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Da frauDe patrimonial comum à frauDe penal econômica

A necessária releitura da fraude diante da regulação econômica

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil

Editor Responsável: Aline Gostinski

Assistente Editorial: Izabela Eid

Diagramação e Capa: Analu Brettas

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:

eDuarDo ferrer mac-GreGor poisot

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez tavares

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

luis lópez Guerra

Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

owen m. fiss

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

tomás s. vives antón

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

P22 Panoeiro, José Maria de Castro

Da fraude patrimonial comum à fraude penal econômica : a necessária releitura da fraude diante da regulação econômica [livro eletrônico] / José Maria de Castro Panoeiro. - 1.ed. –São Paulo : Tirant lo Blanch, 2023.

4.678Kb; livro digital

ISBN: 978-65-5908-554-5

1.Direito penal econômico. 2. Fraude penal econômica. I. Título.

CDU: 343.37

Bibliotecária responsável: Elisabete Cândida da Silva CRB-8/6778 DOI:

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.

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Impresso no Brasil

/ Printed in Brazil

Da frauDe patrimonial comum à frauDe penal econômica

A necessária releitura da fraude diante da regulação econômica

DeDicatória

Dedico o trabalho a minha esposa e professora Valéria, sua caminhada foi inspiração para este momento. E dedico, ainda, às minhas filhas, que espero um dia compreendam o quão transformadora a educação pode ser na vida de cada um.

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aGraDecimentos

Agradecer nestas breves linhas a todos aqueles que contribuíram para que este momento, enfim, fosse alcançado, é tarefa quase impossível. Para evitar a omissão, fica o fraterno agradecimento nas pessoas declinadas como extensivo a todos os que, direta ou indiretamente, contribuíram para tornar possível este projeto.

Assim, em primeiro lugar, agradeço ao Prof. Dr. Artur de Brito Gueiros Souza, o grande incentivador e cuidadoso orientador que, mesmo nos momentos mais difíceis, quando tive de conviver com o câncer de meu pai e de meu irmão, e, também com uma cirurgia no ombro, que me imobilizou o braço direito por três meses, não me deixou desanimar. Não é preciso dizer de suas orientações e apontamentos, correções de rumo, pois são próprias daqueles que dignificam a condição de professor, reforçam o sentimento de que o exemplo é uma pregação silenciosa.

Agradeço, em seguida, à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que me acolheu, me proporcionou intenso aprendizado junto aos vários professores extremamente dedicados e atenciosos, aos colegas de curso, com os quais troquei ideias e participei de debates enriquecedores, aos meus alunos da disciplina estágio docente, que me auxiliaram a organizar o conhecimento e repassá-lo de forma mais didática.

Agradeço aos estimados membros da banca na pessoa da Profa. Dra. Patrícia Mothé Glioche Béze, por dispensarem o já exíguo tempo de que dispõem para comporem esta banca.

Agradeço, ainda, ao Professor Dr. Davi Tangerino pelas considerações lançadas quando do exame de qualificação.

Agradeço, também, a meus assessores na Procuradoria da República, o que o faço na pessoa da Sra. Mônica Duarte Simionato Gamero, que me permitiram conduzir um gabinete e dedicar tempo de pesquisa ao doutorado. Sem cada um de vocês isso não seria possível.

Agradeço, por fim, aos meus pais e minha tia Lúcia, que estiveram comigo ao longo de toda a minha jornada de estudos, desde a infância até os dias atuais, e lhes devo o presente momento. Tudo isso teve um começo e lhes devo toda reverência por isso.

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sumário DeDicatória ....................................................................................................... 5 aGraDecimentos ................................................................................................. 6 introDução ........................................................................................................ 9 1. aproximação ao Direito penal econômico .................................................... 15 1.1. Considerações preliminares ....................................................................................... 15 1.2. Organização social e crime: como a sociedade controla o comportamento indesejado ... 18 1.2.1. O horizonte do capitalismo na virada dos séculos XIX e XX e a arquitetura do Direito Penal econômico moderno................................................................................. 22 1.2.2. O pós-guerra como ambiente para a sistematização do novo Direito Penal Econômico .................................................................................................................... 27 1.3. O direito econômico como substrato necessário à compreensão do direito penal econômico ....................................................................................................................... 31 1.3.1. Constituição Econômica e Direito Econômico: o fundamento de legitimidade e guia para o desenvolvimento do Direito Penal Econômico no Brasil .............................. 31 1.3.2. A ideologia da Constituição Econômica e Direito Penal Econômico 33 1.3.3. Da ordem liberal clássica à globalização: os desafios do Direito Penal Econômico e dos Direitos Humanos 38 1.3.4. Enquanto o Direito Penal global não vem: ou estratégias de enfrentamento da criminalidade econômica made in USA ......................................................................... 47 2. criminaliDaDe econômica: conhecer, prevenir e sancionar ......................... 51 2.1. Limitações, conceito e amplitude do direito penal econômico ................................... 51 2.2. A delinquência econômica......................................................................................... 62 2.2.1. Panorama criminológico para a explicação da delinquência econômica ................ 62 2.2.2. A teoria da associação diferencial e “White Collar Crime”: o lugar e a atualidade de Sutherland no Direito Penal Econômico ........................................................................ 69 2.2.3. Sociedade da informação, opinião pública e política criminal: a desinformação como instrumento de imunidade para criminosos do colarinho branco.......................... 77 2.3. Regulação econômica e Direito Penal Econômico 80 2.3.1. Tipo penal econômico e bem jurídico: legitimação e controvérsias ....................... 90 2.3.2. Tipo penal econômico e técnica legislativa: tutela penal do risco e normas penais em branco (ou de remissão a normas técnicas) ..................................................................... 96 2.3.3. Tipo penal econômico (ilícito penal econômico) e infração econômica (ilícito administrativa): aproximações, limites e incongruências ............................................... 107 3. a frauDe patrimonial como Gênese Da moDerna frauDe penal econômica ...... 114 3.1. Genealogia da fraude ............................................................................................... 114 3.1.1. O lugar da fraude no Direito Penal: considerações históricas .............................. 114 3.1.2. Escrutinando a fraude patrimonial: os ambientes propícios ao desenvolvimento dos expedientes fraudulentos .............................................................................................. 120
3.1.3. A psicologia do fraudador: o homem por trás de pequenas e grandes ganacias 131 3.2. A fraude patrimonial: o estelionato ......................................................................... 144 3.2.1. Fraude penal e fraude civil: os limites tênues da intervenção penal ..................... 144 3.2.2. A fórmula genérica do estelionato: o bem jurídico, o elemento subjetivo e os sujeitos......................................................................................................................... 151 3.2.3. O engano típico e o erro: o influxo criador de falsa representação ...................... 155 3.2.4. Ato de disposição patrimonial: obtenção de vantagem e causação de prejuízo..... 160 3.3. Âmbitos especiais do estelionato 164 3.3.1. O estelionato por meio de sistemas de processamento de dados (estafa e sistemas de procesamiento de datos)............................................................................................... 164 3.3.2. Considerações sobre o estelionato processual...................................................... 173 4. a frauDe penal econômica: compreensão, limites, Deficiências e enfrentamento ............................................................................................... 178 4.1. Paralelismo limitado entre fraude patrimonial comum e a fraude penal econômica moderna......................................................................................................................... 178 4.1.1. A fraude penal econômica: o lugar onde o astuto e o poder econômico se encontram ................................................................................................................... 178 4.1.2. A mudança de paradigmas no Direito Penal Econômico: novos contornos, releitura de postulados e ressignificação do bem jurídico ............................................................ 188 4.1.3. A fraude penal econômica na perspectiva da convenience theory (Gottschalk) 197 4.1.4. Delinquência econômica e corrupção: um caso de ressignificação do bem jurídico frente ao sistema econômico de mercado...................................................................... 207 4.2. Fraude penal econômica: prevenir e sancionar ......................................................... 216 4.2.1. A fraude no ambiente econômico regulado, análise econômica do crime e a construção de uma sociedade justa e solidária .............................................................. 216 4.2.2. A fraude penal econômica e delitos de infração de dever: um espaço para a compreensão da fraude econômica dentro da perspectiva da regulação ......................... 226 4.2.3. A sonegação fiscal por omissão: a fraude por meio da infração de dever e a ressignificação da omissão no tipo ................................................................................ 235 4.3. Dois âmbitos especiais de aplicação da fraude penal econômica ............................... 239 4.3.1. A fraude a investidores (A manipulação de mercado e insider trading) 239 4.3.2. A fraude nos crimes tributários e o regime de extinção da punibilidade .............. 246 conclusão ..................................................................................................... 254 referências biblioGráficas ............................................................................. 259

introDução

O presente trabalho tem por objetivo a análise da fraude penal econômica no Brasil, sob os aspectos criminológicos e jurídicos. Várias foram as razões que conduziram à escolha dessa investigação.

O tema, é de certa forma, um prolongamento de minha dissertação de mestrado “Política Criminal e Direito Penal Econômico: Um estudo interdisciplinar dos crimes econômicos e tributários”, defendida em 2013. A análise das relações entre Política Criminal e Direito Penal Econômico importou, naquele momento, basicamente, na discussão das questões relativas à resposta penal a um tipo específico de delito, a sonegação fiscal. Para compreender a diversidade de tratamento dispensada aos autores dessa infração em relação aos demais, tanto na perspectiva legal quanto judicial, foram investigadas as conexões existentes entre Política Criminal, Criminologia e Direito Penal tendo como pano de fundo a evolução do Estado desde o Século XVIII. Na ocasião, parecia clara a necessidade de compreender o desenvolvimento do Direito Penal tendo como horizonte de projeção as relações de poder que se estabeleciam e, com isso, refletir sobre a questão da seleção de comportamentos criminosos.

A segunda razão foi de ordem profissional. A atuação, por quase duas décadas, na área criminal, inicialmente como Delegado de Polícia, posteriormente, como Promotor de Justiça e, nos últimos dezesseis anos, como Procurador da República, possibilitou um contado direto com realidades muito distintas. De uma cidade situada às margens da Via Dutra, em plena Baixada Fluminense, onde o trabalho policial se relacionava ao cotidiano de uma criminalidade de classe baixa, por vezes violenta, e cuja atuação da Polícia Judiciária, na grande maioria dos casos, se limitava à prisão em flagrante, ao trabalho no Ministério Público Federal, muito tempo se passou. A oportunidade de atuar na Força Tarefa de Combate a Crimes Previdenciários (2004/ 2006), nas Varas especializadas no combate à Lavagem de Dinheiro e a Crimes contra o Sistema Financeiro (2007-2020) e a experiência na Coordenação do Grupo de Trabalho para enfrentamento ao Terrorismo nas Olímpiadas (Rio 2016), permitiram acumular algumas vivências que reforçaram a necessidade de reflexões em torno das diferentes abordagens científicas para fenômenos que, na sua essência, possuem a mesma natureza frente ao ordenamento jurídico.

Outra motivação decorreu do fato de estar integrando, desde 2017, um Grupo Estratégico para Enfrentamento do Tráfico Internacional de Armas e Drogas, criado pela Procuradoria-Geral da República, essa atuação permitiu refletir sobre a mudança de patamar que experimenta o crime ao assumir um determi-

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nado nível de organização, em especial, com a sofisticação de seus métodos, quer se trate de delinquência econômica ou não. Assim, transformar essa experiência profissional em conhecimento científico, através de metodologia adequada, é, sem dúvida, outra justificativa para a escolha do tema.

Outra razão, esta de cunho acadêmico, é o promover uma revisita aos fundamentos de uma das obras clássicas do Direito Penal brasileiro, Fraude Penal de Nelson Hungria (1934). Tendo em vista que a fraude é um dos métodos de atuação da infração econômica, o que se pretende é circunstanciar tal expediente no contexto do Direito Penal Econômico. Assim, este trabalho também pretende, de algum modo, resgatar e contextualizar as reflexões então realizadas por aquele que, talvez, tenha sido nosso maior penalista.

O estudo também se justifica na medida em que a globalização se tornou uma realidade incontrastável. A circulação de pessoas, bens e, principalmente, de capital, tem sido uma característica marcante no mundo atual. A facilidade dos meios de transporte e da circulação de recursos financeiros, a desigualdade na distribuição da riqueza mundial, a existência de paraísos fiscais, o possível enfraquecimento do Estado-Nação e um Direito Penal preso a fronteiras territoriais anteriores à mundialização, criam um ambiente favorável à internacionalização do crime. Ressalvada a experiência de integração europeia, que ainda assim padece de problemas quanto à harmonização das legislações nacionais, o que se tem parece ser um processo no qual a diversidade de tratamento legal das condutas cria entraves a uma efetiva cooperação entre os países. Além disso, há todo um contexto de afetação dos Direitos Humanos relacionados a condutas a grupos econômicos cada vez mais internacionais, o que demonstram as catástrofes ambientais recentes. Compreender esse fenômeno, não só sob o aspecto criminológico, mas, igualmente, jurídico, constitui outro objetivo desse trabalho.

O último motivo, mas não o de menor importância, refere-se a uma questão social. É sabido que a Constituição Federal de 1988 consagrou um modelo de Estado Social, o que não pode ser negado nem mesmo pelo advento de um discurso neoliberal tão em voga, desde os anos 80 do século passado, no mundo ocidental. A diminuição do tamanho do Estado, por mais variadas razões, conduziu a um reforço na regulação econômica como forma de seguir alcançando determinados objetivos de índole social, como a promoção da Dignidade Humana, conforme os ditames da Justiça Social (art. 170, caput, C.R.). E esta regulação econômica não se restringiria ao âmbito extrapenal, pois também se vale o legislador de instrumentos penais para preservar os alicerces do modelo de Estado que se estruturou a partir de 1988.

Considerando o título do trabalho – Da fraude patrimonial comum à fraude penal econômica: a necessária releitura da resposta penal frente aos desafios da regula-

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ção econômica –, apresentam-se duas hipóteses de investigação. A primeira busca saber se os pressupostos teóricos para identificação da fraude penal comum, que tem no estelionato sua figura principal, são aplicáveis à fraude penal econômica, e por quais razões. A segunda hipótese destina-se a verificar a existência e pertinência mecanismos jurídicos de interpretação que compatibilizem a regulação econômica e o Direito Penal Econômico, dentro do paradigma constitucional, ou se, alternativamente, seria, de fato, necessária uma reforma de determinados tipos penais.

Para responder a essas indagações, partiu-se da realidade empírica que permitiu conhecer o fenômeno da fraude penal econômica. Contudo, diante da escassez de dados científicos, que é reconhecida, inclusive, na doutrina estrangeira1, passou-se a analisar casos relatados em bibliografia2, em dados disponíveis em fontes abertas e, ainda, em alguns processos específicos com os quais se teve contato.3 De posse de tais informações, a pesquisa passou a ser conduzida por meio dos instrumentos formais dos métodos dogmático ou dedutivo. Saliente-se, por oportuno, que a utilização interdisciplinar e sucessiva de metodologias científicas tem sido propugnada pela moderna doutrina penalista, pois não se aceita mais dissoluções ou antagonismos entre o saber criminológico e o saber normativo. Ao contrário, é mister proceder, de modo finalístico, à comunicação e à colaboração entre as chamadas “ciências penais” – Criminologia, Direito Penal e Política Criminal –, para se alcançar os resultados esperados, superando, pois, uma abordagem formalista ou fragmentada do objeto de estudo.

Neste sentido, Lorenzo Morillas Cueva, após traçar as principais distinções entre a Criminologia e a Ciência do Direito Penal, alerta que a separação entre estes dois ramos é muito mais aparente do que real. Para ele, “equivocam-se aqueles que pretendem, em razão de justificável autonomia científica, apartá-las entre si radicalmente. As zonas comuns são mais atrativas que as desagregadoras. Como disse Peláez, não existe problema jurídico-dogmático que não requeira um conhecimento de suas bases criminológicas. O penalista que queira afastar-se do perigo formalista ao qual com tanta facilidade pode incidir a Ciência Punitiva há de confiar, como parte importante de seus conhecimentos, nos ensinamentos

1 MORÓN LERMA, Esther. El perfil criminológico del delincuente económico. In: GARCÍA ARÁN, Mercedes [Dir. ]; REBOLLO VARGAS, Rafael, ... [et. al. ]. La delincuencia econômica: Prevenir y sancionar. Valencia: Tirant lo blanch, 2014, p. 30; RUIZ RODRÍGUEZ, Luis Ramón. LIMITACIONES TÉCNICAS, JURÍDICAS E IDEOLÓGICAS PARA EL CONOCIMIENTO Y SANCIÓN DE LA CRIMINALIDAD ECONÓMICA. REVISTA DE DERECHO PENAL Y CRIMINOLOGÍA, 3ª Época, nº 1 (2009), págs. 347. (Fonte: «http://e-spacio. uned. es/fez/eserv. php?pid=bibliuned:DerechoPenalyCriminologia-2009-1-30350&dsID=PDF» Acesso: 29/01/2020)

2 A título exemplificativo: SOLTES, Eugene. Why they do it: inside de mind of the white-collar criminal. New York: PublicAffairs, 2019.

3 Os elementos empíricos trazidos dos processos mencionados suprimem a identificação de pessoas, embora indiquem o número de sorte a permitir a verificação dos dados lançados.

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criminológicos. ”4 Este autor conclui seu ponto de vista quanto à necessidade de integração entre Direito Penal e Criminologia, ainda que cada qual conserve sua autonomia, arrematando da seguinte forma: “Autonomia, sim, mas ao mesmo tempo entendimento totalizador do fenômeno da delinquência, para que a Ciência Punitiva e a Criminologia se apresentem como os dois braços fortes e vigorosos que, conjuntamente, hão de trabalhar na busca de soluções e para oferecer um conhecimento claro da realidade jurídico-penal como parte essencial da estabilidade do sistema democrático. Talvez seja, para finalizar, uma frase de Jescheck a que melhor resume as relações e o significado de ambas: ‘o Direito Penal sem a Criminologia é cego, a Criminologia sem o Direito Penal é estéril’.”5 A toda essa perspectiva integradora é preciso agora acrescer o Direito Econômico e a própria Economia, sob pena de carência de sentido das normas penais relacionadas ao Direito Penal Econômico.

O estudo encontra-se dividido em quatro capítulos. O Capítulo 1 destina-se a aproximação teórica ao objeto da investigação, a fraude penal econômica. Para tanto realiza uma aproximação ao Direito Penal Econômico e toma como ponto de partida a existência da fraude como um expediente que não seria privativo do homem. Segue-se a demonstração de que, ao longo dos tempos, a fraude sempre foi objeto de reprovação, e que a evolução social teria propiciado, igualmente, a evolução dos expedientes fraudulentos. Dentro desse panorama proposto pelo capítulo, estrutura-se o desenvolvimento do Direito Penal Econômico, com referências históricas a delitos de conteúdo econômico, e sua correlação com a ordem social vigente. É estabelecida a vinculação da legitimidade da intervenção penal à Constituição e à regulação econômica dela decorrente. Por fim, aborda-se a questão do enfrentamento de graves afetações de interesses da Humanidade, como o meio ambiente.

O capítulo seguinte trata de uma busca pela compreensão do que venha a se a criminalidade econômica, bem como o catálogo de instrumentos para prevenir e sancionar tais comportamentos. Como ponto de partida se apresenta o conteúdo do Direito Penal Econômico, evidenciou-se, desde logo, as dificuldades relacionadas a uma definição formal. Estabelecida tal premissa, é traçado um panorama sobre a criminalidade econômica que começa com a apresentação de teorias para sua explicação, passa pela teoria da associação diferencial e o White

4 MORILLAS CUEVA, Lorenzo. Metodologia y ciencia penal. Granada: Universidad de Granada. 1990, p. 316.

5 Idem, p. 317. (grifou-se). Na mesma esteira, García-Pablos de Molina salienta que “Estando superada hoje, felizmente, a estéril luta de escolas – o enfrentamento entre a Criminologia e o Direito Penal e seus dois mundos rivais: o das batas brancas e os das togas negras – parece haver assumido a ideia de que não podem dissociar-se a especulação teórica e a análise empírica. Que a compreensão e controle eficaz da criminalidade requerem de ambas. Criminologia e Direito Penal devem coordenar seus esforços, sem pretensões de exclusividade ou intransigência, pois uma e outra disciplina gozam de autonomia em razão de seus respectivos ‘objetos’ e ‘métodos’, porém são chamadas a se entender, são inseparáveis. ” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Tratado de criminología. 3a ed. Valencia: Tirant lo Blanc, 2003, pp. 223-224) (grifos do original).

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colar crime de Edwin Sutherland, e finaliza com aportes teóricos que buscam sua atualização. Fecha-se o tópico com a questão da sociedade da informação em contraponto com invisibilidade da delinquência econômica perante a grande maioria da população, que se tornaria instrumento de discursos que conduziriam a uma imunidade não declarada formalmente dessa delinquência. O capítulo é concluído com uma acerca da correlação tipo penal, bem jurídico e regulação econômica, onde são tratados problemas inerentes à criminalização de condutas neste âmbito.

O Capítulo 3, dedicado à fraude patrimonial comum, consiste numa busca da gênese dos comportamentos fraudulentos. Neste sentido, abre-se um espaço à genealogia da fraude abordando desde o tratamento jurídico dela em meio a uma confusão com o delito de falso, passando por sua autonomia para chegar aos ambientes propícios a seu desenvolvimento. Neste ponto é feita uma referência à psicologia do fraudador, no sentido de compreender o homem por trás da ganância patrimonial e sua transformação. Em seguida, é promovida uma visita ao delito de estelionato, o principal delito da fraude patrimonial comum, abordando aspectos próprios relativos a bem jurídico, sujeitos, elemento subjetivo, engano, ato de disposição e prejuízo patrimonial. Por fim, analisa-se duas manifestações modernas da fraude, a manipulação de dispositivo informático e o estelionato processual, que contam, em outros ordenamentos, como o espanhol, com figuras específicas equiparadas ao equivalente brasileiro do estelionato.

O quarto capítulo é dedicado à fraude penal econômica. Num primeiro momento são traçadas as linhas que demonstrariam as limitações da equiparação entre fraude penal econômica e penal comum é limitado. A fraude penal econômica, aparentemente mais lesiva que fraude comum, teria lugar quando o astuto, expressão de Ferriani6 para o autor da fraude, e poder econômico se associam, e daí são descortinadas algumas perspectivas que seriam relevantes. Em seguida, é tratada a questão da mudança de paradigmas e a necessidade de uma releitura de determinados postulados. Segue-se a abordagem da teoria da conveniência, que se propõe a explicar a delinquência econômica por uma perspectiva que reúne aportes de diversas teorias. O tópico conclui com a questão da conexão entre delinquência econômica e corrupção, que deveria ser compreendida como mais um dos expedientes destinados a escapar dos ônus da regulamentação. O ponto seguinte que se pretende examinar trata da fraude no contexto de um ambiente econômico regulado. Para tanto conecta crime e regulação se socorrendo da análise econômica do direito. Segue, então, uma abordagem dos delitos relacionados à regulação econômica na perspectiva de descumprimento de normas (deveres)

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6 FERRIANI, Lino; tradução Henrique de Carvalho. Criminosos Astutos e Afortunados: estudo de psicologia criminal e social. Lisboa: Livraria Clássica Editora A. M. Teixeira, 1914.

impostos na conformação de um capitalismo socialmente regulado. Ademais, é analisada uma questão específica do delito de sonegação fiscal, tudo dentro da visão proposta no subitem anterior. Finaliza o capítulo com considerações sobre dois pontos relacionados aos delitos de fraude do Direito Penal Econômico, um panorama sobre os delitos contra o mercado de capitais e uma discussão sobre limites temporais de normas relacionadas ao pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade.

O trabalho encontra-se concluído de forma objetiva, secundando-se as ideias desenvolvidas nos capítulos precedentes.

Com o objetivo de tornar mais cômoda a tarefa de leitura e dar mais fluidez ao texto, optou-se, em grande parte do trabalho, por sintetizar no vernáculo as citações das fontes primárias consultadas em língua estrangeira. Contudo, algumas transcrições das obras doutrinárias foram lançadas no texto e, para manter a fidelidade do original e facilitar a crítica, foram preservadas tal como no original.

Ainda com relação às fontes, necessário justificar a forte presença do pensamento científico espanhol. Isso decorreu não apenas da conhecida tradição científica ibérica, mas, igualmente, em razão de instância investigativa encetada na Universidade de Sevilha. Tal contato mais direto com aquela doutrina, além disso, revelou um tipo de debate dogmático, que é fomentado por sucessivas reformas empreendidas no Código Penal, que poderia dar atualidade ao trabalho de pesquisa.

Importa salientar, por derradeiro, que o tema ora apresentado tem caráter inédito na nossa literatura jurídica.

Da pesquisa efetuada não foi encontrada, no Brasil, nenhum estudo aprofundando a discussão sobre o que é a fraude penal econômica, sua dinâmica e conformação. Há estudos e artigos relativos ao Direito Penal Econômico como um todo ou sobre temas pontuais relacionados a este ramo, mas não há um que entabule, tal como propôs Nelson Hungria para a fraude penal, as linhas gerais dentro das quais a especialização da fraude irá se desenvolver nos mais variados marcos regulatórios. A ciência penal não pode virar as costas à regulação econômica, nem pode deixar prevalecer a pura e simples lógica econômica.

Em razão disso e considerando que a questão reclama enfrentamento, conforme já mencionado, este estudo pretende oferecer subsídios para o aprimoramento da ciência jurídica brasileira.

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1. aproximação ao Direito penal econômico

1.1. consiDerações preliminares

Longe de se tratar de um privilégio do homem, a fraude é expediente presente na natureza, como logo percebeu a doutrina ao se referir à dissimulação do camaleão e ao mise em scéne da aranha que caça insetos.7 Na natureza, porém, a arte do engano parece se destinar ao cumprimento da sentença que move todos os seres vivos, manter-se vivo e reproduzir a vida. Os expedientes são os mais variados e se multiplicam a razão de distintas finalidades; vão da mais simples vida molecular aos primatas, nossos parentes mais evoluídos no reino animal. O engano estaria mais presente do que nossa crença possa imaginar.

O desafio de sobreviver e procriar com sucesso na natureza é um jogo de astúcia e agilidade, sorte e força bruta. A natureza é cega, perseverante e desprovida de escrúpulos. […] A arte do engano – o uso pelo organismo de traços morfológicos e de padrões de comportamento capazes de iludir e driblar os sistemas de ataque e defesa de outros seres vivos – é parte expressiva do arsenal de sobrevivência e reprodução no mundo natural. O sistema imunológico é um campo repleto de práticas de camuflagem, despiste e desinformação. […]. Alguns vírus, como o da pólio, certos tipos de gripe e talvez o HIV, acionam as defesas do organismo, mas entregam somente moléculas menores em sacrifício, servindo-se de táticas de camuflagem química para evitar o fogo hostil dos anticorpos sobre os alvos moleculares cruciais.Para que a polinização seja bem-sucedida, é espantoso o grau de requinte e sofisticação a que certas orquídeas chegaram na simulação dos apelos de determinadas fêmeas de insetos. Para as abelhas do gênero Andrena, por exemplo, o charme e o encanto das flores Opbrys litea superam os atrativos da fêmea real.8

O ambiente social é, neste contexto, apenas um favorecedor de tal realidade.

Já dizia Cícero que a lesão poderia ser levada adiante pela força ou pela fraude (Duobus modis, id est aut vi, aut fraude fit iniuria).9 Ao longo do tempo, alguns diziam a fraude, embora repugnante, uma “benção de Deus”, pois eliminaria a violência e o sangue derramados em muitas apropriações patrimoniais.10

Aligheri, contudo, no Canto XVIII, situava os fraudulentos, os aduladores, os

7 HUNGRIA, Nelson. Fraude Penal. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho (Editor), 1934, p. 13.

8 FONSECA, Eduardo Gianetti. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 19-21.

9 “Fravs, dis dolus, malitia, fallacia, machina, infidia, error, preFligiem calumnia, [...] Duobus modis, id eft aut vi, aut fraude fit iniuria”. (CICERO, Marcus Tullius. NIZZOLI, Mario. Nizolius Sive Thesaurus Ciceronianus. Hervag, 1576, p. 741. Disponível em: https://books. google. com. br/books/about/Nizolius_Sive_Thesaurus_Ciceronianus. html?id=cCxCAAAAcAAJ&redir_esc=y Acesso em 20/01/2020).

10 HUNGRIA, Nelson, op. cit. nota 7, p. 14.

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sedutores e os rufiões, merecedores da maior cólera de Deus, nas horripilantes malebolge do oitavo círculo do Inferno.1112

Se a fraude é uma realidade inafastável do homem e da natureza, parece ser no Direito Penal Econômico que ela se apresenta com toda a sua potência. Neste ramo jurídico, onde a correlação entre atividade comercial ou industrial e crime, que é suficientemente antiga13 –, a fraude manifesta em toda sua plenitude uma lesividade muito característica dos interesses que atinge.

E é por essa razão que se faz necessário revisitá-la, compreendê-la e, talvez, reconfigurá-la. Como advertiu Silva Sánchez14, a evolução cultural da sociedade, assim como o surgimento de novos sistemas gerais de pensamento tem sido um motor para a própria evolução do sistema da teoria do delito. No mesmo sentido, Salomão Shecaira15 já advertira para a necessidade de se transcender o âmbito estrito das normas penais e buscar contribuições do bloco de conhecimento das ciências criminais que abarcariam, para além da política criminal e da criminologia, a sociologia criminal, a antropologia criminal, a psicologia, entre outras disciplinas.

Nesta quadra o que se perquire é sobre a percepção geral da fraude no Direito Penal, em especial no delito de estelionato, e sua adequação para enfrentamento das questões no Direito Penal Econômico. Noutras palavras: deve o intérprete aprisionar-se nos limites teóricos da fraude relacionada à lesão patrimonial individual para compreender tais condutas?

Questões como ausência, ou falta de percepção, de lesão patrimonial individual, a detenção por parte dos potenciais destinatários da conduta de um certo grau de conhecimento, ou simplesmente a afirmação quanto à inexistência de intenção de fraudar podem, em última análise, acarretar a irresponsabilidade penal de pessoas que são, por essência, os responsáveis pela condução de toda uma estrutura orgânica.

11 ALIGHIERI, Dante. A DIVINA COMÉDIA – INFERNO; tradução Tradução José Pedro Xavier Pinheiro. São Paulo: Atena Editora, 1955. Disponível em: http://www. ebooksbrasil. org/eLibris/inferno. html Acesso em: 20/01/2020.

12 “En el Inferno de Dante [...] Gerión, que vigila el círculo octavo llamado Malebolge, assignado a los que ejercitaron el fraude contra los desconfiados, tiene cara de hombre honrado y busto también humano, pero cuerpo de serpiente ‘com pintado dibujo, patas con garras, cola ponzoñoza ‘con doble dardo de escorpión’. Gerión representa el fraude, es su ‘imagen malignante’. [...] es muy verosímil que haya intervenido para inspirar esta creación de Dante el nombre que el derecho romano y común le daban al fraude, llamándolo stellionatus, que deriva, precisamente, del stellio, cuya piel es maculada y abigarrada”. (TOLOMEI, Alberto Domenico; Traductor Conrado A. Finzi. La Estafa y outros fraudes. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1961, p. 17).

13 Remonta ao Império Romano a repressão à elevação irracional de preços por meio do estabelecimento de uma regulação de preços e, por conseguinte, do estabelecimento pelo imperador Diocleciano de sanções severas, como a pena de morte, a determinados expedientes especulativos. Neste sentido: FALCONÍ, Ramon García. Nueva delincuencia y nuevos delincuentes: las teorias de la criminalidad económica in FALCONÍ, Ramon García; SCHUNEMANN, Bernd; TERRADILLOS BASOCO, Juan María. Derecho Penal Económico, tomo I. 1. ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2012, p. 13.

14 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Teoría del delito y Derecho Penal Económico-Empresarial in SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MIRÓ LLINARES, Fernando, La Teoria del Delito en la Prática Penal Económica. Madrid: La Ley, 2013, p. 33.

15 SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2011, p. 45.

16

Compreender delitos que integram o Direito Penal Econômico invocando a aplicação pura e simples da compreensão dos delitos patrimoniais do Direito penal clássico16 pode parecer não apenas inconveniente, mas sobretudo inadequado. Ferriani17 se reportava a um tipo de criminalidade conhecido da sociedade, mas não castigada porque suas formas não chocavam a maioria da sociedade, eis que composta de consciências fracas, ou, ainda, porque sabiam defender-se com tamanha arte, apesar de não se ocultarem dos honestos. Tais criminosos gerariam no seio social a percepção vulgar: É um patife com sorte!

A compreensão do problema da fraude em Direito Penal Econômico parece depender, para um adequado enfrentamento, da observação de que a sociedade onde vivemos é marcada, segundo Simões18, por perspectivas filosóficas nascidas a partir dos descobrimentos, da Reforma e da Contrarreforma, do Iluminismo e da Revolução Francesa.

Somos, como sociedade, herdeiros de todo um processo de desenvolvimento filosófico e econômico que consolidou o que chamamos de razão moderna. A razão e a liberdade do homem passaram a ser os fundamentos precípuos de seu saber e de sua ação. O legado iluminista irrenunciável tornou-se o propulsor de avanços como direitos fundamentais, secularização e a separação entre Igreja e Estado.19

A condução a tal ordem de coisas se fez, também, por meio de instituições. Diferentemente de outros animais, que possuem “mundos próprios”, o homem não aceita a clausura e sempre se colocou “aberto ao mundo”, como afirma Machado.20 A ausência ou incipiência dos instintos e sua abertura ao mundo o tornou inseguro e desorientado, exposto à tentação e ao caos, como descrevem os antropólogos. Por essa razão, a necessidade de encontrar nas instituições a base do consenso sobre certo e errado, justo e injusto, o que vale e o que não vale para garantir a segurança na relação entre os homens.21

16 Por Direito Penal clássico se entende um modelo de Direito Penal liberal que, a par de estruturar uma série de garantias que ainda hoje desfrutamos, funcionou mais como um ideal teórico, do que propriamente uma etapa histórica. Neste modelo de Direito Penal, o roubo e furto, delitos associados às classes mais baixas se tornaram o eixo central do sistema penal ratificando um modelo que se estruturou a partir do conceito de propriedade privada. Sobre o tema: “Quando eu falo de “clássico”, eu quero dizer com isso que o objeto indicado situa-se na tradição da filosofia política do Iluminismo. “Clássico” no Direito Penal não se esgota, como de costume, em uma determinada época ou em um determinado número de objetos; “clássico” é também um ideal, uma representação de fim pela qual pode ser determinada para onde deve ir uma viagem, quais passos seguem na direção correta e quais seguem na direção errada [...]. ” (HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal. In: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 18, Fev-Mar/2003, p. 147).

17 FERRIANI, Lino, op. cit. , p. 14.

18 SIMÕES, Pedro Coelho. A supra-individualidade como factor de superação da razão moderna in COSTA; José de Faria. Temas de Direito Penal Econômico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 285.

19 SIMÕES, Pedro Coelho, op. cit. , p. 287.

20 MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. 1 ed. , 24. Reimpressão. Coimbra: Edições Almedina, 2017, p. 7.

21 MACHADO, João Baptista, op. cit. , p. 8.

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A emancipação dos interesses individuais, em especial os de natureza econômica, que tendem à exclusividade, propiciou o surgimento de uma nova forma econômico-social, o capitalismo e com ele a racionalização econômica de toda as atividades do homem nos mais variados âmbitos.22

Contudo, é de se indagar se liberdade, razão e interesses exclusivamente individuais seriam capazes de nos conduzirem a um mundo melhor e mais adequado para se viver, ainda que se lhes reconheça toda uma contribuição para a compreensão do mundo que hoje se tem.

Há quem pense, nesse contexto, que mercados livres seriam a melhor solução para o problema de atendimento das demandas humanas23 e que a globalização é uma etapa no alcance de tal ambiente de liberdade. Contudo, afirma Zaffaroni24 que a globalização seria tão somente um fenômeno que sucede ao colonialismo e ao neocolonialismo na perspectiva do desenvolvimento da exploração econômica e que poderiam estar associados, cronologicamente, aos limites temporais demarcados pela revolução mercantil (séc. XIV), industrial (séc. XVIII) e tecnológica (séc. XX).

Na quadra do presente estudo não se deve olvidar que o Direito Penal, enquanto elemento da história, é parte dessa realidade globalizante, o que lhe submete a tensões. Ademais, a globalização, como se verá, atinge com vigor conceitos como Estado, nação e coesão social, que estão diretamente conectados com o Direito Penal, e faz dos problemas e das consequentes reflexões doutrinárias de vários países cada vez mais comuns, ainda que não abandone seu caráter lesivo, a mais das vezes, local.

1.2. orGanização social e crime: como a socieDaDe controla o comportamento inDeseJaDo

O ser humano é um ser gregário, não vive isolado, e disso decorre que onde quer que se observe a sociedade, independentemente do tempo e lugar, haverá ali poder e coerção como forma de estabelecer um modo de funcionamento do grupo.25 Tomada nessa perspectiva, parece inerente à própria organização social,

22 SIMÕES, Pedro Coelho, op. cit. , p. 291.

23 Sobre o tema, numa defesa da liberdade individual para viabilizar a realização das mais variadas atividades: FRIEDEMAN, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1962, p. 20-26.

24 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; REP, Miguel. La academia, los medios y los muertos - La cuestión criminal. 6. ed. Buenos Aires: Planeta, 2015, p. 17.

25 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; REP, Miguel. El poder punitivo y la verticalización social - La cuestión criminal. 6. ed. Buenos Aires: Planeta, 2015, p. 30.

18

ressalvada uma perspectiva marxista, como destaca Bobbio26, a existência de uma função repressiva a quem cumpre conter o comportamento desviante.27

Nesta senda, a história da regulação de comportamentos humanos, da coerção por parte do Direito Penal, pode ser tomada como a história do manejo da violência.28 Estejamos diante de condutas delituosas representativas da ação violenta (homicídio, roubo, extorsão, terrorismo), ou, ainda, da ação do Estado (penas privativas de liberdade, medidas de segurança, etc.), é de violência que se trata.29

O modo como são selecionadas as condutas, as respostas que se lhes apresentam, a identificação dos possíveis autores e vítimas do delito, tudo isso não passa do modo institucionalizado pelo qual o Direito Penal realiza o controle social. Não deixam, porém, de representar o postulado da legalidade, a quem cabe definir crimes e penas, e não, simplesmente, a qualificar como tais determinados comportamentos.30Não se olvide, entretanto, diante da realidade posta, que a violência é instrumento manejado, também, para a defesa de interesses ilegítimos. É o que ocorre, por exemplo, na atuação de variados grupos criminosos, quer se encontrem dentro do paradigma mafioso31, ou não.

Contudo, a formalização do controle imprimiu ao Direito Penal uma característica que o distanciou da surpresa, da espontaneidade, das conjunturas e da subjetividade de outros sistemas de controle social.32O longo processo de desenvolvimento deste instrumento de controle social foi marcado, muitas das vezes, pelo arbítrio. Não foram poucos, como assenta Lyra33, os que se intitulando representantes de Deus e, por vezes, até mesmo cumulando funções de rei e sacerdote, se valeram do citado instrumento para explorar e oprimir. Promovia-se uma confusão entre crime e pecado, entre criminoso e pecador e, por fim, entre pena e uma pretensa “vingança divina”.

De forma mais estruturada, o Direito Penal canônico promovia uma diferenciação (ou desqualificação) de determinadas pessoas que eram objeto de excomunhão servindo de paradigma para o modelo de intervenção penal que

26 BOBBIO, Norberto;

Editora UNESP, 2006, p. 261.

27 Dentro de uma postura político-criminal abolicionista o que se busca é outra forma de composição do conflito que não o “ilegí- timo” Direito penal. Neste sentido esclarecem: SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 10.

28 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCIA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal: Parte General. 9. ed. Valencia: Tirant to blanch, 2015, p. 31.

29 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCIA ARÁN, Mercedes, op. cit. nota 28, p. 31-32.

30 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo I, 4ª Edição. Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 13.

31 CASTALDO, Andrea R. La criminalidad organizada en Italia: la respuesta normativa y los problemas de la praxis. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 27, jul-set. 1999, p. 11-19.

32 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCIA ARÁN, Mercedes, op. cit. nota 28, p. 31-32.

33 LYRA, Roberto. Economia e Crime. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Fº (editor), 1933, p. 10-11.

19
organização Carlo Violi; tradução Marco Aurélio Nogueira. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo:

politizou o pecado e sacralizou o delito34, o que reforça a percepção de que pouco se discutia em torno da legitimidade da coerção.35

A distinção de tratamento dispensado a determinadas pessoas como os não livres36, ou os estrangeiros37, exprimiu um tipo de opção política em torno da coerção e, como é intuitivo, uma seleção dentre os potenciais criminosos. Parece, contudo, inconteste, que comportamentos humanos passíveis de qualificação como crime são um recurso ilimitado38 e tudo depende do momento histórico e, ainda, do modo como se conforma a organização social. Por tais razões não era estranha a existência, no Império Romano, de um delito que embutia a ideia de fraude em relações econômicas, a adulteração de alimentos.39 A transição do feudalismo para o capitalismo, entre os séculos XIV e XV, revelou como era possível administrar o sistema penal para conter determinados comportamentos das classes menos favorecidas.

A agitação entre os pobres das cidades e dos campos se espalhou ao longo do século XV. Tendo como pano de fundo o aumento da liberdade de expressão, começou a tomar corpo uma consciência quanto aos efeitos do excludente sistema social propiciando o aumento dos conflitos sociais. Como reação a tais conflitos foram criadas leis criminais duras que eram, forçosamente, dirigidas às classes subalternas. Novos métodos foram implantados para tornar mais efetiva sua aplicação emergindo ali uma vigorosa tutela da propriedade privada no interesse da burguesia urbana que aflorava.40

A correlação entre modo de operação do sistema penal e os interesses das classes dominantes era tal que, em economias escravistas, a escravidão aparecia entre as modalidades de pena para atender à demanda por mão de obra.4142 Con-

34 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2ª Edição, 2002, p. 163-168.

35 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; REP, Miguel, op. cit. nota 25, p. 30.

36 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; REP, Miguel. No todos son gente como la gente - La cuestión criminal. 6. ed. Buenos Aires: Planeta, 2015, p. 81/82.

37 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Presos Estrangeiros no Brasil – Aspectos jurídicos e criminológicos. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2007, p. 9/10.

38 “O crime está em permanente oferta. Atos passíveis de criminalização são como recurso natural ilimitado. Pouco pode ser considerado crime – ou muito. Atos não são, eles se tornam; seus significados são criados no momento em que ocorrem. Avaliar e classificar são atividades essenciais aos seres humanos. O mundo nos vem na forma em que o constituímos. O crime, portanto, é o produto de processos culturais, sociais e mentais, Para todas as condutas, inclusive aquelas tidas como indesejáveis, há dúzias de alternativas possíveis para sua compreensão: perversidade, loucura, honra distorcida, ímpeto juvenil, heroísmo político – ou crime”. (CHRISTIE, Nils; tradução André Nascimento. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, Coleção Pensamento Criminológico, p. 29).

39 TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal y nuevas formas de criminalidade, 2ª Edición. Lima: Editora Jurídica Grijley, 2007, p. 4-5

40 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto; tradução Gizlene Neder. Punição e Estrutura Social, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Revan/ICC, 2004, p. 31-33.

41 “Quando nos voltamos para os fatores condicionantes positivos, podemos ver que a simples constatação de que formas específicas de punição correspondem a um dado estágio de desenvolvimento econômico é uma obviedade. É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista (...) Portanto, se numa economia escravista verifica-se uma situação de escassez de oferta de escravos com a respectiva pressão da demanda, será difícil ignorar a escravidão como método punitivo”. (RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, Tradução: Gizlene Neder, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20).

42 Registra a doutrina que no Direito Penal Visigótico a escravidão aparecia ao lado do exílio como penas restritivas da liberdade: BATISTA, Nilo, op. cit. nota 34, p. 118.

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