Marcelo Ribeiro de Oliveira
O UsO TransnaciOnal das PrOvas aPresenTadas POr signaTáriOs de acOrdOs de cOlabOraçãO
UM ESTUDO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS DOS COLABORADORES A PARTIR DA NORMATIVA BRASILEIRA E DAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS ANTICORRUPÇÃO
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Assistente Editorial: Izabela Eid
Capa e diagramação: Jéssica Razia
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
edUardO Ferrer Mac-gregOr POisOT
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
JUarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
lUis lóPez gUerra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
TOMás s. vives anTón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
O48 Oliveira, Marcelo Ribeiro de O uso transnacional das provas apresentadas por signatários de acordos de colaboração : um estudo das garantias processuais dos colaboradores a partir da normativa brasileira e das convenções internacionais anticorrupção [livro eletrônico] / Marcelo Ribeiro de Oliveira; prólogo Dr. Nicolás Rodríguez-García. - 1.ed. –São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.
3.927Kb; livro digital
ISBN: 978-65-5908-216-2
1. Acordos de colaboração. 2. Provas. 3. Garantias fundamentais I. Título.
CDU: 342.7(81)
Bibliotecária Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778
DOI: 10.53071/boo-2023-08-16-64dce44d31150
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
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Marcelo Ribeiro de Oliveira
O UsO TransnaciOnal das PrOvas aPresenTadas POr signaTáriOs de acOrdOs de cOlabOraçãO
UM ESTUDO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS DOS COLABORADORES A PARTIR DA NORMATIVA BRASILEIRA E DAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS ANTICORRUPÇÃO
agradeciMenTOs
Um ensaio que fala sobre colaboração não poderia deixar de registrar os agradecimentos às pessoas que concorreram para o seu desenvolvimento. Com as desculpas por eventuais omissões não intencionais, faço algumas breves menções.
Inicialmente, meus agradecimentos à Laura Barrios González, que me apresentou o programa de Pós-Doutoramento da Universidade de Salamanca e a oportunidade de desenvolver o presente estudo, além de ser entusiasta de primeira hora da presente publicação.
Necessário e merecido o agradecimento ao Professor Nicolás Rodríguez García pela indispensável orientação, pelas dicas de leitura e de aprimoramento do texto, além da cordialidade e do bom humor que transformaram uma dura tarefa em uma prazerosa oportunidade de estudar um tema ainda negligenciado na academia.
Agradeço a todos os integrantes da Comissão Permanente de Assessoramento em Leniência e Colaboração Premiada, da 5ª. Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, na pessoa de sua última coordenadora, Samantha Dobrowolski, com o lamento pela a extinção do grupo, tão relevante para a consolidação de guidelines para o trabalho do Estado nos acordos de colaboração e de leniência, bem como para conferir previsibilidade ao setor privado. Ainda no MPF, apresento meu agradecimento à Anamara Osório, que, na Secretaria de Cooperação Internacional, dividiu vários dos desafios aqui retratados, além de ter dado dicas imprescindíveis de bibliografia.
Expresso minha gratidão aos diversos colegas de outras agências estatais brasileiras e estrangeiras, nomeadamente, AGU, CADE, CGU, Polícia Federal, TCU e o US Departament of Justice, que, com perspectivas distintas, sempre com o interesse público como objetivo maior, vêm, paralela ou coordenadamente, a agregar na consolidação dos instrumentos negociais tanto de indivíduos quanto de companhias.
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Dentro dessa tarefa de construção dos institutos, também agradeço aos inúmeros advogados que sempre conferem leituras atuais, distintas e que permitem um desenvolvimento ainda mais completo das virtudes e dos desafios desses processos negociais, seja na dimensão sancionatória, seja na utilização deles como meio de obtenção de provas, seja em relação às provas, de início, apresentadas.
Por fim, em uma dimensão mais pessoal, registro meus agradecimentos à minha família que, por seu sacrifício diário, me permitiu estabelecer a rotina de estudos necessária para conseguir levar mais esse projeto adiante.
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À Viviane e aos nossos filhos Maria Eduarda e Victor, como tudo que faço e que ainda farei.
If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?
(Shylock, Act 3 Scene 1)
Shakespeare, The Merchant of Venice
PrólOgO ....................................................................................... 13 Nicolás Rodríguez-García inTrOdUçãO: a cOlOcaçãO dO PrObleMa e dOs qUesTiOnaMenTOs dele derivadOs ............................................................................. 17 1. a rePressãO à cOrrUPçãO cOMO resgaTe à cidadania e Medida de PrOTeçãO dOs direiTOs hUManOs ................................................... 21 1.1. O (falso) dilema entre a busca da eficiência e a afronta a direitos fundamentais, desde que respeitados os procedimentos e a intencionalidade dos atores processuais ................................................................................. 28 1.2. O uso da cooperação internacional como ferramenta indispensável à repressão da grande corrupção na atualidade .............................................. 33 1.3. A cooperação internacional e a sua correlação na proteção dos direitos fundamentais ............................................................................................. 35 1.4. Premissas alcançadas............................................................................ 45 2. O casO esPecíFicO dOs acOrdOs de cOlabOraçãO e Os direiTOs FUndaMenTais relaciOnadOs .......................................................... 47 2.1. Os waivers procedimentais e o reconhecimento da compatibilidade desses com a preservação dos direitos fundamentais no Tribunal Europeu de Direitos Humanos...................................................................................... 54 2.2. A específica situação dos waivers em plea agreements ............................ 61 2.3. Condicionantes às renúncias 68 3. a celebraçãO de acOrdOs de cOlabOraçãO, nas MOdalidades eM qUe há FOrneciMenTO de PrOva e a sUa relaçãO cOM a cOOPeraçãO inTernaciOnal............................................................................... 70 3.1. O alcance de fatos transnacionais, a eventual imponderabilidade da extensão dos relatos dos fatos e os cuidados para se evitar a formação de “paraísos processuais” ................................................................................. 77 3.2. A distinção entre não cooperar e não fornecer provas produzidas pelo colaborador – duração das restrições – possibilidade de modulação ............ 87 3.3. O alcance da proteção ao colaborador exige acordo escrito ou basta existir colaboração efetiva? Quem examinaria essa efetividade? ................... 92 3.4. Clareza nos dispositivos legais e contratuais e o primado da boa-fé ...... 96 4. grUPOs de casOs cOM rUídOs nO PrOcessO de cOOPeraçãO ......... 98
sUMáriO
4.1. Recusas na assinatura das ressalvas ao uso das provas ........................... 98 4.2. Não observância empírica das limitações ao uso das provas; “contrabandos” e “mosaicos probatórios” .................................................. 105 4.3. Coleta direta dos elementos de prova na rede mundial de computadores........................................................................................... 112 5. POssíveis sOlUções, a desPeiTO da liMiTaçãO dO agir dO País reqUeridO .................................................................................. 118 5.1. As disposições convencionais já permitem solução ............................. 123 5.2. Possíveis melhoras, esclarecimentos normativos – sugestões de acréscimos de dispositivos à Convenção de Mérida e a tratados bilaterais ......................126 cOnsiderações Finais ................................................................. 130 JUlgadOs cOnsUlTadOs ............................................................... 136 Corte Interamericana de Direitos Humanos ............................................. 136 Tribunal Europeu de Direitos do Homem ................................................ 136 Corte Internacional de Justiça (CIJ/ICJ) .................................................. 137 Supremo Tribunal Federal (Brasil) ............................................................ 137 Superior Tribunal de Justiça (Brasil) 137 Jurisprudência norte-americana ................................................................ 138 links cOnsUlTadOs ..................................................................... 139 reFerências bibliOgráFicas ......................................................... 141
PrinciPais siglas e abreviaTUras UTilizadas
ADI/ADIn – ação direta de inconstitucionalidade
AgRg – Agravo Regimental
AgInt – Agravo Interno
Appl. – Application
AREsp – Agravo em Recurso Especial
AI – Agravo de instrumento
AP – Ação Penal
Art. – Artigo
BVerfG – Bundesverfassungsgericht
Cass. – Cassazione (acompanhado de SU – Sezione Unite)
CCR – Câmara de Coordenação e Revisão – MPF
Cf. – conforme, confira.
CIJ/ICJ – Corte Internacional de Justiça
c.p.c. – codice di procedura civile
c.p.p. – codice di procedura penale
DJ – Diário da Justiça
DJe – Diário da Justiça (versão eletrônica)
DJU – Diário da Justiça da União
EPPO – European Public Prosecutor’s Office
EREsp – Embargos de Divergência em Recurso Especial
EUROJUST – European Union Agency for Criminal Justice Cooperation
FRCP – Federal Rules of Civil Procedure (Estados Unidos)
FRE – Federal Rules of Evidence (Estados Unidos)
GC – Grand Chamber (v. TEDH)
HC – Habeas Corpus
ICIJ – International Consortium of Investigative Journalists
ICTY – International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia
LEC – Ley de Enjuiciamiento Civil (Espanha)
LEP _ Lei de Execuções Penais
LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
LOPJ – Ley Orgánica del Poder Judicial (Espanha)
MLAR – Mutual Legal Assistance Request
MLAT – Mutual Legal Assistance Treaty
MP – Ministério Público ou Medida Provisória (a se verificar no contexto)
MPF – Ministério Público Federal
MS – Mandado de Segurança
n., num. – número
OCDE/OECD – Organisation for Economic Cooperation and Development
op. cit. – obra citada
p. – página
pp. – páginas
QO – Questão de Ordem
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OEA/OAS – Organização dos Estados Americanos
Rel. – Relator
REsp – Recurso Especial
TEDH/ECHR/ECtHR – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
v. – versus, ver, conforme a situação
UN – Nações Unidas
UNCAC – United Nations Convention against Corruption (Convenção de Mérida)
UNTOC - United Nations Convention against Transnational Organized Crime (Convenção de Palermo
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PrólOgO
Embora tenha levado tempo, existe agora uma ampla unanimidade sobre os efeitos negativos da corrupção nas relações sociais como um todo. O consenso, que não foi fácil de alcançar, conseguiu superar algumas disputas muito acaloradas sobre suas causas e, consequentemente, sobre as melhores estratégias para conter sua propagação.
Uma dessas estratégias é o acordo de colaboração. Outra é a utilização de seu resultado em outras jurisdições. Ambas foram, e continuam a ser, intensamente debatidas: a primeira, devido aos riscos de utilizar a colaboração de forma tendenciosa, ampliando a tradicional tendência seletiva do sistema de justiça criminal. A segunda é a atualização de antigas discussões sobre a existência de assimetrias na cooperação internacional, com a consequente possibilidade de favorecer algumas jurisdições em detrimento de outras, especialmente quando, como neste caso, os componentes políticos são combinados com a recuperação de uma quantidade significativa de bens.
Como o leitor terá notado, a questão transcende o interesse jurídico: as ferramentas de colaboração têm desempenhado um papel importante nas investigações de alto impacto social, político e econômico realizadas na América Latina.
Algumas delas foram mantidas pelos tribunais superiores, outras foram sancionadas e anuladas, gerando incerteza e perda de confiança nas instituições. Em alguns casos, o emprego do poder repressivo foi acompanhado por outras ferramentas excepcionais, como o impeachment ou o julgamento político, concebidas para lidar com crises institucionais extremas. Não é surpreendente, portanto, que a situação tenha sido acompanhada por um amplo e tenso debate social, muitas vezes expresso de forma violenta.
O breve esboço acima serve para destacar a importância do tema escolhido pelo Dr. Marcelo Ribeiro de Oliveira, bem como a magnitude do desafio colocado por seu enquadramento, que é bem
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superado neste trabalho, de acordo com a experiência profissional do autor e sua sólida formação nacional e internacional.
Não é menor neste sentido que a questão tenha sido enquadrada, desde o início, dentro das coordenadas dos direitos humanos fundamentais, com a consequente necessidade de harmonizar a garantia constitucional do devido processo com o direito de viver em uma sociedade livre de todo tipo de corrupção. Esta perspectiva, embora bem conhecida, é, no entanto, fundamental: muitas iniciativas perdem de vista estas coordenadas, condenando a vitalidade e o vigor do instituto.
E, como a história nos ensina, nada de bom permanece depois de combater a corrupção com métodos ilegais. Não só porque o fim em nenhum caso justifica os meios, mas também pelas razões de eficiência mencionadas: a curto prazo, e além das boas ou más intenções, os desvios acima mencionados não passam - ou não devem passar - o controle dos órgãos de revisão final. Uma vez chegado este momento inevitável, segue a agitação social e, o que é mais grave, a preservação e ampliação de ambos os lados de uma moeda tão desvalorizada: mais corrupção e impunidade, e muito mais descrédito institucional, devido a uma patologia corrupta capilarizada em todos os recursos públicos e privados de um país.
Mais uma vez, o autor tem razão quando, após demonstrar que não há incompatibilidade no nível geral, o percurso da harmonização é jogado em práticas concretas, na forma como as instituições evitam ou não os riscos inerentes ao abuso da lei, um extremo particularmente grave quando se trata do instrumento repressivo. Este caminho vai além da crise dos direitos dos acusados: depende também da capacidade dos mecanismos de monitoramento e controle para evitar a influência ou captura do órgão público encarregado da negociação.
Outra vez, ele tem razão ao salientar que os acordos que regem a colaboração internacional exigem um esforço sério para harmonizá-los com a estrutura de garantias prevista na legislação nacional, como o autor aponta quando relaciona a teoria da non-inquiry com o antigo «Estatuto do Estrangeiro». Os transplantes normativos, como resultado de ações simples e cosméticas de mimetismo jurídi-
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co, acrítico e simplista, embora possam parecer um atalho, apenas atrasam a implementação saudável, madura e eficaz deste tipo de ferramenta legal.
No nível prático, é claro, a harmonização não é de forma alguma simples. Como o autor detalha, os acordos de colaboração estão sujeitos à tensão decorrente da dupla natureza da instituição: por um lado, a de ser um negócio jurídico processual livre e voluntário, entre partes que se assumem iguais, que assumem compromissos recíprocos com base na boa fé; e, por outro, a de constituir um meio de obtenção de provas, no âmbito de um processo de natureza sancionatória, que é útil e de interesse público. Estas tensões são, por sua vez, agravadas quando se trata de projetar seus efeitos para além da fronteira: não só os acordos não conferem imunidade extraterritorial, mas também não impedem o dever do Estado de colaborar com outras jurisdições.
É na análise dessas tensões que o trabalho mostra seus pontos altos. É notável neste aspecto como a pesquisa atravessa os diferentes níveis normativos que envolvem ambos os institutos, desde a carta fundamental e as convenções internacionais, passando por leis e regulamentos, até normas menores e instruções práticas, tudo com o objetivo de refletir sobre a forma pela qual os acordos de colaboração devem ser implementados em casos complexos, onde múltiplas jurisdições estão envolvidas.
Em particular, sobre os compromissos que os marcos legais interjurisdicionais permitem ou não, tanto em termos da renúncia dos direitos fundamentais por parte do acusado, quanto das garantias que o representante do Estado pode dar, em termos de proteção da pessoa, fornecendo imunidade, ou no mínimo mitigando seu processo penal local e internacional. O leitor deve lembrar que alguns destes casos comprometem o destino da organização política nacional e das relações internacionais, o que explica a dificuldade de interpretar o que se diz ser nada mais do que um acordo.
Para este fim, o autor recorre a diversas fontes: além de sua função no texto, a leitura destes parágrafos é, em si mesma, útil pelas informações que eles fornecem. As referências à Convenção
Europeia sobre Direitos Humanos, a Convenção das Nações Unidas
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contra o Crime Organizado Transnacional, a Convenção das Nações
Unidas contra a Corrupção, a Convenção da OCDE contra Suborno Transnacional, o direito comparado (México, Peru, Espanha, Portugal e Estados Unidos), entre outros marcos de referência, abundam. A isto se acrescenta uma revisão exaustiva da jurisprudência norte-americana, da Corte Europeia de Direitos Humanos, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Internacional de Justiça. Obviamente, o texto inclui uma visão detalhada da situação normativa, institucional e jurisprudencial no Brasil, o país epítome para o problema em estudo, que se beneficiará da abordagem, afirmações e conclusões do autor, um jurista brasileiro de reconhecido prestígio além das fronteiras do país.
Equipado com este pano de fundo e amplas referências doutrinárias, o texto fornece um verdadeiro mapa para navegar pelas diversas armadilhas da aplicação da instituição, tais como o dilema acima mencionado entre garantia e eficácia, a análise da compatibilidade entre os waivers e garantias constitucionais, os riscos de gerar «paraísos processuais» ou o uso indevido de provas, bem como a contribuição de numerosas sugestões e melhorias.
Em resumo, este é um trabalho de alto rigor técnico sobre uma questão crítica e difícil de implementação, cuja execução, se pretende ser bem-sucedida, requer um compromisso que vai além do campo normativo para penetrar no mundo do law in action. Este é um mundo ao qual se presta pouca atenção, desde um ponto de vista académico, mas no qual está em jogo, sem dúvidas, o futuro deste tipo de ferramenta jurídica: e é na plena compreensão deste problema que reside a principal compreensão do excelente trabalho que tenho a honra de prefaciar.
Como costumamos dizer nos grandes días no Paraninfo da Universidade de Salamanca, ¡Vítor! por Marcelo Ribeiro de Oliveira.
Buenos Aires (Argentina), 26 de março de 2023.
nicOlás rOdrígUez-garcía
Catedrático
de Direito Processual Universidade de Salamanca
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inTrOdUçãO: a cOlOcaçãO
dO PrObleMa e dOs
qUesTiOnaMenTOs dele derivadOs
Em matéria de cooperação jurídica internacional, a Convenção de Mérida estabelece, no art. 46 algumas possíveis restrições à cooperação internacional em matéria de combate à corrupção:
5. A transmissão de informação de acordo com o parágrafo 4 do presente Artigo se fará sem prejuízo às indagações e processos penais que tenham lugar no Estado das autoridades competentes que facilitaram a informação. As autoridades competentes que recebem a informação deverão aquiescer a toda solicitação de que se respeite seu caráter confidencial, inclusive temporariamente, ou de que se imponham restrições a sua utilização. Sem embargo, ele não obstará para que o Estado Parte receptor revele, em suas ações, informação que seja fator de absolvição de uma pessoa acusada. Em tal caso, o Estado Parte receptor notificará o Estado Parte transmissor antes de revelar a mencionada informação e, se assim for solicitado, consultará o Estado Parte transmissor. Se, em um caso excepcional, não for possível notificar com antecipação, o Estado Parte receptor informará sem demora ao Estado Parte transmissor sobre a mencionada revelação.
(...)
17. Dar-se-á cumprimento a toda solicitação de acordo com o ordenamento jurídico interno do Estado Parte requerido e, na medida em que ele não o contravenha e seja factível, em conformidade com os procedimentos especificados na solicitação.
O item 5 trata mais especificamente da transmissão espontânea de informação e mencionada a possibilidade de se imponham restrições à utilização. O item 17 enfatiza a que um pedido de cooperação internacional deve ser atendido em conformidade com o país receptor da ordem (país requerido).
O tema não possui uma resolução simples até mesmo por se correlacionar com imposição de restrições de uso de prova, que, no limite, cria uma verdadeira restrição de direito fundamental e que
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rompe com a ideia de que em situações duvidosas, poder-se-ia optar pela produção ou utilização das provas (cf. in dubio pro probatione)1.
Há verdadeiras constelações de casos passíveis de reflexão, como os decorrentes de divergências entre ordenamentos jurídicos, como ocorre nos delitos fiscais e de evasão de divisas, dos distintos regimes das unidades de inteligência financeira.
Essas ideias gerais se mostram como desafios para garantir a proteção penal dos bens jurídicos no cenário de cooperação internacional, que trazem ainda situações específicas.
Propõe-se o exame de um desses temas controvertidos, que é o uso transnacional da prova obtida por meio de acordos de colaboração premiada ou por meio de acordos de leniência2, especialmente quando esses acordos dispõem que a essa prova fornecida pelos colaboradores não será utilizada contra eles para além dos limites do acordo.
Será usado o ordenamento jurídico brasileiro como parâmetro normativo, sem prejuízo de se buscarem diálogos com os regimes de outros países ibero-americanos, tanto para uma formulação geral das conclusões quanto em razão do efetivo exame desses, uma vez que se realiza um exame transfronteiriço.
As perguntas nucleares a serem respondidas pela presente investigação são as seguintes: o país requerido em um pedido de cooperação jurídica internacional pode impor restrições ao uso de prova obtida por meio de acordos de colaboração premiada ou por meio de acordos de leniência de que seja signatário, seja por meio da solicitação de termos de não utilização de prova contra os colaboradores pelo país requerente, seja por meio de ressalva expressa no envio desses elementos de prova? Como equacionar possíveis impasses relacionados ao mau uso?
1 BADARÓ (2015) e GENSLER (1825).
2 Sem embargo do desenvolvimento nos tópicos próprios e de maneira breve, dentro da ótica brasileira, os acordos de colaboração premiada envolvem indivíduos que auxiliam na expansão de investigações criminais ao passo que os acordos de leniência são para infrações administrativas praticadas por pessoas jurídicas. Para mais detalhes, cf. OLIVEIRA (2021).
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Para a solução dessas questões, há, ainda, os seguintes questionamentos correlatos: qual a finalidade das restrições? Que regime de proteção probatória deve ser conferido aos colaboradores? Que direitos processuais são abdicados ao se celebrar um acordo de leniência ou de colaboração premiada? O colaborador é “dono” da prova? O colaborador pode impor restrição eterna ao uso da prova? Não existiria a hipótese de se criar um “paraíso processual” para se impedir o uso de provas no futuro em outras jurisdições menos favoráveis do ponto de vista negocial? A prova ser uma antecipação de desdobramentos inevitáveis da investigação ou ser essencialmente algo novo faz diferença?
Para esse exame, adotam-se os seguintes passos: investigar a finalidade e o alcance dispositivos na Convenção de Mérida (e que possui similares em outras Convenções), condicionado ao comportamento das partes, o que se mostra como efetiva expansão de problematização levantada ao longo de nossa tese doutoral3.
Antes, será necessário expor sobre a relação dos esforços na repressão à corrupção como forma de preservação dos direitos humanos e analisar, especificamente, no que diz respeito à colaboração premiada as objeções lançadas justamente sobre a sua inconstitucionalidade ou mesmo inconvencionalidade, a partir da análise da natureza jurídica do instituto e a relação de disposição de direitos processuais formada entre Estado e o colaborador, incluindo-se a visão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e acenos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nessa etapa introdutória, cabe ainda examinar a interação da cooperação internacional com os direitos fundamentais do colaborador.
A hipótese que se pretende testar e que gera uma série de questionamentos sucessivos é a seguinte: o país requerido em um pedido de cooperação jurídica internacional pode impor restrições ao uso de prova obtida por meio de acordos de colaboração premiada ou por meio de acordos de leniência de que seja signatário, seja por meio da solicitação de termos de não utilização de prova contra os cola-
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3 Mantida em sua versão comercial, cf. OLIVEIRA (2022).
boradores pelo país requerente, seja por meio de ressalva expressa no envio desses elementos de prova.
Para tanto, desenvolve-se o trabalho em cinco seções: a primeira cuida da relevância do enfrentamento à corrupção dada a afetação dos direitos prejudicados por um ambiente de má governança, podendo ser sustentada a efetiva lesão a direitos fundamentais. Analisa-se, com base na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a respeito da necessidade de se realizar uma proteção judicial eficiente, com mecanismos eficientes, observando-se que a tensão por vezes sugerida com tais medidas e a proteção de direitos fundamentais dos acusados ou investigados. Estuda-se a cooperação internacional como uma das ferramentas eficazes, fazendo-se uma correlação entre ela e justamente a proteção dos direitos dos envolvidos. A segunda seção se dedica, ainda na temática dos direitos fundamentais, a examinar a possibilidade de renúncia de exercícios, tendo em conta a orientação do TEDH e voltando a atenção para os waivers procedimentais.
Esse exame gera a base crítica para analisar especificamente a relação do estado e o particular celebrante de acordos de colaboração, expressão que foi usada como gênero dentro do direito positivo brasileiro, a abarcar a colaboração premiada e o acordo de leniência, ambos explicados ao longo do desenvolvimento. A quarta seção aborda possíveis disfuncionalidades no âmbito do uso transnacional das provas e a última seção, busca, com o angariado nas três primeiras, fornece soluções, sem embargo de se sugerirem melhoramentos em textos normativos correlatos.
Como metodologia, lança-se mão da revisão de literatura, bem como da releitura crítica da jurisprudência sobre o tema no âmbito ibero-americano, notadamente, no que diz respeito aos institutos de colaboração aqui utilizados, do direito brasileiro, a saber, a colaboração premiada e o acordo de leniência voltado para os atos anticorrupção. Ainda no exame analítico da jurisprudência, notadamente, nas duas primeiras seções, debruçou-se sobre os casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
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