de imprensa concedida no dia seguinte ao do crime, narrou os fatos num discurso pautado pelos valores da cultura patriarcal e centrado na legitimação da violência contra a mulher. As suas manifestações de culpabilização das vítimas e o seu descaso geraram comoção e revolta na comunidade, que protestou nas ruas – o delegado foi afastado do caso (G1, 2021).
Diante dos dados supracitados é notável a importância de se averiguar como se explicam os índices de violência contra a mulher já que não faltam leis no ordenamento brasileiro – a começar pela Constituição Federal de 19882 – que asseguram a isonomia jurídica
2 Além dos direitos fundamentais garantidos na CF, há este rol de legislações dedicadas aos direitos e à proteção da mulher:
- Lei Maria da Penha (n. 11.340/2006) - Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelece medidas de assistência e proteção.
- Lei Carolina Dieckmann (n. 12.737/2012) - Tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares.
- Lei do Minuto Seguinte (n. 12.845/2013) – Oferece garantias a vítimas de violência sexual, como
e/ou instrumentalizam a coibição e prevenção da violência doméstica contra a mulher. Ao considerar que os avanços do ordenamento brasileiro na criação de direitos da mulher não implicam na efetivação desses direitos, reforça-se a ideia de que a desigualdade de gênero resulta, sobretudo, de relações de poder que se fundam no domínio da linguagem e na produção de narrativas, sendo o exame dessas relações essencial tanto para que se identifique a origem dos obstáculos à concretização do princípio de igualdade instituído pela CF/88 (art. 5º, inc. 1º.) quanto para que se planejem políticas públicas mais adequadas e eficazes.
Assim, esta obra foi estruturada a partir do seguinte questionamento: de que maneira as relações de poder que se fundam no domínio da linguagem e na produção de narrativas reforçam a desigualdade de gênero e dificultam a efetivação dos direitos da mulher?
Na busca da resposta a tal questão, buscou-se investigar em que medida a precariedade da posição feminina nas relações de poder, que se fundam no domínio da linguagem e na produção de narrativas, reforça a desigualdade de gênero e dificulta a efetivação dos direitos da mulher.
Assim, no primeiro capítulo, é discutida a falta de acesso ao domínio da linguagem e a precariedade na produção de narrativas próprias como obstáculos à constituição da mulher enquanto sujeito. Paralelamente, é debatida a posição de objeto do discurso do outro, ocupada pela mulher e fundada a partir das relações de poder, bem como o impacto que a desigualdade de gênero produz na legitimação social da mulher e no combate à violência que lhe é dirigida.
é dedicado ao exame das três obras literárias eleitas para constituir o corpus desta obra, seguindo os seguin-
atendimento imediato pelo SUS, amparo médico, psicológico e social, exames preventivos e informações sobre seus direitos.
- Lei Joana Maranhão (n. 12.650/2015 - Alterou os prazos quanto a prescrição de crimes de abusos sexuais de crianças e adolescentes. A prescrição passou a valer após a vítima completar 18 anos, e o prazo para denúncia aumentou para 20 anos.
- Lei do Feminicídio (n. 13.104/2015) - Prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, ou seja, quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
tes critérios: tematizarem a violência contra a mulher, serem produzidas por autoras nordestinas e terem sido escritas nos últimos dez anos. As obras selecionadas foram: A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha; Os seios de Pandora, de Sônia Coutinho; e Pai, não grite com a sua filha, de Míria Moraes. As narrativas são apresentadas na ordem supracitada, obedecendo à cronologia das histórias narradas – cujos eventos se situam em 1940, 1998 e 2018, respectivamente –, sendo identificadas e analisadas as representações que cada uma das narrativas oferece da desigualdade de gênero e da violência contra a mulher. No levantamento e análise dos elementos oferecidos nas narrativas, são empregados os pressupostos teóricos e metodológicos propostos por Henriete Karam (2017).
O capítulo seguinte, por sua vez, concentra-se no ordenamento brasileiro, identificando os direitos da mulher e os mecanismos de proteção às mulheres que são vítimas de violência, a fim de problematizar a (in)efetividade da concretização desses direitos no mundo empírico.
A partir do domínio da linguagem o sujeito pode se constituir – psiquica, social e, até mesmo, juridicamente. Primariamente, a linguagem possibilita a comunicação entre os sujeitos, e desse modo são viáveis a interação social e a construção das subjetividades. Assim, a linguagem viabiliza certo poder do indivíduo3 sobre a sua própria constituição, tendo em vista que, através do discurso, torna-se possível dizer de si mesmo e, assim, constituir-se como sujeito.
Acrescenta-se que, o domínio da linguagem permite que cada pessoa exista e se posicione como sujeito na sociedade. Da mesma maneira, aquele que não possui – seja por motivos internos ou externos – o domínio da linguagem não pode dizer sobre si. Mais do que isso, quando alguém não possui autonomia para narrar-se, fica vulnerável às narrativas que são criadas sobre ele, podendo, inclusive, ser relegado ao campo da invisibilidade social e/ou demarcado por narrativas equivocadas.
Ainda que cada pessoa tenha como elemento importante na sua construção subjetiva a sua individualidade, os aspectos socioculturais também são extremamente relevantes e possuem forte influência na constituição dos sujeitos. Dito de outro modo, as narrativas sociais produzem fortes referências, tanto individual quanto coletivamente, para os sujeitos.
Pensando numa sociedade patriarcal4 , como é o caso do Brasil, é importante conhecer as construções discursivas que sistemati-
3 Cabe aqui diferenciar indivíduo de sujeito. O vocábulo indivíduo se refere àquele que, meramente, se enquadra num grupo específico, nesse caso, o dos seres humanos. Enquanto o termo sujeito é empregado aqui para se referir àquele indivíduo que tem consciência de si, de seus pensamentos e de seus comportamentos e pode, assim, ser dono do seu próprio desejo – o que é discutido por Lacan (1988) e Garcia-Roza (1995). O sujeito é capaz de produzir discurso, a partir do domínio da linguagem, e, portanto, é um ser desejante e têm domínio do seu próprio ser.
4 Adjetiva-se aqui, enquanto patriarcal – conforme proposto por Saffioti (2011) – aquela sociedade pautada pela dominação masculina sobre o feminino, sujeição – inclusive sexual – da mulher e liberdade do ho-
camente buscam situar a mulher em um locus de inferioridade social. Considerando que a mulher fica submissa às narrativas produzidas sobre ela e que elas não produzem narrativas próprias. Como a mulher fica submissa às narrativas produzidas pelo outro – e que lhe mantém numa posição inferior à do homem – e elas não produzem narrativas sobre si, então, ocorre a objetificação feminina. Essa formação social não influencia apenas de modo particular a vida de cada mulher, mas diz respeito à comunidade feminina como um todo. A mulher não sendo visível, não é tratada como sujeito do direito. Nessa construção, a mulher fica vulnerável em relação à legitimação de seus próprios direitos.
Historicamente, a mulher ocupa um lugar de inferioridade social, ao qual ela foi culturalmente submetida. Dito de outro modo, a posição que a mulher ocupa na sociedade é de limitação, obstáculos e dificuldades que não existem para os homens, o que faz com que elas estejam submissa à eles. Esse lugar foi construído através de uma imposição ampla, macrossocial, para além do que rege apenas determinada sociedade, refere-se a uma tradição com forte influência nas mais diversas sociedades, a cultura. A formação cultural da sociedade ocidental enquanto sexista e patriarcal corrobora e contribui no processo de silenciamento, violação de direitos, exclusão social, submissão e inferiorização da mulher. Destacando sempre que esse discurso patriarcal é da cultura e, portanto, de todos, homens e mulheres – que determinam tanto a posição masculina, de sujeito falante, quanto a feminina, de objeto. Necessário ressaltar que o masculino, sendo o sujeito falante, é o detentor do discurso; mas o discurso é da cultura. E é o discurso que, equivocadamente, pretende dar conta do que é – e do que quer – uma mulher, determinando o que deve ser e o que deve querer uma mulher (KARAM, 2000, p. 125).
Essas produções impactam na inibição da manifestação e da atuação da mulher nos mais variados espaços sociais, tal qual pode ser constatado através das representações oferecidas pelas obras literárias.
mem. Esse tipo de formação da sociedade transpõe o espaço privado e familiar e alcança o espaço público, bem como se liga à formação, até mesmo, do Estado.
A literatura se apresenta como importante espaço de produção cultural. Suas narrativas se constituem a partir da realidade cotidiana, mas esta também pode sofrer interferências daquelas. No entanto, a literatura se limitava às representações únicas, provenientes dos discursos masculinos, os únicos legitimados culturalmente. Após muita luta frente às injustiças sofridas, as escritoras alcançaram a posição de serem sujeitos do seu próprio discurso, com reconhecimento e legitimação.
A Academia Brasileira de Letras (ABL) foi palco dessas injustiças, lutas e conquistas das escritoras. Apesar de importante membro para a fundação da ABL e da relevante escrita para os tempos de um país sexista e conservador como o Brasil, em 1897, Júlia Lopes de Almeida, teve sua cadeira enquanto autora da Academia negada –meramente por ser mulher – e oferecida ao seu marido. Apenas, 80 anos depois, foi que a ABL passou a aceitar mulheres, com a figuração da Rachel de Queiroz (NASCIMENTO, 2021).
Júlia Lopes de Almeida é um símbolo da escrita feminina numa sociedade em que a mulher não apenas não era incentivada à escrita, como também lhe era negado qualquer reconhecimento por suas produções. Evidencia-se, então, a importância das escritoras passarem a ser sujeitos do seu próprio discurso e da luta pela legitimação cultural de suas produções. Após muita luta, as escritoras – tal qual Rachel de Queiroz – passaram, além de serem sujeitos do seu próprio discurso,a serem legitimadas culturalmente.
Tais escritoras produzem seus textos literários e têm seu talento reconhecido – nesses textos, há representações diferenciadas do feminino. Essas “novas” representações atuam sobre o imaginário social, forjando novas imagens do feminino, e produzem seus efeitos no tecido social, possibilitando que outras mulheres se vejam como sujeitos do discurso.
Ainda assim, há de se considerar quão significativo é o baixo número de obras literárias de autoria feminina, e então entende-se que o poder de criação das narrativas do que é ser mulher tem se mantido, majoritariamente, nas mãos e palavras de homens.
A mulher tem galgado espaço social, num embate cultural muito longo. Ainda que alguns espaços estejam sendo conquistados, impera o limite de qual mulher pode ocupá-los. Cabe aqui questionar se trata-se de uma conquista, de fato, ou de um privilégio.
Destarte, impõe-se compreender a maneira como a linguagem é capaz de propiciar a constituição do sujeito e como essa base reverbera socialmente. Não obstante, é importante, concomitantemente, discutir as influências da cultura patriarcal e o poder que ela é capaz de exercer no que diz respeito à posição que a mulher vem a ocupar na sociedade. Além disso, este capítulo se propõe a problematizar as narrativas que constroem o lugar da mulher na sociedade. Para tal, foram empregados os aportes teóricos e metodológicos de estudos do direito na literatura, além de constructos proveninetes de estudos do campo da Psicologia.
Espera-se que essa discussão possa servir para a formação de acepções críticas sobre as narrativas que definem a mulher e seus comportamentos sociais, bem como para a percepção aprofundada sobre as imposições culturais que moldam as mulheres. Acredita-se que possa haver, após tais compreensões, espaço cada vez mais ilimitado para a conquista da autonomia das mulheres na sociedade.
O domínio da linguagem é imprescindível para que o individuo se constitua enquanto sujeito. Independentemente da cultura, os símbolos, os rituais e os gestos já possibilitavam a comunicação entre os seres humanos. A constituição do ser humano enquanto sujeito se dá a partir da linguagem e comunicação entre ele e os outros, pois assim tornam-se possíveis novos aprendizados e sua consequente construção enquanto ser no mundo (POKORSKI; POKORSKI, 2012).
Para Lev Vygotsky5 (2000), o sujeito adquire conhecimento e se desenvolve a partir da linguagem. É com a aquisição da lingua-
gem, com seu uso no diálogo com o outro e a partir da interação com o meio – a comunicação – que cada indivíduo se constrói subjetivamente e se posiciona no mundo. É a linguagem que possibilita ao ser humano trocas simbólicas e sociais, diferenciando-o dos animais.
Ademais, o indíviduo quando nasce é inserido num mundo já existente e constituído por uma estrutura social e cultural. Apartir disso, Hans-Georg Gadamer (2012) evidencia que o conhecimento é mais que subjetivo, é intersubjetivo, já que é construído embasado numa fundamentação sociocultural.
Gadamer (2004) acrescenta ainda que, é por meio da fala que o sujeito cresce, conhece o mundo, conhece às pessoas e à si mesmo:
a linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos (GADAMER, 2004, p. 182).
O pensamento de Martin Buber (1979) de que as relações entre os sujeitos se dão a partir do diálogo é o que vai inspirar as percepções de Mikhail Bakhtim6 sobre como o diálogo é fundamental para a construção da linguagem e, portanto, dos discursos – o que depois influencia na produção de narrativas.
Para falar é preciso que haja alguém capaz – e que deseje – de escutar, pois, a linguagem é dialógica. Mais importante que a capacidade técnica da comunicação – seja por aquele que fala ou por aquele que escuta – é central que se deseje escutar, pois a partir do desejo, ainda que de modo mínimo, através do entendimento pela paciência, simpatia e tolerância. Mas, jamais será possível o diálogo quando a objeção for as ideias que o outro pode apresentar (GADAMER, 2004).
em Bielarus – país da antiga União Soviética, em 1986 e morreu em 1934. O autor é referência em estudos sobre o pensamento, linguagem e as relações sociais.
6 Mikhail Mikhailovich Bakhtin é um relevante pensador e filósofo russo, que se dedicou aos estudos da linguagem a partir de uma perspectiva dialógica, se tornando destaque nas áreas da literatura, linguística e arte, no século XX.
De maneira mais específica, de acordo com Jean Piaget7 (1999), o desenvolvimento da linguagem se liga à capacidade humana de representar, em outras palavras, trata-se da possibilidade de o indivíduo simbolizar/discernir entre significantes e significados (MONTOYA, 2006). E representar é dizer simbolicamente sobre grupos, coisas, objetos, pessoas e inclusive sobre si.
Toda palavra precisa de um significado para que possa representar algo, em vez de ser meramente um som oco. Considerando que para definir um conceito é necessário que seja pensado sobre ele, então:
o significado das palavras só é um fenômeno de pensamento na medida em que é encarnado pela fala e só é um fenômeno linguístico na medida em que se encontra ligado com o pensamento e por este é iluminado (VYGOTSKY, 2000, p. 102).
Compreende-se, então, que a linguagem é, além da base para a comunicação, a expressão da vivência social e da influência sobre os outros. Dessa forma, pode-se dizer que a linguagem, em vez de assinalada por uma dualidade – interna e externa –, se inter-relaciona, de forma dialógica, aquilo que é exterior ao sujeito e aquilo que lhe é interior. Essa inter-relação demarca a comunicação e, também, discursos e opiniões interiores, de forma fluida, contínua e entrelaçada (SILVA, 2006).
Ademais, pode-se discutir a linguagem como sendo um importante elemento para que o sujeito construa a sua própria identidade, se insira na sociedade e, então, seja capaz de produzir sentido. Assim, o domínio da linguagem está relacionado à posição que as pessoas ocupam na sociedade e ao modo como elas atuam em seu meio social (SOUSA; SANTANA, 2017).
Nesse sentido, Kelly Helena Santos Caldas e Miriam Coutinho de Faria Alves discorrem sobre o processo de silenciamento de grupos minoritários, mediante o qual,
7 Jean William Fritz Piaget é um importante nome para Psicologia, nascido na suíça, viveu entre 1896 e 1980. Seus estudos sobre a mente humana e, mais especificamente, sobre o desenvolvimento cognitivo infantil foram fundamentais para a compreensão da constituição do sujeito.
os marcadores de desigualdades intersecionais de gênero, classe, raça, etnia, sexualidade, religião, dentre outros, são negados e apagados dos espaços educacionais. A presença da diferença, da diversidade e da cidadania inclusiva não existe nas salas de aula tradicionais e conservadoras, o que existe são estereótipos violentos, embrutecidos e rígidos propagados como naturais, essenciais e impossíveis de mudar. A escrita e a educação de qualidade continua[m] restrita[s] aos espaços de poder, já que se os excluídos tiverem acesso a uma educação emancipatória, proporão transgressões e resistências (CALDAS; ALVES, 2020, p. 134).
Para Alves (2013), é importante que se oportunize um diálogo multicultural entre os povos, acerca das mais variadas condições humanas, pois só assim será possível compreender a complexidade da interdisciplinaridade nas relações sociais, de forma conjunta. A importância desse processo está na significativa possibilidade de provocar questionamentos e ressignificaçãoes dos estereótipos e estigmas culturais – como aqueles que legitimam a mulher na posição de inferioridade.
Para Jacques Lacan8, renomado psicanalista francês, a linguagem se manifesta de diversas formas, e não somente por meio da enunciação. De algum modo, a linguagem emerge, ainda que de forma inconsciente através de gestos, sintomas ou verbalizações aparentemente incoerentes (CALLIGARIS, 2004).
A psicanálise explica que, primariamente, o infans9 tem uma relação de simbiose com a mãe e que, nessa relação, o bebê não é sujeito, mas uma extensão do corpo da mãe e também um objeto do desejo dela. E para que essa criança possa se tornar um sujeito, sendo dono do próprio desejo é necessário romper com a relação na qual ela ocupa a posição de objeto (LACAN, 1999). Analogamente, é preciso que a mulher não ocupe mais a posição de objeto do discurso do outro para que possa assumir uma posição de sujeito de si e do seu próprio desejo (KARAM, 2008).
8 Importante psicanalista francês, que propôs a releitura dos textos freudianos – o retorno a Freud – e desenvolveu concepções importantes para a psicanálise, como, por exemplo, a introdução do conceito de “significante, oriundo da linguística,” e a ideia de “inconsciente como linguagem”.
9 Esse termo é empregado por Lacan para caracterizar a criança que não tem domínio da linguagem.
Em se tratando do universo psíquico, o sujeito precisa ser escutado. Para Sigmund Freud10 (2016), é necessário dar voz ao enfermo, pois é assim, a partir do domínio da linguagem, que seu sintoma passa a ser entendido – através da atribuição de sentido. Dito de outro modo, o indivíduo precisa falar – seja a partir de sua verbalização ou de gestos e símbolos – para que possa ser percebido enquanto sujeito do seu próprio desejo (SORIA, 2013).
É a partir do símbolo, ou seja, do domínio da linguagem, que o indivíduo passa a representar para si os objetos. Desse modo, é possível desenvolver o interesse por determinado objeto, passando a existir, assim, o desejo. Ser desejante é primário para que se possa ser percebido como um sujeito, e isso só é possível através da linguagem (SORIA, 2013).
E, como já apontado por Bakhtin (2006), a construção do sujeito é resultado do modo como a pessoa se organiza e interage socialmente. Para se compreender um sujeito é preciso pensá-lo a partir de suas relações sociais. Então, pode-se concluir que as relações sociais, sejam elas demarcadas pelo silenciamento, sejam elas demarcadas pelos gritos de poder e dominação, têm forte influência no modo como cada pessoa se constitui – ou não – enquanto sujeito. A partir do entendimento de Carl Rogers11 (1983), observa-se que o modo como cada indivíduo se constrói é carregado das percepções do outro sobre ele. O que Rogers denomina “self ideal” remete à percepção de cada pessoa sobre a forma como ela acredita e idealiza que deveria ser. Tal concepção, apesar de subjetiva, se funda numa construção social ditada e por uma busca de cada sujeito por se adequar às normativas sociais impostas sempre pelo outro. Por outro lado, como que numa posição diferente, mas não necessariamente oposta, estaria o “self real” que consistiria no que de fato ocorre com esse indivíduo em sua realidade.
10 Considerado o pai da Psicanálise, Sigmund Freud desenvolveu o método da associação livre e modificou, radicalmente, a concepção tradicional do “eu”.
11 Carl Ransom Rogers foi um influente psicólogo norte-americano, sendo o fundador da Abordagem Centrada na Pessoa, no âmbito da Psicologia humanista. Sua teoria é considerada não-diretiva e se desenvolveu em contraste às teorias de então, a Psicanálise e o Behaviorismo.
Assim, compreende-se que o sujeito se constrói e se constitui a partir da sua relação com o outro, porém é necessário que essa relação não seja de objetificação, mas fundada na demarcação do desejo – o que ocorre a partir da linguagem – para que o indivíduo possa existir enquanto o sujeito que realmente é, sem idealizações internas ou externas.
O domínio da linguagem é primordial para a produção de narrativas, e o indivíduo que não produz narrativas sobre si mesmo fica limitado à posição de objeto da narrativa do outro. Essa posição limita esse indivíduo de ser sujeito – seja do seu próprio discurso, seja do seu próprio eu.
A cultura possui relevante influência na constituição de cada sujeito. É a partir da linguagem que o individuo repassa a cultura daquela comunidade, e esta se torna referência para a sua constituição social. Desse modo, o meio tem forte influência a partir da internalização dos seus símbolos e, juntamente com a história pessoal, constitui cada sujeito (VYGOTSKY, 2000).
George Mead12 (2010) chama a atenção para o conceito de “o outro generalizado”, que se refere a um grupo enquanto unidade que se faz presente na experiência de cada um de seus membros e tem influencia na constituição do “self” de cada um. É a partir desse outro generalizado que o social legitima controle sobre os comportamentos de cada indivíduo. Enquanto ser social, individualmente, cada membro de um grupo acaba por adotar abstratamente pensamentos e atitudes culturalmente empregadas naquela sociedade.
Ainda que se leve em consideração a individualidade de cada sujeito e o seu modo de ver o mundo, há de se considerar que