

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
JuarEz tavarEs
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis LóPEz GuErra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
toMás s. vivEs antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L478s
Leal, Rogerio Gesta
Segurança pública no estado democrático de direito brasileiro [recurso eletrônico]
: avanços e recuos / Rogerio Gesta Leal - 1 ed - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023 recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-647-4 (recurso eletrônico)
1 Segurança pública - Brasil 2 Direitos humanos - Brasil 3 Estado de direitoBrasil 4 Livros eletrônicos I Título
23-85814
CDU: 342.7:351.78(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-08-24-64e7c22819ecc
24/08/2023 29/08/2023
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Rogerio Gesta LealA existência de riscos e perigos com os quais vivemos hodiernamente (terrorismo, tráfico de armas, pessoas, órgãos humanos, violências e medos disseminados), em regra, são fenômenos socialmente construídos, e tem fornecido bases sólidas para o desenho de políticas muitas vezes autoritárias.
Muitos governos populistas e nacionalistas parecem se alimentar da ilusão de que forças de autonomias locais são instâncias suficientes para garantir expectativas de segurança pública diante daqueles riscos e perigos, fazendo com que políticas públicas de segurança sejam implantadas com acentuada distância dos instrumentos normativos tradicionais – constitucionais e infraconstitucionais –vigentes.
É como se estivéssemos vivendo sob o império ordinário de Estados de Exceção, nos quais direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, mantém-se incólumes em nível de sistemas normativos instalados, mas suspensos episodicamente para fins de gerir crises, riscos e perigos decorrentes de relações e fatos os mais diversos.
O problema é o controle social, político e jurídico destes cenários, pois facilmente podem se transformar em despóticos permanentes, por conta da banalização do excesso de exercício do poder. Em outras palavras, nestes estados de excepcionalidades decisionais, por mais que existam parâmetros informativos e vinculantes dos limites das ações/decisões (como no caso das Medidas Provisórias brasileiras), sempre restarão demandas e urgências não alcançadas pelo controle das escolhas efetivadas, residindo aí os riscos autoritários de exercício do Poder.
Mesmo que as Constituições contemporâneas tenham se ocupado de criar instrumentos de gestão de crises – inclusive em situações de insegurança pública, é preciso permanentemente refletir sobre possíveis paradoxos de regimes democráticos que conseguem se autodestruir usando processos e procedimentos (por eles criados) de forma antidemocrática, pois, em tempos de crises, é fácil superestimar a necessidade de segurança e subestimar o valor da liberdade; e isto porque, sem segurança, não há liberdade. Mas também é verdade que a história constitucional hodierna nos mostra claramente como a ruptura da proteção dos direitos e liberdades em nome da defesa da segurança está presente desde há muito.
Por isto podemos dizer que a segurança, enquanto bem constitucional multifacetado e polissêmico, pode se dar em sentido material e ideal; objetivo e subjetivo; individual e coletivo; interno e externo, submetendo-se cada vez mais,
e de forma ordinária, a juízos de ponderação com outros interesses de importância constitucional, mesmo além de ambientes de emergência tradicionais.
Por todas estas razões, a prevenção e a precaução tornaram-se, nos dias atuais, as règles de droit por excelência, o mantra de todas políticas públicas preocupadas em minimizar riscos, perigos e medos capazes de prevalecer sobre outros direitos, e conformar a ação da administração pública como um todo.
Em meio a tantos desafios não podemos, contudo, abrir mão da Democracia e, sendo assim, temos de questionar como corrigir o pensamento, a linguagem e as ações da política quando ela atinge diretamente a sociedade civil – como é o caso da segurança pública.
O presente texto pretende justamente tratar destas questões sob amplas perspectivas: (i) filosóficas, compreendendo melhor alguns fatores existenciais constitutivos do tema segurança pública, e como eles podem contribuir ou distorcer políticas relacionadas a ela; (ii) políticas, enquadrando o tema da segurança pública no âmago do Estado Democrático de Direito e o que isto implica em termos de história mais recente do Brasil; (iii) metodológicas, propondo matrizes formativas de políticas públicas em geral e de políticas de segurança pública em especial; (iv) pragmáticas, avaliando em que medida políticas de segurança pública podem ir ao encontro, ou de encontro a Direitos e Garantias Fundamentais Individuais e Sociais.
Tais aspectos têm sido debatidos em nossas aulas de Mestrado e Doutorado em Direito, junto a Universidade de Santa Cruz e Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, razão pela qual registramos nossos agradecimentos ao seus corpos docentes, discentes, técnico-administrativos e à direção destas instituições que tem apoiado incansavelmente a pesquisa jurídica.
Cabe um agradecimento especial ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao qual tenho a honra de pertencer enquanto Desembargador titular da Quarta Câmara Criminal, permitindo-nos o contato direto e indireto com os temas ora abordados.
Uma boa leitura a todos.
“Entre os dois mundos, a trégua em que não estamos.” (poema, As Cinzas de Gramsci, Pasolini)
Luigi Ferrajoli, no seu “Razões Jurídicas do Pacifismo”1, onde organiza o pensamento crítico que dá as bases doutrinárias a sua proposta de uma “Constituição da Terra”, avalia os efeitos do fim da “Guerra Fria” sobre os destinos da humanidade, especialmente depois da “quebra” de experiência soviética.
Pensar a Segurança Pública de forma inovadora é pensá-la, de uma parte, historicamente vinculada a esta nova situação global e, de outra – doutrinariamente – pensá-la como integrante de uma ordem jurídica concreta. Na ordem concreta está a sua expressão mais contundente: a Segurança Pública revela e apreende, tanto as grandezas do Direito posto, como também a sua naturalização perversa, subjacente, pois é na segurança das pessoas para viverem em comunidade, que estão de forma transparente tanto os vínculos da vida comum, mais - ou menos – humanizadas, como as lacunas básicas da relação entre o direito e a moral.
Os parâmetros que envolvem esta relação já são outros, hoje, diferentes daqueles vigentes na sociedade feudal e também daqueles hegemônicos na sociedade capitalista industrial, já que os seres humanos tanto estão mais próximos como mais distantes entre si: tanto estão mais humilhados quando oprimidos, como mais solitários nas suas prisões voluntárias das redes sociais. Tanto podem estar mais tristes como mais felizes, se estiveram isolados, fugidios numa individualidade em rede, que é, ao mesmo tempo, vivencia coletiva e opção pelo isolamento. Ali é que as imbecilidades crescem e também as grandezas anônimas da inteligência crítica podem emergir luminosas.
A clássica paciência histórica do mestre Ferrajoli e a sua “fé” no Direito, que lhe acompanhou sempre, assim se expressou sobre a esperança de um mundo melhor e pacificado, a partir da vitória da democracia liberal, sobre a experiência da URSS: “o que ocorreu sem dúvida é certamente o contrário. No novo mundo multipolar, privado de inimigos de maneira imprevista, e interessado só em celebrar os tempos do livre mercado, foram ignorados e inclusive agravados os grandes problemas do planeta (...) (que assim) acumularam contra o Ocidente,
suas ameaças à paz mundial e à segurança, que a nossa própria miopia contribuiu para gerar.
Natural, portanto, que estas consequências da nova multipolaridade proporcionassem um terremoto conceitual, que não só abalou as estratégicas imperiais vigentes na guerra fria, mas também fez tremer os conceitos tradicionais, vigentes à época em que os Estados Capitalistas mais - ou menos democráticosenfrentavam Estados supostamente destinados a serem socialistas e a construírem a “sociedade sem classes”. Neste contexto, a questão da segurança através da paz, constante naquela generosa bula kantiana, passa a ser a utopia da vida concreta: a utopia do presente com escassas possibilidades de ser real naquele sentido que lhe foi emprestado por Ernst Bloch, que permanece sendo buscada no horizonte.
Mas, atenção: a questão da segurança, como conjunto abstrato de situações globais abre aí um novo problema de fundo, para ser resolvido nos diversos níveis de intervenção jurídica e política, pois ela não mais se apresenta separada da Segurança do Estado: as instituições desta devem sobreviver como “norma” (e como “conduta”) no meio social que ela regula e essa –a Segurança do Estado– também deve se expressar como Segurança Nacional. E esta não tem o mesmo sentido do século passado, pois os destinos nacionais liberais-democráticos de países como o nosso, se estiveram algum dia ameaçados pela “subversão” política e ideológica da esquerda, hoje sofrem assédio da subversão da extrema direita, basicamente articulada com várias formas de delinquência comum, nacionais ou globalizadas.
Uma nova visão e um novo sentido à Segurança Pública, deixa de ser algo que possa ser tratado isoladamente nos territórios e os seus problemas se agravam, pois vem nos fluxos financeiros, informativos, culturais e de armas potentes, vem da exploração da biodiversidade e da apropriação ilegal das biodiversidades internas, do tráfico de drogas, de pessoas e bens, que se originam tanto dentro como fora da economia formal.
Este conjunto está finalmente integrado num só movimento - interno e externo – com novos interesses, tanto legais como ilegais, conjugados na nova ordem geopolítica global, com novos e diversos pontos fragmentários de poder político ao mesmo tempo, integrados e distantes dos novos centros de poder real.
No capítulo II (“Segurança Pública e Estado do Direito”) do novo livro do Desembargador e jurista Rogerio Gesta Leal lê-se: “No século XIX vamos assistir ao surgimento do chamado modelo burocrático de Estado e de políticas, combatendo de certo modo as práticas distorcidas do patrimonialismo, principalmente a corrupção e o nepotismo, prevalecendo a estruturação e funcionamento dos órgãos públicos em bases racionais-legais, como bem sinaliza Max Weber (...)”.
No capítulo III (“Matrizes de Políticas de Segurança Pública no Brasil”), está dito: “Em termos de segurança pública a meta é, em síntese e de modo geral,
criar condições para que se universalize a expectativa de que as leis serão cumpridas e os direitos serão respeitados, sobretudo os fundamentais, como o direito à vida, à incolumidade física e moral, e às liberdades –, pois não há direito nem legalidade sem garantias de que as normas serão aplicadas (no limite, pelo uso comedido da força, na medida proporcional e necessária, em cada circunstância, para que se atualizem as mencionadas garantias), com efetividade e resultados.” A destruição da ideia da igualdade social nesses tempos distópico, todavia, também abre espaços para o revigoramento da ideia iluminista de uma sociedade baseada na razão e na igualdade de oportunidades, pela qual a democracia liberal – na forma do Estado Social - poderia se impor sobre as velhas ordens totalitárias.
Se este é o caminho este livro vai se tornar referencial para a construção destas possibilidades no nosso país, por vários motivos, dentre os quais pela imposição de uma regulação ao descontrole dos fluxos informais e formais, legais ou ilegais, financeiros e culturais, que vão moldando as novas formas de convívios (ou repulsas), na sociedade mundial global, que só podem ser normatizadas com legitimidade na democracia plena. Seriam, assim, as respostas normativas às novas pulsões autoritárias, que vem se alargando em toda a Europa e no mundo, até agora sem uma resposta minimamente unitária provinda do campo liberal-democrático.
A qualidade doutrinaria deste livro inspira, portanto, pensar três indagações para a formação de um juízo sobre a Segurança Pública, em sentido amplo, nas sociedades em crise: primeiro, ela deve ser pensada partindo do princípio que nenhum Governo poderá se manter legítimo, sem que coloque, na sua agenda imediata, uma estratégia coerente de “segurança pública” cidadã; o segundo, o juízo deve atentar para o momento universal – planetário – ora vivido, no qual a integração do pensamento democrático sobre a “Segurança do Estado” (democrático constitucional), está obrigatoriamente conectado com a “Segurança Nacional”, que se relacionará fortemente, com uma visão nova de “segurança pública”.
E o terceiro motivo, para assentar este “novo” juízo, é o fato de que há uma nova estrutura de poder mundial, da qual poderá emergir, em diversas regiões do Ocidente (apoiada pelos movimentos extremistas de direita) a articulação de estratégias uniformes contra a ideia de democracia, como ideia de emancipação, e contra a ideia do Estado Social (para eles ideia “comunista”) visando as condições preparatórias de uma guerra global de novo tipo (“fria e quente”), de natureza global, virtual e real, ideológica e militar, pelo controle dos territórios mais ricos em bens naturais.
Esta possibilidade se apoia numa estratégia econômica já testada no Governo Reagan, com o seu “keynesianismo militar”, pelo qual a aceleração da indústria armamentista foi uma estratégia econômica de recuperação da economia nacional americana e um modo de fazer as Guerras de interesse geopolítico do seu Estado.
Lembro aqui um parágrafo que escrevi sobre a situação do Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional africano (CNA), que antecipou a crise atual do Estado de Segurança, nos países do ocidente no pós-guerra. Mandela foi considerado mais do que um criminoso comum, ou seja, um “terrorista”, dentro das normas “legais” do Estado de “Direito”, (tanto quanto pode ser “de direito”) como autoritário e de maioria branca. Era a situação histórica que iniciava, a partir do “apartheid” social e racial – promovido dentro da “ordem jurídica” – uma fusão das questões da Segurança do Estado com as instituições formais da Segurança Nacional que proporcionaria a exclusão da maioria negra da ordem vigente. Era a formação de uma Segurança Pública expandida, para apontar em qualquer “desordem” social (ou crimes comuns) – cometidos dentro das comunidades da maioria negra – ameaças concretas à Segurança do “Estado de Direito” racista e à ideia de nação racista, “legalmente” instituída.
O texto referido (“Sul 21”) publicado em maio de 2023, dizia o seguinte: “Nelson Mandela esteve preso por 27 anos, primeiro na Prisão de Robben Island, depois dos 6 anos na Prisão de Pollmoore. Finalmente, (...) foi para o complexo de Victor Vester – de 88 a 90 –já assessorado por um Oficial do Exército Sul-africano. Esta última etapa do seu martírio fechou o circuito (...) do comando político e das negociações com o Governo racista, que estavam em ascensão desde a melhoria das suas condições carcerárias, quando Mandela foi retirado da Ilha de Robben.”2
A transição de um criminoso comum de “alta periculosidade” (“terrorista”) para a condição de Chefe de Estado só é possível quando algo muito forte abate-se sobre o Estado concreto, com aquela fusão hoje historicamente improvável, em que a ordem que morre já contém dentro dela uma outra ordem que já se tornou hegemônica sem dominar plenamente o Estado. Reputo que o Estado de Direito liberal-democrático no Brasil não emergirá de forma substantiva sem que a questão da Segurança Pública seja colocada em novas bases, vinculada à Segurança Pública cidadã, integrada com uma nova visão de Segurança Nacional, asseguradora do Estado Social de Direito.
Nos estudos de Adorno sobre o radicalismo de direita está presente a sustentação que nos períodos modernos, mais narcísicos, a dissolução das utopias se transforma em “eras de expectativas decrescentes”. Nestes períodos, prossegue ele, numa “franja de lunáticos” a desesperança social, em condições sociais dadas, tende a se ampliar. Em estudos posteriores, como aquele apresentado numa palestra de 1967, o filósofo já constata que esses grupos não são somente compostos por “lunáticos”, mas igualmente por “antecipadores” de um “estado de alma generalizado”, que toma forma de um “desejo coletivo do apocalipse”.3
Substituir o “aposto explicativo” franja de lunáticos por grupos sociais inteiros subordinados à hipnose do mercado, onde todos podem ser empresários de si mesmos, rompendo a coesão social mínima na qual as pessoas podem ser minimamente solidárias para sobreviveram, ajuda a entender a visão que o liberalismo democrático quer cultuar para si mesmo.
Martin Kriele, no §45 (o Liberalismo Constitucional e o Liberalismo Econômico), em sua obra “Introdução à Teoria do Estado”, diz que: “vimos que os Direitos Fundamentais da Constituição americana de forma alguma garantem privilégios capitalistas, e sim liberdades pessoais, especialmente a proteção do cidadão em face da arbitrariedade estatal (vide acima § 35)...”4 .A visão do liberalismo constitucional americano sobre a proteção do cidadão “em face da arbitrariedade estatal”, trazida para a realidade sociológica do convívio com “outros iguais” adquire, no “direito fundamental à “segurança pública” coletiva, uma ideia fundante.
As três pulsões apontadas são reais e não se separam, sejam originarias de eventuais “exterioridades”, sejam pautadas por “interioridades” nacionais: elas não mais permitem que se aborde de forma isolada o sentido da segurança pública interna. A ideia que o direito, nas democracias constitucionais – em qualquer país centrado em instituições democrático-liberais– fazem de si mesmas, é uma ideia-chave para verificar o estágio da efetividade dos valores contidos nas suas normas superiores: de uma parte, como bússola interpretativa para toda a ordem jurídica e, de outra, porque ensejam uma dogmática que vai além do sistema fechado em normas frias, paralisadas nas letras formais da lei.
No capítulo do livro ora prefaciado diz o autor: “A adoção cada vez maior de medidas jurídicas emergenciais e de polícia para o enfrentamento de riscos e ameaças a segurança pública em todo o mundo tem sido realidade inafastável,
3 GENRO, Tarso. A hidra não foi anulada. Disponível em: https:// aterraeredonda. com. br/ a- hidra- nao- foi- anulada/ . Acesso em: 04 de maio de 2023.
4 KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: Os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático (Einführung in die Staatslehre: Die Geschichtlichen Legitimitätsgrundlagen des demokratischen Verfassungsstaates). Tradução: Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009, p. 239.
nomeadamente em face de situações e cenários trágicos como o terrorismo, o tráfico de entorpecentes, de órgãos humanos, de pessoas, e mais recentemente da pandemia conhecida como corona vírus. Tais demandas, entretanto, reclamam atenção destacada do debate constitucional e infraconstitucional (em especial o penal), pois exigem dos sistemas jurídicos avaliar como lidar com comportamentos fundados na lógica da força, violência e guerra sem limites e, ao mesmo tempo, manterem-se compromissados com as categorias normativas que concretizam as conquistas civilizatórias dos Direitos Humanos e Fundamentais.”
O livro do Desembargador Rogério Gesta Leal integra um campo de contribuições novas à problemática da Segurança Pública no Brasil, cuja institucionalidade já demonstrou ter responsabilidade suficiente para tratá-lo, em algumas ocasiões, mais além da sede de holofotes de Parlamentares para aumentar o tempo de duração das penas, quando um crime bárbaro aparece no cenário da grande imprensa. Em uma dessas ocasiões tive uma participação direta quando, no segundo Governo do Presidente Lula, negociei com todos os Partidos que tinham assentos no Poder Legislativo a aprovação do Programa Nacional de Segurança Com Cidadania, proposta originária do Ministério da Justiça, depois de consultas realizadas em todos os níveis do Estado e da sociedade civil. Nem tudo, pois, está perdido, depois da trágica experiência negacionista e protofascista do Governo que se encerrou.
O Brasil pode avançar no rumo do Estado Social Constitucional de Direito, no qual a segurança da cidadania - para viver na democracia - vai se implicar com a Segurança do Estado no Estado de Direito, no rumo de uma ideia de nação “segura”, para a vivencia universal e acolhedora dos direitos fundamentais, dentre eles o direito a uma segurança pública cidadã.
tarso FErnando HErz GEnro
Advogado e Escritor
Ex-Ministro da Justiça do Brasil
Ex-Ministro da Educaçao do Brasil
Ex-Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Ex-Prefeito de Porto Alegre
O objetivo geral deste trabalho é avaliar alguns fundamentos filosóficos e políticos de elementos constitutivos do debate sobre segurança pública, em especial os relacionados aos temas da violência e do medo, e em que medida eles podem influenciar negativamente a reflexão sobre a insegurança social e as alternativas para seu enfrentamento.
Para tanto, o problema que pretendemos indagar neste texto é em que medida percepções equivocadas sobre a violência, medo e segurança pública, podem gerar políticas públicas deficitárias relacionas à ordem social.
Em face disto, nossa hipótese é de que são muitos os riscos e perigos oriundos de compreensões fragmentas sobre as causas e consequências da insegurança social associadas à segurança pública, nomeadamente quando tomam de modo insuficiente a questão da violência e do medo como elementares constitutivos de políticas para o tratamento de tais demandas.
Elegemos desenvolver este texto a partir dos seguintes objetivos específicos:
(i) demarcar algumas distinções entre poder político e violência;
(ii) identificar como percepções de violência difusa no tecido social são alimentadas por sentimentos açodados de medo potencializadores de insegurança pública.
Pretendemos utilizar no texto o método dedutivo, testando nossas hipóteses com os fundamentos gerais a serem declinados. Utilizaremos para tanto técnica de pesquisa com documentação indireta, nomeadamente bibliográfica.
nEcEssárias EntrE PodEr PoLítico E vioLência
O desenvolvimento técnico/tecnológico dos meios de violência tem alcançado níveis a que nenhum objetivo politico atual pode corresponder – ao menos de forma direta e explicita -, nomeadamente se pensarmos no seu potencial destrutivo, ou justificar seu emprego em conflito armado; a ponto de que, se alguém sai vencedor na guerra, ambos podem perder muito.1
1 Pensemos rapidamente na guerra da Rússia contra a Ucrânia, que desde fevereiro de 2022 tem provocado, até dezembro do mesmo ano, mais de duzentos e quarenta mil mortos, russos e ucranianos, fazendo com que mais de sete milhões de ucranianos tenham se refugiado em outros países. Para além disto, tem acarretado o encarecimento do preço dos alimentos, do petróleo e da energia elétrica em vários países da Europa, contribuindo para a explosão da inflação no mundo todo. Ver informações no site:
Por conta destes cenários de riscos e perigos trágicos que a violência produz, ela vai evidenciando outros objetivos racionais e estratégicos que não estão vinculados somente com a força bruta e física, mas que envolvem a dissuasão (mais que a vitória), fazendo crer que esta é uma das melhores garantias da paz. 2
Por outro lado, a verdadeira substancia da ação violenta é regida pela categoria meios-fins, cuja principal característica tem sido a de que os fins estão sempre em perigo de verem-se superados pelos meios que os pretende justificar e que são necessários para alcança-los. Neste sentido, os meios utilizados para alcançar objetivos políticos tem importância maior para o futuro do que os objetivos propostos.
Concordamos com Arendt no sentido de que a razão principal da guerra e da violência não é o secreto desejo de morte da espécie humana; nem o irreprimível instinto de agressão, mas o simples fato de que não surgiu na cena política atual substituto tão efetivo sob o ponto de vista da imposição autoritária de vontades como estes mecanismos.3 Mas é óbvio que a tese de que tanto a guerra como a violência se apresentam como longa manus da política – enquanto ultima ratio – na pode ser aceita facilmente; não se pode toma-las como extensão da diplomacia.
A verdade é que os problemas constitutivos da violência (e em decorrência dela) sempre foram, e são, demasiadamente obscuros – e alguns insondáveis -, havendo consenso de que historicamente ela tem se apresentado como flagrante manifestação de poder, a partir da compreensão de que toda a política é uma luta pelo poder, e o último gênero de poder é a violência.4 Mas não podemos descurar também do argumento de que cada animal (racional e irracional) vive dentro de seu ambiente, o qual, em certa medida, é fechado em relação aos infinitos outros ambientes que o cercam, sendo fictícia a ideia da existência pacífica de um mundo incluindo todas as espécies vivas organizadas em escala hierárquica, com a humanidade no topo; tampouco os homens estão destinados a um único fim desejado por autoridade de outro mundo. E por isto, conflitos, tensões, violência e guerra são riscos intermitentes da vida social.5
Lembremos, com Chul Han, que a mitologia grega está cheia de sangue e corpos despedaçados. Para os deuses a violência é um meio sensato e natural de lograrem seus propósitos e de imporem sua vontade. 6
https:// www. bbc. com/ portuguese/ internacional- 63582629, acesso em 12/ 12/ 2022.
2 Como quer ARENDT, Hannah. Sobre la violencia. Madrid: Alianza Editorial, 2005, p. 12.
3 Lembra a autora de Hobbes ao afirmar que acordos, sem a espada, são só palavras.
4 Como quer SOREL, Georges. Reflections on violence. New York: Dover Publications, 2004, p. 38 e seguintes; e MILLS, Wright. The power elite. New York: Oxford University Press, 2000, p. 22 e seguintes.
5 Nos valendo aqui de argumentos da antropologia filosófica de VON UEXKÜLL, Jakob. Dos animais e dos homens – digressões pelos seus próprios mundos. Lisboa: Livros do Brasil, 1980.
6 CHUL-HAN, Byung. Topologia da Violência. Lisboa: Relógio D’Agua, 2022, p. 14. Reforça o autor que: Antes da Modernidade
Alerta o autor que, já na Modernidade e após ela, a violência toma formas geralmente psíquicas, internas, e as energias destrutivas não são objeto de descargas afetivas – necessariamente – imediatas; todavia, temos de lembrar do modus operandi de muitas organizações mafiosas contemporâneas, que têm na violência física e sangrenta instrumentos de coação física e também psíquica, o que fragiliza um pouco o seu argumento de que hoje aquela violência tende a se dissimular, sem exposições demasiadamente públicas.7
Poder e violência, todavia, são coisas distintas: o primeiro reclama legitimidade política regulada pela lei (nos Estados de Direito, representando o resultado da vontade política democraticamente instituída); a segunda é divorciada da lei, configurando puro arbítrio. Dai porque autores como D’Entréves insistirem com o argumento de que o poder é uma força qualificada e institucionalizada, e por isto controlada em termos de exercício.8
Lembremos que as tradições do pensamento ocidental sobre estes temas remontam às reflexões de autores como Jean Bodin9, na França do século XVI, e de Thomas Hobbes10, na Inglaterra do século XVII, e as noções de poder absoluto, acompanhando o surgimento dos Estados-Nações e suas soberanias estáticas, bem como os argumentos da antiguidade grega para definir formas de governo (monarquia, oligarquia, aristocracia e democracia).11
Não por acaso que John Stuart Mill defendera a tese de que os homens possuem instintos inatos de dominação, assim como inata agressividade, o que fomenta o desejo de exercer poder sobre outrem – e que encontra resistência de seus semelhantes, possuidores do mesmo sentimento.12 E mesmo que esta perspectiva seja reducionista em face da complexidade comportamental humana,
a violência é onipresente, quotidiana e visível, constituindo componente essencial da prática e da comunicação social, exercendo-se e exibindo-se. O senhor ostenta seu poder impondo a morte por meio do sangue. A violência e sua encenação teatral são parte essencial do exercício do poder e da dominação. No teatro da crueldade representa-se o poder do soberano com o poder da espada. O governo vale-se da simbologia do sangue e a violência opera como insígnia do poder. (p. 16).
7 Idem, p. 17. Matéria muito interessante no site do jornal Estadão, publicada em 17/ 03/ 2023, dá conta de que a chamada quarta máfia italiana, Máfia de Foggia, tem atuado no sul da Itália, com extrema brutalidade e sanguinolência, extorquindo pessoas físicas e jurídicas. Diz o jornal: As autoridades demoraram a levar a sério a “quarta máfia” (as outras são a Cosa Nostra da Sicília; a Ndrangheta, da Calábria; e a Camorra, de Nápoles), considerada durante muito tempo um fenômeno rural marginal por suas sangrentas disputas entre clãs. Mas a jovem organização criminosa italiana já tinha sob controle a grande província de Foggia, com atividades no tráfico de drogas, assaltos à mão armada, roubos de carros e extorsão. “É uma máfia rudimentar e primitiva. Muito violenta e muito agressiva”, explica o promotor de Foggia, Ludovico Vaccaro. Enquanto as máfias maiores abandonaram as ações violentas e se voltaram para atividades menos visíveis e mais lucrativas, inclusive dentro da economia legal, a de Foggia está em sua primeira fase. Acesso pelo sítio: https:// www. estadao. com. br/ internacional/ a- quarta- mafia- italiana- desconhecida- mas- extremamente- violenta/ , em 12/ 06/ 2023.
8 D’ENTRÉVES, Alexandre Passerin. The notion of State: an introduction to political theory. New York: Oxford University Press, 2001, p. 71.
9 BODIN, Jean. On Sovereignty – six books of the Commonwealth. Acesso pelo site: https:// www. yorku. ca/ comninel/ courses/ 3020pdf/ six_ books. pdf, em 05/ 01/ 2023.
10 HOBBES, Thomas. Leviatã – matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2014.
11 No ponto ver o texto de ARISTÓTELES. Política. Madrid: Alianza Editorial, 1986. Veja-se que todos estes elementos são confirmados pelas tradições hebreu-cristãs, nomeadamente a partir de seu imperativo conceito de lei, resultado da generalização dos mandamentos de Deus, segundo o qual a simples relação de mando e de obediência bastava para indicar a essência das normas a serem observadas.
12 MILL, John Stuart. Considerations on representative government. London: Cambridge University Press, 2000.
indica ao menos uma das tantas facetas (muito mais cultural do que natural) do ser humano. De qualquer sorte, lembra Arendt que, quando a Cidade-Estado ateniense agregou em sua Constituição a isonomia entre os cidadãos; ou quando os romanos falavam da Civitas como forma de governo, já pensavam em conceitos de poder e de lei cuja essência não se baseava na relação mando-obediência, exemplos estes que se voltaram, mais tarde, os revolucionários do século XVIII para demarcar os contornos da República na qual o domínio da lei poria fim ao domínio dos homens sobre outros homens.13
Todas as instituições políticas são manifestações e materializações – formais ou informais – de poder, razão pela qual Arendt sustenta haver distinções importantes que precisam ser sublinhadas entre poder e violência, no sentido de que o primeiro sempre precisa de certa quantidade de aderências (legitimidade), enquanto a violência – até certo ponto – pode prescindir destas, pois se funda em instrumentos e técnicas operacionais.14
Sob esta perspectiva podemos dizer que jamais existiram governos exclusivamente baseados na violência, pois até os totalitários, cujo principal instrumento de domínio é a tortura, necessitavam de um poder com certa legitimação institucional e, ou, social (como as polícias autorizadas normativamente para desenvolver ações de repressão à desordem social, e mesmo as conivências de determinados segmentos/grupos sociais com os detentores do poder autoritário em face de interesses corporativos nomeadamente econômicos).15
Vem a calhar as observações de Chul-Han neste particular: Pode-se até conseguir o poder por meio de violência, mas o poder alcançado através da violência é frágil. Tampouco o poder remete à violência, pois sua intencionalidade não é o domínio, mas a extinção. O poder pode até ser diabólico, sendo repressivo e destrutivo, mas aí estará confundindo-se com a violência diabólica e destrutiva. 16
Assim, o oposto da violência é o poder legítimo e democrático, ou seja, que não se resume a mera dimensão do mandato eleitoral e da obediência, mas se constitui a partir da cooperação, acordo e coordenação entre iguais. Este poder democrático tem a ver com a formatação de espaços públicos nos quais as todas as pessoas possam ser capazes de se organizar e atuar em comum acordo para lograr atingir vida digna e inclusiva, e isto jamais ocorreria desde a perspectiva da
13 ARENDT, Hannah. Sobre la violencia. Op. cit., p. 22.
14 Idem, p. 57.
15 Na quadra histórica em que Arendt desenvolveu estas reflexões (1969) – na qual os recursos tecnológicos de comunicação e ação política ou de guerra eram restritos (não se falava ainda em inteligência artificial a plena potência) -, teve a sensibilidade de asseverar que somente o desenvolvimento de soldados robôs poderia eliminar o fator humano em destacados níveis, permitindo que alguém pudesse apertar um botão para destruir o que quisesse, e isto alteraria a influência da violência e sua equação com o poder exercido.
16 CHUL-HAN, Byung. Topologia da Violência. Op. cit., p. 86.
individualidade isolada de cada um, mas somente em um mudo compartilhado por ações humanas que nos inserem em ambientes onde já vivem outros semelhantes. Portanto, o que converte o ser humano em ser político é a capacidade de ação que lhe permite unir-se a seus iguais; atuar de acordo com eles e realizar coisas que nunca havia imaginado enquanto ser coletivo, para o bem de todos.17
O poder político, então, faz possível a governabilidade graças aos acordos formatados entre a ação e o discurso dos cidadãos. Se tais acordos se perdem, é possível que floresça a violência. Mas atenção, embora a violência possa destruir o poder, é totalmente incapaz de criá-lo, pois a violência não aumenta ou integra um maior número de indivíduos em seus projetos por convicção, mas os dirige pela força. Isso não só cria tensões e provoca resistências -que por sua vez podem agir violentamente-, mas também pode fazer com que essa mesma prática violenta seja redirecionada internamente contra seus próprios apoiadores.18
O poder legítimo é essencial em todo o governo, a violência não, eis que, mesmo quando ela se impõe enquanto forma de controle social e ideológico, revela-se impraticável manter-se isolada de base política de sustentação, e isto porque: Donde las órdenes dejan de obedecerse, los instrumentos de la violencia resultan inútiles y la obediencia no la decide la relación entre mandato y obediencia sino la opinión, y, naturalmente, el número de los que la comparten. Todo depende del poder que haya detrás de la violencia. 19
Torna-se ainda mais explosiva a relação entre poder e violência quando associam-se a eles o medo, sentimento muito explorado por instâncias e exercícios de poder ao longo da história, tema que passamos a avaliar.
3. da vioLência diFusa ao MEdo Líquido: aLGuMas causas E consEquências da insEGurança PúbLica
Zygmunt Baumann, em trabalho que aborda o tema do medo, recorda que este é mais assustador quando disperso, sem endereço certo nem motivos claros;
17 Por isto: el poder corresponde a la habilidad no sólo de actuar sino también de actuar en concierto. El poder nunca es propiedad de un solo individuo, pertenece a un grupo y existe solamente mientras ese grupo permanece unido. Cuando decimos de alguien que “tiene el poder” en realidad nos referimos a que cierto número de personas se lo ha otorgado para que actúe en su nombre. En el momento en que el grupo que lo otorga desaparece, también desaparece “su poder”. ARENDT, Hannah. Sobre la violencia. Op. cit., p. 58.
18 Nas palavras de Arendt: En ningún caso es más evidente el elemento autodestructivo inherente a la victoria de la violencia sobre el poder que en la utilización del terror para mantener la dominación. (...) El climax del terror se alcanza cuando el estado policial comienza a devorar a sus propias criaturas, cuando el ejecutor de ayer se convierte en la víctima de hoy. Op. cit., p. 73.
19 Idem, p. 66. Arendt dá um exemplo concreto disto com a Guerra do Vietnã. Nesse caso, o exército dos Estados Unidos - numericamente inferior, mas com meios de violência tecnologicamente superiores - começa a perder a guerra não apenas pelo crescimento do poder de seu oponente - tecnologicamente muito mal equipado, mas numericamente superior e muito bem organizado-, mas também e principalmente pela perda de poder e legitimidade dentro de suas próprias fileiras. Ver o excelente documentário de BURNS, Ken & NOVICK, Lynn. The Vietnam War, veiculado na Netflix.
quando assombra sem que haja explicação visível e plenamente racional, no que estamos de acordo.20
Ao mesmo tempo, medo também configura a designação que damos as nossas incertezas, ignorância diante, principalmente, de suas múltiplas e complexas causas, daí porque este medo costuma gerar sensações de vulnerabilidade fundadas justamente no não conhecimento – ou em seus déficits profundos.
O dilema existencial do ser humano, constantemente golpeado inexplicavelmente por um destino incompreensível e injusto, sempre foi objeto de reflexão, lembrando-nos da expressão de Philip Roth com o grito de Jó: - Por Quê?21
Para se tentar se libertar de riscos e perigos os mais diversos a sua vida este mesmo individuo buscou construir mecanismos e ferramentas de diversas naturezas – físicas e virtuais, tendo conseguido somente mitigá-los, quando muito.
Segmentos sociais mais abastados, com recursos econômicos e políticos em maior escala, têm lançado mão de expedientes tecnológicos para enfrentar o medo, hiperconectados, fundados na programação, na automação e na simulação de processos e dinâmicas de proteção; porém, mais do que certezas, tudo isto vai gerando, paradoxalmente, ilusões arriscadas: a de um racionalidade plena, capaz de eliminar o erro, os riscos e perigos anunciados; a do controle total da realidade; o da segurança absoluta baseada em espécie de delegação em branco à tecnologia.22
Justamente aquela tecnologia que parecia ter nos assegurado a prevenção de problemas das mais diversas ordens é impotente diante de contínuas situações de emergência que vão se criando hodiernamente em todo o globo, provocadas por fatores ambientais, de consumo, energéticos, raciais, étnicos, biológicos, de criminalidades, dentre outros, atestando ser ilusória a crença de que, por meio do conhecimento e das inovações tecnológicas, o homem se liberta de quaisquer medos, deixa de ser criatura e passa a ser o criador da sociedade em que vive e de si mesmo, e isto tem nos levado a assistir a perigosa marginalização do espaço reservado à responsabilidade humana.23
20 BAUMANN, Zygmunt. Medo Líquido. São Paulo: Zahar, 2018, p. 09.
21 ROTH, Philip. Nemesis. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2010, conta a história da batalha assustadora e comovente contra uma epidemia de poliomielite que atinge e mata crianças, as quais, sem culpa alguma, não conseguem escapar do destino da morte e do sofrimento. A descrição dos gritos lancinantes na noite dos meninos em busca de seus pais nos leva a evidenciar a luta desigual e atemporal entre o homem e seu destino, muitas vezes cruel, ilógico e incompreensível à razão humana. O pranto das crianças na noite descrito por Roth é o pranto de Jó contra Deus (Jó 3, 1ss.); e é, em última instância, o pranto do homem em busca do sentido da vida. Alguma semelhança deste cenário pode ser transposta para as horríveis experiências que acabamos de viver com a pandemia da COVID-19.
22 Lembremos que, através da tecnologia, cada cidadão também é controlado nos seus movimentos, nas conversas, nos seus interesses e orientações sociais, apesar do direito à privacidade, basta vermos a Declaração sobre o tratamento de dados pessoais no contexto da epidemia de COVID-19, adotada em 19 de março de 2020, pelo Conselho Europeu de Proteção de Dados – acesso pelo site: https:// edpb. europa. eu/ our- work- tools/ our- documents/ other- guidance/ statement- processing- personal- data- contextcovid- 19_ en, em 18/ 01/ 2023.
23 Ver o excelente texto de HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras,