
Coleção Ciências Criminais
Teses Selecionadas
Coordenadores

Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho
Coleção Ciências Criminais
Teses Selecionadas
Coordenadores
Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho
perspectivas probatória e jurisprudencial
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Diagramação e Capa: Analu Brettas
Revisão textual: Jádia Timm
eduardo Ferrer mac-gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações
Jurídicas da UNAM - México
Juarez tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis LóPez guerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owen m. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
tomás s. vives antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
M344 Martins, Luiza Farias
Lavagem de dinheiro e dolo eventual : perspectivas probatória e jurisprudencial [livro eletrônico] / Luiza Farias Martins; Alexandre Wunderlich, Salo de Carvalho (Coord.); Prefácio Heloisa Estellita. -
1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023. – (Ciências Criminais ; Teses Selecionadas)
2.568Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-546-0
1. Direito. 2. Lavagem de dinheiro. I. Título.
CDU: 343.37
Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
DOI: 10.53071/boo-2023-05-14-6461692f83963
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.
Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Luiza Farias MartinsColeção Ciências Criminais
Teses Selecionadas
Coordenadores
Alexandre Wunderlich Salo de Carvalho
perspectivas probatória e jurisprudencial
A coleção “Ciências criminais: teses selecionadas” é fruto de um antigo projeto que nos desafia: aproximar a crítica acadêmica e a produção científica de qualidade aos profissionais do Direito, com o objetivo de sofisticar a jurisprudência nacional, reforçando os mecanismos de controle dos excessos dos poderes punitivos.
Ao longo da jornada acadêmica, ocupamos espaços em diversas Instituições de Ensino, na graduação e na pós-graduação, o que nos permitiu acesso a inúmeras investigações, materializadas em dissertações e teses. Algumas pesquisas através do trabalho direto, por meio de orientações, e outras tantas em razão de participações em arguições. Esses materiais foram sendo selecionados e alguns se quedavam inéditos. Ao mesmo tempo, para além da acadêmica, a atividade contínua na advocacia criminal mostra a real necessidade de disponibilizar o que é produzido na universidade ao público especializado, sobretudo aos atores do sistema de Justiça Penal.
Diante da excelência de vários desses trabalhos, entendendo que o mercado cada vez mais demanda e absorve investigações profundas e de qualidade, para além dos tradicionais manuais, sugerimos para a Editora Tirant lo Blanch e para o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais uma parceria que viabilizasse as publicações dos trabalhos selecionados. As teses e dissertações selecionadas, portanto, contribuem para o debate e o desenvolvimento das ciências criminais no país, fundamentalmente nas áreas do direito penal, processo penal, criminologia e política criminal.
Por fim, reafirmamos o nosso compromisso com a consolidação de uma dogmática crítica, que supera a falsa dicotomia teoria versus prática, e direcionada à defesa intransigente da Constituição da República e dos direitos e garantias nela positivados. Não por outra razão, o garantismo penal acaba sendo o fio condutor de boa parte dos trabalhos que serão publicados.
Por todos estes motivos, é um grande prazer e renovado orgulho apresentar aos leitores a coleção “Ciências criminais: teses selecionadas”.
ProF. dr. aLexandre wunderLich
ProF. dr. saLo de carvaLho
Trabalhos acadêmicos de fôlego, como dissertações de mestrado, têm uma história própria, que combina esforços acadêmicos e pessoais. Escolhe-se um novo tema ou uma nova abordagem para um velho tema. Feita a escolha, há um esforço pessoal considerável à frente. Quando isso é feito em meio a uma pandemia e com um tema que também exige domínio de uma metodologia com a qual não se tem muita familiaridade, há que se ter ainda mais empenho. Fôlego e empenho não faltaram a Luiza, como poderão ver agora leitoras e leitores.
Começo pelo tema, pela suspeita que motivou a pesquisa: na falta da previsão da punibilidade culposa da lavagem de dinheiro, estaria a jurisprudência ampliando indevidamente a punibilidade a título de dolo eventual para impunidade? Uma resposta rigorosa a essa pergunta exige, de um lado, domínio de aspectos dogmáticos relativos à tipicidade subjetiva e ao tipo penal de lavagem de dinheiro, e, de outro, de aspectos de metodologia que deem cientificidade ao exame de decisões judiciais. E esses são os dois pilares que estruturam este livro em seu miolo, os Capítulos 2 e 3, muito embora o trabalho vá além, como se vê no Capítulo 4, onde a autora se lança a uma crítica construtiva, na qual, orientada pelo princípio da legalidade, oferece indicadores para a aferição do dolo eventual nos crimes de lavagem de dinheiro. Luiza produz, assim, um trabalho de dogmática consequente: oferece ao aplicador do Direito – privado do benefício do non liquet – critérios concretos para a aferição dos sinais externos do dolo (fenômeno psicológico, para uns, atributivo, para outros). Com isso, agrega sua contribuição àquelas já oferecidas entre nós por Eduardo Viana e Pedro Jorge Costa,1 por exemplo.
Sob o aspecto pessoal, tenho a convicção de que a maioria dos trabalhos acadêmicos na área jurídica não é fruto de um esforço puramente individual ou puramente acadêmico. A curiosidade acadêmica é, muitas vezes, aguçada por questões que surgem no exercício da atividade profissional. Nesse sentido, Luiza tem o privilégio de viver imersa em um ambiente rico nesses dois componentes: cercada por mentes brilhantes e inquietas que atuam na trincheira da advocacia criminal sob a batuta de Alexandre Wunderlich, professor da PUC-RS, instituição à qual a ciência jurídica brasileira tanto deve. E aqui o meu agradecimento: ela poderia ter escolhido essa prestigiosa instituição de ensino para seu mestrado, mas resolveu nos dar o privilégio de recebê-la na FGV DIREITO SP e, por isso,
sempre serei grata, a ela e ao Alexandre. É esse ambiente que, a meu ver, ajuda a explicar a persistência e a resiliência que teve para desenvolver um trabalho deste porte em plena pandemia, em meio à qual cada esforço pessoal custou a cada um de nós o dobro, o triplo, de energia e de empenho. Isso diz muito sobre a autora.
Escrever este prefácio me fez olhar para trás, para o caminho que tive o privilégio caminhar ao lado da autora, e também para frente, para tudo o que ela certamente ainda nos proporcionará.
Barcelona, 15 de janeiro de 2023.
ProF.ª dr.ª heLoisa esteLLita
Tive o prazer de conhecer a autora que agora apresento ao público, Luiza Farias Martins, ainda nos bancos acadêmicos da Escola de Direito da PUCRS em Porto Alegre. Depois, por intermédio de Renata Machado Saraiva, ela veio compor o Alexandre Wunderlich Advogados – primeiro como estagiária e depois na condição de advogada. Desde o primeiro momento, percebi que Luiza era muitíssimo determinada e ao mesmo tempo inquieta nas suas percepções sobre a academia e a advocacia criminal. Uma vez graduada, logo ingressou no curso de pós-graduação em Direito Penal Empresarial na mesma Escola de Direito da PUCRS, curso que tive a oportunidade de ser coordenador. Na banca de defesa da sua investigação monográfica, que recordo de participar como arguidor, Luiza demonstrou vasto conhecimento sobre o tema da “lavagem de dinheiro e instituições financeiras”, quando tratou dos limites da responsabilização penal pelo descumprimento do dever de comunicar operações, em trabalho bem orientado pelo meu amigo Prof. Dr. Luciano Feldens, reconhecido penalista e referência na área do Direito Penal Empresarial.
Algum tempo depois, lembro que Luiza ofertou um artigo para a Revista de Estudos Criminais, periódico Qualis-Capes A1 do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais e do PPGCCRIM da Escola de Direito da PUCRS, quando, de forma pioneira no Brasil, abordou o tema da “teoria da cegueira deliberada da lavagem de dinheiro”. Foi sua primeira publicação relevante. Depois, vieram outros tantos textos que foram publicados em revistas e coletâneas, alguns em coautoria, todos dentro de sua área de estudos e predileção, o direito penal do mundo corporativo. Mas, Luiza não é só uma competente pesquisadora e dedicada acadêmica, ela conhece de perto a realidade do sistema de justiça criminal. Sou testemunha da atuação de Luiza em operações policiais e processos judiciais de grande porte, especialmente na marcante “Operação Lava Jato”. Logo, não é uma nefelibata da ciência penal, tem um pé na universidade e o outro no foro criminal.
Esse é, pois, o contexto histórico que me conduz à presente apresentação da autora Luiza Farias Martins. A investigação científica que agora se torna pública pela prestigiada editora Tirant lo Blanch é fruto de mais um esforço acadêmico de vulto. O livro deriva de séria pesquisa realizada na FGV DIREITO de São Paulo, muito bem orientada pela minha amiga Profa. Dra. Heloisa Estellita, que tanto admiro, respeitada doutrinadora e referência internacional no tema abordado, da “lavagem de dinheiro e dolo eventual”. O trabalho, nas perspectivas probatória e jurisprudencial, é inédito ao sugerir vetores para a constatação
do dolo eventual no tipo legal de crime de lavagem de dinheiro. Aliás, diante da qualidade do trabalho e da relevância prática da pesquisa, a autora recebeu a premiação de dissertação de mestrado de destaque na FGV DIREITO em São Paulo no ano de 2022.
A jornada de Luiza Farias Martins, autora que tenho a honra e a alegria de apresentar à comunidade científica e ao público em geral, avança mais um pouco com a presente publicação, que certamente será, em curto espaço de tempo, uma importante referência para pesquisadores e operadores do Direito. É o que espero.
A partir do grande desafio de cursar o mestrado e desenvolver a dissertação, especialmente durante uma pandemia, afirmo que quem está ao nosso lado nas trincheiras importa tanto - ou mais, como dizia Hemingway - do que a própria guerra. Deixo aqui um breve registro da minha gratidão a todos que fizeram parte desta importante etapa de profunda evolução acadêmica e pessoal.
Em primeiro lugar, sempre, agradeço à minha família, minha base sólida e rede incondicional de apoio e amor: Miro, Márcia, Márcio, Pedro, Helena, Bruna e Marta, que estiveram e estão sempre ao meu lado e na minha torcida. Aos meus sobrinhos amados, Matheus, Antônio, Francisco e Inácio, com quem meu pensamento esteve em tantos finais de semana e feriados nos quais abri mão de estarmos juntos para me dedicar aos estudos. E à Mariur, minha madrinha e constante fonte de inspiração.
Não poderia deixar de agradecer aos Professores da linha de Direito Penal Econômico do Mestrado Profissional da Escola de Direito da FGV-SP, que me abriram as portas para um novo mundo no qual o diálogo profundo, a teoria e a prática entrelaçam-se perfeitamente. Em especial, agradeço à Professora Raquel Scalcon pelo constante diálogo e pelo incentivo, ao Professor Adriano Teixeira pela atenção e pelas preciosas considerações na banca de qualificação e na defesa final e, por fim, à minha Orientadora - com O maiúsculo mesmo -, Professora Heloisa Estellita, uma joia rara no mundo acadêmico, que compartilha o seu brilho com aqueles que têm a sorte de desfrutar da sua convivência - sou muito grata por toda dedicação e confiança. Também registro minha gratidão ao Professor Pierpaolo Bottini, não só pela participação na banca de defesa desta dissertação, mas pela leitura atenta e pelas relevantes sugestões.
Estendo o agradecimento ao Felipe Campana, monitor e amigo que me acompanhou e me auxiliou desde o início do curso, e aos meus colegas de turma, companheiros desta desafiadora jornada e de tantas lembranças felizes dos momentos que compartilhamos ao longo dela, principalmente a Maria Tereza, Mariana e Joana, mulheres incríveis e grandes presentes que o Mestrado me deu.
Agradeço ao Instituto de Estudos Culturalistas - IEC, nas pessoas dos brilhantes Professores Miguel Reale Júnior e Judith Martins-Costa, e da atenciosa Ivete Bonatto, que gentilmente me receberam na biblioteca do Instituto, onde muitas destas páginas foram escritas.
Registro meu agradecimento aos colegas de escritório, Camile, Marcelo Araújo, Marcelo Buttelli, Antônio (com saudades!), Amanda, Nelly, Letícia e Ni-
vete, pelo apoio incondicional, por serem grandes amigos e família. Em especial, agradeço ao Alexandre Wunderlich, meu mestre, grande exemplo de pessoa e de profissional, a quem sou extremamente grata por tantas oportunidades.
Agradeço ao Fernando, que esteve firme e forme na minha retaguarda durante a turbulenta reta final desta pesquisa.
Agradeço ao Adônis, querido amigo e companheiro de rotina no escritório, pelo auxílio, pela torcida e pela compreensão ao longo destes anos de estudos.
Agradeço ao Marcelo Ruivo pelas longas trocas e inquietações que colaboraram à construção deste trabalho.
Ao Gustavo e à Cristiane, meus grandes amigos e confidentes, parceiros deste percurso e de taças de vinho, obrigada por todo apoio e pelas contribuições - ter vocês comigo deixou tudo mais leve.
Agradeço à Renata, minha amada e iluminada dupla, por muitos mais motivos do que poderia escrever aqui, e à pequena Teresa, que participou do desenvolvimento desta pesquisa ainda dentro da barriga. Juntas, agora como um trio, o caminho é mais curto e mais feliz.
Ao Antonio, meu grande incentivador desde antes deste projeto virar realidade, obrigada por estar ao meu lado de mãos dadas nesta árdua caminhada. Seguimos caminhando juntos, meu amor.
Agradeço à Silvia e ao Gastão, que me acolheram com amor e cuidado e foram sinônimos de casa, conforto e carinho em São Paulo durante tantas idas e vindas.
Agradeço à Fernanda Vilares, que também contribuiu para o caminho que trilhei até aqui. Amiga que Salamanca me trouxe e professora cujo fascínio pela pesquisa me tocou ainda naquele inverno espanhol.
Também, registro meu agradecimento aos meus especialíssimos amigos e amigas que estiveram sempre ao meu lado, nos dias felizes e nos mais difíceis: Alice Castiel, Bárbara Sassen, Celina Simões Pires, Julia Laks, Júlia Carvalho, Maria Eduarda Sirena, Mariana Gastal e Rodrigo Nicotti.
Por fim, destaco a minha enorme alegria de publicar esta pesquisa pela Editora Tirant lo Blanch, na nova coleção coordenada pelos brilhantes Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho, que têm um relevantíssimo papel na minha trajetória. Além de admiradora, sou testemunha, desde 2011, desses entusiastas da dupla-jornada acadêmica e profissional, e a coleção “Ciências Criminais: teses selecionadas”, acredito, é a materialização disso.
BGH Bundesgerichtshof (tribunal equivalente ao STJ)
Cf. Conferir
CP Código Penal
CPP Código de Processo Penal
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TRFs Tribunais Regionais Federais
A pesquisa transita no âmbito do direito penal econômico, especialmente no ponto que toca o plano subjetivo das condutas, o qual figura como dado complementar imprescindível à atribuição de responsabilidade penal na estrutura consolidada pela teoria do delito, que requer a prática de uma ação ou omissão2, típica, ilícita e culpável. Nesse cenário, dentre os problemas vinculados à tipicidade subjetiva, a doutrina denuncia a expansão dos limites das figuras dolosas, por meio da elasticidade indevida dada ao seu conceito, sobretudo quanto ao emprego do dolo eventual e da teoria da cegueira deliberada, reiteradamente aplicados nos crimes econômico-empresariais3.
São justamente essas situações, derivadas da complexidade dos casos de direito penal econômico e intensificadas pela natureza do dolo eventual, que servem de impulso para a presente pesquisa: trataremos dos impactos, a partir de uma amostra de acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais Federais brasileiros, advindos da dificuldade de identificação dos pressupostos do dolo eventual. Considerando os desafios quanto à aferição da tipicidade subjetiva, que adquirem relevância no contexto acima exposto, a presente investigação tem por finalidade a verificação dos contornos do impasse na imputação do dolo eventual na jurisprudência, o que se dá por meio de um grupo de casos de lavagem de dinheiro, para identificar se há uma extensão indevida do seu conteúdo. Partimos das seguintes considerações:
a) premissas: há dificuldade de delimitação da tipicidade subjetiva no direito penal econômico, e, portanto, no âmbito do crime de lavagem de dinheiro, notadamente no campo do dolo eventual, o que decorre da combinação de fatores como: a sua conformação controvertida e a posição limítrofe que ocupa, a habitual existência de uma pluralidade de indivíduos envolvidos nos fatos e, consequentemente, de distintos níveis de conhecimento acerca da prática delitiva;
2 Ao longo do texto utilizaremos a expressão ação como representação genérica de conduta, para manter a clareza e objetividade do texto. Não ignoramos, contudo, que as condutas podem dar-se por meio de ações ou de omissões.
3 Sobre a discussão vigente: LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018; SANTOS, Humberto Souza. O dolo nos crimes econômicos e empresariais. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (org.). Comentários ao direito penal econômico brasileiro. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 239-288; DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
b) hipótese: esses obstáculos podem resultar na expansão indevida da figura do dolo eventual, nele abarcando condutas que conceitualmente extrapolariam seus limites - levando em conta o entendimento que compreendemos como tradicional e majoritário.
O questionamento que norteia o desenvolvimento do trabalho, portanto, é o seguinte: Há uma efetiva expansão dos limites do dolo eventual pelos tribunais?
A questão exprime o problema central da presente pesquisa e considera o entendimento parcial da jurisprudência, isto é, limitado à amostra de casos objeto de análise.
A investigação se desenvolve a partir de três grandes recortes: o âmbito do direito penal econômico, o plano da tipicidade subjetiva e a análise a partir do crime de lavagem de dinheiro (art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/98). No decorrer do trabalho nos debruçaremos sobre os dois últimos recortes, figurando o primeiro como pano de fundo, cujo aprofundamento se dispensa, para a construção do problema e para o debate colocado.
A indicação do direito penal econômico enquanto cenário amplo desta pesquisa justifica-se em razão das suas características e da complexidade das práticas ilícitas que abrange, por revelar algumas dificuldades de investigação e de persecução que repercutem na estrutura de responsabilização penal4. Isso se dá em razão de obstáculos observados na prática, como o difícil acesso à informação, seja em organizações empresariais ou outras formas de organização e convivência de agentes, a utilização de mecanismos tecnológicos, a identificação dos esquemas e da sua forma de operação, a existência de uma pluralidade de agentes envolvidos, com distintos níveis de conhecimento e de contribuição às condutas, e a ocasional distância entre as condutas e o resultado ilícito.
Tendo em vista que na seara da criminalidade econômica a maioria dos crimes não compreende a previsão de modalidade culposa, naturalmente a discussão travada é direcionada ao dolo, e, sobretudo, ao dolo eventual, pois, analisando os desafios intrínsecos aos delitos desta natureza sob a ótica do dolo eventual, há uma conjunção de fatores que podem potencializar as possíveis vulnerabilidades no âmbito da aferição da tipicidade subjetiva. Por conseguinte, o segundo recorte que demarca o desenvolvimento desta pesquisa é a aproximação aos pressupostos
4 O entendimento geral ao qual aderimos é muito bem sintetizado por Estellita, quando afirma que no escopo do direito penal econômico “encontram-se as práticas delitivas conectadas de alguma forma ao exercício da atividade econômica . (ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 34).
subjetivos de responsabilização penal. As discussões no contexto da tipicidade objetiva não integram o eixo primordial do trabalho, e considerar-se-ão superadas ao longo da investigação.
Embora cientes da controvérsia no que diz respeito às concepções que fundam a tipicidade subjetiva no direito penal brasileiro, não questionaremos ou proporemos uma nova conformação, mas tão somente identificaremos o entendimento tradicional, e que concebemos como majoritário quanto ao dolo, o qual empregaremos como marco teórico para o enfrentamento das questões postas no âmbito dos casos concretos. Por esta razão, adiantamos que partiremos da concepção que contempla o dolo em sua dupla dimensão, com a necessária configuração dos elementos cognitivo e volitivo.
Ganham destaque no contexto da aferição da tipicidade subjetiva nos delitos econômicos dois âmbitos de manifestação da discussão: o contexto de multiplicidade de agentes envolvidos nas práticas ilícitas e os consequentes distintos níveis de conhecimento dos indivíduos quanto aos fatos5. Isso porque o envolvimento de diversos agentes na conduta criminosa impõe barreiras naturais à identificação da contribuição de cada um, pois não só as condutas (ações/omissões) são fragmentadas, como também o conhecimento de cada sujeito sobre a situação é afetado, o que obscurece a compreensão acerca do quanto os indivíduos contribuíram para os fatos e, sobretudo, o quanto conheciam e queriam contribuir6.
O contexto das organizações empresariais – ou de outras atividades profissionais nas quais há divisão de tarefas, estrutura hierárquica organizada – normalmente envolve uma pluralidade de agentes, o que, além da setorização do acesso às informações e dos distintos níveis de contribuição para eventuais práticas ilícitas, também enseja a diminuição da capacidade de conhecimento dos indivíduos sobre a dimensão das suas ações. Esta dinâmica favorece o enfraquecimento dos limites do dolo e abre espaço para o debate sobre o erro de tipo (art. 20 do CP), que é responsável por balizar, em interpretação sistemática, os contornos do conhecimento exigido para configuração do dolo (art. 18, I, do CP).
5 Nesse sentido: PÉREZ MANZANO, Mercedes. La delimitación entre prueba y subsunción del dolo en Derecho penal económico: el caso de los testaferros. In: CRESPO, Eduardo Demetrio (dir.). Derecho penal económico y teoría del delito. Valencia: Tirant lo blanch, 2020, p. 330.
6 No que diz respeito à temática do concurso de agentes (art. 29 e seguintes do CP), diretamente relacionada ao contexto da pluralidade de agentes envolvidos nos ilícitos, embora o texto legal sugira o enquadramento em um sistema extensivo e unitário de autor, para o qual autor é todo aquele que contribui de forma causal ao resultado, relegando à pena a distinção das contribuições, é possível a compreensão do sistema adotado no Código Penal enquanto modelo restritivo e diferenciador, reconhecendo as distinções entre a realização do tipo (autoria) e a contribuição material (participação) (GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Autoria como realização do tipo: uma introdução à ideia de domínio do fato como fundamento central da autoria no direito penal brasileiro. In: GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marial Pons, 2014. p. 47-80). Em que pese a relevância, em termos de impacto na estrutura do tipo subjetivo e seus requisitos, da configuração da coautoria ou da participação, registramos que não aprofundaremos o assunto nem consideraremos os seus efeitos por falta de espaço, de forma que partiremos sempre do pressuposto geral da autoria, para permitir o desenvolvimento da pesquisa sem desvios que demandariam denso exame.
A mesma lógica se aplica a outros grupos de interação de múltiplos indivíduos, como as atividades profissionais não necessariamente vinculadas à estrutura empresarial de grande porte e as relações de âmbito familiar ou de amizade, nas quais há relações prévias, que também revelam isolamento das informações em outra perspectiva, não decorrente de estrutura hierárquica organizada e setorizada, mas da dinâmica de relacionamento e de fatores, como a confiança estabelecida entre as partes.
O feixe de casos que justifica a presente investigação, assim, é aquele nos quais frequentemente há dificuldade em relação à identificação dos pressupostos da tipicidade subjetiva (dolo eventual), em condutas praticadas no contexto do direito penal econômico, cujas características contribuem para a dificuldade de delimitação das ações praticadas e das respectivas manifestações subjetivas.
Demarcando ainda mais o escopo da investigação, nos dedicaremos à abordagem acima exposta exclusivamente em relação ao crime de lavagem de dinheiro, tendo em vista que o delito favorece a discussão proposta em razão da sua estrutura, pois comumente é praticado por meio de esquemas elaborados, com diversos agentes envolvidos, em distintos formatos e em cenários cuja disponibilização de informações é fragmentada e limitada, e esse enredo adquire relevância na perspectiva dos planos objetivo e subjetivo do delito.
A lavagem de dinheiro foi eleita como marco específico para o exame proposto por uma combinação de razões que, ao nosso ver, justificam a posição central que lhe foi conferida: (i) a sua constituição, uma vez que pela própria natureza é um delito dotado de complexidade, e, ainda, comporta a discussão sobre a admissão do dolo eventual – dois pontos que contribuem para a dificuldade de aferição da tipicidade subjetiva; (ii) o recorrente emprego das figuras do dolo eventual e da cegueira deliberada nestes crimes – do que decorre a possível expansão dos limites do dolo; e (iii) a quantidade de casos com imputações envolvendo a lavagem de dinheiro nos tribunais – o que favorece o desenvolvimento da pesquisa de jurisprudência.
Seguindo a lógica que justifica as premissas, a hipótese e a delimitação acima indicadas, são estes os eixos principais que circunscrevem a discussão e que buscam pavimentar o caminho para o teste da hipótese formulada: a indicação dos pressupostos dolosos a partir do entendimento tradicional, não obstante a zona cinzenta em que se situa o dolo eventual, pela sua configuração controversa e pela posição limítrofe com a culpa; a aplicação deste cenário às particularidades do crime de lavagem de dinheiro, enquanto modelo de delito econômico cuja estrutura é adequada ao debate proposto; o diálogo com os casos concretos, a partir
da verificação dos pressupostos da tipicidade subjetiva nos julgados selecionados; e as reflexões preliminares quanto à perspectiva da tipicidade subjetiva do crime de lavagem, a partir dos resultados encontrados. Em vista disso, a presente pesquisa se divide em três capítulos.
O Capítulo 1 é construído como marco teórico no que diz respeito aos pressupostos de tipicidade subjetiva dolosa, partindo da sua previsão legal (arts. 18, I, e 20 do Código Penal) e da concepção volitiva tradicional, passando por demarcações conceituais e discussões acessórias, como os temas da prova do dolo eventual e da cegueira deliberada, e aplicando os pressupostos identificados especificamente ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/98). Essa conformação anuncia as balizas que permitirão a análise do ponto nos casos concretos.
No Capítulo 2, verifica-se o problema na jurisprudência, mediante a interlocução entre o marco teórico estabelecido e o fenômeno investigado, identificando a efetiva (in)existência da dificuldade de aferição da tipicidade subjetiva quanto ao dolo eventual pelos tribunais na parcela de casos examinada. Essa dinâmica se dá por meio da análise e da classificação dos julgados em grupos, que determinam a categorização dos casos e a posterior resposta ao questionamento proposto.
Por fim, no Capítulo 3 registramos algumas reflexões preliminares quanto ao problema analisado e os possíveis caminhos e soluções a serem considerados e aprofundados, sugerindo um ponto de partida quanto aos indicadores para determinação do dolo eventual na lavagem de dinheiro, de forma a auxiliar na resolução das disfunções verificadas a partir do exame jurisprudencial.
Este trabalho busca dialogar com o entendimento jurisprudencial, considerando a amostra de 23 julgados selecionados, os quais foram extraídos de um total de 146 acórdãos coletados em pesquisa realizada nos sítios oficiais dos Tribunais Regionais Federais brasileiros e classificados como relevantes para a pesquisa mediante a aplicação de parâmetros específicos para delimitação da busca e dos resultados. Trata-se de 23 apelações criminais em que há uma ou mais imputações de crime de lavagem de dinheiro, cujo contexto se insere no âmbito do direito penal econômico, diante da restrição aplicada quanto aos crimes antecedentes da lavagem, e nas quais há alguma discussão envolvendo o dolo eventual, seja para fins de condenação ou de absolvição.
A partir dessas 23 decisões, examinamos 32 condutas relacionadas aos pontos centrais acima indicados, com a devida análise e subsequente classificação