
Organizadores

Maria Izabel Vasco de Toledo
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
Organizadores
Maria Izabel Vasco de Toledo
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
hispano-brasileiras
Copyright© Tirant lo Blanch Brasil
Editor Responsável: Aline Gostinski
Assistente Editorial: Izabela Eid
Diagramação e Capa: Analu Brettas
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:
Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México
JuarEz tavarEs
Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Luis LóPEz GuErra
Ex Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha
owEn M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA
toMás s. vivEs antón
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D635
Direito penal dos animais não humanos [recurso eletrônico] : reflexões hispano-brasileiras / Agda Roberta Farias Frare [et al ] ; organização Maria Izabel Vasco de Toledo, Pedro Paulo da Cunha Ferreira - 1 ed - São Paulo : Tirant Lo Blanch, 2023
recurso digital ; 1 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5908-654-2 (recurso eletrônico)
1. Animais - Proteção - Legislação - Brasil - Disposições penais. 2. AnimaisProteção - Legislação - Espanha - Disposições penais. 3. Direito comparado. 4. Livros eletrônicos. Frare, Agda Roberta Farias. II. Toledo, Maria Izabel Vasco de. III. Ferreira, Pedro Paulo da Cunha.
23-85966
CDU: 343 58:351 765(81+460)
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
DOI: 10.53071/boo-2023-09-04-64f63e660aa10
04/09/2023 11/09/2023
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.
Fone: 11 2894 7330 / Email: editora@tirant.com / atendimento@tirant.com tirant.com/br - editorial.tirant.com/br/
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Organizadores
Maria Izabel Vasco de Toledo
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
reflexões
hispano-brasileiras
Autores
Agda Roberta Farias Frare
Andressa Vieira Cupertino
Arthur Henrique de Pontes Regis
Baónandje António Silva Biaguê
Camila Damasceno de Andrade
Edna Cardozo Dias
Esther Hava García
Isabele Bruna Barbieri
Laerte F. Levai
Leatrice Faraco Daros
Lucas Eduardo de Lara Ataide
Maria Izabel Vasco de Toledo
Nivea Adriana da Silva Orso
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
Rafael Fernandes Titan
Samory Pereira Santos
Tagore Trajano De Almeida Silva
Vicente de Paula Ataide Junior
A cada animal vítima da ignorância e da maldade humana, num desejo profundo por um mundo melhor.
Maria Izabel Vasco de ToledoAo nosso cão Beijamin, fonte inesgotável de ternura e afeto; Por tudo que nos tem oferecido ao longo dos anos de amável convívio.
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
Em 2023, ano de publicação deste compêndio sobre a proteção penal dos animais não humanos, a Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98) completa 25 anos de vigência, e se encontra na atualidade reformada por algumas alterações e conectada a uma numerosa jurisprudência derivada da aplicação prática de suas disposições normativas.
Com a maestria e perspicácia de seus autores, esta obra aborda a referida Lei como eixo principal, e em especial a Lei n. 14.064/20, que alterou o crime de maus-tratos, tipificando sua forma qualificada com relação a cães e gatos. A “Lei Sansão” foi assim denominada em virtude do caso de maus-tratos contra o cão “Sansão”, da raça pitbull, que foi agredido, amordaçado com arame farpado nos focinhos e teve suas patas traseiras decepadas, gerando grande revolta popular e comoção social. O principal objetivo da lei foi, ao elevar a pena do crime de maus-tratos contra cães e gatos, subtraí-lo da competência dos Juizados Especiais Criminais e da esfera dos crimes de menor potencial ofensivo.
O dispositivo, apesar de inegavelmente configurar um avanço na proteção penal dos animais não humanos, suscitou inúmeras críticas, principalmente relacionadas à limitação da qualificadora a cães e gatos, ao princípio da proporcionalidade em comparação com os crimes contra seres humanos, além da discussão sobre a possibilidade de aplicação do Acordo de Não Persecução Penal.
Também no ano de 2023, a Constituição Federal celebra 35 anos. Imprescindível se faz mencionar seu art. 225, §1º, VII, que consiste em um importante marco para os direitos dos animais no Brasil, ao preconizar a vedação de atos cruéis contra (qualquer) espécie animal não humana. Não obstante a clareza de sentido da referida norma, a legislação infraconstitucional insiste em distorcê-la, ao proteger sob o véu antropocêntrico certas práticas intrinsicamente dolorosas, porém disfarçadas, muitas vezes, de “manifestações culturais”.
Certo é que a Constituição Federal carrega em si a consideração dos animais como sujeitos de direitos e, como consequência, sujeitos passivos de crimes, resultando na insustentabilidade do enquadramento dos animais na categoria de meros objetos materiais de delitos.
Desta forma, compreende-se que o presente momento histórico é de grande relevo na reflexão sobre as mais diversas questões relacionadas à proteção penal dos animais, assim como a (re)formulação sobre o pensamento crítico acerca dos desdobramentos da legislação aplicável, seus avanços e correspondentes retrocessos.
Neste contexto, reputa-se também de elevada importância, a apresentação de considerações dogmáticas, criminológicas e político-criminais sobre a regulação predisposta e, outrossim, a maneira como se disciplina a tutela penal do ambiente no País, a fim de que se possa sugestionar as mudanças necessárias a serem efetivadas no aperfeiçoamento da política criminal e, no particular, o aprimoramento dos mecanismos penais concernentes à proteção jurídica dos animais não humanos no Brasil.
No espectro desta legislação nacional, destaca-se a sua importante função de consolidar o sistema de Direito positivo através do qual se consagra a proteção penal dos animais não humanos, amparada por bases constitucionais que reconhece a estes, a condição de titulares de bens jurídicos alvos de proteção legal (constitucional e infraconstitucional) no Direito brasileiro.
Por todas as razões acima expostas é que o Núcleo de Estudos e Pesquisas Históricas e Comparadas em Ciências Penais - projeto de pesquisa permanente da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG – Diamantina) -, apresentou proposta acadêmica de alcance nacional e internacional para a construção de obra coletiva destinada a reunir, em volume único, as mais atuais contribuições científicas sobre a proteção penal dos animais não humanos, seja em referência ao campo normativo sobre a matéria, seja em relação ao âmbito doutrinário ou relativo à esfera da jurisprudência, divisados à luz, tanto do ponto de vista do Direito interno quanto desde a perspectiva do Direito comparado.
A concretização deste pretensioso projeto apresenta-se com a publicação do livro que o leitor tem em mãos, e que reúne trabalhos produzidos por autores que contribuíram para a edificação da categoria jurídica do Direito Animal no Brasil e que atuaram na estruturação, aprovação, aplicação, interpretação, efetividade e crítica à salvaguarda penal dos animais disciplinada no ordenamento brasileiro através da Lei 9.605/98.
Os trabalhos integrantes desta obra são elaborados por pesquisadores e pesquisadoras que se dedicaram ao exame de diversos aspectos da tutela penal dos animais implementadas no Brasil, sobretudo a partir da promulgação da citada legislação e paralelamente, aquelas efetivadas na Espanha em matéria de proteção penal do bem estar animal nos últimos anos.
Dentre o repertório de abordagens que compõe o livro, é possível destacar temáticas como: a tutela penal do bem-estar animal na Espanha; a condição do animal não humano senciente como titular de bens jurídico-penais; a política criminal brasileira e crueldade contra animais; o crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos; a tipicidade das condutas omissivas no crime do art. 32 da Lei 9.605/98; o postulado do princípio da proporcionalidade à luz do Direito
Penal animal no Estado Democrático de Direito; ações contra veículos de tração animal: lampejos abolicionistas na justiça paulista; pesca esportiva: a violação à dignidade dos peixes e a prática de crime ambiental; a proibição de guarda em crime de maus-tratos contra cães e gatos; a tutela jurídica dos animais não humanos e o crime de maus-tratos no Direito brasileiro em perspectiva comparativista; o antropocentrismo, o Direito Penal e os animais não humanos como vítimas de crime. A propósito, sobre a coletânea de trabalhos aqui presentes, cumpre destacar sê-la encerrada por um trabalho externo à temática central da obra, porém que, demais de subscrito por autor referência no estudo do direito animal, encontra-se, igualmente comprometido com a pauta ambiental, já que dispõe sobre o eco-feminismo na África e a experiência da líder ambiental Wangari Muta Maathai como primeira mulher a vencer o prêmio Nobel em 2004.
São trabalhos que, consoante assinala o título desta obra, fazem um convite à reflexão sobre os desafios dogmáticos e as novas perspectivas de política criminal para a proteção penal dos animais não humanos. Simultaneamente, sugerem correções jurídicas de acerto, apontam novos caminhos para a tutela penal desta categoria animal, recomendam limites adequados à dogmática penal, bem como ajustes compatíveis à concernente política criminal.
Os textos aqui compilados revelam o estado da arte sobre o objeto central da proposta e estão organizados sobre dois eixos principais: o do Direito espanhol e o do Direito brasileiro, ambos orientados por enfoques transversais de política criminal, dogmática penal e inovadoras ponderações de cunho criminológico.
O primeiro eixo se fundamenta sobre a importantíssima contribuição da notável professora espanhola, Esther Hava García, que apresenta ao público profundo e completo trabalho de pesquisa sobre o atual panorama da tutela penal do bem-estar animal na Espanha.
No segundo eixo estrutural da obra situam-se os trabalhos de autoras e autores nacionais e qualificados por uma ampla diversidade regional de produção acadêmica, contando com pesquisas desenvolvidas em diferentes estados da federação, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Bahia, Santa Catarina, Paraná e Brasília/DF.
São trabalhos cuja produção resultam do labor científico de figuras como Laerte F. Levai, Edna Cardozo Dias, Vicente de Paula Ataide Junior, Lucas Eduardo de Lara Ataide, Samory Pereira Santos, Rafael Fernandes Titan, Tagore Trajano De Almeida Silva, Baónandje António Silva Biaguê, Arthur Henrique de Pontes Regis, Nivea Adriana da Silva Orso, Agda Roberta Farias Frare, Andressa Vieira Cupertino, Leatrice Faraco Daros, Camila Damasceno de Andrade e Isabele Bruna Barbieri. Além do mais, a propósito destas contribuições autorais, salienta-se, por fim, igualmente, a participação dos organizadores deste livro.
A proposta da obra “Direito Penal dos animais não humanos: reflexões hispano-brasileiras” é, em suma, propiciar uma compreensão pluralista sobre a tutela animal no Brasil e Espanha para o enfrentamento dos desafios jurídico-penais e das complexas questões de política criminal subjacente. A obra constrói-se com base em exposições críticas e conectadas à realidade atual, e demonstra a preocupação de professores, juízes, promotores, advogados e pesquisadores que vivenciam e/ou reflexionam sobre os problemas em torno da proteção jurídica dos animais não humanos.
Por derradeiro, destacamos nossos sinceros agradecimentos a todas e a todos que colaboraram com a construção deste projeto, bem como à editora Tirant lo Blanch pelo primoroso trabalho gráfico e cuidado na confecção da obra.
Diamantina (MG)/Campinas (SP), 29 de junho de 2023.
os orGanizadorEs.
É uma honra ser convidado a apresentar este livro, que reúne pesquisas jurídicas sobre a proteção criminal de animais não humanos. Há alguns anos, nosso ensaio sobre o assunto foi publicado em português, com um prefácio de Leonardo Boff que foi tão elogioso quanto imerecido1. É da mesma perspectiva desse ensaio que agora lemos estas pesquisas, que nos informam sobre os últimos desenvolvimentos legislativos e as discussões que estão sendo geradas a esse respeito.
É pouco menos que inegável que desenvolvimentos –como os de este livrogerarão diferentes reações entre os leitores, especialmente entre os colegas do direito penal, uma vez que a questão dos direitos não humanos dos animais suscita reações que vão do desnorteamento ao desprezo e à ironia, esta última atitude geralmente coberta pela reflexão, às vezes meramente superficial, mas outras vezes também hipócrita, que pergunta por que não priorizar a proteção dos direitos dos animais humanos.
Deixando de lado a hipocrisia - ou o cinismo - daqueles que também não se preocupam realmente com a proteção dos animais humanos, tanto a perplexidade quanto a reflexão superficial respondem ao fato de que o mutante quadro cultural e civilizatório em que esses problemas são inseridos ainda não é compreendido, o que é a questão fundamental e que, aliás, excede em muito o espaço limitado do puramente jurídico.
O direito em geral - e o direito penal em particular - é sempre um produto político que não pode escapar do complexo cultural de seu tempo. Portanto, quando os tempos se aceleram, a cultura se torna dinâmica e muda, e os valores anteriormente consagrados falham ou caem, suas repercussões jurídicas são inevitáveis e a confusão e a tendência à reflexão insuficiente ou à não-reflexão é generalizada. Estes últimos fenômenos são, portanto, o resultado de uma anomalia civilizatória que envolve o puramente jurídico.
É muito difícil determinar o que é racional e o que é seu oposto, porque a cultura expandida a partir do eurocentrismo afirma ter o monopólio da racionalidade e, mais ainda, reservá-la exclusivamente para os seres humanos e, não satisfeita com isso, apenas para os seres humanos que compartilham essa cultura e têm pouca melanina e, dependendo se seus ideólogos em algum momento
histórico tornam a questão mais ou menos extrema, não mesmo para todos eles, mas apenas para aqueles entre eles que formam suas burguesias e elites ou são funcionais para elas. O resto é supostamente feito para cair na irracionalidade, tudo isso faz parte da natureza destinada a ser dominada pelo animal humano, à qual também correspondem em parte os animais que não são considerados inteiramente humanos, que assim subumanizam, a começar pela metade de nossa espécie: as mulheres. Neste quadro civilizador, é absurdo pensar que todos os animais humanos são pessoas, isto é, sujeitos de direitos só porque são humanos, e, no extremo do absurdo, ainda mais, pensar que os animais não humanos também são pessoas.
É óbvio que nós, juristas, somos animais humanos e, portanto, estamos-ali, existimos, num tempo e num espaço, cultivados e treinados na estrutura da nossa civilização. O conhecimento jurídico, no qual somos treinados e que reproduzimos, não deixa de sofrer os efeitos da colonialidade2, pois ele responde substancialmente aos valores eurocêntricos impostos pelo colonialismo e pelo neocolonialismo com seus genocídios e sua ciência determinada a dominar a natureza e tudo o que considera irracional, não-humano e sub-humano.
Hoje, o colonialismo ainda está vivo e, de acordo com sua natureza sempre camaleônica, apresenta-se sob a forma de uma nova versão, correspondente à transformação da economia de produtiva para financeira, legitimando-se com a chamada ideologia neoliberal, que postula sua concepção antropológica grosseira do homo economicus, governado ou submetido em todos os aspectos de sua existência à lei da oferta e da procura, da obtenção do maior lucro pecuniário.
Este talvez seja o ponto alto – extremo - da civilização colonizadora eurocêntrica e, ao mesmo tempo, de sua crise. O desenvolvimento tecnológico acelera a crise, porque não se trata mais de possíveis genocídios localizados, mas a depredação da natureza coloca a própria possibilidade de extinção de toda a vida ou, pelo menos, da vida humana no planeta.
Na superfície, a proteção da natureza - sob o nome do meio ambiente - é uma coisa, e a proteção dos animais não humanos contra a crueldade dos animais humanos é outra. Entretanto, embora levantem questões técnicas diferentes no plano jurídico, elas têm uma essência comum porque, quando conseguimos superar a colonialidade, ou seja, a forma como o poder moldou nossa psicologia e nossos valores, não podemos deixar de perceber que são manifestações de uma reação comum contra discriminações que precisamente essa colonialidade nos faz considerar como normais ou normalizadas.
Nós, animais humanos, não estamos sofrendo uma crise social e outra ambiental, mas uma única crise socioambiental3, que sofremos juntamente com animais não humanos cujas espécies estão se extinguindo em consequência da mesma crise. A partir desta perspectiva global da crise, é impossível imaginar a sua superação se nos limitarmos a reivindicar a proteção e defesa de nosso ambiente humano a partir da mesma posição antropocêntrica que alimenta a cultura do suposto racionalismo colonizador.
Nosso meio ambiente, o dos animais humanos, não é outro senão o mesmo dos animais não humanos e, além disso, tanto nós quanto os não humanos fazemos parte da natureza. Assim como a natureza não é para cães, gatos, cavalos, peixes ou elefantes, também não é para animais humanos: estamos todos nela, somos e estamos, porque não podemos ser sem estar, o que muitas vezes não é claro em línguas onde ambos os verbos são expressos com a mesma palavra.
Não podemos ignorar que fazemos parte da espécie mais agressiva de todas. Nenhum animal destruiu mais animais de sua própria espécie e de outras do que os animais humanos, porque nós nem sequer nos reconhecemos um ao outro. Foi somente em 1948 que os líderes de nossos rebanhos se reuniram para declarar que todos os animais humanos pertencem à mesma espécie e que temos alguns direitos elementares só porque pertencemos à nossa própria espécie. Isto não impediu que um dos evangelistas mais reverenciados da ideologia perversa do colonialismo tardio de hoje dissesse, anos depois e em um panfleto desprezível, que é um equívoco comum que cada um de nós tem alguns direitos só porque nascemos4. Todos os animais não humanos se reconhecem e instintivamente se comportam com cuidado para a preservação de suas respectivas espécies. Nós declaramos isso há poucos anos e nem mesmo o cumprimos, pois continuamos a nos destruir e a destruir aos não humanos, de acordo com os valores normalizados em nossas mentes pela colonialidade eurocêntrica.
Uma vez superado o antropocentrismo, o respeito por todas as coisas vivas e sencientes é imposto a nós. Esta ética de respeito pelos vivos não é totalmente estranha aos animais humanos, como podemos verificar nas mais distantes culturas colonizadas, desde algumas na Índia até nossa Pachamama, e também em alguns dos cumes do cristianismo, como São Francisco. O respeito por outros animais não é, portanto, estranho aos animais humanos, sua ignorância não está em nossa condição humana; é apenas o produto de uma cultura e de uma civilização predatória que causou a morte de muitos milhões de animais humanos e
de muitos outros animais não humanos em todo o planeta, traduzindo-se como a força aniquiladora do colonialismo eurocêntrico.
Tudo isso nos revela que a proteção da natureza e a proteção dos animais não humanos contra a crueldade humana não são duas questões distintas, mas duas manifestações do mesmo dever de respeitar os outros e a nós mesmos, diante da civilização suicida que quer nos levar ao nosso desaparecimento do planeta.
Esta é a mesma civilização que, até não mais de três séculos atrás, ou seja, um segundo na vida de nossa espécie e uma pequena fração de segundo na vida terrestre, penalizou o comportamento de animais humanos que não afetaram os direitos de nenhum outro animal humano e muito menos de todos os não-humanos. Só muito recentemente - e ainda em discussão por alguns teóricos - prevaleceu o princípio de lesividades, segundo o qual pressupõe-se que todo crime afeta os bens jurídicos de outra pessoa.
Quando confrontado com a criminalização dos maus-tratos a animais não humanos e crimes contra o chamado meio ambiente, muitas vezes se pergunta quem é o titular desse bem jurídico, quem é a pessoa afetada. O colonialismo nos acostumou à ideia de que nem os animais não humanos nem a natureza podem ser pessoas. Temos dificuldade em superar esta ideia, na qual há muito fomos treinados pelo colonialismo eurocêntrico. É por isso que fazemos as mais estranhas piruetas racionalizadoras para evitar reconhecer que a natureza e os animais não humanos também são pessoas, ou seja, são detentores de alguns direitos, não os mesmos que os humanos, mas direitos não obstante.
É óbvio que está-nos custando um grande esforço para reconhecer isto, já que não conseguimos nem mesmo o reconhecimento na prática da condição de pessoa de todos os animais humanos, e que - como vimos - até mesmo algum economista esclarecido o nega em um panfleto amplamente divulgado. Esta é a razão básica da perplexidade e superficialidade que permeia o mundo jurídico e que, obviamente, vai muito além da ciência jurídica, já que o envolve, como produto de uma civilização em plena crise.
Devemos entender que estamos em um abalo cultural de valores, pois, deixando de lado os ideólogos neoliberais do suicídio da humanidade, há outros do próprio Norte colonizador que alertam para a iminência do desastre e, de nossa parte, do Sul colonizado, nossas culturas nativas respondem já o sabíamos antes de sua chegada e de seus genocídios.
Mas o que isso tem a ver com a proteção privilegiada de cães e gatos ou de animais domésticos ou domesticados? Teríamos a impressão de que este é um surto que obedece a algum sentimentalismo particular sem qualquer explicação lógica. Mas aqui a resposta é dada pela própria dogmática penal. De acordo com o princípio de ofensividade, vimos que todo crime pressupõe que um bem jurídico
de outra pessoa seja afetado. Os tipos penais são classificados nas partes especiais dos códigos de acordo com os bens legais que são lesados ou ameaçados. Assim, a lei penal exige que a respectiva conduta criminosa afete esses bens jurídicos. Mas o conteúdo injusto de cada crime - ou seja, sua gravidade - não se limita a este dano necessário, mas na realidade social quase todos os crimes são pluriofensivos: um roubo pode não só prejudicar a propriedade da coisa, mas também impedir o proprietário de trabalhar se for seu sustento, pode levar à subnutrição para ele e sua família se for a fonte de produção de alimentos, pode levar à perda de um longo trabalho se for um computador que o contenha, etc. Uma lesão física pode privá-lo de uma capacidade de trabalho especial se for a mão de um pianista, pode fazê-lo perder uma viagem ou uma oportunidade de trabalho se for um artista, etc.
Todas estas afetações de outros bens jurídicos são levadas em consideração pelo direito penal para quantificar a magnitude do ato ilícito cuja culpabilidade deve ser medida a fim de concluir que é um crime. Em outras palavras, é o conjunto de afetações de bens jurídicos -e não apenas a afetação necessária daquele que o código classifica - que indica a gravidade do ato ilícito. De acordo com o que foi dito, no caso de cães, gatos e animais domésticos ou domesticados, deve ser calculado se, além da lição ao animal não humano, os bens jurídicos dos animais humanos com os quais eles vivem de forma familiar e geram afeto humano não são afetados. O maior injusto penal é, portanto, explicado pelo perigo ou dano a esses bens jurídicos humanos, sem prejuízo do dano tipicamente exigido ao bem jurídico do animal não humano. Não podemos ignorar o fato de que houve casos em que a morte do animal não humano vivendo com o ser humano causou a este último consequências muito graves para sua saúde, não apenas psicológica, mas também física e até mesmo letal. Crianças e idosos são particularmente vulneráveis a este tipo de crime, o que é um fato que a lei não pode ignorar. É claro que haverá aqueles que são alheios a estes sentimentos, pois diferentes subculturas e valores grupais coexistem em uma sociedade democrática e pluralista, mas o respeito por todos eles exige também o respeito por aqueles que abrigam estes sentimentos.
As questões levantadas pelos autores destes trabalhos sobre seus próprios textos legais são, em certa medida, comuns às que circulam hoje em dia no direito penal comparado. As objeções à proteção dos animais não humanos e seu reconhecimento como detentores de direitos e, portanto, de bens jurídicos, quando não são resultado de perplexidade ou pensamento superficial, nada mais são do que a defesa da ideologia que procura justificar o suicídio da civilização colonizadora. Na nossa posição geopoliticamente desfavorável, é mais fácil entender isto, embora não signifique que não seja mister de um esforço do pensamento, tarefa na qual somos perturbados pelo aturdimento único da mídia do suposto senso
comum da normalização colonial. Entretanto, os maiores avanços no conhecimento sempre foram feitos contra o chamado senso comum: não era razoável pensar que a Terra era redonda se víssemos tudo como plano; nem que a Terra girava ao redor do sol, se fosse óbvio que o sol sempre girava ao nosso redor; era absurdo pensar que a Terra girava em seu eixo, se estivéssemos sempre no mesmo lugar. Poderíamos continuar, e é claro que o senso comum da colonialidade também finge que é óbvio que os animais não humanos não são pessoas. Mas são, porque, caso contrário, nós também não seriamos pessoas.
E. raúL zaFFaroni Professor EméritoCon independencia de las actitudes y sentimientos que personalmente se tengan ante los animales y su bienestar, nadie podrá negar la significativa evolución que a lo largo de los últimos 25 años ha experimentado el ordenamiento y la sociedad española respecto de su necesidad de tutela. En el ámbito penal, y como fruto de esa evolución, la punición de los maltratos a animales en España ha pasado de ser una figura casi anecdótica a un tema de indudable relevancia.
En este contexto, también parece claro que una de las cuestiones más controvertidas ha sido la concreción de qué es lo que hay que proteger a través de estas infracciones penales, interrogante que guarda relación directa con otro no menos importante: el de cómo hay que protegerlo. Las respuestas dadas, con mayor o menor acierto, por el legislador penal español a estas cuestiones se han traducido en diversas reformas de la regulación de los comportamientos de maltrato a animales, que han pasado de constituir una sola falta penal (en 1995) a estructurarse en varias figuras delictivas, con sus correspondientes tipos básicos y agravaciones específicas (en la actualidad).
En todos estos “devaneos legislativos” puede percibirse una cierta preocupación por dar respuesta a los grupos sociales de presión que desde antiguo vienen reclamando el reconocimiento de cierto estatus protector a los animales (el denominado “bienestar animal”2), aunque ciertamente la perspectiva tuteladora ha ido aumentando en intensidad, lo que ha permitido a su vez ir matizando la conceptuación del objeto de protección penal. Así, en un primer momento se pretendía solo evitar el maltrato cruel de determinados animales (los domésticos) en espectáculos no autorizados, lo que parecía corresponderse con un bien jurídico difuso relacionado de forma más o menos directa con la moral, las buenas
1 Catedrática de Derecho Penal; Universidad de Cádiz (España)
2 La Organización Mundial de Sanidad Animal (OIE), define desde hace tiempo el bienestar animal como “el estado físico y mental de un animal en relación con las condiciones en las que vive y muere”. Entre las directrices que guían a la OIE en materia de bienestar animal se incluyen las “cinco libertades”, enunciadas en 1965 y universalmente reconocidas, para describir las obligaciones del ser humano respecto a la forma en la que los animales viven: “libre de hambre, de sed y de desnutrición; libre de terror y de angustia; libre de molestias físicas y térmicas; libre de dolor, de lesión y de enfermedad; libre para manifestar un comportamiento natural”. Al respecto véase: https:/ / www. woah. org/ en/ what- we- do/ animal- health- and- welfare/ animal- welfare/ (consultado el 2 de enero de 2023).
costumbres o los sentimientos humanos (el dueño podía hacer con el animal, en su casa o en su granja, lo que quisiera, siempre que no lo hiciera públicamente y sin autorización, pues “ojos que no ven, corazón que no siente”).
Posteriormente, la demostración en los medios de comunicación de hasta qué punto podía llegar la crueldad humana aplicada “en privado” a determinados animales, provocó una intensificación de la tutela penal otorgada a los domésticos y la elaboración de nuevas teorías sobre el bien jurídico protegido con el fin de superar las evidentes deficiencias de las conceptuaciones basadas en meros sentimientos.
A partir de ahí, y siguiendo el ritmo marcado por determinadas reivindicaciones sociales, tanto las reformas legislativas como las tesis dogmáticas han ido evolucionando en paralelo hacia una ampliación (las primeras) y fundamentación (las segundas) de la intervención punitiva frente al maltrato de animales pertenecientes a un grupo cada vez mayor (animales domésticos, amansados, los convivientes con el ser humano… aquellos que no viven en estado salvaje).
Como es lógico, esos cambios en el modo de percibir y valorar a los animales también se han manifestado en el ámbito de la Ética y la Filosofía Moral, y de hecho algunas obras de esta naturaleza han influido de forma decisiva tanto en la concienciación social sobre la necesidad de protegerlos como en las sucesivas reformas legales abordadas para ello3. Dentro de este ámbito, el debate parece plantearse en la actualidad entre dos concepciones diferentes de la noción de “bienestar animal” que podrían identificarse, a su vez, con dos expresiones anglosajonas cuyo significado en castellano es idéntico: “Animal Welfare” versus “Animal Well-Being”4 . Dichas concepciones se traducen en el mundo jurídico en dos tesis aparentemente contrapuestas: la teoría del bienestar animal y la teoría de los derechos de los animales.
Para la primera de ellas, la expresión “bienestar animal” constituye un estatus normativo de protección que ha sido otorgado a los animales, por motivos diversos (el interés humano en preservarlos, las exigencias del mercado y los consumidores, prevención de enfermedades, etc.). Desde esta perspectiva, necesariamente antropocéntrica5, se parte del hecho de que, si bien los seres humanos
3 En este contexto, resulta obligado mencionar la conocidísima obra de Peter SINGER, Animal Liberation: A New Ethics for Our Treatment of Animals (New York Review/ Random House, New York, 1975), en el que se sientan las bases filosóficas fundamentales de los movimientos animalistas.
4 Al respecto, véase por ejemplo BEKOFF, M. y PIERCE, J. , “Animal welfare cannot adequately protect nonhuman animals: The need for a science of animal well- being”, en Animal Sentience, nº 7 (2016), pp. 1 y ss. En opinión de estos autores, el enfoque centrado en mejorar el bienestar [welfare] de los animales que son dañados con propósitos económicos o científicos “no protege y no puede proteger adecuadamente a los animales porque ello presupone que usar a otros animales con finalidades humanas es aceptable siempre que lo hagamos lo mejor que podamos”. En su lugar, ellos abogan por una ciencia del bienestar [well- being] animal, “en la que la protección de las necesidades de los animales no esté subordinada a la economía humana o a los intereses científicos”.
5 Cfr. ARIAS BLANCO, A. , “En defensa de la teoría del bienestar animal frente a los movimientos por los derechos de los animales”, ponencia presentada en las Jornadas Nacionales de Derecho Civil, Buenos Aires, Argentina, 2017. Disponible en: http:/ / sedici. unlp. edu. ar/ handle/ 10915/ 103122
seguimos utilizando a los animales para acompañarnos, alimentarnos, vestirnos, etc., existe en la actualidad un amplio consenso social en que tales actividades han de llevarse a cabo con el mínimo dolor y sufrimiento posibles para esos animales, de modo que ese estatus de protección debe paulatinamente ampliarse, conforme a los hallazgos científicos sobre la capacidad de sufrir y de sentir dolor constatada en las diferentes especies animales no humanas.
Por su parte, la teoría de los derechos de los animales le reprocha a la anterior su esencia antropocéntrica, utilitarista y especista, propugnando en su lugar una nueva interpretación de los derechos humanos más básicos (los fundamentales): los derechos humanos forman parte del marco político básico de una sociedad decente, y esas sociedades decentes establecen límites a lo que el Estado puede eventualmente hacer a los demás de forma justificada (lo que permite repudiar formas odiosas de discriminación racial como por ejemplo la esclavitud); y dado que no hay ninguna razón moral para discriminar por la pertenencia a la especie (como tampoco la hay para discriminar por la pertenencia a una raza), “nuestra creencia en los derechos nos compromete a una extensión de los derechos más allá de los humanos, y eso a su vez nos obliga a abolir todas las prácticas, como las granjas industriales y el uso de los animales como sujetos de investigaciones dolorosas y letales, que rutinariamente pasan por alto los intereses básicos de los titulares de derechos no humanos”6.
A pesar de las evidentes diferencias que pueden percibirse entre las diversas teorías (éticas o jurídicas) y movimientos (sociales o políticos) sobre protección de los animales que coexisten hoy en día, puede decirse que todos persiguen una misma meta, aunque para ello adopten perspectivas filosóficas y estrategias ideológicas distintas. Sin duda el objetivo es evitar sufrimientos innecesarios y gratuitos a los animales. Desde el punto de vista político criminal, la cuestión entonces radica en examinar la traducción normativa que ha dado el legislador a estas teorías y movimientos, con el fin de valorar hasta qué punto sirve para alcanzar la meta perseguida: asegurar la tutela del bienestar animal (ya sea entendido como estatus de protección otorgado por los humanos, ya concebido como catálogo de derechos “naturales” de todas las especies).
2. La tiPiFicación dEL MaLtrato a aniMaLEs doMésticos En EL
2.1. la redacción inicial de 1995
El sistema jurídico español retomaba en el artículo 632 del texto originario del Código Penal de 1995 el castigo como falta de quienes “maltrataren cruel-