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Alberto Febbrajo

Leonel Severo Rocha

Germano Schwartz

A CulturA JurídiCA e o ConstituCionAlismo digitAl

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Capa e diagramação: Jéssica Razia

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eduArdo Ferrer mAC-gregor Poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

JuArez tAvAres

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil luis lóPez guerrA

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen m. Fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA tomás s. vives Antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

F313 Febbrajo, Alberto

A cultura jurídica e o constitucionalismo digital [livro eletrônico] / Alberto Febbrajo, Leonel Severo Rocha, Germano Schwartz. - 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.

2.227Kb; livro digital

ISBN: 978-65-5908-563-7

1. Sociologia das constituições. 2. Teoria dos sistemas. I. Título.

CDU: 340.12

Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778

DOI: 10.53071/boo-2023-05-17-6465347ceb295

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Alberto Febbrajo

Leonel Severo Rocha

Germano Schwartz

A CulturA JurídiCA e o ConstituCionAlismo digitAl

APresentAção

Em tempos de outrora, pré-pandêmicos, começamos a conversar sobre o seguimento da série de livros a respeito da aplicação da teoria dos sistemas autopoiéticos ao Direito (TSAD) que havíamos começado na segunda década do século XXI. Com sucesso (acadêmico e comercial), os livros anteriores1 possuíam uma premissa bastante clara: além de trazer para a língua portuguesa os trabalhos de autores estrangeiros consagrados na temática, era preciso abordar - e conectar – assuntos, senão inovadores, que evitassem repetir a produção do agora já extenso campo da sociologia sistêmico-autopoiética do Direito no Brasil.

Com esse pensamento, propusemos um projeto de pesquisa ao Conselho Nacional de Pesquisa e de Desenvolvimento (CNPq), visto que, à evidência, uma empreitada desse porte necessita de recursos. Eram tempos sem álcool gel como rotina e de máscaras dispensadas no convívio social. Quase outra realidade. Aprovado, em 2018, o projeto intitulado “O Constitucionalismo Digital” foi autuado com o número 424962/2018-7. Queremos deixar, aqui, registrado, os nossos agradecimentos ao CNPq. Sem o auxílio concedido, sem dúvidas, essa obra não viria a lume.

Desde antes da propositura do projeto, entretanto, vínhamos estruturando uma linha de pesquisa que conectava as Constituições, a cultura e a digitalização da sociedade. Esse embrião teve formato em seminários organizados por Alberto Febbrajo na cidade de Fermo (Itália). Naqueles encontros internacionais, o projeto foi gestado a partir de questionamentos gerados em nossas apresentações. O caminho natural, portanto, foi o de seguir explorando o tema.

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1 Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito (Leonel Severo Rocha, Germano Schwartz e Jean Clam). Segunda edição. A Verdade sobre a Autopoiese no Direito (Leonel Severo Rocha, Michael King e Germano Schwartz) Sociologia Sistêmico- Autopoiética das Constituições (Jiri Pribán, Germano Schwartz e Leonel Severo Rocha)

Naturalmente, que o projeto, em si, iniciado em 2018, tinha um prazo previsto de duração menor que os cinco anos contados da sua aprovação até a presente publicação. Ninguém, de fato, previu uma COVID-19 pela frente. No entanto, não fosse a cultura, já instalada previamente à pandemia, da digitalização da sociedade, seria muito difícil continuarmos com o projeto. De fato, mesmo que, de uma maneira adaptada, diferente da metodologia original, seguimos com o trabalho e é nosso orgulho apresentá-lo, nesse momento, aos leitores.

Por fim, esse livro, ao menos para nós, acima de um projeto de pesquisa, é, também, o registro de uma época bastante diferente no sistema da sociedade mundial; é, ainda, uma homenagem dos autores às vítimas da COVID-19, um evento que, sem dúvidas, trará profundas influências na sociedade digitalizada mundial e, portanto, em sua cultura e no modo de observar as Constituições.

os Autores

Macerata – São Leopoldo – Porto Alegre/Caxias do Sul. Verão Brasileiro Inverno Italiano 2023.

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sumário APresentAção ...........................................................................................5 Os Autores 1. CulturA JurídiCA entre ConstituCionAlismo e trAnsConstituCionAlismo .... 9 Alberto Febbrajo 1.1. Premissa ........................................................................................................... 9 1.2. Para uma definição do conceito de cultura jurídica ........................................ 10 1.3. Os problemas ................................................................................................. 11 a) A primeira dessas questões é: o que é jurídico no conceito cultura jurídica? ... 11 b) A segunda questão: o que significa cultura no conceito de cultura jurídica? 14 c) Isso nos leva à terceira pergunta: quais são os critérios para delimitar uma determinada cultura jurídica? ........................................................................... 16 1.4. Normas sociais e jurídicas .............................................................................. 17 1.5. Os modelos 19 a) A cultura jurídica tradicional 19 b) A cultura jurídica de aplicação/aplicativa ..................................................... 21 c) A cultura jurídica teleológica ........................................................................ 26 1.6. Cultura jurídica e constituição ....................................................................... 27 a) A função identitária ..................................................................................... 28 b) A função interpretativa ................................................................................ 31 c) A função adaptativa 33 1.7. Do constitucionalismo ao transconstitucionalismo 36 1.8. Excursus. O caso da União Europeia 52 1.8.1. As duas Europas ....................................................................................... 56 1.8.2. Os “programas” da Europa ....................................................................... 58 1.8.3. Rumo a um modelo flexível de democracia............................................... 64 1.9. Observações finais .......................................................................................... 68 Referências bibliográficas ...................................................................................... 76 2. teoriA do direito e ConstituCionAlismo nA CulturA digitAl ...............80 Leonel Severo Rocha, Ariel Augusto Lira e Bernardo Leandro Carvalho da Costa 2.1. Introdução ..................................................................................................... 80 2.2. Teoria do direito e constitucionalismo: da matriz analítica à pragmáticosistêmica 82 2.2.1. As Três Matrizes de Observação do Direito e os Pressupostos Epistemológicos do Constitucionalismo ....................................................................................... 82 2.2.2 Niklas Luhmann: Direito, Política, Constituição e Estado ......................... 88
2.2.3. Gunther Teubner: a policontexturalidade, o paradoxo do direito sem Estado e o Constitucionalismo Social............................................................................. 96 2.3. Constitucionalismo digital: governança, internet, redes sociais e direitos fundamentais 105 2.3.1. Constitucionalismo e Governança da Internet a partir da ICANN ......... 105 2.3.2. Uma constituição para a Internet? Direitos Fundamentais e movimentos sociais 113 2.3.3. Cultura das Redes e Constitucionalismo na Cultura Digital 121 2.4. Considerações finais ..................................................................................... 136 Referências bibliográficas .................................................................................... 138 3. estão mortAs As Constituições? os momentos Constituintes e A CulturA dos movimentos soCiAis do séCulo XXI................................................148 Germano Schwartz 3.1. Introdução 148 3.2. O Ponto de Partida 149 3.3. Os Movimentos Sociais do Século XXI. Momentos Constituintes? .............. 156 3.4. Os MS21 e a Crise. Momentos Constituintes? ............................................. 158 3.4. Considerações Finais .................................................................................... 163 Referências bibliográficas .................................................................................... 165

1. CulturA JurídiCA entre

ConstituCionAlismo e trAnsConstituCionAlismo1

1.1. PremissA

Na literatura sociológico-jurídica, um papel estrategicamente central é desempenhado por um conceito que, precisamente em virtude da sua abrangência, é difícil de definir de maneira suficientemente detalhada: o conceito de cultura jurídica2. A seguir, tentarei descrevê-lo, a fim de evitar distinções duplas rígidas, baseadas no ponto de observação escolhido, se interno ou externo a ordem jurídica3. De fato, a fim de desempenhar a importante função de “rede de segurança” social do direito, de espaço intermediário entre norma jurídica e sociedade, de cruzamento entre a maneira como a sociedade vê o direito e a maneira como o direito vê a sociedade, a cultura jurídica necessita de fronteiras flexíveis, adaptáveis à várias situações. Especificamente, ela deveria compreender – precisamente pela extensão do seu uso – diferentes perspectivas temporais e metafunções que, como nos ensina a teoria dos sistemas, estão presentes na vida de cada ordem jurídica e requerem, normalmente, diferentes níveis de abstração normativa: a estabilização de um núcleo de valores tradicionais herdados do passado; a seleção das expectativas normativas reguladas no presente por sistemas judiciais e administrativos; a variação das normas vigentes em vista da consecução de objetivos fu-

1 Tradução de Matteo Finco (Università "La Sapienza" di Roma). Revisão de Simone Lancini

2 Sobre o caráter “impressionista” do conceito de cultura jurídica e sobre a pluralidade de abordagens que permite – devido à sua indeterminação e centralidade – cf. : Cotterrell (1997, pp. 13- 32); D. Nelken, Using the Concept of Legal Culture, in Australian Journal of Legal Philosophy, vol. 29, 2004; A. Febbrajo (ed.), Law, Legal Culture and Society. Mirrored Identities of the Legal Order, London- New York: Routledge, 2019.

3 Para uma variante da distinção entre cultura jurídica interna e externa, cf. Friedman, Is there a modern legal culture, Ratio Juris, 117- 131.

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turos (cap. 2). Nessa base tríplice, serão delineados muitos modelos de Constituição, vistos como produtos de culturas jurídicas, capazes de (auto) legitimar o funcionamento do sistema jurídico em uma perspectiva não rigidamente formal e hierárquica, mas atenta aos diferentes níveis normativos, ao mesmo tempo, presentes em uma Constituição: valores, expectativas e objetivos (cap. 3). Esse marco conceitual permitirá considerar diferentes aspectos do transconstitucionalismo emergente, que tem como objetivo solucionar casos relevantes para diferentes ordens, identificando possíveis pontos de interseção entre as relativas Constituições e propondo soluções aceitáveis desde a perspectiva jurídica a sociológica. Nesse contexto, a atenção será focada na complexa categoria de direitos humanos que, mais do que outras, presta-se a compreender racionalidades transversais em questões relevantes a uma pluralidade de ordens jurídicas (cap. 4). Para exemplificar o potencial e as limitações de uma “retórica” transnacional, vamos nos referir ao caso emblemático de uma organização transnacional como a União Europeia que – provavelmente mais do que instituições como o Mercosul – absorve, mas não discute adequadamente as profundas tensões interestaduais (cap. 5); finalmente, faremos algumas considerações sobre as possíveis tensões entre diferentes modelos de Estado e modelos emergentes que, na situação atual, parecem afetar o funcionamento da democracia (cap. 6).

1.2. PArA umA deFinição do ConCeito de CulturA

JurídiCA

Se considerarmos o direito como um produto cultural, devemos admitir que ele é necessariamente condicionado pelas representações desenvolvidas nas diferentes etapas da vida do sistema jurídico4. Essas representações são filtradas por culturas jurídicas que podem ser consideradas como lentes, capazes de produzir diferentes imagens da mesma realidade, dependendo dos aspectos os quais são

4 Uma das definições mais claras do conceito de cultura jurídica refere- se ao conjunto de “idéias, valores, expectativas e atitudes” orientadas para a idéia de direito e a prática das instituições jurídicas. Cf. : Friedman (1994, pp. 117- 31).

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orientadas. Elas são, portanto, parciais e relativas em si, mas combinadas, podem fornecer uma visão geral do funcionamento do direito (Cotterrell 2006; Febbrajo 2018). Assim, portanto, é possível levar em consideração a relação da cultura jurídica com a sociedade e com o direito, e visar a riqueza de significados que podem ser atribuídos ao direito, por meio de um conceito pluralista e não formal. Observando atentamente, o mecanismo reflexivo da “observação da observação” relacionado à maneira como o direito vê a sociedade e a sociedade vê o direito, pode abranger, mais ou menos explicitamente, todo o campo de pesquisa da sociologia do direito5 . As imagens do direito e da sociedade que convergem nas culturas jurídicas dos diversos atores sociais são ricas de significados a serem decifrados e, de fato, podem aparecer a causa e o efeito, os explicans e o explicandum, de uma ordem jurídica que não apenas regula a ordem social, mas que, por sua vez, aprende com a ordem social. A partir dessa circularidade de normas e cognição, tentaremos agora identificar, em várias situações típicas, os elementos capazes de garantir a convergência das imagens do direito relevantes para a sociedade, e das imagens da sociedade relevantes para o direito6.

1.3. os ProblemAs

A fim de descrever a natureza mutável das culturas jurídicas, tentarei considerar três questões essenciais:

a) A primeira dessas questões é: o que é jurídico no conceito cultura jurídica?

Como se sabe, uma classificação dual das possíveis conexões entre cultura jurídica e direito é frequentemente utilizada para responder a essa pergunta. Por um lado, há a cultura jurídica interna,

5 Cf. , por exemplo, o livro- referencia da disciplina na Itália, que apresenta a sociologia do direito como uma espécie de consciência crítica a ser desenvolvida juntamente com o estudo do direito positivo nas faculdades de jurisprudência (Treves, 1987). No ponto cf. também Febbrajo (2013).

6 Essa circularidade baseada na premissa de que apenas uma ordem jurídica ordenada, ou pelo menos que poderia ser ordenada, pode produzir uma ordem social, deve ser revertida, se o ponto de partida do raciocinio é o reconhecimento da maior importância das normas sociais em comparação às jurídicas.

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a qual refere-se a instituições jurídicas que contribuem diretamente para o funcionamento da “máquina do direito”, as quais possuem aspectos técnicos e organizacionais próprios, tendo, portanto, indivíduos nela operantes. Por outro lado, há a cultura jurídica externa, a qual refere-se à cultura jurídica de cidadãos comuns, que veem a lei como um fenômeno o qual os sujeitos podem intervir apenas indiretamente, cujo conteúdo é compreendido de forma superficial, mas o suficiente para agir no cotidiano. Esse dualismo segue o contraste externo/interno que ocorre quando se fala de um sistema e seu ambiente. Mudando o ponto de vista, no entanto, as alternativas não são apenas duas, mas podem ser distribuídas em um continuum. Por exemplo, as dicotomias entre cultura jurídica elitista e cultura jurídica de massa, que também lembram a dicotomia anterior, podem ser distribuídas em um continuum (Friedman, 1969). A cultura elitista pode ser articulada em seu interior para distinguir diferentes atitudes: magistrados e advogados costumam ver o processo de ângulos diferentes ou até opostos7, e como eles, há outras figuras com funções geralmente consideradas executivas, como policiais, guardas prisionais, funcionários administrativos, que provavelmente têm percepções diferenciadas do direito. Articulações semelhantes aplicam-se também, talvez mais, à ampla categoria da cultura jurídica de massa, pois, independentemente das posições de cada indivíduo, cidadãos comuns assumem atitudes diferentes, isso depende se tais cidadões são apenas destinatários de certas normas ou beneficiários8. Também podem existir figuras intermediárias que influenciam a opinião pública externa e as orientações dos especialistas9. De fato, não apenas os indivíduos podem ser mais ou menos internos ou mais ou menos externos, mas também, os critérios aplicados ou o objeto ao qual esses critérios são aplicados. Além do caso-limite

7 Vale a pena lembrar as diferentes correntes do judiciário italiano que expressavam variações mais ou menos diferenciadas de uma maneira lato sensu política da mesma cultura jurídica. De forma pioneira no tema E. Moriondo (1967).

8 A diferente percepção de uma norma de acordo com a situação social do destinatário é sublinhada pela crítica realista e psicológico- jurídica do normativismo. Cf. : T. Geiger (1987); K. Motyka (2006).

9 Em geral, a capacidade da mídia de massa de espalhar, ou mesmo impor, culturas apresentadas como virtualmente hegemônicas, é um dos principais objetivos críticos da Escola de Frankfurt e de inúmeros outros autores. Cf. : Marcuse (1967), Chomsky and Herman (1988), Luhmann (2000).

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de um indivíduo interno da ordem (Ii), que aplica critérios internos (Ci) a objetos internos (Oi), como sendo juridicamente relevantes, pode haver vários casos de mistura interna/externa. A identificação de indivíduos, critérios e objetos pode, em particular, mudar de forma não homogêa, dependendo das situações e processos de socialização que os indivíduos receberam de instituições e famílias (Kaupen, 1969). Pode-se haver indivíduos externos que, como cidadãos comuns, aplicam critérios com o rigor que seria esperado de indivíduos internos, mas o contrário também pode acontecer. Assim, um magistrado orientado ideologicamente pode se alinhar às avaliações comuns a opinião pública e formular sentenças que são bem-vindas pela mídia, mas julgadas friamente por outros magistrados, enquanto simples cidadãos podem compartilhar autonomamente o trabalho dos magistrados e os critérios que eles aplicam10. Essas trocas de posição, que, por exemplo, podem ver um indivíduo externo compartilhar critérios externos ou lidar com objetos considerados irrelevantes por outros atores internos, não são patológicas, mas podem preencher cultural gaps nas orientações predominantes dentro ou fora do sistema. Então, somente com uma certa aproximação, podemos falar de uma percepção homogênea do direito por indivíduos que estão dentro ou fora da ordem.

Partindo agora para uma visão não dual, mas evolutiva do direito, parece particularmente útil distinguir entre os vários modelos de cultura jurídica, de acordo com sua maior ou menor disposição à mudança. Após ter chamado a atenção para a relação entre normas jurídicas e normas sociais, podemos agora identificar algumas meta-funções que, com base nos papéis desempenhados por essas normas, podem convergir para: a estabilização de modelos culturais funcionalmente homogêneos, a seleção de possíveis reações de juízes e organizações burocráticas, mas também, de simples cidadãos a casos concretos, a variação de normas jurídicas sob a pressão de mudanças legislativas e movimentos de opinião.

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10 Para essas diversificações adicionais da alternativa interno/ externo, cf. Febbrajo (2006).

Utilizando essa perspectiva, evitaremos alternativas binárias e tentaremos levar em consideração diferentes parâmetros temporais, funcionalmente direcionados a valores, expectativas e programas, numa visão da ordem jurídica não estática, mas aberta a momentos normativos e cognitivos.

b) A segunda questão: o que significa cultura no conceito de cultura jurídica?

Se a conexão do conceito de cultura jurídica com o direito positivo é flexível e não se presta a distinções rigidamente dicotômicas, a conexão do direito com o conceito, em si extremamente ampla, de cultura, também é muito ampla e articulada. A partir das regularidades empíricas de comportamento que constituem a base visível para a interpretação de uma determinada cultura jurídica, é possível reconstruir o conteúdo dessa cultura usando diferentes indicadores, como costumes que acabam se tornando vinculativos, métodos consolidados de aplicação de algumas normas com as quais é habitual responder a comportamentos desviantes, identificações de objetivos geralmente compartilhados. Mas, observar tudo isso não é fácil se o observador estiver no interior de seu objeto.

Partindo de um vasto panorama de indicadores, ao qual retornaremos mais tarde, o sociólogo do direito, diferentemente do antropólogo, tem mais interesse em observar sobretudo a sua própria cultura e, portanto, terá que enfrentar diretamente com problemas tais como: até que ponto a auto-observação pode favorecer distorções ideológicas?11 O sociólogo é capaz de observar sua sociedade? O magistrado pode observar, com o devido desprendimento, o judiciário ao qual ele pertence?

Questões como essas, necessitam de avaliações metodológicas importantes. Em geral, o observador que faz parte de seu objeto de observação, pode tender a formular auto-representações ideológicas

11 A impossibilidade de desempenhar simultaneamente o papel de observador e o do observado é magistralmente representada em termos literários e psicológicos por Pirandello (1976), observando que o nosso olhar nos torna objetos e não nos permite mais viver como sujeitos.

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e irrealisticamente positivas, enquanto, por razões opostas, aqueles que sabem muito pouco sobre um objeto remoto, terão que confiar em representações superficiais e genéricas, sem poder desmascarar quaisquer ideologias. Portanto, pode-se dizer que a cultura jurídica, como qualquer objeto de pesquisa sociológica, oferece possibilidades de infiltrações ideológicas, necessitando assim, de uma metodologia adequada, além de uma capacidade de autocrítica, a fim de fornecer ferramentas corretivas úteis em relação a uma distinção binária simplista interior/exterior. Weber nos lembra que as culturas jurídicas dos profissionais podem ser consideradas hipersimplificações conscientes, como deformações profissionais que tendem a fazer com que o direito seja considerado um conjunto de comandos a serem executados de maneira formal correta, a fim de aumentar o prestígio de camadas, sem assumir explicitamente uma discrecionalidade que implicaria em grandes responsabilidades (Weber 1967). Nesse entrelaçamento de representações e interesses internos, obviamente, também pode ter o caso de um juiz que, assumindo os papeis do legislador, tente preencher abertamente lacunas para além de suas próprias funções institucionais (Barcellona, 1973).

Para identificar os conteúdos das diferentes culturas jurídicas com ferramentas empíricas, às vezes são usados “questionários”, os quais os próprios atores são solicitados a interpretar seus comportamentos em situações jurídicamente relevantes12. Assim, seria possível identificar concretamente as orientações dos especialistas, mas também é necessário ter em mente que eles provavelmente tendem a “posar”, como acontece com uma selfie, primeiro eles querem ver-se, e após, mostrar-se aos outros por razões narcísicas, a partir uma perspectiva externa. Superestimar as respostas obtidas, que não são necessariamente opiniões, e subestimar possíveis mistificações – mesmo que sejam involuntárias – fazem parte dos riscos de cada observação. Mas, mesmo a observação antropológica de outros am-

12 A experiência ensina que não é aconselhável confiar totalmente no método empírico do questionário, porque, por meio das respostas, os atores tendem a apresentar a parte de sua cultura que pretendem exibir e, apenas acidentalmente, pode- se manifestar significados geralmente ocultados. O questionário deve, portanto, ser estruturado com base em hipóteses teóricas antes de ser integrado por amostragens (Pitrone 2009).

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bientes ou culturas não está imune a riscos; essa portanto, pode levar à construção de estereótipos que atribuem a outras pessoas nossos pontos de vista. Portanto, é necessário evitar fáceis contradições e definir um continuum de posições dentro das quais culturas jurídicas mais ou menos deformadas ou deformadoras possam ser identificadas, na medida em que o próprio observador faça parte da esfera social observada, expondo-o a perigos ideológicos, transformando assim, seus interesses particulares em características gerais de seu objeto. Mas como é possível identificar se uma ordem jurídica se afasta do conceito de cultura jurídica?

c) Isso nos leva à terceira pergunta: quais são os critérios para delimitar uma determinada cultura jurídica?

A delimitação mais óbvia que normalmente se pensa quando se fala de culturas jurídicas é aquela que se refere aos limites de validade de uma determinada ordem. Essa delimitação coincide com a tendência geral da sociologia, para a qual, quando se trata de sociedade italiana, francesa, etc., se pensa a partir das fronteiras italianas, francesas, etc. Mas se é verdade que a sociedade francesa corresponde a ordem francesa, portanto, podemos falar de uma ordem jurídica francesa e de culturas jurídicas francesas, também é verdade que as fronteiras dos Estados são frequentemente meros acidentes da história, e que uma análise detalhada das culturas jurídicas pode levar a evitar um código dual do tipo interior/exterior, reduzindo a importância das fronteiras13.

Basta pensar na causalidade ou arbitrariedade de muitas das fronteiras nacionais, uma vez que existem vários fatores que podem prevalecer sobre os jurídicos-formais. Essas fronteiras geralmente ignoram a presença no mesmo estado de diferentes populações com diferentes referências históricas, religiosas e linguísticas, que mostram a desnecessária coincidência das fronteiras do estado com as fronteiras culturais. As populações que vivem em zonas montanho-

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O problema das “fronteiras” do próprio aparato conceitual é um dos problemas metodológicos recorrentes da pesquisa sociológica que tem como objetivo de construir formas não rigidamente predeterminadas para descrever uma realidade fluida. Veja- se: Febbrajo (2008).

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sas próximas umas das outras, separadas por fronteiras nacionais convencionalmente determinadas, normalmente desenvolvem uma cultura comum, também relacionada a questões juridicamente relevantes, que tornam os habitantes dos dois lados mais semelhantes entre si do que em comparação aos seus compatriotas que vivem nas respectivas capitais. Também pode acontecer que os habitantes de uma ilha que pertence a um determinado estado se sintam culturalmente distantes de outros da mesma entidade nacional, ou que pequenos estados cercados por estados maiores sofram influências políticas e econômicas que também se refletem em suas culturas jurídicas. Em síntese, é necessária uma combinação flexível de sociologia e antropologia para estabelecer as fronteiras culturais de um estado, sem que as fronteiras formais necessariamente se coincidam.

1.4. normAs soCiAis e JurídiCAs

Tendo ressaltada a necessidade de avançar para uma definição do conceito de cultura jurídica baseada em códigos duplos de tipos jurídico (interno/externo), sociológico (observador/observado) e espacial (interno/externo), necessita-se agora delinear uma definição do conceito de cultura jurídica que leve em consideração sua capacidade de entender de maneira articulada a tensão entre continuidade e mudança, fundamental para a vida do direito. Essa tensão requer culturas jurídicas, capazes de levar em consideração a influência que as normas sociais podem exercer sobre as normas jurídicas, de acordo com situações concretas.

As normas sociais e jurídicas aparecem de muitas maneiras opostas, pois as normas sociais são mais estáveis, enquanto as normas jurídicas podem mudar a qualquer momento, independentemente das primeiras. Em particular, no que diz respeito à fonte, as normas sociais são anônimas, e parecem ser produzidas pelas necessidades e orientações culturais dos indivíduos, enquanto as normas jurídicas são estabelecidas por autoridades predeterminadas. Quanto à interpretação, as normas sociais são muitas vezes defendidas diretamente pelos afiliados, enquanto as normas jurídicas são normalmente tuteladas por uma ordem cuja arquitetura complexa pode ser recons-

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truída com precisão e que apenas raramente, por exemplo no caso de escândalos, atende aos interesses da opinião pública. Quanto à mutabilidade, as normas sociais são apenas lentamente mutáveis, e fazem parte de um direito vivente e eficaz, pois está historicamente enraizado, enquanto as normas jurídicas, em princípio, podem prescindir de qualquer enraizamento, uma vez que elas podem ser alteradas a qualquer momento com base em procedimentos pré-estabelecidos14.

Isso não exclui, pelo contrário, implica, que as várias normas sociais e jurídicas se destinam a complementar-se em inúmeras situações, garantindo assim ao direito, uma influência significativa na realidade social, e à realidade social, uma influência significativa no direito. A possível convergência de normas jurídicas e sociais aumenta suas forças, das quais dependem de seus “impactos” no casos concretos individuais15. Isso diz respeito não apenas ao nível normativo, mas também, ao nível cognitivo, destinado a garantir o reconhecimento mútuo e adaptação entre normas sociais e jurídicas. De fato, o direito que visa guiar a sociedade não pode renunciar a aprender da sociedade e de suas normas. Nessa dialética, as normas sociais podem, em alguns casos, prevalecer, enquanto em outros, acabam se adaptando às normas jurídicas, em um processo de adaptação mútua16. Para interpretar os comportamentos espontâneos, que são por si só são mudos17, o pesquisador deve, portanto, reconstruir aquelas imagens do direito que não tenham apenas relevância individual, mas que sejam relevantes para grupos maiores ou menores e, portanto, que não se enquadram no âmbito da psicologia, mas no da antropologia e da sociologia jurídica18.

14 A variabilidade contínua é, para Luhmann, a principal vantagem funcional da positivação do direito (Luhmann, 1977). Sobre isso, cf. Febbrajo (1975, pp. 87 ss.).

15 O “impacto” social de uma norma jurídica pode ser considerado a conseqüência visível da ação de uma ou mais culturas jurídicas: cf. o recente trabalho de Friedman (2016).

16 A distinção entre momento normativo e momento cognitivo na vida do direito foi adotada por duas definições recentes que concebem, respectivamente, o direito como “responsive law” (Nonet e Selznick, 1978), ou “reflexive law” (Teubner, 1983).

17 Sacco (1988) falou de um direito “mudo”, a partir de de uma perspectiva principalmente comparativa e não genética da cultura jurídica.

18 A contribuição da antropologia jurídica para o estudo das culturas jurídicas é muito relevante. Cf. Clastres (1977); Pospisil (1971); Geertz (1973); Moore (1978); Rouland (1988).

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De fato, entrar em uma cultura a partir de uma cultura diferente requer operações reflexivas, capazes de estabelecer limites dos limites19, a fim de identificar alguns modelos particularmente relevantes de cultura jurídica.

1.5. os modelos

Os modelos que agora tentaremos listar referem-se às características essenciais das culturas jurídicas, que podem assumir um caráter típico-ideal, mas que, na prática, são condicionadas de várias formas por normas jurídicas e sociais na complexa “máquina” do direito.

a) A cultura jurídica tradicional

O primeiro modelo é o da cultura jurídica tradicional, típica das sociedades estáticas, mas também, presente nas ordens das sociedades modernas, as quais eventualmente possam ter interesse em relembrar seus passados e, portanto, presentes especialmente nas partes da ordem que mais resistem à mudança. A referência normativa, neste caso, é representada, por um conjunto de tradições transmitidas de geração em geração, e cuja violação causa uma intervenção coral no nível dos sistemas coercitivos e da opinião pública, de modo a induzir os atores a não violá-los ou, pelo menos, a ocultar cuidadosamente quaiquer violações. O modelo da cultura jurídica tradicional se move a partir de uma perspectiva temporal centrada no passado. Nesse contexto, os pontos de referência mais abstratos possíveis de um sistema mormativo são particularmente importantes: os valores. Através de um lento processo de transformação do cenário normativo, as normas jurídicas e sociais preexistentes, continuam condicionando a vida de cada associado individual, com modalidades que não são facilmente percebidas pelos próprios atores sociais, e conteúdos que mudam gradualmente dentro de uma estrutura que garante a continuidade da ordem jurídica. O direito,

19 A recursividade de distinções é uma das ferramentas metodológicas mais frequentemente utilizadas pela teoria dos sistemas para evitar oposições rígidas. Este tema se coloca em um terreno interdisciplinar. Cf. em particular para a análise matemática dos “limites dos limites”, Mandelbrot, 1977.

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entendido como um sistema sempre modificável, deve encontrar uma identidade cultural em seu passado e nas normas sociais. São precisamente esses pontos de referência que permitem evitar mudanças que não podem ser toleradas e garantir a manutenção de uma consciência jurídica generalizada.

A cultura jurídica tradicional diz respeito não apenas a períodos históricos distantes, mas àquela vasta área de normas enraizadas em costumes e hábitos que mesmo em sociedades avançadas, fornecem ao direito critérios interpretativos, capazes de consolidar processos de criação de normas. Esta concentra-se nas memórias históricas, no contexto cultural que cada sistema jurídico possui, e que sobrevive, apesar de um lento ajuste normativo, nem sempre visível, realizado ao longo do tempo, especialmente pelas normas sociais. Seu principal ponto de referência é, portanto, a metafunção de estabilização que cobre ou atenua a constante mudança, que inevitavelmente, envolve outros aspectos relevantes da ordem. Portanto, pode-se dizer que esse modelo de cultura jurídica pode ser aplicado aos sistemas jurídicos modernos e pré-modernos, estranhos ao acolhimento dos princípios fundamentais do constitucionalismo atual, como a distinção funcional entre direito e política, e a subordinação efetiva do segundo ao primeiro20.

O problema fundamental para o qual a cultura jurídica tradicional pode oferecer uma solução é, neste contexto, o problema da gênese do direito, tratado obviamente em uma perspectiva orientada sobretudo às tradições, pois, se cada ordem jurídica substitui velhas normas sociais por novas normas jurídicas, algumas dessas últimas são de alguma forma mantidas mesmo em sistemas jurídicos maduros, e influenciam o seu desenvolvimento. Por meio de normas sociais tradicionais – às vezes esquecidas ou ignoradas pelo direito estatal, mas muitas vezes vitais – a história de cada ordem jurídica

20 Uma linha de pesquisa empírica que pode ajudar a esclarecer o funcionamento da cultura jurídica tradicional é representada pelo campo de estudos que, após a retomada dos estudos sociológico- jurídicos no segundo pós- guerra, foi denominado Knowledge and Opinion on Law (KOL) (Podgorecki et al. , 1973; Treves, 1987, pp. 284 ss). O objetivo desse campo era esclarecer as conexões do sistema jurídico vivente com as normas tradicionais capazes de influenciar, de uma maneira nem sempre visível, a percepção do direito dos vários atores. Para reconstruir a cultura jurídica deles, é necessário tentar identificar conhecimentos e opiniões historicamente enraizados na cultura jurídica de um determinado contexto social.

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